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SÉRIE PENSANDO O DIREITO O DESENHO DE SISTEMAS DE RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE DISPUTAS PARA CONFLITOS DE INTERESSE PÚBLICO Convocação 01/2010 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - FGV Equipe de pesquisa Coordenação Daniela Monteiro Gabbay Luciana Gross Cunha Pesquisadores Adolfo Braga Neto Carlos Alberto de Salles Eduardo Junqueira Spanó de Paiva Marco Antonio Garcia Lopes Lorencini Natalia Langenegger Nathalia Mazzonetto Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, Sala 434 CEP: 70.064-900 Brasília – DF www.mj.gov.br/sal e-mail: [email protected]

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SÉRIE PENSANDO O DIREITO

O DESENHO DE SISTEMAS DE RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE D ISPUTAS PARA CONFLITOS DE INTERESSE PÚBLICO

Convocação 01/2010

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - FGV

Equipe de pesquisa

Coordenação

Daniela Monteiro Gabbay Luciana Gross Cunha

Pesquisadores Adolfo Braga Neto

Carlos Alberto de Salles Eduardo Junqueira Spanó de Paiva

Marco Antonio Garcia Lopes Lorencini Natalia Langenegger Nathalia Mazzonetto

Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, Sala 434

CEP: 70.064-900 Brasília – DF www.mj.gov.br/sal

e-mail: [email protected]

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Ministério da Justiça

Secretaria de Assuntos Legislativos – SAL

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD

Projeto BRA/07/004

Democratizando Informações no Processo de Elaboração Normativa

“Projeto Pensando o Direito”

RELATÓRIO FINAL DA PESQUISA:

“O Desenho de Sistemas de Resolução Alternativa de Disputas para Conflitos de Interesse Público”

Instituição realizadora:

Fundação Getúlio Vargas (FGV)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA E RELEVÂNCIA DA PESQUISA ................................................................................................................................. 5

1. OBJETIVOS E METODOLOGIA DA PESQUISA............................................................ 11

1.1. Objetivos........................................................................................................................11

1.2. Etapas da pesquisa.........................................................................................................12 1.3. Estudo de casos..............................................................................................................13

2. DESCRIÇÃO DOS CASOS................................................................................................. 20 2.1. Caso dos Autistas ..........................................................................................................20 2.2. Vítimas do Choque de Trens da CPTM ........................................................................31 2.3. Caso de Loteamento Irregular .......................................................................................35

3. ANÁLISE DOS CASOS ...................................................................................................... 45 3.1. Caso dos Autistas ..........................................................................................................45

A) Replicabilidade do caso...............................................................................................45 B) Poder Judiciário como ponto de partida? ....................................................................45 C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento (alguma padronização)?.......................49

D) Quem paga a conta? ....................................................................................................50 E) Quem fiscaliza?............................................................................................................51 F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente? Vantagens ou desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)...................................................................52 G) Diálogo interinstitucional ............................................................................................55 H) Barreiras da Administração Pública? ..........................................................................57 I) Comportamentos oportunistas? Vulnerabilidades?.......................................................57

3.2. Vítimas de choque de trens da CPTM...........................................................................59 A) Replicabilidade do caso...............................................................................................59 B) Poder Judiciário como ponto de partida? ....................................................................60 C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento (alguma padronização)?.......................61

D) Quem paga a conta? ....................................................................................................61 E) Quem fiscaliza?............................................................................................................62 F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente? Vantagens ou desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)...................................................................63 G) Diálogo interinstitucional ............................................................................................64 H) Barreiras da Administração Pública? ..........................................................................65 I) Comportamentos oportunistas? Vulnerabilidades?.......................................................67

3.3. Loteamento irregular .....................................................................................................68 A) Replicabilidade do caso...............................................................................................68 B) Poder Judiciário como ponto de partida? ....................................................................70 C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento (alguma padronização)?.......................71

D) Quem paga a conta? ....................................................................................................73 E) Quem fiscaliza?............................................................................................................77 F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente? Vantagens ou desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)...................................................................78 G) Diálogo interinstitucional ............................................................................................82 H) Barreiras da Administração Pública? ..........................................................................85

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4

I) Comportamentos oportunistas? Vulnerabilidades?.......................................................86

4. UM CASO COMPARATIVO: O PROGRAMA INDENIZATÓRIO DA BRITISH PETROLEUM .......................................................................................................................... 91

5. CONCLUSÕES E PROPOSIÇÕES..................................................................................... 95 5.1. Proposições normativas: regras claras para autorizar os entes públicos a celebrar acordos e transacionar ........................................................................................................100 5.2. Criação de Câmaras e foros de solução de controvérsias envolvendo a Administração101

5.3. A figura do designer, do observador e do Special Master...........................................103

5.4. Criação de Fundos .......................................................................................................107 6. REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 110 7. ANEXO: CASOS MAPEADOS NA 1A FASE DA PESQUISA....................................... 113

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APRESENTAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA E RELEVÂNCIA DA

PESQUISA

O objetivo desta pesquisa foi mapear e analisar casos brasileiros que envolvam direitos

individuais homogêneos, difusos e coletivos e que possam servir de mote para se pensar o desenho

de sistemas de resolução alternativa de disputas (Dispute System Design - DSD) para conflitos de

interesse público.

Para fins da pesquisa, consideramos como conflitos de interesse público aqueles que

envolvam a Administração Pública como parte (elemento subjetivo), que tenham por objeto um

interesse público, social ou coletivo (elemento objetivo), e que, quando levados ao Judiciário, visem

obter tutela jurisdicional coletiva (direitos e interesses difusos, coletivos e individuais

homogêneos)1.

Dentro dessa perspectiva, existem três diferentes perfis de conflitos: i. entre atores privados;

ii. entre atores públicos (Administração); iii. entre atores públicos (Administração) e atores

privados. O objeto da pesquisa compreende os conflitos que envolvem a Administração e atores

privados.

Há uma série de questões que podem advir desta relação, no campo da responsabilidade do

Estado, de contratos públicos, da prestação de serviços, dentre outros. Os casos escolhidos na

pesquisa refletem em alguma medida esta diversidade.

1 Sobre as crises da noção de interesse público e o direito administrativo, vide AZEVEDO MARQUES, Floriano. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002, pp.144-170. Não adotamos na pesquisa uma separação rígida entre o público e o privado, estando de acordo com Mauro Cappelletti, que considera que a summa diviso “público-privado” aparece irreparavelmente superada diante da realidade social de nossa época, que é infinitamente mais complexa, mais articulada, e mais sofisticada do que aquela simplista dicotomia tradicional. Assim, nossa época traz preponderantemente ao palco novos interesses difusos, novos direitos e deveres que, sem serem públicos no senso tradicional da palavra, são, no entanto, coletivos: pertencem, ao mesmo tempo, a todos e a ninguém. Cf CAPPELLETTI, Mauro. Formações Sociais e Interesses coletivos diante da justiça Civil, Revista de Processo, São Paulo, n. 05, jan./mar. 1977, p. 135.

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O desenho de sistemas de solução de disputas pode ser feito sob medida para diferentes

contextos e envolver diferentes atores e tipos de conflitos. Notou-se, contudo, que quando a

Administração está presente, normalmente na posição de demandada (devedora ou prestadora de

serviços), as características do desenho, o papel dos atores envolvidos, o nível de

institucionalização, os desafios e dificuldades para sua resolução extrajudicial assumem contornos

próprios, diferentes de quando o desenho de sistemas envolve empresas privadas.

