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16 Madeira Sérgio Vignes Madeira A indústria de móveis, somada à de madeira, é a campeã em acidentes de trabalho que provocam incapacidade permanente em Santa Catarina, estado líder no setor moveleiro. Ações de prevenção têm sido adiadas.

Sérgio Vignes Madeira - dauroveras.com.br · saram a trabalhar a madeira. São Bento do Sul (75 mil habitantes), Rio Negrinho (45 mil) e Campo Alegre (13 mil) abri- ... ar legislações

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Madeira

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MadeiraA indústria de móveis,somada à de madeira,

é a campeã em acidentesde trabalho que provocamincapacidade permanente

em Santa Catarina,estado líder no setormoveleiro. Ações deprevenção têm sido

adiadas.

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e sangueDauro Veras

O Alto Vale do Rio Negro, no PlanaltoNorte de Santa Catarina, é o maior pólo expor-tador de móveis do Brasil. Essa história de lan-ces épicos começou em 1873, quando 70 famí-lias alemãs, polonesas, austríacas, tchecas e bra-sileiras subiram a Serra do Mar em mulas e pas-saram a trabalhar a madeira.

São Bento do Sul (75 mil habitantes), RioNegrinho (45 mil) e Campo Alegre (13 mil) abri-gam 650 empresas da cadeia produtiva de ma-deira e móveis, das quais 450 moveleiras. Jun-tas, movimentam metade da economia local eempregam 15 mil pessoas. São Bento do Sul

e sangue

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está entre os cem municípios bra-sileiros com maior Índice de De-senvolvimento Humano (IDH-M).

Por trás desse êxito oculta-se o alto custo humano cobradopela atividade. A indústria de mó-veis, somada à de madeira, é acampeã em acidentes de trabalhoque provocam incapacidade per-manente em Santa Catarina. A si-

tuação, bem pior nos anos 90, ain-da preocupa, mas a crise econô-mica deixou o tema da segurançano trabalho em segundo plano.

As movelarias enfrentam for-tes prejuízos com a valorização docâmbio, pois exportam 80% da pro-dução. Em 2005, dois mil postos detrabalho desapareceram e váriasempresas fecharam as portas. Em

conseqüência, as ações integradas deprevenção têm sido adiadas.

Nesta reportagem, trabalha-dores, empresários e representantesdo governo opinam sobre as causasde tantos acidentes e propõem solu-ções. Mutilados em movelarias con-tam suas tragédias pessoais, na es-perança de que sirvam de alerta aoscolegas e evitem outras.

ACIDENTES DE TRABALHOGRAVES E FATAIS EM SC

Acidentes incapacitantes Mortes

2004 775 147

2002 696 150

ACIDENTES DE TRABALHOGRAVES E FATAIS NA MADEIRA

Acidentes incapacitantes Mortes

2004 68 11

2002 67 03

ACIDENTES DE TRABALHOGRAVES E FATAIS NA CONSTRUÇÃO CIVIL

Acidentes incapacitantes Mortes

2004 41 07

2002 32 09

ACIDENTES DE TRABALHO GRAVESE FATAIS NA INDÚSTRIA MOVELEIRA

Acidentes incapacitantes Mortes

2004 37 01

2002 25 02

ACIDENTES DE TRABALHO GRAVES E FATAISNO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE CARGAS

Acidentes incapacitantes Mortes

2004 24 19

2002 24 22Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho 2004 - MTE/MPS, 2005Elaboração: DRT/SC e Observatório Social

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As quatro atividades mais pe-rigosas no estado de Santa Catarina,considerando morte e incapacidadepermanente, são: 1ª. Desdobramentoda madeira; 2ª. Indústria da constru-ção; 3ª. Indústria moveleira e 4ª.Transporte rodoviário de cargas. Aindústria de móveis, somada à demadeira, é a campeã em acidentes detrabalho que provocam incapacidadepermanente no estado.

Os dados mais recentes, de2004, mostram que, dos 775 aciden-tes com incapacidade permanente,105 (13,6%) ocorreram nas indústriasde madeira e de móveis. Doze das 147mortes (8%) foram de trabalhadoresdesses setores. Somente a indústriamoveleira apresentou 37 acidentesincapacitantes em 2004.

É o que informa o Anuário Es-tatístico de Acidentes de Trabalho,publicado pelo Ministério do Trabalhoe Emprego e pela Previdência Social.

Os campeões emacidentes do

trabalho em SCPara a DRT/SC,o setor não está

fazendo osinvestimentosnecessários

São Bento do Sul, com 75 mil, habitantes,é o centro do pólo moveleiro catarinense

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Estudo da Fundacentro (Fundação JorgeDuprat Figueiredo de Segurança e Medi-cina do Trabalho) realizado em São Ben-to do Sul estima que os números oficiaisrepresentam somente um quinto das ocor-rências de fato.

No caso da construção civil, o mai-or risco é a queda de altura, que pode serevitado com equipamentos de proteçãocoletiva e individual adequados. Os ris-cos no transporte rodoviário de cargasenvolvem fatores como o excesso de jor-nada dos motoristas e estradas mal con-servadas.

Vinte fiscais para5 mil empresas

“Temos só 20 auditores para fisca-lizar 5 mil empresas por ano e precisaría-mos de pelo menos 75”, diz o chefe dafiscalização da DRT/SC, Roberto Cláu-dio Lodetti. “Fiscalização deveria ter ca-ráter não só punitivo, como também edu-cativo”. Atualmente o auditor leva até umano para voltar à mesma empresa, em vezde três a quatro meses como seria ideal.Um concurso abrirá 200 vagas no paíspara 2006 e 2007. Santa Catarina devereceber 12 vagas.

O grande problema das indústriasmoveleira e madeireira é a falta de inves-timentos na proteção adequada de máqui-nas. Segundo Lodetti, a legislação queproíbe a venda de máquinas sem equipa-mentos de proteção vem sendo descum-prida como forma de baratear os custos.Para ele, não se justifica o argumento dadificuldade de importação, pois já existemmáquinas nacionais seguras.

Qualificação é outro ponto crítico.A maior parte dos funcionários é treinadapor profissionais mais antigos. Muitosacidentes ocorrem quando o trabalhadoré inexperiente, mas também quando éextremamente experiente – por excessode confiança. “A quantidade de profissio-nais formados é insuficiente para atendero mercado e poucas empresas investemem qualificação”, constata.

PressãoTrês dos 24 dirigentes do Sindicato

tiveram dedos mutilados no trabalho

Mutilações são um tema recor-rente no Sindicato dos Trabalhadoresna Indústria da Construção e do Mo-biliário de São Bento do Sul (Siticom,filiado à CUT). Dos 24 diretores, trêsperderam dedos fabricando móveis.Na categoria é difícil encontrar quemnão conheça alguém mutilado. Paraos trabalhadores a prevenção de aci-dentes continua em segundo plano naagenda patronal, mais focada em va-lorização do câmbio, carga tributáriae competição externa.

“A pressão por produtividade éuma das principais causas dos aciden-tes”, diz o presidente do Sindicato,Airton Edson Martins de Anhaia. “Osempresários citam a concorrência

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desleal da China como argumentopara pressionar por mais produção,por aumento de jornada e terceiriza-ções, e isso leva à fadiga”. Ele contaque todas as Comunicações por Aci-dentes de Trabalho (CAT) registra-das no hospital da cidade atestam “atoinseguro” e nenhuma diz “condiçãoinsegura”.

ReivindicaçõesAté 1994, predominava uma

situação precária. Naquele ano o Si-ticom entrou com ação coletiva naJustiça, exigindo melhores condiçõesde trabalho. Desde então, conta Air-ton, reduziram-se as ocorrências gra-ves, mas o número de acidentes con-tinua elevado.

O Sindicato quer que as em-presas combatam a subnotificação,adotem máquinas seguras e revisemo papel das Comissões Internas dePrevenção de Acidentes (Cipas).“Somos abertos ao diálogo, mas es-tamos perdendo a paciência com afalta de ação”, diz o sindicalista.

Sem indenizaçãoOutra reclamação é a falta de

apoio psicológico para a reintegraçãodos acidentados. “Quando ocorre umacidente, as empresas costumam pa-gar o seguro coletivo convencionado,mas a indenização por perdas e da-

nos só é obtida com ações na Justi-ça, que se arrastam por anos”, con-ta. “Muitos trabalhadores desistem dereclamar seus direitos por medo deperder o emprego”.

As Lesões por Esforços Re-petitivos e os Distúrbios Osteomus-culares Relacionados ao Trabalho

(LER/DORT) também são um pro-blema sério na atividade. “A maioriados responsáveis por Recursos Hu-manos nas empresas levam na brin-cadeira, dizem que é LERdeza” co-menta o sindicalista Ingo Petersen. “Ea maioria dos moveleiros prefere tra-balhar com dor a reclamar”.