A responsabilidade objetiva do Estado, as restrições à autocomposição e os limites à

negociação pela Administração, o pagamento de dívidas através de precatórios, as restrições

orçamentárias, a responsabilidade do gestor público (sob o efeito das leis de responsabilidade fiscal

e de improbidade administrativa), a indisponibilidade do bem público, a inafastabilidade da

jurisdição, e a posição restritiva do Tribunal de Contas quanto aos meios alternativos de solução de

conflitos2 foram alguns fatores apresentados pelos entrevistados nesta pesquisa como dificuldades e

desincentivos à resolução extrajudicial de conflitos de interesse público.

Essas dificuldades, por outro lado, não foram consideradas como barreiras

instransponíveis3, e o objetivo da pesquisa foi refletir acerca das possibilidades e potencialidades de

2 Sobre essa posição restritiva do Tribunal de Contas, não admitindo que seja realizada resolução extrajudicial na falta de autorização legislativa, vide a posição do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), que é limitativa a esse respeito, mesmo em relação às Parcerias Público-Privadas. Posiciona-se o TCE/SP: “enquanto a declinação do juízo estatal possa ser prática comum em ajustes privados, a possibilidade de escolha do juízo arbitral para contratos públicos tem outros contornos, eis que a Administração deve agir com supremacia e indisponibilidade do interesse público. Nessa qualidade, os bens e interesses públicos não estão prontos à disposição do próprio órgão administrativo que os representa, ou entregues à livre vontade do administrador”. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Contratos de Parcerias Público-Privadas: Guia Básico – 2005. Disponível em http://www.tce.sp.gov.br/arquivos/manuais-basicos/guia-basico-2005-PPP.pdf. Acesso em 30.06.2010 .Vide também SALLES, Carlos Alberto de. A arbitragem na solução de controvérsias contratuais da Administração Pública. Tese entregue à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo como requisito para obtenção do título de Livre-Docente junto ao Departamento de Direito Processual, São Paulo, 2010, (cap. 2, Parte IV). 3 E nem impediram que algumas experiências fossem vivenciadas no desenho de sistemas de resolução alternativa de disputas (DSD), como foi o caso das indenizações coletivas negociadas pela Defensoria Pública no acidente do metrô em São Paulo, em 2007. Mais detalhes em http://www.premioinnovare.com.br/praticas/indenizacoes-extrajudiciais-relacionadas-ao-acidente-do-metro-em-sao-paulo-2546/. Importante destacar que foi um incentivo para a adoção deste método resolução de conflito extrajudicial o precedente da Câmara de Indenização para a Reparação das Vítimas do acidente aéreo

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haver um desenho extrajudicial de solução de conflitos envolvendo a Administração Pública por

meio de um diagnóstico da situação atual, com base no estudo de casos e nas percepções dos atores

entrevistados.

Nesse contexto, experiências bem sucedidas em DSD têm um papel muito importante para

a transposição dessas barreiras, revelando, além do “como fazer”, os possíveis resultados que

podem ser alcançados. Foi o caso das recentes experiências envolvendo a criação de câmaras

indenizatórias em acidentes aéreos: a Câmara de Indenização Voo 3054, criada em decorrência do

acidente aéreo com o Voo Tam 30544; e o Programa de Indenização 447, originado com o acidente

do Voo Air France.

Ambos são importantes precedentes, fruto de iniciativa do Ministério da Justiça que,

juntamente com as companhias aéreas, suas seguradoras, órgãos integrantes do Sistema Nacional de

Defesa do Consumidor e do Sistema de Justiça5 e os próprios familiares das vítimas, construíram

um sistema com o intuito de fixar e pagar indenizações coletivas, através de um modo eficiente e

menos custoso (o que inclui também os custos de transação), alem da redução dos desgastes

emocionais e psicológicos das partes e do seu maior controle e satisfação sobre o processo e o

resultado6.

da TAM. Conforme entrevista realizada com integrante da Defensoria Pública, foi um pedido do governador a instalação de procedimento tendo como parâmetro aquele adotado nos casos de acidentes aéreos. 4 Para um relato mais aprofundado da experiência, vide FALECK, Diego. Introdução ao Design de Sistemas de Disputas: Câmara de Indenização 3054. Revista Brasileira de Arbitragem. Ano V, n. 23, jun-ago-set 2009, Porto Alegre: Síntese; Curitiba: CBAr, pp. 7-32. 5 Ministério Público do Estado de São Paulo, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Fundação Procon/SP e o Departamento de Proteção ao Consumidor da Secretaria de Direito Econômico, órgão vinculado ao Ministério da Justiça. 6 Os sistemas foram construídos sobre os pilares da confiança e compreenderam fatores como transparência, isonomia, apoio em critérios objetivos, eficiência e participação governamental; por outro, a lei e decisões do STJ foram usadas como parâmetros para que as partes pudessem negociar montantes dignos de indenização que correspondessem à peculiaridade de cada caso.

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Houve também a criação da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal

(CCAF), pelo Ato Regimental nº 5, de 27.09.20077; e, no âmbito do Ministério Público do Estado

de São Paulo, tem-se estudado a criação de uma Câmara de Mediação para Interesses Difusos,

Coletivos e Individuais Homogêneos.

Em termos legislativos, é importante destacar a proposta de criação de um programa

extrajudicial de prevenção e reparação de danos para interesses ou direitos difusos, coletivos e

individuais homogêneos, no Projeto de Lei de Ação Civil Pública (PL 5139/2009), que é analisado

na parte propositiva deste relatório.

Nesse cenário de incentivos ao desenho extrajudicial de solução de conflitos, que tem sido

bastante estudado e aplicado fora do Brasil8, o objetivo da pesquisa foi mapear, a partir de estudo

empírico, casos e conflitos de interesse público, identificar os atores envolvidos, as vantagens e

desvantagens de se implementar o DSD, os problemas e as ineficiências do sistema adotado, e, a

partir deste diagnóstico, sugerir campos férteis para se pensar no desenho de sistemas de resolução

alternativa de disputas para conflitos de interesse público.

7 Criada em 2007 e com sede em Brasília, a CCAF é coordenada pela Advocacia-Geral da União e atua em conflitos entre os órgãos da União e as entidades da Administração Federal indireta que podem envolver diferentes áreas do direito, como ambiental e previdenciário. Um dos objetivos centrais seria a diminuição das demandas judiciais e administrativas envolvendo entes da Federação e a União, e a maior celeridade na implementação das políticas públicas.

8 Nos EUA, há inúmeras e diversificadas experiências que envolvem o desenho de sistemas de resolução alternativa de disputas para contextos variados. No âmbito de empresas, vide relato sobre o caso da Toyota em CARVER, Todd B. – VONDRA, Albert A., Alternative Dispute Resolution: why it doesn`t work and why it does, in Harvard Business Review, may-june 1994; e sobre o programa de mediação implementado no U.S. Postal Service: REDRESS - Resolve Employment Disputes Reach Equitable Solutions Swiftly, vide BUSH, Robert Baruch, FOLGER, Joseph. The promise of mediation: the transformative approach to conflict, San Francisco: Jossey Bass, 2005, pp. 26-31/107 e www.businessofgovernment.org/pdfs/Bingham_Report.pdf. Sobre Câmaras Indenizatórias envolvendo acidentes, destacam-se o Fundo de Compensação criado para indenizar os familiares e beneficiários das vítimas do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nas torres gêmeas em Nova Iorque, o caso British Petroleum (Gulf Coast Claims Facility) e o caso Orange (Agent Orange Settlement).