As mutilações de dedossão um drama que afeta

muitos trabalhadores daindústria moveleira

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por produtividade

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De cada cinco acidentes de tra-balho ocorridos em São Bento do Sul,apenas um é registrado oficialmentepelo governo. É o que mostra um es-tudo realizado pela Fundação JorgeDuprat Figueiredo de Segurança eMedicina do Trabalho (Fundacentro),vinculada ao governo federal.

Sete em cada dez acidentados no pólo moveleiro do Planalto Norte catarinense ganham até doissalários mínimos; dois terços das ocorrências são ferimentos nos dedos e mãos.

Estatísticas ignoramSete em cada dezvítimas ganhammenos de dois

salários mínimospor mês

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A constatação, semelhante àverificada em outros municípios doBrasil, revela a necessidade de repen-sar a estratégia de coleta de dadospelo INSS, hoje descolada da reali-dade. Também reforça a reivindica-ção dos trabalhadores por mais parti-cipação no controle das condições de

dados foram comparados com os daPrevidência Social. Só 19,1% dosacidentes haviam sido informados aogoverno.

Em muitas Comunicações deAcidente de Trabalho (CAT) o tra-balhador é indicado como culpado pordescuido ou negligência, observa aeconomista Fabiana Carvalho da Sil-va, que realizou o estudo com ArturCarlos da Silva Moreira. Ela acreditaque vários profissionais de seguran-ça do trabalho, por serem atreladosàs empresas, não têm liberdade paraexpor sua convicção.

Perfil das vítimasO estudo indica que a idade

média dos acidentados é 27,6 anos.Os homens representam 87% do to-tal. Operadores de máquina (45%) eajudantes de produção (31%) são amaioria. Um quarto dos acidentesocorreu em junho e julho, meses fri-os. Cerca de 72% vitimaram traba-lhadores que ganham de um a doissalários mínimos – o piso é de R$457,20 e a média salarial, R$ 600,00.

Dedos são 47% das ocorrên-cias, mãos, 18% e pés, em torno de8%. Ferimentos de tronco e colunatambém são comuns, indicando jorna-da excessiva. O período da manhãconcentra a maioria dos acidentes.Em 20 empresas consultadas, nenhumfuncionário novo passou por treina-mento.

A Fundacentro quer realizar umseminário na região para mostrar aosempresários que segurança não é cus-to, é investimento. Está em andamentoum novo estudo em São Bento do Sulpara investigar a qualidade de vida notrabalho e a visão patronal sobre Res-ponsabilidade Social das Empresas.

segurança.O estudo analisou 2.598 aci-

dentes de trabalho registrados entrejaneiro de 2000 e julho de 2003 peloHospital Sagrada Família, o único dacidade. Do total, 1.115 (42%) acon-teceram no ramo de móveis. Esses

No BrasilAs estatísticas ofici-

ais de acidentes de traba-lho no Brasil começarama ser publicadas pela Pre-vidência Social a partir de1970. Os primeiros núme-ros eram muito altos, o quelevou o governo a publicarnormas específicas e a cri-ar legislações sobre a for-mação de profissionais es-pecializados, como enge-nheiro, médico e técnicode segurança do trabalho.

Os números cresce-ram até 1975, quando hou-ve 1,9 milhão de aciden-tes registrados. A partir de1976, foram caindo até ospatamares atuais que, des-de 1999, indicam em tor-no de 400 mil acidentesanuais. Mas o número demortes aumentou, possi-velmente porque não hácomo deixar de informá-las.

Vários especialistasquestionam os númerosoficiais. Apontam proble-mas como mudanças nalegislação que desestimu-laram a coleta de infor-mações, subnotificação,aumento da informalidadee estrutura precária daPrevidência Social paracontrolar a CAT.

80% dos casos

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O presidente do Sin-dusmobil, Udo Weihermann,atribui parte do problema dosacidentes à rápida moderni-zação da indústria moveleira.Em dez anos o foco mudoude móveis coloniais com ma-deira nativa vendidos ao mer-cado interno para móveis empínus reflorestado visando omercado internacional.

“Essas mudançasatraíram muitos trabalhadores não-qualifi-cados para a região, onde antes havia ple-no emprego”, diz. Ele admite que, além deatos inseguros, existem também condiçõesinseguras. “É um clima horrível quando umaempresa tem um acidente; ninguém quer terum”.

Weihermann destaca os progressosjá obtidos, em especial nas empresas degrande porte, e acredita que o setor cami-nha para uma grande redução no númerode acidentes: “Um dia a cobrança por se-gurança vai chegar ao mesmo nível de prio-ridade que a cobrança por qualidade”.

Ação conjuntaEle defende uma atuação conjunta

de empresas, trabalhadores e governo parapadronizar os procedimentos de controlede segurança e aumentar o monitoramentosobre a cadeia de fornecedores. Sua expec-tativa é que as ações da Comissão Triparti-te de Prevenção comecem em breve.

O empresário acredita que facilitar oprocesso de importação de máquinas repre-sentaria um avanço importante, principal-mente para as pequenas e médias empre-sas, que utilizam equipamentos ultrapassa-dos ou obsoletos.

Um ponto essencial para transfor-mar a realidade, na sua avaliação, é o inves-timento em educação com perspectiva delongo prazo: “Queremos que a próxima ge-ração esteja preparada para trabalhar comsegurança”.

Falta de qualificação éparte do problema

Crise adia açõesde prevenção

Em outubro de 2005 foimontada uma comissão paraestudar os acidentes de traba-lho nas movelarias do Alto Valedo Rio Negro e adotar ações deprevenção. Formada pelos sin-dicatos patronal e de trabalha-dores, pela Universidade de Jo-inville (Univille), Sesi, Senai eFundacentro, a comissão adiouseus trabalhos a pedido da ban-cada patronal.

O atraso é atribuído peloempresariado ao momento eco-nômico desfavorável, que levoua indústria moveleira a colocara sobrevivência como priorida-de. Os dirigentes moveleiros sequeixam do fortalecimento doreal frente ao dólar, golpe duropara um setor que exporta 80%da produção.

Entre janeiro de 2005 ejaneiro de 2006 houve mais de2 mil demissões e queda de16,5% nas horas trabalhadas,segundo o Sindicato das Indús-trias da Construção e do Mobi-liário de São Bento do Sul (Sin-dusmobil). Em um ano o núme-ro de empregos formais no pólomoveleiro do município caiu de9 mil para 7 mil.

Estudo setorialUm estudo realizado pelo

pesquisador Adelino Denk paraos sindicatos patronais quanti-fica o momento difícil pelo qualpassa o setor. A pesquisaabrange 67% das empresas doAlto Vale do Rio Negro, maiorpólo exportador de móveis doBrasil e terceiro exportador deSanta Catarina.

Os dados indicam prejuí-

zo acumulado de R$ 51,7 mi-lhões, 4,6% sobre o faturamen-to em 2005. O prejuízo contabi-lizado é de R$ 32,1 milhões,equivalentes a 2,9% do fatura-mento do setor, quando descon-tados os lucros de R$ 19,5 mi-lhões. Os créditos tributáriosacumulados somam R$ 102milhões, 9,1% do faturamento.

Entre 2001 e 2006, pros-segue o estudo, a inflação acu-mulada foi de 71%, enquanto ocusto da mão-de-obra subiu63% e o preço da madeira su-perou os 120%. No mesmo pe-ríodo o dólar caiu 8%. Energiaelétrica e diesel também fica-ram muito acima da inflação doperíodo.

ReivindicaçõesNo dia 11 de maio os di-

rigentes moveleiros pediram aoministro da Fazenda, GuidoMantega, alívio no impacto ne-gativo do câmbio. O setor acre-dita que o dólar entre R$ 2,40 eR$ 2,60 seria adequado.

A resposta do governofoi a mesma dada aos seto-res automotivo e calçadista: apolítica cambial será mantida.Mantega prevê que a queda dataxa Selic no Brasil – associ-ada à elevação dos juros nosEstados Unidos – fará comque o câmbio se torne maiscompetitivo.

Os empresários tambémpediram agilidade na compen-sação de créditos tributáriosaos quais as empresas têm di-reito. Ele prometeu pedir à Re-ceita Federal que agilize a aná-lise dos pedidos.

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Trabalhadores falam sobreo trauma de suas vidas

Quando o assunto é acidente em movela-rias, a família Osovsky tem muito a contar. Val-dir, o pai, perdeu três dedos e parte dos movi-mentos da mão esquerda. Seu filho Vilmar, diri-gente sindical, teve o nervo do polegar esquer-do lesado por um corte na lixadeira. O outrofilho, Vilson, perdeu os movimentos do polegardireito na multisserra. Um tio perdeu dois dedos.

Seis de outubro de 1999, 11h10. Valdirtrabalhava em uma indústria de móveis havia21 anos como operador de máquinas. Tentouabrir um pedaço de madeira com a mão na serra

OS MUTILADOS

OSOV

SKY circular. A peça trancou e a lâmina decepou

seu polegar. Outros dois dedos foram esmaga-dos. Ele sangrou duas horas até receber socor-ro médico.