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A vantagem econômica alcançada com o DSD, se comparada com a via judicial, o cálculo a

partir da relação custo vs. benefício, a exposição financeira das partes, os custos de imagem para o

indenizador, o dispêndio de tempo e custos com o processo, advogados, árbitros, perícias e

recursos, são argumentos importantes para convencer determinado ator a adotar ou aderir a um

programa relacionado a DSD. Porém, esses argumentos parecem ter maior apelo e convencer mais

as empresas privadas do que o Poder Público.

A tomada de decisão em diferentes esferas leva em conta critérios e incentivos

diferenciados, agregando-se no contexto dos conflitos de interesse público o custo político e social

das decisões, a imagem política e visibilidade do conflito, muitas vezes maximizadas pela atuação

da mídia.

Quais são os incentivos à Administração para adotar desenho de resolução extrajudicial e

alternativa de disputas (DSD)? Quais são as barreiras? Quem teria legitimidade para ser o designer

em conflitos de interesse público? Quem arca com os custos disso? Qual é o papel que deve assumir

o Judiciário? E os demais atores envolvidos? Qual é o nível de institucionalização que pode ter o

desenho? O desenho deve ser sempre feito caso a caso (one size does not fit all) ou há um mínimo

de padrão a ser seguido? São algumas das perguntas que surgiram no decorrer da pesquisa.

Ao longo da pesquisa, notamos que alguns atores institucionais estão presentes de forma

mais recorrente, tais como o Ministério Público, o Judiciário, a Defensoria Pública, a

Administração, assim como algumas associações, na qualidade de representantes da sociedade civil.

Percebe-se que as formas de resolução de conflitos vigentes no Brasil possuem grande conexão com

o Sistema de Justiça. Tanto o Judiciário quanto o Ministério Público foram atores institucionais

bastante citados nas entrevistas, o que também se observou em relação à Defensoria Pública. Mas

há outros partícipes e atores, públicos e privados, que serão considerados nos casos analisados,

conforme se verá nos capítulos 2 e 3 deste relatório.

Quanto ao Ministério Público, ele foi freqüentemente visto com legitimidade para atuar na

resolução alternativa de disputas, sendo-lhe conferida pela CF/88 a função institucional de

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promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos, o

que na esfera extrajudicial ocorre também através da celebração de termos de ajustamento de

conduta.

No cenário atual, e pós-constituição de 1988, o Judiciário assume um papel central, quer

como ator decisório, em ações judiciais individuais e coletivas, quer como ator político, dando

visibilidade a certos temas que não estão na agenda/pauta política, quer ainda através de seu papel

fiscalizador e homologatório de acordos obtidos fora do ambiente judicial. Ou seja, ora como ponto

de partida, ora como ponto de chegada da resolução de conflitos.

A pesquisa se baseou na análise e estudo de casos. Em um primeiro momento, foram

levantados e descritos treze casos, sendo posteriormente escolhidos três deles para o estudo

empírico mais aprofundado, com base em entrevistas dos principais atores envolvidos em cada um.

Os demais casos, não escolhidos, estão descritos no anexo deste relatório.

A análise dos casos se baseou em 5 eixos centrais, utilizados para organizar os dados e

informações coletados através da pesquisa de campo:

i. O conflito e partes interessadas/envolvidas;

ii . As formas e alternativas de solução de disputas adotadas;

iii. A possibilidade de solução extrajudicial dos conflitos e criação de um sistema de

solução de disputas;

iv. Quem implementaria e quem fiscalizaria este sistema?

v. Quem arcaria com os custos?

A pesquisa não realizou o desenho deste novo sistema, mas sim investigou por que as partes

preferem ou não o sistema e formas de solução de conflitos vigentes, identificou problemas e

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ineficiências, quais seriam os benefícios, dificuldades e possibilidades de um novo desenho, os

principais desafios e os atores envolvidos, a fim de averiguar se os conflitos de interesse público

podem ser tidos como possíveis campos para a aplicação de Dispute System Design (DSD), e quais

seriam os principais argumentos favoráveis ou contrários a isso.

Este relatório está organizado em 7 capítulos. O primeiro deles trata dos objetivos, etapas e

metodologia da pesquisa, com o detalhamento do estudo de casos. O capítulo 2 faz uma breve

descrição dos casos escolhidos, que são analisados no capítulo seguinte, a partir de diferentes

variáveis. Dentre as iniciativas que serviram de material de apoio instrumental da pesquisa, um caso

mais recente e que foi analisado comparativamente pela equipe é o da British Petroleum, que está

descrito no capítulo 4 deste relatório. O capítulo 5 contém a parte propositiva da pesquisa; e os

capítulos 6 e 7, as referências e o anexo.

1. OBJETIVOS E METODOLOGIA DA PESQUISA

1.1. Objetivos

Os objetivos desta pesquisa empírica são:

a) o mapeamento de casos brasileiros que correspondam a problemas envolvendo (i) direitos

individuais homogêneos, difusos ou coletivos, que tratem de questões patrimoniais disponíveis; (ii)

disputas públicas ou público-privadas complexas ou recorrentes, que podem se valer do DSD para

maior benefício social, descrevendo as partes interessadas e afetadas pelo conflito, e os respectivos

incentivos à resolução consensual da disputa; (iii) temas legais sobre os quais as disputas versarão e

o impacto destes tanto no mérito quanto no procedimento (questões processuais) para o desfecho,

principalmente no que concerne a custos e riscos.

b) a análise dos meios ou sistemas em uso para a resolução do conflito, em cada um dos

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casos identificados; identificação e análise dos problemas e benefícios que os casos implicam; e a

identificação e análise das motivações que levam à aceitação da condução e dos resultados

produzidos por esses casos.

c) a indicação de instrumentos normativos que sejam necessários à implementação de

sistemas de resolução de disputas e a análise de como podem ser aprimorados os porventura já

existentes.

1.2. Etapas da pesquisa

Na 1ª etapa, o levantamento de casos foi feito com base em pesquisa jurisprudencial no

TJSP9 e em pesquisa junto a banco de dados e informações de entes governamentais e não

governamentais10. Muito embora se tenha dividido os casos em judicializados e não judicializados,

isso foi feito apenas para fins de sistematização e diferenciação da fonte de busca dos casos e

informações.

Ainda durante a 1ª etapa da pesquisa, foi apresentada uma moldura analítica para o exame

dos casos, que deu origem ao questionário de entrevistas e aos 5 eixos em relação aos quais os casos

objeto do estudo empírico foram analisados e organizados.

Na 2ª etapa, teve início o estudo de casos, que se baseou em entrevistas presenciais de

diferentes atores envolvidos nos três casos selecionados. Estas entrevistas buscaram colher dados e

informações a partir das experiências de cada entrevistado, considerando a sua posição institucional

9 A pesquisa jurisprudencial foi realizada em julho de 2010, sem recorte temporal, e consistiu no emprego das seguintes combinações de palavras-chave no campo de pesquisa jurisprudencial do TJSP, separada e conjuntamente: “sentença genérica”, “individuais homogêneos”, “ação coletiva”, “liquidação”, “execução”, “consumidor”, “meio ambiente”, “ambiental”.