“Foi excesso de confiança, falha minhae da firma”, reconhece. “Trabalhei tantos anossem proteção e um dia aconteceu. Depois dissofizeram um levantamento dos problemas e me-lhoraram a segurança”. A empresa não o inde-nizou. Um dos donos era seu primo e, como Val-dir admite parte da responsabilidade, decidiunão buscar seus direitos.

Antônio Alves Martins, 45 anos, também lembra com precisão o momento em que sua vidamudou: às 20h15 de 13 de fevereiro de 2001, ele perdeu quatro dedos da mão esquerda enquantofazia a moldura de um espelho numa fresa da empresa Intercontinental, maior exportadora demóveis do Brasil:

“Senti o sangue jorrando, vi nervos e pele. Então desliguei a máquina, levantei a mão e pediajuda. Os colegas enrolaram a mão numa toalha e me levaram ao hospital. Fiquei brabo comigomesmo, me lamentava preocupado com o sustento da minha família. Depois de três dias internado,tive uma recuperação rápida. Pensei comigo: ‘Aconteceu, paciência, tenho que levantar a cabeçae tocar pra frente’. Recebi a indenização e agora sou dono de um mercadinho”.

Ele conta que a Cipa atribuiu as causas em parte a um erro humano, em parte a um erro deferramentaria – as lâminas foram montadas e encaixadas de maneira indevida. Antônio acha queo acidente poderia ter sido evitado se não houvesse tanta pressão por produtividade: “Os patrõesestavam na fábrica naquela noite e foi uma correria, eles queriam aqueles móveis prontos...”.

MARTINSWACTAVSKI

No dia 27 de maio de 2005, Almir Wacta-vski, então com 28 anos, trabalhava na Inter-continental. Às 16h30 a máquina apresentou umproblema e ele foi verificar, mas não desligou oequipamento porque “o pessoal estava com pres-sa”. Um segundo de distração bastou: “O auxi-liar me chamou, virei para falar com ele e a má-quina puxou minha mão”. Almir perdeu quatrodedos da mão direita.

“Se a máquina tivesse proteção isso nãotinha acontecido”, diz. “Fazia três meses que eupedia isso, mas eles diziam que não podiam pa-rar o serviço. Na mesma noite do meu acidentecolocaram proteção em todas as máquinas”. Al-mir passou três meses em desespero, depois su-perou o trauma com apoio da família e do sindi-

cato. Hoje vive com uma pensão do INSS equi-valente a 70% do salário que recebia, de R$580,00. Entrou com ação na Justiça pedindoindenização.

Três meses antes – 19 de fevereiro de2005 às 17h20 – seu irmão Marcelo Wacta-vski, hoje com 23 anos, trabalhava como pro-totipista na Embramóvel quando perdeudois dedos da mão esquerda. Deprimido,pensou em se matar, mas foi dissuadido peloirmão. “Eu estava no hospital dando conse-lhos a ele e pouco tempo depois fiquei inter-nado no mesmo quarto”, lembra Almir. “Re-cebi R$ 2 mil pelos dois dedos”, recordaMarcelo, que atribui o acidente à falta deproteção na máquina.

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VERSÃO DAS EMPRESAS

EMBRAMÓVELO gerente de produção da Embramóvel,

João Luís Grossl, diz que o acidente sofrido porMarcelo Wactavski foi provocado por desatençãodo trabalhador: “Até hoje não consigo entendercomo aconteceu – ele era um funcionário bastan-te cuidadoso, mas foi negligente. A esquadreja-deira é uma máquina com duas serras usada parafabricar protótipos; não há como cobrir as lâmi-nas. Lamentei muito. Fui eu que o acompanhei aohospital. A gente procurou ajudar, mas ele pediupara sair”.

Grossl não soube informar quanto foi pagode indenização ao acidentado: “Nossa política éfazer o que é justo e certo”. Para ele, a principalcausa dos acidentes de trabalho nas movelarias éa cabeça dos funcionários: “O salário é pequenoe isso desmotiva os mais jovens, que são um pou-co inconseqüentes. As empresas até buscam pes-soas qualificadas, mas 70% da mão-de-obra é ma-landra, não tem amor pelo trabalho”.

Em março a Embramóvel desativou sua li-nha de produção e demitiu 70 funcionários.

INTERCONTINENTALCom relação aos

acidentes de trabalho men-cionados, a Intercontinen-tal gostaria de esclarecer:

a) Sr. Almir Wacta-wski: foi apurado pela CIPAque o funcionário ao fazeruma tarefa de rotina, corre-ção da altura do cabeçote

nr. 05, não desligou o cabeçote nr. 04 como deve-ria ser feito, acabando por ter sua mão direita atin-gida pelas facas deste cabeçote que se encontra-va em funcionamento, provocando desta forma oacidente. Apuraram, ainda, que a Ordem de Servi-ço de treinamento assinada pelo acidentado pre-vê no item “m” que as máquinas devem ser desli-gadas para efetuar regulagens, e no item “ n” es-tabelece que o funcionário deve sempre desligar amáquina para qualquer reparo. A causa do aci-dente, segundo a apuração e decisão unânime daCIPA, foi o ato inseguro praticado pelo emprega-do/acidentado, que não desligou o equipamentoquando pretendia efetuar um trabalho de rotina deajuste de altura do cabeçote do equipamento.

b) O sr. Antônio Alves Martins exercia a fun-ção de prototipista. No relatório de investigação eanálise de acidente ficou constatado que ao fazera usinagem em uma peça de montante de quadroespelho, o acidentado, apesar de experiência devários anos na função, decidiu usinar uma peçasem o gabarito, contrariando orientações do su-pervisor da área e as normas internas da compa-nhia. O acidentado tentou duas vezes e não con-seguiu realizar a operação. Na terceira tentativa,

A Intercontinentalenviou por correio

eletrônico aseguinte nota,

que publicamosna íntegra:

a peça voltou para trás porque estava sem o calçode apoio e gabarito que estavam disponíveis e de-veriam ser utilizados. Numa nova tentativa, levousua mão esquerda junto, quando aconteceu o aci-dente.

A Intercontinental Indústria de Móveis Ltdaé uma empresa que sempre esteve preocupadacom o bem-estar de seus funcionários e de toda acomunidade. Realiza altos investimentos para asquestões de segurança no trabalho. Entre as di-versas ações, podemos destacar que todos os seusfuncionários, antes de iniciarem suas atividades,recebem vários treinamentos relacionados à áreade segurança e na função que irão exercer. Alémdo treinamento, existe um constante acompanha-mento, verificando se as normas estão sendo cum-pridas ou não. Também incentiva a participaçãoativa de seus funcionários nas questões de segu-rança através da CIPA.

Dentro da política de segurança desenvolvi-da pela empresa visando a total segurança de seusfuncionários durante suas atribuições diárias, aempresa desenvolveu um manual de segurança,que todos os funcionários recebem ao entraremna empresa, onde estão estabelecidas todas asnormas básicas e procedimentos de segurança notrabalho.

Além disso, a empresa age com rigor parafazer cumprir o uso de EPIs por todos seus funci-onários, prevendo, inclusive, penas de suspensãopara os casos de descumprimento das normas.Contudo, a questão da segurança no trabalho éuma responsabilidade conjunta da empresa e dofuncionário.

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A Móveis James, de São Ben-to do Sul, empresa de porte médiocom 150 funcionários e R$ 13,5 mi-lhões de faturamento em 2005, é apon-tada pelo próprio Sindicato dos Tra-balhadores como um exemplo na pre-venção de acidentes. A começar pe-los equipamentos. Seu parque fabrilpossui máquinas importadas que re-

O médico cirurgião Eduardo Moraes, especializa-do em mãos, atende quase todos os casos de acidentesgraves em São Bento do Sul. De cada dez pacientes seus,quatro se feriram em atividades profissionais. Amputa-ções, lesões de tendão e tentativas de reimplante de mãose dedos – em alguns casos, bem sucedidas – fazem partede seu cotidiano. Para ele, se a lei fosse aplicada comrigor, 50% das empresas do município teriam de fecharas portas por falta de segurança.

“Quando eu cheguei aqui há 16 anos, a situaçãoera indecente, era uma batalha campal”, recorda. Mora-es atendia de 40 a 50 pacientes graves por dia; hoje sãoseis a sete, o que ele considera um número ainda elevadopara uma população de 75 mil habitantes. “Havia muitafabriqueta de fundo de quintal e menores de 18 anos semvínculo empregatício”, conta. “Depois a pressão dos com-pradores europeus por maior qualidade de vida para ostrabalhadores melhorou a situação”.

O médico ressalta que, embora os acidentes te-

“É preciso ensinar a prevenção na escola”Médico defende mais

fiscalização e mais orientaçãonham sido reduzidos nasgrandes empresas, aindaocorrem por causa da pres-são por produtividade e pelomau preparo dos trabalha-dores. Ele defende não só oaumento na fiscalização,como também na orienta-ção, como parte de uma po-lítica nacional: “Precisamosensinar a prevenção de aci-dentes domésticos, de trân-sito e de trabalho já na es-cola, com exemplos práticos,junto com a prevenção aoalcoolismo e às drogas”.