10 Como o Instituto Acende Brasil, Secretaria da Habitação do Governo do Estado de São Paulo - CDHU, Instituto Pólis, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, dentre outros.

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(“de onde falam”), muito embora tenha sido resguardado o sigilo quanto aos seus nomes. Esta 2a

etapa foi composta de entrevistas, da análise in loco dos casos e das pesquisas realizadas pela

equipe sobre cada um dos casos.

A 3ª etapa da pesquisa, por fim, foi destinada à parte analítica dos casos, a partir dos dados

das entrevistas, além do estudo comparativo do caso British Petroleum11. Nesta fase foi também

debatida a parte propositiva voltada à implementação de sistemas de resolução alternativa de

disputas de conflitos de interesse público, com a realização, ao final, de workshop que contou com a

participação de diferentes especialistas e convidados12.

1.3. Estudo de casos

Todos os treze casos mapeados na 1ª etapa da pesquisa, e que estão descritos no anexo

deste relatório, envolvem interesses e direitos individuais homogêneos, coletivos ou difusos e

apresentam multiplicidade de partes. Para a escolha de três deles, objeto da pesquisa de campo,

foram utilizados os seguintes critérios:

i. dificuldade de liquidação de danos e obrigações;

ii. acesso a dados/informações e a pessoas envolvidas no caso para serem

entrevistadas;

iii. diferentes temas e tipos de danos - ligados a acidentes, danos ambientais, urbanos,

na área de saúde, responsabilidade objetiva, questões indenizatórias, tutelas

específicas de obrigação de fazer e não fazer;

iv. diferentes atores envolvidos;

11 Entramos em contato com o advogado norte-americano Kenneth Feinberg, que atuou como special master e designer em diferentes casos, como (i) no Fundo de Compensação às vítimas do acidente de 11 de setembro de 2001, em que realizou um trabalho pro-bono de 33 meses; (ii) na mediação do conflito entre veteranos da Guerra do Vietnam e produtores do herbicida “Agente Laranja”, que após 8 anos no Judiciário resolveu-se em acordo; e no caso British Petroleum (Gulf Coast Claims Facility), relatado nesta pesquisa. 12 O workshop para debate dos resultados desta pesquisa ocorreu na Direito GV, em São Paulo, no dia 10.12.2010, com a participação de representantes do Ministério da Justiça (SAL – Secretaria de Assuntos Legislativos, SDE – Secretaria de Direito Econômico e SRJ – Secretaria de Reforma do Judiciário), e de especialistas de diferentes áreas do direito e órgãos da Administração.

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v. (in)disponibilidade de interesses e direitos;

vi. diferentes níveis de institucionalização, recorrência do dano e potencial de ser

reproduzido em outros contextos (replicabilidade).

Com base nestes critérios, foram escolhidos os seguintes casos:

1. Choque de trens da CTPM - caso envolvendo acidente, danos psicológicos e vítimas fatais,

questão indenizatória e obrigações da fazer e não fazer, em demandas coletivas e individuais, com a

participação de diferentes atores, privados e públicos.

Pedido13: de concessão de liminar, com estipulação de multa diária de R$ 1.000.000 (um milhão de

reais), para:

(a) Suspensão da prestação do serviço de transporte ferroviário em todas as linhas que a ré

preste serviços, caso não comprove, no prazo de 24 horas, que todas as suas composições

possuem calços apropriados.

(b) Que se abstenha de colocar para a prestação de serviços de transporte ferroviário

composições que não possuam em seu interior calços apropriados para serem utilizados

quando necessários.

(c) Suspensão dos efeitos do laudo da comissão de sindicância da CPTM até a conclusão dos

inquéritos civil e penal.

(d) Que a CPTM se abstenha de colocar na ferrovia trens que apresentem limitações quanto ao

estacionamento em trechos de declive ou que estejam com a manutenção atrasada.

(e) Que a CPTM seja condenada à obrigação de fazer, no prazo de 30 dias, consistente em dar

treinamento aos seus funcionários para efetuarem operações de evacuação de trens e

estações em situações de emergência.

Alem de pedido de condenar a CPTM a declarar estar prestando serviços de maneira

defeituosa e inadequada e de indenizar individualmente os particulares, fixando, para tanto,

13 Em ação civil pública proposta por Associação em defesa das vítimas e familiares, Processo nº 583.53.2000.020559-5, que tramita na 34ª. Vara Cível do Fórum Central Civel João Mendes Júnior.

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a responsabilidade da Companhia de Trens pela totalidade de danos materiais e morais

sofridos.

2. Caso dos autistas - caso envolvendo obrigação de fazer e não fazer, assistência continuada aos

autistas (caso permanente), interferência do Judiciário em política pública, diálogo interinstitucional

entre Executivo e Judiciário sobre gestão e implementação de política pública.

Pedido14: Condenação do Estado de São Paulo (Fazenda Pública Estadual de São Paulo), com

deferimento de antecipação de tutela, às obrigações de fazer, nos seguintes termos:

1. Arcar com as custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime integral ou

não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou seja, custear tratamento especializado

em entidade adequada (não estatal, portanto, já que não existe com tais características uma única no

âmbito do Estado) para o cuidado e assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo que,

por seus representantes legais ou responsáveis, comprovem mediante atestado médico tal condição

(de autista), documento este que deverá ser juntado a requerimento endereçado ao Exmo. Secretário

de Saúde e protocolado na sede da Secretaria de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com

aviso de recebimento. A partir da data do protocolo ou do recebimento da carta registrada,

conforme o caso, terá o Estado o prazo de trinta dias para providenciar, às suas expensas, instituição

adequada para o tratamento do autista requerente. A instituição indicada ao autista solicitante pelo

Estado deverá ser a mais próxima possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém,

no corpo do requerimento poderá constar a instituição de preferência dos responsáveis ou

representantes dos autistas, cabendo ao Estado fundamentar a inviabilidade da indicação, se for o

caso, e eleger outra entidade adequada. O regime de tratamento e atenção em período integral ou

parcial (ou internação especializada) deverá ser especificado por prescrição médica no próprio

atestado médico antes mencionado, devendo o Estado providenciar a entidade com tais

características. Após o Estado providenciar a indicação da instituição deverá notificar o responsável

pelo autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento. Tudo isso até que o

Estado, se o quiser, providencie unidades especializadas próprias e gratuitas (e não as existentes

14 Em ação civil pública proposta pelo Ministério Público, Processo nº 053.00.027139-2, que tramitou perante a 6º Vara Cível da Fazenda Pública de São Paulo.