Moraes diz esperarcom ansiedade a implantação do Projeto de Saúde doTrabalhador em São Bento do Sul. Outras duas propos-tas do médico: que os acidentes de trabalho sejam trata-dos em separado dos demais, para facilitar o exame dascausas e planejar melhor as ações; e a criação de umaestrutura independente, privada, para atacar o problema.

Produtividade com éticaEmpresa aposta em segurança como vantagem competitiva

duzem ao mínimo o contato com fer-ramentas perigosas.

“Prefiro que a empresa seja vis-ta não como ‘bom exemplo’, e simcomo uma que faz o dever de casa”,diz o diretor presidente, James Pfut-zenreuter. O histórico de acidentesgraves é mínimo, mas o empresáriodeixa claro que o risco faz parte daatividade: “É preciso conscientizar osfuncionários disso”. Ele destaca se-gurança como vantagem competitivaque fortalece a confiança do cliente.E lembra que o funcionário parado re-presenta prejuízo tanto para a Uniãocomo para a empresa.

O valor do ritmoUma das reclamações mais fre-

qüentes dos trabalhadores moveleirosde São Bento do Sul, a pressão ex-cessiva para produzir, não parece serponto de conflito na Móveis James.

“Eu cobro produtividade, mas com éti-ca”, afirma. “Não se pode apressaruma atividade onde existe risco. O rit-mo do trabalho é mais importante queos picos”.

Há dez anos uma empresa daárea de segurança no trabalho dá as-sessoria três vezes ao mês e cobra adiretoria sobre o que precisa ser mu-dado. A Cipa faz uma ata mensal e adiretoria implementa as mudançaspropostas. O equipamento de prote-ção individual é obrigatório de fato:“Sou um cara chão de fábrica, façoquestão que usem”, diz.

Entre as medidas que ele de-fende para aumentar a segurança estáo incentivo do governo à compra deequipamentos importados – mais pra-zo e mais carência nos financiamen-tos –, pois as máquinas alemãs e ita-lianas não têm, na sua avaliação, si-milar nacional.

Eduardo Moraes:orientação comopolítica nacional

James Pfutzenreuter:“Minha empresa faz o dever de casa”

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Bastante dependente das oscilações domercado externo, o setor teve um ótimo desem-penho entre 2003 e 2004, com aumento de 42%nas exportações. A variação entre 2004 e 2005foi de apenas 5,4% em função da valorizaçãocambial. Em 2005 o Brasil exportou US$ 1,018bilhão em móveis.

Nove em cada dez móveis exportados sãodos estados do Sul mais São Paulo. Santa Ca-tarina lidera com 42% das exportações, segui-da de Rio Grande do Sul (26%), São Paulo (12%)e Paraná (9%). Os maiores compradores sãoEstados Unidos, França, Reino Unido, Argenti-na e Alemanha.

O Alto Vale do Rio Negro, no PlanaltoNorte de Santa Catarina, é o maior pólo expor-tador de móveis do Brasil – US$ 368 milhõesem 2005. Abrange os municípios de Rio Negri-nho, Campo Alegre e São Bento do Sul – esteresponde por dois terços das exportações dopólo.

Fortalezas e debilidadesEntre as características positivas do pólo

moveleiro do Alto Vale do Rio Negro, segundoestudo do consultor Adelino Denk, estão a dis-ponibilidade e proximidade de matérias-primas;a qualidade reconhecida do produto no mercadomundial; a proximidade dos portos; a presençade empresas especializadas na prestação deserviços e a atualização tecnológica.

Os pontos fracos são, entre outros, o ele-vado grau de verticalização; o fraco entrelaça-mento com fornecedores; a dependência do de-sign externo; a falta de estratégias cooperativasde longo prazo e a integração passiva e depen-dente no mercado internacional. Há muitas ini-ciativas em curso para modernização de ges-tão, mas encontram dificuldades pela forte pre-sença de empresas familiares.

Uma das principais ameaças externas éo crescimento da China. A competitividade dopaís asiático é tão expressiva que um númerocrescente de empresas moveleiras dos EstadosUnidos está transferindo suas estruturas produ-tivas para lá para aproveitar os baixos custos deprodução.

Perfil da indústria moveleiraA indústria de madeira e mobiliário é o terceiromaior empregador de mão-de-obra do Brasil,com 852 mil trabalhadores, que representam6,8% da ocupação do setor industrial. Entre2001 e 2004 o crescimento médio do setor foide 1,79%, abaixo da média de crescimento dopaís (2,2%).

Crescimento da IndústriaCrescimento da IndústriaCrescimento da IndústriaCrescimento da IndústriaCrescimento da IndústriaMoveleira do Brasil - 2000-2005Moveleira do Brasil - 2000-2005Moveleira do Brasil - 2000-2005Moveleira do Brasil - 2000-2005Moveleira do Brasil - 2000-2005

Evolução do Emprego formal em SC noEvolução do Emprego formal em SC noEvolução do Emprego formal em SC noEvolução do Emprego formal em SC noEvolução do Emprego formal em SC nosegmento madeira/móveis - 2002-2005segmento madeira/móveis - 2002-2005segmento madeira/móveis - 2002-2005segmento madeira/móveis - 2002-2005segmento madeira/móveis - 2002-2005

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ASSÉDIO MORAL

A violência camufladaHumilhação e tortura

fazem parte do dia-a-diade muitos trabalhadoresbrasileiros, em flagranteviolação de direitos e com

efeitos devastadoresna saúde.

Século 21. 2006. Brasil. Umaoperária do setor fabril da região Sulé acorrentada a uma máquina têxtil.Ela só será libertada depois de cum-prir sua meta de produção. Assimcomo todas as outras trabalhadorasque apresentaram baixa produtivida-de.

Outra trabalhadora, de umaempresa do Nordeste do país, parausar o banheiro durante o serviço éobrigada a fazer a limpeza dos sani-tários, pias e chão. Ela decide levarum urinol para o trabalho e fazer suasnecessidades fisiológicas diante dascolegas.

Numa terceira empresa, naBahia, vários trabalhadores são colo-cados num auditório. Os homens quenão atingiram as metas de vendas sãoobrigados a desfilar vestidos de mu-lher, ornamentados com um pênis deplástico preto – os negros têm queusar o artifício de plástico branco. Eas mulheres são oferecidas de brindepara programas sexuais com os cole-gas que atingiram as metas. As quenão aceitam são queimadas com ci-garros nas nádegas.

Humilhação, tortura, violência.Perpetrada de forma sistemática con-tra trabalhadores, com o objetivo detorná-los mais produtivos, ou descar-tá-los por baixa produtividade. Todos,vítimas do assédio moral.

São apenas três casos pinça-dos entre os encontrados e publica-dos pela pesquisadora Margarida Bar-reto, uma das maiores autoridades noBrasil sobre assédio moral.

Sylvia Palma

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30

atrasos, os castigos para o não cum-primento de metas, a intolerância paraqualquer tipo de doença ou queixa;são atos de violência, que agridem ooutro, e, dependendo de quanto agri-dem, podem se constituir até em danomoral. Têm uma intenção e uma di-reção. Normalmente é para fazer apessoa desistir do emprego. A pessoaacaba, muitas vezes, pedindo a demis-são e ainda carrega com ela seqüelasgraves, como transtornos mentais.

Durante cinco anos a médica,que se especializou na área da psico-logia social, entrevistou mais de doismil trabalhadores. Defendeu tese demestrado e doutorado sobre o tema.E ainda, com base em consultas aoutros 42 mil trabalhadores de todo opaís, de empresas privadas e públi-cas, de organizações não governa-mentais e sindicatos, traçou a primei-ra grande pesquisa nacional sobre otema. O resultado impressiona: dototal dos entrevistados, 10 mil reve-laram ter sido vítimas de humilhaçãoe constrangimento, repetidamente, noambiente de trabalho, na maior partedos casos, por ação dos chefes. Sóno sindicato dos químicos, onde sedeu o início da pesquisa, 42% dos tra-balhadores sofriam assédio moral.

Os sintomasA classe trabalhadora está ado-

ecendo muito por causa do assédiomoral. E os sintomas são nítidos, ex-plica a médica:

– Às vezes, a pessoa nem sabeque está sofrendo o assédio, mas pe-los sintomas é possível detectar o pro-blema. Pode começar com choros fre-qüentes, tristeza, falta de concentra-ção, de vontade de ir trabalhar, quepode se caracterizar por estresse.Mas assédio moral não é estresse. Noassédio há um processo de esmaga-mento que – muitos autores acredi-tam – pode levar a um suicídio psí-quico. É uma desvalia tão grande que

a pessoa não se considera mais útil epode acabar se matando. Muitos têmtranstornos como perda de memória,insônia, sonhos e pesadelos com o ti-rano ou agressor. Desenvolvem achamada Síndrome de Burnout, quese caracteriza por exaustão emocio-nal, avaliação negativa de si mesmo,depressão e insensibilidade com re-lação a quase tudo e todos. Quandochegam à empresa sentem palpita-ções, pânico, calafrios, suores. Aí vema depressão, a angústia, muito comumhoje. Fora isso, você tem outras tan-tas patologias que podem ser agra-vadas por fatores emocionais, comodiabetes e hipertensão.