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16

para o tratamento de doentes mentais "comuns") para o tratamento de saúde, educacional e

assistencial aos autistas, em regimes integral ou parcial (ou internação especializada), porquanto o

Ministério Público e o Poder Judiciário não podem indicar os modos e os meios pelos quais o Poder

Executivo deverá cumprir tais obrigações. No caso, está-se apenas, considerada a clássica divisão

dos poderes do Estado estabelecida constitucionalmente, reconhecendo a existência de um direito e

da obrigação conseqüente. Os modos e os meios de cumprimento (convênios - inclusive com

municípios -, organização de entidade estatais que prestem os serviços especializados diretamente,

pagamentos individualizados, " ONGs" etc) devem ser eleitos pelo poder executivo, dentro do

âmbito - agora sim tem cabimento tal forma de organizações - da denominada discricionariedade

administrativa. O que não pode permanecer inalterada é a omissão estatal, já que o Estado ora nega

eficácia a normas legais e constitucionais. Fornecer diretamente ou através da iniciativa particular é

opção do Estado: que no entanto não tem a opção de não fornecer, de forma gratuita, o serviço

especializado tão essencial.

2. Ao final, nos termos do Art. 11 da mencionada Lei, deferido o pedido, requer-se seja o requerido

condenado ao cumprimento das diversas obrigações de fazer já especificadas, determinando-se o

cumprimentos das atividades devidas, sob pena de cominação de multa diária no valor de

R$50.000,00 em caso de descumprimento de quaisquer das obrigações antes mencionadas, quantias

que deverão ser revertidas para o fundo de reconstituição dos interesses metaindividuais lesados,

criado pelo Art. 13 da Lei Federal n. 7347/85."

3. Caso de loteamento irregular – caso que tem por base o cenário de São Luiz de Paraitinga, com

foco no loteamento irregular, nas enchentes, no direito de moradia e na questão indenizatória, com a

constituição de fundos por doações e outras verbas.

Pedido15: ação civil pública, por parte da Defensoria Pública do Estado, que ainda continua

em curso e na qual se postulou, dentre outros pleitos:

15 Em ação civil pública proposta pela Defensoria Pública, Processo nº 0000546-21.2010.8.26.0579, em trâmite perante a Comarca de São Luiz do Paraitinga – SP.

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17

1. A condenação do Município de São Luiz do Paraitinga e do Estado de São Paulo, em

solidariedade, a pagarem R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) a títulos de danos materiais, para cada

munícipe que tenha experimentado perda habitacional ou interdição de moradia em decorrência das

enchentes, com inserção de juros e correção monetária a contar da data do evento, para satisfação

em futura ação de execução individual do julgado coletivo, como assegurado pelo artigo 97 do

CDC;

2. A condenação do Município de São Luiz do Paraitinga e do Estado de São Paulo, em

solidariedade, a pagarem 200 salários mínimos, a título de danos morais, para cada munícipe que

tenha experimentado perda habitacional, interdição de moradia ou perda de bens móveis ou

semoventes em decorrência das enchentes, com juros e correção monetária a contar da data do

evento, para satisfação em futura ação de execução individual do julgado coletivo, como assegurado

pelo artigo 97 do CDC;

3. A condenação do Município de São Luiz do Paraitinga e do Estado de São Paulo, em

solidariedade, a pagarem o valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) a título de dano moral

coletivo pela destruição do acervo histórico e arquitetônico do município, montante esse a ser

futuramente depositado, com juros e correção monetária, até a data do efetivo adimplemento, no

Fundo Estadual de Proteção e Recomposição do Meio Ambiente e do Patrimônio Histórico e

Cultural, na forma do artigo 13 da Lei nº 7.347/85 ou, se possível à época do provimento, em um

fundo municipal especialmente criado para angariar recursos necessários à restauração e

conservação do patrimônio histórico e arquitetônico afetado

4. A condenação do Município de São Luiz do Paraitinga e do Estado de São Paulo, em

solidariedade, a indenizarem cada munícipe que tenha experimentado perda de bens móveis ou

semoventes em decorrência das enchentes em montante a ser definido em futura liquidação de

sentença, também a título de danos materiais, a serem satisfeitos através de execuções individuais

futuras, como assegurado pelo artigo 97 do CDC;

5. A imposição à municipalidade de obrigação de fazer, consistente em dar destinação correta ao

montante remanescente das doações, no valor de R$ 485.514,47 (quatrocentos e oitenta e cinco mil,

quinhentos e quatorze reais e quarenta e sete centavos) direcionando-os às vítimas efetivas das

enchentes, para recuperação habitacional ou de mobiliários destruído no extravasamento do Rio

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18

Paraitinga, em obediência ao plano de destinação desses recursos, tal qual postulado no corpo da

inicial da demanda, sob pena de multa ali delineada.

6. Que os valores indenizatórios sejam reconhecidos como de natureza alimentar para os fins de

direito.

Temos até aqui três pedidos formulados em ações propostas no Judiciário para diferentes

casos, todos envolvendo uma coletividade de pessoas. São pedidos que requerem tutelas específicas

(obrigação de fazer e não fazer) e indenizatórias, por danos morais e materiais, com valores líquidos

ou ilíquidos, pedidos realizados por diferentes agentes: Ministério Público (caso Autistas),

Defensoria Pública (caso São Luiz do Paraitinga) e Associação de defesa das vitimas (caso CPTM).

São três tipos de demandas coletivas que chegaram ao Judiciário e que poderiam ser

replicadas em outros cenários fáticos. Elas encontram-se em fases distintas, conforme se

verá na descrição dos casos a seguir: a ação civil pública proposta no caso de São Luiz do

Paraitinga é a mais recente, ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em

agosto de 2010, sem apreciação de seu pedido definitivamente. No caso dos autistas, por

outro lado, já houve sentença, que julgou procedente a ação, para condenar a Fazenda

Pública do Estado de São Paulo, em 28.12.2001, tendo transitado em julgado. A ação civil

pública no Caso CPTM, ajuizada em 06.08.2000, teve o pedido de antecipação de tutela

indeferido pelo juízo de primeira instância, decisão que foi confirmada pelo Tribunal, e

encontra-se atualmente em fase de produção de provas16.

As entrevistas dos atores envolvidos em cada caso tiveram as respostas e os dados

organizados nos 5 eixos centrais anteriormente citados (com base na moldura analítica elaborada –

coding frame – e no roteiro de entrevista):

i. O conflito e partes interessadas/ envolvidas;

ii . As formas e alternativas de solução de disputas adotadas;

16 Muitas indenizações foram negociadas em demandas individuais ajuizadas pelos familiares das vitimas.

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19

iii. A possibilidade de solução extrajudicial dos conflitos e criação de um sistema de

solução de disputas;

iv. Quem implementaria e quem fiscalizaria este sistema?

v. Quem arcaria com os custos?

Ao todo foram realizadas 19 entrevistas, considerando a diversidade de percepções dos

entrevistados e a sua posição institucional (de onde falam), além de análise dos dados e materiais

referentes a cada caso e visita à São Luiz do Paraitinga. As vozes dos entrevistados compõem este

relatório, mas se resguardou a identidade dos mesmos, com referência apenas à sua posição.

No Caso de Loteamento Irregular, entrevistamos membros e representantes do

CERESTA, UNESP, Poder Executivo local (Prefeitura), Associação Civil AMI Paraitinga,

Secretaria de Turismo de São Luiz do Paraitinga, Judiciário, Ministério Público, Governo

do Estado (CDHU) e Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

No caso dos autistas, foram entrevistados os atores que estiveram diretamente envolvidos

no deslinde do caso, como representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário, da Defensoria

Pública, da Secretaria da Saúde e da sociedade civil (familiares de autistas).