Bancários,vítimas freqüentesRegivaldo Farias, 30 anos, fun-

cionário do Banco do Brasil em Per-nambuco, é vítima de assédio moral.Ele conta que começou a sofrer as-sédio de seu chefe no primeiro mêsde trabalho:

– O meu gerente não pedia ascoisas, ele ordenava. Eu ficava sem-pre depois do horário. Ele não tinhadiálogo, só monólogo, era ouvir e nãopoder nunca colocar minha opinião.Aquilo foi me afetando, fui seguran-do. Ele só chegava pra criticar, diziaque meu trabalho não prestava, issojá nos primeiros três meses de ban-co. Fui ficando doente, meu sistemaimunológico baixou e eu procurei umapneumologista. Ela me examinou eme encaminhou para um psiquiatra.

Margar idaBarreto,médica:

“Assédiomoral é um

risco nãovisível depotência

devastadorana saúde”

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ulga

ção

Violação de direitos– O assédio moral é um risco

não visível de uma potência devasta-dora na saúde do outro e uma viola-ção de direitos dos trabalhadores. Éuma humilhação sistemática ao lon-go do tempo. Os berros, os gritos, osmurros na mesa; os operários revis-tados como ladrões na saída das fá-bricas, os limites de tempo para o usodo banheiro, as penitências para os

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O psiquiatra me disse que realmenteeu precisava de um acompanhamen-to e que tinha que sair do ambienteda agência. Cheguei a ser internado.E até lá no hospital, o gerente ligavapara saber quando eu ia sair. Ele eratão opressor que me fez desmarcaruma audiência judicial por causa dotrabalho. Proibiu-me de usar a tesoura-ria do banco, ordenou que os funcioná-rios não me atendessem. Era humilha-ção atrás de humilhação. Só fui ter pazquando ele foi transferido. Mas foi umaluta que durou um ano e dois meses.

A paz que Regivaldo conquis-tou foi graças ao Sindicato dos Ban-cários, que publicou uma cartilha so-bre assédio moral. Por meio dela,Regivaldo teve consciência de quesua saúde não tinha sido afetada poruma fragilidade pessoal, mas de umsistema perverso de controle de pro-dução. Segundo Regivaldo, algunscolegas já tinham passado por aquilo,mas entendiam que “esse era o jogoa ser jogado”. Criticar era perder ojogo ou se arriscar a ficar fora dele.

Só com a intervenção do Sin-dicato e com laudos de quatro psiqui-atras, Regivaldo conseguiu provar queo problema não era só dele, mas dosistema. Um dos psiquiatras chegoua ir à agência e fazer entrevistas comoutros funcionários. Comprovou que10% deles estavam com problemaspsíquicos. Era uma agência doente.Depois disso, o gerente perseguidorfoi transferido.

A adminis-tradora

legislativaCristina de

Almeida foitransferida

para alimpeza

depois defazer

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ra

– A gente sabe que o gerentetambém sofria pressão. Falam tantoem responsabilidade social, mas sóvejo isso da porta pra fora da institui-ção. Para dentro são metas e metas.Claro que temos que atingir as me-tas, eu sempre atingi as minhas, maspor que a gente tem que ser humilha-do para isso? Eles falam que é umproblema interpessoal, mas não é não,em todos os bancos existe a mesmacoisa – completa.

E o sindicato comprova. Segun-da a Secretária Geral do Sindicato dosBancários, Suzineide Medeiros, coor-denadora do projeto “Assédio Moralna Categoria Bancária, Uma Experi-ência No Brasil”, que deu origem àcartilha, pelo menos 39% dos bancá-rios sofrem assédio moral.

– Fizemos uma pesquisa com-parativa e, na média, poderíamos di-zer que 32 mil bancários, nos últimosseis meses, passaram por isso.

A pesquisa foi feita com ban-cários de 25 estados, de todas as re-giões do Brasil. No caso dessa cate-goria, o maior constrangimento é comrelação a metas abusivas.

– Éramos 800 mil, hoje somos400 mil, houve uma redução drásticados trabalhadores. A categoria devetrabalhar seis horas. Mas se sair nessehorário, outros acusam o que saiu dedeixar trabalho acumulado. A com-pensação por banco de horas tambémé aleatória. As folgas não são plane-jadas junto ao trabalhador. E ainda sãocobradas dele as metas. Aqueles quenão conseguem atingi-las são subme-tidos ao assédio. O funcionário é vis-to como descartável, diz Suzineide.

A médica e pesquisadora Mar-garida Barreto explica por que essaprática é cada vez mais comum en-tre as empresas:

– A gente vive numa socieda-de ainda marcada pelo coronelismo,na qual as atitudes autoritárias sãobastante banalizadas. Por outro lado,

há uma nova reorganização interna-cional do trabalho. A política de ges-tão das empresas visa ao resultadoem curto prazo. Nela o trabalhadornão é importante, e sim a sua produ-tividade. É o neoliberalismo. E o tra-balhador, para não perder o empre-go, compromete sua saúde física emental. O resultado disso é perda dedireitos. É trabalho precarizado, bai-xos salários, ameaça de desempre-go. Adoeceu, eliminam-se os adoe-cidos, coloca-se gente mais nova.

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O bodeUm patrão obriga-

va o funcionário que nãoatingia as metas da em-presa a conviver em seuambiente de trabalho comum bode. O empregadoconsiderado fracassadotinha que cuidar do animalpor um determinado tem-po. Se bode perdessepeso, ele era obrigado apagar 200 reais para opatrão. Se morresse, a dí-vida dobrava. O trabalha-dor tinha que levar o ani-mal para casa, expondo-se à zombaria pública.

OUTROS CASOS DE ASSÉDIO MORALOUTROS CASOS DE ASSÉDIO MORALOUTROS CASOS DE ASSÉDIO MORALOUTROS CASOS DE ASSÉDIO MORALOUTROS CASOS DE ASSÉDIO MORAL

Indenização roubada

Gravidez indesejadaUma trabalhadora de empresa

pública era perseguida e humilhadapela chefe. Como necessitava do tra-balho, tentava contornar a situação.Um dia se descobriu grávida e, que-rendo compartilhar a felicidade com ascolegas, anunciou emocionada a notí-cia. Ao ouvir, a chefe destacou: “Eu

odeio mulher grávida!” Quanto mais agravidez ia avançando, mais a chefeperseguia a funcionária, que passou ater pânico de ir ao trabalho. O descan-so só chegou no momento de dar à luzao filho. Mesmo assim, depois teve quepedir transferência do local de traba-lho.

A cada fim de contrato, a empre-sa propunha ao funcionário terceirizadocontinuar naquele trabalho, com outraempresa que estava entrando para onovo período de contrato. Para isso, aprincípio ele receberia todos os direitostrabalhistas, as multas rescisórias, etc,

mas no momento em que fosse descon-tar o cheque no banco, deveria devolverparte desse pagamento à empresa. O Mi-nistério Público conseguiu flagrar o mo-mento em que o trabalhador devolvia par-te de sua indenização ao representanteda empresa.

Assédio moralna política

Cristina de Almeida, candidatapelo PSB ao Senado pelo Amapá nasúltimas eleições, acreditava só fazero seu trabalho quando denunciou, noperíodo em que foi superintendente doIncra, que mais de 25 mil hectares deterra da União foram ocupadas irre-gularmente por pessoas influentes doestado – entre elas, um deputado es-tadual, um juiz, um deputado federal,um promotor, funcionários públicosfederais e agricultores. Até o presi-dente da Assembléia Legislativa, de-putado Jorge Amanajás, estava envol-vido, disse ela. A denúncia ecooucomo uma bomba na região. Negra,39 anos, um metro e oitenta de altu-ra, ela foi afastada do cargo no In-cra, ameaçada de morte e sofreu todotipo de difamação.

Mas o pior ainda estava por vir.Na Assembléia Legislativa ela haviaentrado através de concurso públicopara ocupar o cargo de administra-

dora legislativa e exercer a função deauditora. De lá fora cedida ao Incra.Chamada a se reapresentar, Cristinafoi obrigada, por determinação do pró-prio presidente da Assembléia, depu-tado Jorge Amanajás, a ocupar umcargo na área de serviços gerais. Aretaliação, com fortes tons de precon-ceito racial e assédio moral, não rece-beu protesto de nenhum parlamentar.

– Eu pensei em cercá-lo naAssembléia para tirar satisfação, mastive orientação do partido para acei-tar a situação. Os jornais publicarama história. As pessoas iam lá ver seera verdade. Fiquei então trabalhan-do na limpeza. Nenhuma das quatromulheres parlamentares, duas delasinclusive integrantes da mesa direto-ra, teve a coragem de anunciar no ple-nário a minha situação. Mas muitosmovimentos reagiram: o Conselho Es-tadual de Mulheres, o Instituto deMulheres Negras, o Partido Socialis-ta Brasileiro, todos fizeram uma car-ta para ele, sem nenhum resultado.

Cristina teve que passar os diaslimpando o chão e as cadeiras da As-

sembléia, para o constrangimento daspróprias serventes, que sabiam da in-tenção do deputado de humilhar a mu-lher que o tinha denunciado. Ela fica-va também na cozinha, onde era vigi-ada diretamente pelo chefe imediatode Amanajás. Teve o ponto cortadodurante o período de transição do In-cra para a Assembléia. Quando re-solveu ir à televisão denunciar sua si-tuação, foi obrigada a tirar férias paraque o caso fosse abafado. Agora queela perdeu a eleição para o Senado,terá que retornar ao cargo na Assem-bléia nas mesmas condições.

– Eu dei queixa de assédio mo-ral no Ministério Público e me deramumas fichas para preencher. Informeique me retiraram da folha, recorri comtodos os advogados possíveis e ne-nhum teve uma resposta pra mim. Osprocuradores abriram processo, masnão foi pra frente, está lá parado!

Mico na mesaO Ministério Público, que no

Amapá não fez muito por Cristina, no

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Diego GomesJorge foiexcluído doprograma“Jovens pelaPaz” por serecusar a sercaboeleitoral

Div

ulga

ção

Rio de Janeiro tem sido mais atuan-te. Não existe ainda lei federal quecombata o assédio moral, mas algunsestados aprovaram uma lei que pro-tege o trabalhador dessa situação. ORio de Janeiro é um deles. Segundoo juiz do trabalho da 48ª Vara do RJ,Cláudio Olimpio Lemos de Carvalho,o assédio moral, pela lei, é uma espé-cie de dano moral, esse sim, previstono Código Civil.

– Todos nós temos valoresimateriais como honra, boa fama, ima-gem etc. O assédio moral é uma es-pécie de “dano moral”, porque a vio-lência ao patrimônio de uma pessoaé causada de forma contínua e per-manente. É como se fosse um danomoral homeopático, são pequenasdoses diárias que acabam aniquilan-do a auto-estima.

O juiz afirma que têm aumen-

tado as ações por assédio moral noestado. Num dos casos julgados porele, a trabalhadora reclamava que sesentia humilhada porque, quando nãoatingia a meta de vendas, era obriga-da a trabalhar com um mico de pelú-cia em cima da mesa de trabalho.Toda vez que ela se levantava damesa para vender, tinha que levar omico com ela. E durante toda a se-mana tinha que ficar com o mico emcima da mesa.

– Para uma criança de dez anosnão teria problema talvez! Mas paraum trabalhador, sim, é uma ofensa,embora seja apenas um boneco depelúcia. Não é um xingamento, algoque efetivamente viole o patrimôniode alguém, é um dano sutil. O curio-so é como as coisas se disseminamno ambiente de trabalho. Não é só ohumilhado a vítima. Quem receberáo “troféu” no próximo mês? Todospassam a viver sob pressão, medo, an-gústia, o terror psicológico de ter quepassar por aquela situação.

Para o juiz, há pouca consci-ência do problema do assédio moralnas empresas. Os empregadoresmuitas vezes têm dificuldade de en-tender e aceitar que estão cometen-do um ato danoso. Dizem que estãosurpresos, que era só uma brincadei-ra, um jogo, e que isso sempre existiuno ambiente de trabalho.

O gerente regional da CaseConsult – empresa de recrutamentoe seleção de executivos – André Bo-cater Szeneszi concorda que o assé-dio moral é velho conhecido dos tra-balhadores. Ele tem uma opinião di-ferente sobre o assunto e acredita quea novidade hoje esteja apenas nonome.

– Isso sempre existiu, a pres-são, a questão de puxar tapete, essacoisa toda. O nome é que é novo. Oque mais tem hoje são empresas tra-balhando em esquema de curtíssimoprazo, em que existe esse ambiente.As pessoas que trabalham nessasempresas reclamam, mas não procu-ram outro trabalho, mais adaptado aoseu perfil. Elas acabam ficando ali por-que já estão empregadas. Por outrolado, essas empresas também achamque é preferível trabalhar assim.Acham que investir no pessoal não énegócio. Seu produto já está com amargem tão alta que preferem sugaro máximo desse profissional, até eleexplodir. Depois é só trocar, porquetem muita mão-de-obra no mercado.

Ele acrescenta que a maioriadas empresas com as quais tem con-tato no mercado estão preocupadascom a qualidade de vida e com ambi-ente saudável no trabalho Mas nãoaconselha as pessoas que estejam vi-vendo esse problema a processarsuas empresas:

– Muito trabalhador acha quese entrar na justiça vai perder a em-pregabilidade pra sempre. Dependeda forma que isso vai se dar e qual ocusto-benefício disso aí. Tenho medoque vire um mercantilismo. Advoga-dos se aproveitando disso para ganhardinheiro, banalizando as relações detrabalho e até acabando com as em-presas. Você pode ter um chefe mui-to ruim e às vezes não ser culpa daempresa. Melhor é sair e procuraroutro emprego.

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É o oposto do que pensam ojuiz Cláudio Olimpio e o promotor daJustiça do Trabalho, João Bertier.Para eles, a atitude mais adequadaquando se vive um assédio moral édenunciar ao sindicato ou ao Minis-tério Público.

– São práticas que tendem aaumentar se não forem combatidas.Elas crescem cada vez mais. Geral-mente estão ligadas às empresas queestabelecem metas de venda. Recen-temente, uma empresa de telefoniaestabeleceu que os funcionários sópoderiam ir ao banheiro uma vez aodia, num determinado horário. “A em-presa foi julgada e condenada a pa-gar a um funcionário, por assédiomoral, dez mil reais, mas não reco-nheceu o erro, o que é lamentável”,diz o juiz Cláudio Olimpio.

A importânciada denúncia

Para procurador João Bertier,o único método de combater o assé-dio é a transparência, porque ele nãose dá diante da sociedade, mas den-tro das empresas.

– Ao denunciar, isso tende adiminuir. O sindicato da categoriapode ajudar nisso, seu papel é funda-mental. Ele deve ser atuante, forte,estar constantemente dialogando como trabalhador. Ele é que pode fazeressa ponte. E o trabalhador não pre-cisa aparecer. Pode fazer a denúnciaanonimamente ao sindicato ou ao Mi-nistério Público. Existem meios paraque ele não fique com o ônus da de-núncia. Pode entrar com uma açãocoletiva, por exemplo. A empresa ja-mais vai saber quem deu início à re-clamação.

O músico Diego Gomes Jorge,ex-monitor do projeto Jovens pelaPaz, do governo do estado do Rio deJaneiro, foi vítima de assédio moral.

Ele preferiu entrar com uma ação co-letiva na procuradoria da Justiça deNova Iguaçu, contra o governo. Masnão se esquivou de liderar seus cole-gas nem de aparecer como mentorintelectual da ação.

O caso é de assédio moral po-lítico partidário. Diego e outros jovensdenunciam que o programa Jovenspela Paz, cujo objetivo declarado éinserir jovens na sociedade por meiode atividades culturais e artísticas, temobrigado os participantes a trabalharem campanhas políticas do PMDB,partido do governo, e em repartiçõespúblicas.

Ele conta que começou comovoluntário do programa em 2004, de-pois se tornou bolsista. Em um mêsfoi colocado no cargo de monitor, dan-do aulas de canto e de teoria musicale instrumental para os jovens. Era res-ponsável por cem jovens e recebia 800reais por mês. A seguir passou a su-pervisor, com a missão de orientar osmonitores, e ficou no cargo por umano. O coordenador geral do progra-ma, Gilson Pinheiro Sombra, é namo-rado da Clarice Matheus, filha dagovernadora Rosinha Matheus. Du-rante esse período na supervisão, Di-ego percebeu uma enorme engrena-gem com objetivos políticos.

– A maioria dos bolsistas eramindicações políticas. Quando eu era

bolsista, já achava estranho ter quedar 10 reais de colaboração do auxí-lio-bolsa para o supervisor. Diziam queera uma caixinha para custear even-tos. Depois que comecei a conhecera supervisão, vi que havia vários gru-pos políticos dentro do programa, li-gados ao PMDB, para os quais deví-amos trabalhar. Quando era lançadaalguma campanha importante do go-verno, a gente tinha que ir lá fazer“claque”. Quem não ia era sumaria-mente demitido. Como muitos neces-sitavam da bolsa – mães solteiras, porexemplo – iam obrigados. Era cons-trangedor. Eu fui excluído quando nãoquis trabalhar para a campanha doprefeito de Nova Iguaçu, Mario Mar-ques. Eu tinha que botar os bolsistascomo cabos eleitorais dele. Só naBaixada Fluminense são 900 bolsis-tas, mais ou menos 7 mil em todo es-

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ONDE DENUNCIAR

Ministério Público ou Procuradoria Pública do Município Sindicato de sua categoria

Importante: a denúncia pode ser anônima

O coordenador do programa Jovens pela Paz, do Governodo Estado do Rio de Janeiro, Wilson Sombra, afirma que DiegoGomes Jorge foi desligado do programa por não ter apresentado osrelatórios solicitados pela coordenadoria do projeto, que atestam odesenvolvimento das atividades sócio-culturais junto aos jovens. Dizainda que as alegações de Diego só foram feitas depois de ele tersido afastado do programa justamente por causa do não cumpri-mento de suas atribuições.