No caso do choque de trens da CPTM, entrevistamos integrantes do Departamento Jurídico

da CPTM e advogados de vitimas que estavam no acidente.

O estudo de casos é apresentado a seguir através de dois momentos: i. descritivo, no

capítulo 2; ii. analítico, no capítulo 3.

A parte analítica é feita com base na análise das seguintes questões:

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20

A) Replicabilidade do caso

B) Poder Judiciário como ponto de partida?

C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento das partes (alguma

padronização)?

D) Quem paga a conta?

E) Quem fiscaliza?

F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente?

Vantagens ou desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)

G) Diálogo interinstitucional

H) Barreiras da Administração Pública?

I) Comportamentos oportunistas17? Vulnerabilidades?

2. DESCRIÇÃO DOS CASOS

2.1. Caso dos Autistas

Impulsionado pela denúncia oferecida por um pai de autista, o Ministério Público do Estado

de São Paulo instaurou inquérito civil para verificar se o Estado de São Paulo disponibilizava

tratamento e educação específicos às necessidades de pessoas com autismo18. Tendo verificado que

17 Por oportunismo entendemos nesta pesquisa os casos que não se enquadram no escopo do desenho de solução de conflitos (considerados nas Câmaras de Indenização da TAM e da Air France como “falsos positivos”) e que, sem observarem as regras do jogo, buscam obter vantagens. Em um desenho extrajudicial de solução de conflitos, é importante que estas regras estejam claras, com a descrição dos critérios e casos de elegibilidade, evitando desvios e oportunismos. 18 Conforme relata este pai de autista e também advogado que levou inicialmente a questão ao Ministério Público: “o tratamento do autista tem algumas correntes, mas todas elas caminham no mesmo sentido. O autista precisa de um atendimento especializado não porque ele seja diferente, ele é especializado porque assim como você trata de um câncer, por exemplo, com determinados remédios com determinadas ações, o autismo também é assim. Ele precisa de determinadas ações de acompanhamento, você tem que ter um monitor ou dois monitores que acompanhem o autista diariamente porque o monitor é quem faz a convivência com o autista, então ele é fechado ele não se comunica; é muito difícil você achar um autista que fale, ele fica fechado no mundo dele. Então há necessidade de você fazer esse vínculo pra você aos poucos ir trazendo ele pro nosso mundo e você consegue. Ou monitora ou os pais que têm interesse que se afeiçoam pela ação acabam também conseguindo, ajudando, porque o trabalho tem que ser feito numa fundação, numa escola, num hospital, mas tem que ter uma retaguarda em casa também porque senão você perde muito

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21

o Estado somente disponibilizava tratamento psiquiátrico não especializado no cuidado de autistas,

o Ministério Público tentou firmar acordo com a Administração Pública Paulista.

Conforme relatado por membro do Ministério Público, não houve interesse do Estado de

São Paulo em incluir o tratamento especializado de autistas na lista do Sistema Único de Saúde –

SUS e disponibilizar entidades especializadas no tratamento e educação de autistas.

Em nome dos outros autistas, ele que trouxe primeiro a denúncia pro MP, dizendo que o Estado ou o SUS não ofereciam tratamento especializado. Na verdade, eles tratavam os autistas com tratamento psiquiátrico, mas não especializado em autista. Aí nosso colega do MP instaurou inquérito civil e confirmou essa informação de que realmente o SUS não disponibilizava nada específico para autismo. Tentou acordo no inquérito civil e o Estado não se interessou.” (Promotor)

Este cenário motivou o Ministério Público Paulista a ajuizar Ação Civil Pública19, com

pedido de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, objetivando a

condenação da ré ao pagamento do valor integral necessário ao tratamento, assistência e educação

de autistas em entidades de tratamento especializadas.

A ação ajuizada pelo Ministério Público Paulista foi julgada procedente em primeira

instância para condenar a Fazenda, enquanto não dispuser de unidades próprias especializadas no

tratamento de autistas, a arcar com o valor integral do tratamento, assistência e educação de autistas

em entidade privada de tratamento especializada, bem como providenciar, no prazo de trinta dias da

comprovação da situação de autista, instituição adequada para o tratamento do autista requerente20.

Abaixo está transcrito trecho da sentença:

quando os pais não colaboram. O que acontece? Esse vínculo ele não é feito por qualquer pessoa, primeiro que a pessoa precisa ter vocação.” (Advogado e pai de autista) 19 Processo nº 053.00.027139-2, que tramitou perante a 6º Vara Cível da Fazenda Pública de São Paulo. 20 Sentença proferida em 28 de dezembro de 2001.

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JULGO PROCEDENTE a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, com fundamento no artigo 269, inciso I, do código de Processo Civil, para CONDENÁ-LA, até que, se o quiser, providencie unidades especializadas próprias e gratuitas, nunca as existentes para o tratamento de doentes mentais “comuns", para o tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas, em regime integral ou parcial especializado para todos os residentes no Estado de São Paulo, a: I - Arcar com as custas integrais do tratamento (internação especializada ou em regime integral ou não), da assistência, da educação e da saúde específicos, ou seja, custear tratamento especializado em entidade adequada não estatal para o cuidado e assistência aos autistas residentes no Estado de São Paulo; II – Por requerimento dos representantes legais ou responsáveis, acompanhado de atestado médico que comprove a situação de autista, endereçado ao Exmo. Secretário de Estado da Saúde e protocolado na sede da Secretaria de Estado da Saúde ou encaminhado por carta com aviso de recebimento, terá o Estado o prazo de trinta (30) dias, a partir da data do protocolo ou do recebimento da arta registrada, conforme o caso, para providenciar, às suas expensas, instituição adequada para o tratamento do autista requerente; III – A instituição indicada ao autista solicitante pelo Estado deverá ser a mais próxima possível de sua residência e de seus familiares, sendo que, porém, no corpo do requerimento poderá constar a instituição de preferência dos responsáveis ou representantes dos autistas, cabendo ao Estado fundamentar inviabilidade da indicação, se for 'o caso, e eleger outra entidade adequada; IV - O regime de tratamento e atenção em período integral ou parcial, sempre especializado, deverá ser especificado por prescrição médica no próprio atestado médico antes mencionado, devendo o Estado providenciar entidade com tais características; V - Após o Estado providenciar a indicação da instituição deverá notificar o responsável pelo autista, fornecendo os dados necessários para o início do tratamento. (grifo nosso).

A Fazenda Pública do Estado de São Paulo interpôs recurso de Apelação contra referida

decisão, à qual foi negado provimento pela Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de

Justiça de São Paulo.

Ocorrido o trânsito em julgado da sentença, iniciou-se a fase de habilitação e execução

individuais ou coletivas fundadas em título executivo judicial. Não havendo instituições públicas

especializadas no tratamento deste grupo de deficientes físicos, as habilitações ou execuções

individuais requeriam a inserção e custeio do autista em instituição particular21.

21 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo relata as dificuldades iniciais enfrentadas pelo Poder Executivo, decorrentes da especificidade do teor da sentença, e que estimularam os

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23

Paralelamente às habilitações e execuções judiciais, em 12 de setembro de 2002, a

Secretaria da Saúde editou a portaria 1635, que determinou a inclusão de procedimentos médicos

voltados ao tratamento de autistas no Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de

Saúde – SIA-SUS.