Sobre a alegação de Diego de que o motivo do afastamentoteria sido a recusa em participar como cabo eleitoral das eleiçõespara prefeito na baixada fluminense, Wilson Sombra contesta e ga-rante que Diego só foi afastado meses depois das eleições citadas.Sobre a participação de bolsistas do programa em campanhas dogoverno, informa que nenhum jovem era obrigado a participar de-las.

Questionado sobre as motivações de Diego para entrar comuma ação contra o Estado, disse as que desconhece. Alega que oprograma envolve 15 mil jovens e somente Diego tomou essa inici-ativa, configurando um ato isolado. Sobre o uso do trabalho dos emrepartições públicas, Sombra explica que o programa Jovens pelaPaz faz convênios com a Defensoria Pública, que desenvolve ativi-dades de capacitação para o trabalho. Diz que os jovens são convi-dados e não obrigados a ocupar essas vagas. Ele assegura que osparticipantes são escolhidos pelos monitores na comunidade.

AmapáO presidente da Assembléia Legislativa da Amapá, deputado

Jorge Amanajás, foi procurado pela reportagem via e-mail e portelefone, insistentemente, por vários dias. Foi oferecido a ele o mes-mo espaço ocupado por Cristina Almeida para que pudesse se de-fender das acusações de assédio moral e grilagem. No entanto, ape-sar das promessas por parte da secretária do deputado, Maria deJesus, e de seu chefe de Gabinete, Claudomiro Borges da Silva, deque receberíamos uma resposta para as acusações e documentosimportantes atestando os acontecimentos, nada foi enviado até ofechamento desta edição. Num último telefonema, a secretária in-formou que todos estavam cientes de que a reportagem seria publi-cada sem a resposta do deputado.

NA INTERNET

www.assediomoral.org

tado. Imagina esse pessoal todo fa-zendo campanha. Comigo saíram 50a 60 bolsistas. Nós entramos comuma ação coletiva por assédio moralna Procuradoria de Nova Iguaçu. Aação é por racismo também, porquemuitas vezes nós éramos chamadospor termos que evidenciavam o ra-cismo.

O procurador da justiça do tra-balho de Nova Iguaçu, João Bertier,aceitou a denúncia. Foi aberta umaação do Ministério do Trabalho como Ministério Público em conjunto.

- Não havia inclusão social al-guma. Primeiro houve o desvio doprograma. Segundo, eles foram obri-gados a trabalhar para o Estado semconcurso público. E por último, tive-ram de aderir ao movimento políticoda juventude do PMDB. É assédiomoral, coação, porque a rigor essesjovens deveriam ser inseridos em pro-gramas sociais. O processo está emandamento, confirma o promotor.

Por que têm crescido tanto oscasos de assédio moral no país? Oprocurador procura a resposta:

– Isso é herança do trabalhoescravo. O trabalhador não é vistocomo um cidadão, mas como coisa.Muito assédio moral no Brasil tem aver com perversidade, mas outrostêm a ver com a questão da cidada-nia. Como aquelas empresas que re-vistam os empregados na hora de irembora. O empregador acha que otrabalhador é sua propriedade. Issocontribui muito para o assédio. O Bra-sil tem que se reeducar nas relaçõesde trabalho e a denúncia é o primeiropasso para isso.

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TTTTTrabalho erabalho erabalho erabalho erabalho etranstornos mentaistranstornos mentaistranstornos mentaistranstornos mentaistranstornos mentais

O trabalho em condições perigosas,humilhantes ou de extrema pressão porprodutividade pode levar a sérios danos

psíquicos. A exposição a substânciastóxicas também provoca alterações de

comportamento, linguagem, memória eaprendizado.

U– Um piloto de metrô em SãoPaulo vê alguém pular na frente dotrem. Na época em que eu pesquisei,há alguns anos, a média dessas ocor-rências era de uma por semana. Eleteve que voltar a trabalhar no dia se-

a um caso de estresse pós-traumáti-co, um dos diversos transtornos psí-quicos que o trabalhador pode vir asofrer. O caso fez parte de uma pes-quisa sobre a saúde mental dos me-troviários encomendada para o Die-sat – Departamento Intersindical deEstudos da Saúde dos Ambientes de

Trabalho.– Quando a pes-

soa tem estressepós-traumático,

passa a quererevitar o localde trabalho”,explica am é d i c a .“Precisa terapoio psico-lógico parasuperar aqui-lo”. Ela relata

que o pilototambém passou

a sonhar com asvisões. Começou

a ficar nervoso emuito deprimido, em

conseqüência da falta de tratamentoadequado a tempo.

Depois que veio a depressãoele ficou quase um ano sem traba-lhar. Ao voltar, não foi encaminhadoa tratamento psicológico e ficou tra-balhando à base de calmantes. Edithconta que na entrevista ele dizia: “Ah,se pelo menos me dessem outra li-nha, a norte-sul, para eu não ter quepassar pela estação Bresser, porquequando eu passo por lá já começo ame sentir mal...”

O estresse pós-traumático serelaciona tanto à violência no traba-

lho quanto à violência social. Porexemplo: o caixa de uma agência ban-cária que é assaltada pode presenci-ar cenas de grande violência. Comoconseqüência, passa a vivenciar aque-la situação no dia-a-dia. “Esse pro-fissional não deve ser submetido amais agressão, que é encarar o tra-balho como se nada tivesse aconte-cido”, esclarece a médica.

Outro exemplo de estresse pós-traumático decorrente do ambiente detrabalho é o dos fotógrafos policiais,que freqüentemente têm de fotogra-far pessoas assassinadas. Os sinto-mas são semelhantes: flashback –lembrança das imagens que choca-ram o trabalhador –, sonhos, hesita-ção em relação ao ambiente que lem-bre aquela situação.

A leiAté 1999 as doenças mentais

ligadas ao trabalho não eram citadasna classificação geral das doençasque afetam os trabalhadores. O es-tudo de um grupo de pesquisadoresda Faculdade de Medicina de MinasGerais forneceu uma lista de trans-tornos mentais relacionados ao tra-balho. Isso deu base para a portarianº 1.339/1999, adotada pelo Ministé-rio da Previdência Social e pelo Mi-nistério da Saúde.

Em 2001, a lista Transtornosmentais e do comportamento relaci-onados ao trabalho se transformounum manual de serviços para orien-tar profissionais da área de saúdepública em seus diagnósticos. Tornou-se um instrumento importante para ostrabalhadores, que puderam ter am-

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guinte. Quando passou na estaçãoonde havia ocorrido o suicídio, teveuma visão da cena. Ficou paralisado,suando frio, não conseguia fazer maisnada. Aí tiveram que tirá-lo dos tri-lhos naquele dia. Mas ele continuoutrabalhando no outro e no outro, ten-do que passar por aquele trauma co-tidianamente.

Este relato da médica Edith Se-ligmann, que há mais de 20 anos pes-quisa doenças do trabalho, se refere

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paro da previdência no caso de afas-tamento do trabalho motivado pelasdoenças listadas.

O manual também vem servin-do aos pesquisadores interessados nolevantamento de estatísticas para de-tectar quais setores da economia têmmaior incidência de casos. Edith Se-ligmann considera fundamental esselevantamento, para que os trabalha-dores possam cuidar dos seus direi-tos junto às empresas e conseguir aresponsabilização delas.

Crescem a cada dia os proces-sos de adoecimento por causa da re-estruturação produtiva, que deixa aspessoas inseguras no ambiente de tra-balho. Apesar das novas tecnologias,os trabalhadores estão mais sobrecar-

regados. Um dos resultados dessenovo arranjo é o aumento da depres-são e do alcoolismo – que estão tam-bém na lista dos transtornos mentaise do comportamento.

Alcoolismo crônico“O alcoolismo muitas vezes

surge como uma tentativa de agüen-tar a carga insuportável da depres-são”, diz a doutora Seligmann. Ela fazuma lista dos trabalhos em que o al-coolismo está mais presente:

Os muito perigosos, em que fal-tam meios adequados para se prote-ger.

Os que demandam muita comu-nicação, como em vendas. Usa-se abebida para estar alegre, disponível efalante.

Os que envolvem muita pres-são e cobranças injustificadas, comobancário ou jornalista.

Os considerados socialmente re-pugnantes, como lixeiro, coveiro ouem matadouros de animais.

Na opinião da médica, essas sãoprofissões em que as pessoas precisa-riam ser muitas bem tratadas e ter pos-sibilidades de progredir na carreira paraocupar outras atividades.