As Secretarias da Saúde e Educação passaram então a receber e solucionar os reclames de

responsáveis por autistas sem a necessidade de intervenção judicial22. Com a comprovação da

condição de autista perante a Secretaria da Saúde, o indivíduo passou a ser encaminhado pela

Administração Pública Paulista a instituições médicas e/ou educacionais especializadas no

tratamento de pessoas com autismo, conforme explica o representante da Secretaria da Educação do

Estado de São Paulo:

Basta o requerimento administrativo e a prova que a mãe é a responsável, os documentos da criança, documento de endereço e laudo médico que dê conta que ele seja autista. Isso já está minuciado na ação civil pública: é só a mãe se deslocar até a Secretaria da Saúde, que faz a verificação da validade desse atestado médico. Verificada a veracidade de tudo aquilo que foi veiculado, eles montam o processo e encaminham pra nós, daqui da chefia de gabinete vai pra um departamento que chama CAPE – Centro de Apoio Pedagógico Especializado. No CAPE eles viabilizam de acordo com o estudo da região geográfica que a pessoa reside e eles disponibilizam o atendimento, sempre atentos ao prazo de 30 dias a contar do dia do protocolo.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

representantes de autistas a promoverem habilitações na ação civil pública: “A sentença delimita não só que o Estado tem que pagar ou conveniar com alguma entidade, mas que o tratamento deve ser adequado e próximo da casa do menino. Assim, se a instituição indicada for boa, mas distar quarenta e cinco quilômetros da casa do autista, ela é inadequada.” (Promotor) 22 Conforme relatado pelos representantes do Ministério Público do Estado de São Paulo: “Inclusive o Estado tem resolvido administrativamente. O indivíduo diz que “o meu filho precisa de um medicamento X e precisa de fraldas X, Y ou Z”. O Estado encaminha, manda pra casa da pessoa por motoboy. O motoboy vai e entrega mensalmente o medicamento tal, tal e tal. Isso tudo está sendo feito administrativamente. Então já está havendo uma acomodação nesse sentido e a gente está sentindo até nas execuções nas habilitações.” (Promotor)

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A ausência de instituições públicas capazes de prestar atendimento adequado às

necessidades específicas dos autistas forçou as Secretarias da Saúde e Educação a encaminhar os

autistas a instituições particulares de tratamento especializado23.

Os altos valores cobrados pelas instituições particulares24 de ensino e educação, somados à

crescente demanda por esta prestação à divulgação do conteúdo da sentença entre os responsáveis

por autistas25, passaram a interferir na gestão orçamentária das Secretarias. Conforme relatado por

Assessor da Secretaria da Educação, o deslocamento de verbas para atender somente às

necessidades de autistas importa em menor investimento em outras necessidades da sociedade

civil 26.

Buscando otimizar os gastos despendidos exclusivamente no tratamento de autistas, as

Secretarias da Educação e Saúde editaram resoluções27, as quais determinavam a celebração de

convênios, em regime de cooperação, entre elas e “Instituições Particulares, sem fins lucrativos,

que comprovadamente ofereçam atendimento a educandos portadores de necessidades especiais,

23 Nas palavras do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “Como tudo é muito novo, o Estado não se arregimentou no sentido de “vamos disponibilizar por nossos próprios meios o atendimento”. Então a gente se vale de quem faz quem faz: A rede conveniada ou credenciada. Quem é conveniada? AMA, Pestalozzi, AACD e APAE. Quem é credenciada? São algumas escolas particulares que apresentaram valores dentro da realidade praticada pelo mercado.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 24 Informação obtida a partir de entrevista realizada com o representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “Essa ação gerou algo muito benéfico, mas ela trouxe algo muito perigoso. Hoje está bem mais tranqüilo, mas no início quando saiu o fundamento foi um problema só, orçamentos de sete mil reais, seis mil e duzentos, seis mil e oitocentos que queriam pagar cuidador dentro de casa, que queriam que pagassem as fraldas, que queriam que pagasse a natação, o deslocamento, a perua escolar e talvez existia uma privatização de atendimento de autistas e não é isso, esse não é...” 25 Nas palavras do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “O que existiu foi uma veiculação muito profunda dessa matéria pelo representante do Ministério Público. Além disso, pela especificidade de ter um filho autista, os pais se comunicam. Isso é uma reação em cadeia.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 26 Na fala do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, a educação de uma criança autista custa doze vezes o valor da educação de uma criança normal. 27 Nesse sentido, vide resolução nº 79/2007, de 21 de novembro de 2007.

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25

verificada a impossibilidade de atendimento dessa clientela em escolas da rede estadual de

ensino”28.

Pelos convênios, o Estado destinaria à instituição de tratamento médico e educacional, que

preenchesse determinados requisitos, verba mensal calculada conforme a quantidade de autistas por

ela atendidos. Atualmente, a Secretaria da Saúde destina R$ 610 (seiscentos e dez) reais/mês por

autista internado e a Secretaria da Educação destina R$ 1.000 (um mil) reais/mês por autista

estudante29.

Segundo informações prestadas pelo representante da Secretaria da Educação do Estado de

São Paulo, o valor pago às instituições que celebraram convênio com as Secretarias da Saúde e da

Educação foi calculado considerando a média dos valores cobrados no mercado pelas instituições

especializadas no tratamento de autistas.

Além da celebração de convênios, a Secretaria da Educação passou a equipar escolas

públicas com professores capacitados, material especializado e grade curricular específica para

alunos portadores de deficiências físicas, dentre elas o autismo. De acordo com informações

prestadas pelo representante da Secretaria da Educação, a cada 2 kms (dois quilômetros) deve haver

uma dessas escolas públicas capacitadas30.

28 Disponíveis em: http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/notas/79_07.HTM?Time=8/18/2010%208:33:47%20PM, acesso em 24.11.2010. 29 Nas palavras do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “Hoje pela via judiciária são 580 atendidos, uma expectativa de gasto de 5 ou 7 milhões de reais só com essas crianças, cada uma o valor máximo é pago de até mil reais.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 30 Nas palavras do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “quando é leve (o grau de autismo) e tem uma escola pública próxima da residência da pessoa cuja distância não seja superior a dois quilômetros, e de acordo com a aceitação da família, nós fazemos o encaminhamento dessa criança para uma escola pública que tenha uma sala que chama sala de recursos. Ou seja, a criança tem atendimento de manhã e, dependendo do horário, volta de novo. No período vespertino ele tem um atendimento na manhã, e no contra turno ele faz essa sala de recurso que é uma sala que tem toda a parafernália que possa viabilizar um atendimento de acordo com as necessidades daquela criança, o autista leve.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

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26

Vale mencionar que as iniciativas empreendidas pelas Secretarias da Saúde e da Educação

relacionadas aos autistas não representaram significativas alterações em seus procedimentos

internos. As novas atribuições referentes aos autistas apenas foram incluídas entre os demais

procedimentos das respectivas Secretarias.

Ocorre que, devido à complexidade e individualidade de cada caso31, bem como ao

constante surgimento de situações inusitadas relacionadas ao atendimento médico e educacional de

autistas32, nem sempre é simples a realização de acordos entre o responsável pelo autista e a

Administração Pública. Nesses casos, há, em regra, intervenção do Ministério Público e da

Defensoria Pública.