Neurastenia e burn outEsse transtorno, que inclui a

síndrome de fadiga ou fadiga pato-lógica, está muito relacionado a ope-rários que fazem trabalhos repetiti-vos com esforço físico intenso e nãotêm tempo de se recuperar do can-saço. Eles se sentem desanimadose sem forças.

As LER/DORT – lesões poresforços repetitivos, distúrbios os-teomusculares relacionados ao tra-balho – são doenças físicas que po-dem ter origem psíquica. Sua ocor-rência é favorecida pela tensãoemocional. Às vezes levam à sín-drome de fadiga crônica.

Burn Out também é conheci-da como síndrome do esgotamentoprofissional. É uma espécie de es-tresse agudo. Acontece muito comprofissionais de saúde e educado-res que não recebem reconheci-mento e enfrentam muitas adversi-dades.

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Um caso específicoUm caso específicoUm caso específicoUm caso específicoUm caso específicoO alcoolismo e as drogas tam-

bém afetam grande número de tra-balhadores das plataformas de petró-leo da Bacia de Campos. Confinadospor duas semanas em alto mar, essesprofissionais trabalham 12 horas pordia, sem sábado ou domingo, em tur-nos alternados – uma semana de dia,outra semana de noite. Os trabalha-dores diretamente contratados folgam21 dias em terra. Os terceirizados –a grande maioria – folgam apenas 14dias. Quando estão em terra, muitoscompensam o estresse em compor-tamentos compulsivos como a buscapor álcool, drogas, jogos etc.

A assistente social Maria dasGraças Alcântara da Costa Rocha, doSindicato dos Petroleiros, o Sindipe-tro, trabalha desde 1998 com esseperfil de trabalhadores:

– A maioria dos que me procu-

ram não vem por problemas psíqui-cos, mas conversando com eles nóspercebemos a depressão, a drogadi-ção e o alcoolismo. Eles vivem numcontexto conturbado. A rotina juntoà família é afetada. Os filhos têm di-ficuldade de aprendizagem e de acei-tar a autoridade paterna, as esposasreclamam da falta de cooperação.Eles também têm um patamar de to-lerância baixo e muitos são agressi-vos.

Graça, como é conhecida pe-los trabalhadores, acredita que essestranstornos psíquicos estão relacio-nados ao contexto do trabalho nas pla-taformas. Apesar da falta de estatís-ticas, diz que o problema é sério emuito pouco falado:

– A distância da casa, o confi-namento, o preconceito com o homemque está no mar e deixa a mulher so-zinha em terra, a questão dos baixossalários, principalmente dos terceiri-zados, tudo isso é muito estressante.

Aldir de Souza Viera, 34 anos,14 anos no setor petroleiro, é um des-ses terceirizados. Há quatro anos emeio na plataforma P10 como ope-rador de guindaste, ele passa de umafirma para outra, sempre no mesmosetor. Fica 14 dias embarcado e 14dias em terra para ganhar 2.600 re-

ais por mês. Seu tempo máximode almoço é de 20 minutos.

Ele trabalha das 7 damanhã às 7 da noite. Depois

do horário, a rotina é tomarbanho, comer e assistir

tevê. Cada trabalhadorna plataforma tem direi-to a ficar apenas 30 mi-nutos por dia conecta-do à internet. Como sãomais de 100 profissio-nais, é quase impossívela comunicação freqüen-

te com a família e os amigos.– Até uns anos atrás, o pesso-

al terceirizado era humilhado, faziacoisas difíceis de um ser humano acei-tar. Hoje está melhor, mas essa roti-na leva a muita depressão. Um cole-ga nosso se matou. Eu não senti de-pressão, mas angústia sim. Vontadede ir embora, sumir, mas tenho famí-lia para criar, não posso largar – , con-ta.

Carlos Antonio da Silva, 40,também vive a mesma rotina estres-sante na plataforma P9. Diz que mes-mo com a pressão, não mudaria detrabalho, pela segurança que a em-presa lhe dá. Mas, reclama do regi-me de turnos alterados:

– Quando você vai para a pla-taforma, na primeira semana traba-lha de dia e na segunda de noite. Éuma adaptação difícil de rotina, eu par-ticularmente não durmo nessas vira-das. Você quer uma coisa e seu or-ganismo outra. Mas se pudesse tra-balhar em terra, eu não gostaria. Issoaqui é uma cachaça, a gente se vicia.

Mergulhadores guerreirosTranstorno de sono foi uma das

queixas mais ouvidas pelo engenhei-ro Marcelo Figueiredo, especializadoem organização do trabalho, quandofez estudo de doutorado sobre a saú-de dos mergulhadores de águas pro-fundas na Bacia de Campos. É tam-bém uma das doenças listadas pelomanual do Ministério da Saúde.

Os mergulhadores da indústriapetrolífera costumam ser profissionaisterceirizados – estão sujeitos a con-dições de trabalho mais estressantese podem ser demitidos a qualquermomento. Eles estão expostos a umacarga de trabalho intensa, que temefeitos ao longo dos anos. Doenças

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gastro-intestinais, diabetes e hiperten-são podem ter origem psicológica, masnão são diagnosticadas assim.

O risco de acidente com subs-tâncias inflamáveis gera ansiedadepermanente. Vários mergulhadoresusam mecanismos de defesa indivi-duais e coletivos para se manter noregistro de normalidade. Alguns có-digos de virilidade entre eles têm afunção de sustentação psíquica, ex-plica o pesquisador:

– Trabalhador que embarcanão pode manifestar cansaço ou es-tresse. Para suportar as condiçõestem que ser guerreiro. Quando vocêfaz uma manobra às duas da manhã,em condições ruins do mar, pareceque está numa frente de batalha: alança do guindaste passa sobre suacabeça, um cabo de aço pode arre-bentar e matar quem estiver pela fren-te, a pistola de hidrojateamento poderomper seu intestino... São riscos le-vados ao extremo. Nesta situação nãobasta ser guerreiro, tem que ser HighLander –, diz, referindo-se ao filmede ficção científica em que o herói sóperde a imortalidade se cortarem acabeça dele. – O melhor guerreiro éaquele que passa por tudo e não morre.

O Sindipetro propõe um Pro-grama de Saúde Mental para os tra-balhadores do setor:

– Hoje os agentes de saúdepensam a doença mental do trabalha-dor como uma questão individual, vin-da de uma predisposição da pessoa,e não como conseqüência das rela-ções do trabalho. Propomos que es-sas questões sejam também pensa-das pelo serviço público – diz a assis-tente social Maria das Graças.

Substâncias tóxicasNo manual adotado pe-

los Ministérios da Saúde e daPrevidência são mencionadostambém vários distúrbios men-tais no ambiente de trabalho li-gados à intoxicação por ele-mentos químicos ou a traumacrânio-encefálico. Por exem-plo, a demência, o transtornoorgânico de personalidade e otranstorno cognitivo leve – estepode ser causado por níveiselevados de ruídos.

A principal causa é a ex-posição a substâncias tóxicascomo monóxido de carbono,sulfeto de carbono, metais pe-sados como chumbo, mercú-rio, manganês ou, ainda, sol-ventes e outras substâncias.Entre as conseqüências estãoalterações no comportamento,na memória, na linguagem, noaprendizado e nas áreas cog-nitivas.

O manual orienta quenesses casos, identificadas asdoenças, é preciso neutralizarimediatamente os fatores derisco, realizar o diagnósticopreciso do paciente e afastá-lodo trabalho para tratamento.Também é importante dar su-porte aos familiares para con-viverem com a doença e emi-tir a CAT – Comunicação deAcidente do Trabalho, para queo trabalhador possa ser asse-gurado pela previdência.

Uma reflexãoUm caminho para prevenir e

resolver problemas de adoecimentomental é perceber como é feita a or-ganização do trabalho. Segundo osespecialistas, a gestão empresarialpode causar muitos sofrimentos ao tra-balhador. É importante transformar oesforço em algo que dê satisfação epossibilite exercer a criatividade.

O trabalho realizado em ambi-ente saudável tem dois lados: o daresponsabilidade e do prazer. Respon-sabilidade de levar até o fim aquelajornada e o prazer da construção edifusão daquele bem por toda socie-dade.

Os especialistas defendem asensibilização dos trabalhadores paraque eles conquistem esse ambientenovamente. Para que possam pressi-onar por uma legislação que impeçaas empresas de exigir tanta produti-vidade e competitividade. E pressio-nar por um sistema de saúde com-prometido com a prevenção e trata-mento das doenças do trabalho.

Um dos primeiros passos paraisso seria a reestruturação do tempoe dos laços afetivos no trabalho. Épreciso dividir melhor as tarefas e ostempos, para que todos se sintam me-lhor. Dinâmicas micro-sociais sãoações preventivas para a manutençãoda saúde mental.

Os especialistas também sãounânimes em afirmar que, sem essasações, a conta de tanto adoecimentovai bater no sistema público de saú-de. Isso não é mais um problema sóda classe trabalhadora, mas de todaa sociedade brasileira.

S.P.