Os representantes de ambas as instituições informaram que buscam aproximar o

responsável pelo autista à Administração Pública (Secretarias da Saúde e Educação) e, somente

quando inviável a conversa, ajuízam ações, habilitações, execuções individuais e/ou execuções

coletivas.

31 Relata o representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo que há diferentes tratamentos para os diferentes graus de autismo: “São dois modelos distintos de atendimento: o pedagógico especializado e o clínico. O atendimento pedagógico especializado é para pessoas com grau de autismo moderado ou leve. Para as crianças cujo autismo importe de comportamento violento, agressivo, o tratamento é clínico e quem viabiliza são as duas Secretarias conjuntamente.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 32 Os entrevistados afirmaram haver constante surgimento de situações inusitadas relacionadas ao atendimento médico e educacional de autistas. Conforme relato dos membros do Ministério Público do Estado de São Paulo: “Agora pessoas com deficiência estão começando a estudar a necessidade de exigir do Estado cuidador nas escolas, só que o cuidador é para pessoas com deficiência física. Eu estou com um caso gravíssimo: uma mãe chegou aqui e falou “pus o meu filho na escola regular por ordem judicial, pois o médico disse que tinha condições. Aí a diretora diz que dois alunos levaram uma voadora, a funcionária pediu demissão e o outro não sei o que.” Todos apanharam do menino porque a agressividade faz parte do quadro da doença. E aí a mãe fala assim “a senhora tem que fazer alguma coisa porque a escola tem que estar preparada pra receber o meu filho”. (Promotor) Já o representante da Defensoria Pública do Estado de São Paulo relata: “Outro problema é o do transporte. O Estado deu o atendimento só que não deu condições dessas crianças, adolescentes e adultos chegarem lá. Os responsáveis por autistas querem o Atende, porque não adianta você conceder o bilhete único pra o autista porque você não consegue levar ele dentro do ônibus ou dentro do metrô. Alguns tiram a roupa, outros batem nas pessoas, outros começam a brigar com a mãe e a situação de tumulto pra eles é uma coisa muito, muito, muito complicada.” (Defensor)

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Deste modo, a despeito das medidas e soluções extrajudiciais empreendidas pelas

Secretarias da Saúde e Educação, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, grande número

de habilitações e execuções individuais33 continuaram a ser ajuizadas. Tamanha foi a quantidade de

incidentes propostos junto à ação civil pública que o magistrado julgou necessário extinguir todas as

habilitações e execuções, conforme revela a transcrição a seguir:

Portanto, sob pena de ofensa à dignidade da Justiça e de litigância de má fé, depois de oito anos do ajuizamento da ação civil pública, é chegado o momento de resolver, definitivamente, a questão do tratamento dos autistas. (...) São inúmeros os comparecimentos pessoais de parentes dos autistas no cartório judicial, muitos deles pessoas sem recursos vindas de diversas regiões do Estado, os quais solicitam o empenho pessoal do magistrado para que recebam os seus valores ou que haja a internação em clínica privada. A partir de hoje, isso vai mudar (os interessados e os advogados devem, diretamente, procurar o Secretário de Estado da Saúde ou o Ministério Público). (...) Assim, para todos os autistas residentes no Estado de São Paulo, nos termos da sentença confirmada pela superior instância, como a executada Fazenda Estadual deve manter registro de quem procurou o serviço especializado, determino que o Estado de São Paulo, por intermédio da Secretaria de Estado da Saúde, diretamente, receba os requerimentos dos representantes legais ou responsáveis dos autistas, instruído com o atestado médico que comprove a situação clínica do paciente, a ser protocolado na Sede da Secretaria da Saúde (endereço: Av. Doutor Enéas de Carvalho Aguiar, nº 188, CEP nº 05403-000, São Paulo, Capital) ou no gabinete do Secretário Estadual de Saúde, Dr. Luiz Roberto Barradas Barata (tel 3066- 8656/gabinete e 3085-4315/fax), e providencie, às suas expensas, em 30 dias, instituição adequada para o tratamento do autista, (...) Finalmente, recebido o tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas, pertinentes à condenação judicial, na hipótese de algum responsável do autista discordar da forma do tratamento ou da indicação da clínica especializada pela Secretaria do Estado e da Saúde, deverá procurar o Ministério Público (Rua Riachuelo, 115, 3º andar, sala 335, São Paulo, Capital, tel. 3119-9090/gabinete do GAESP ou 3119-9355/fax da Secretaria, aos cuidados do Dr. José Paulo França Piva, promotor responsável pelo caso), para que o próprio promova a execução complementar do julgado, de uma única só vez, com relação a todos os descontentes. (...) A partir de agora, por isonomia aos demais autistas ainda não atendidos, todas as habilitações em curso serão extintas (carência superveniente da ação, nos termos do artigo 462 do Código de Processo Civil), não serão processadas novas habilitações (os interessados deverão, diretamente, diligenciar perante a Secretaria de Estado da Saúde) e o julgador somente intervirá para fins de execução da

33 O andamento processual da Ação Civil Pública disponibilizado na internet informa que ela contém 60 incidentes processuais. Os entrevistados, por sua vez, afirmam que foram ajuizadas centenas de demandas judiciais embasadas na sentença proferida em referida ação. Nas palavras do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “Hoje pela via judiciária são 580 atendidos” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

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multa diária (não é necessária a presença física do interessado no cartório judicial).

Esta decisão foi cassada pela Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de

São Paulo34_35. Embora extremada e contrária ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, a

decisão trouxe à baila importantes aspectos relacionados à dificuldade de se judicializar

determinados conflitos, quais sejam:

a) necessidade de tratamento isonômico a todos os autistas:

E, mesmo a Lei nº 7.347/85, a qual disciplina a ação civil pública, prevê a possibilidade de habilitação dos interessados, nota-se que apenas um número reduzido de autistas (levando-se em conta a população de milhões de paulistas em todo Estado de São Paulo) está sendo beneficiado porque somente àqueles que contratam advogados particulares estão recebendo assistência estatal mediante ordem deste juízo. É preciso que a sentença seja cumprida, em todos seus termos, porque o procedimento seguido pela executada (nítido caráter protelatório) e a postura adotada pelo Ministério Público, autor da ação (limita-se a lançar cotas nos autos das habilitações e não toma nenhuma providência para que o comando da sentença seja, efetivamente, respeitado) em nada contribuem para garantir assistência, educação e saúde específicos dos autistas.

b) falta de estrutura institucional de um único cartório judicial para processar dezenas ou

centenas de habilitações e execuções vinculadas a uma única sentença genérica36:

34 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 767.934-5/4-00, julgado em 09/07/2008. Des. Relator: Laerte Sampaio. 35 O membro do Ministério Público do Estado de São Paulo relata este acontecimento: “Aí ele avocou todos os processos e encerrou. Mas não foi aí que o problema surgiu: o problema surgiu quando nessa decisão ele determinou a todos os juízes do Estado, a todos os promotores do Estado e encaminhou para o Procurador Geral, para o Presidente do Tribunal de Justiça, para a Procuradoria de Justiça qual o procedimento que tinha que ser feito. Ou seja, ele achou-se acima do bem e do mal e aí o acórdão foi assim. Jamais vi coisa igual na minha vida” (Promotor) 36 O membro do Ministério Público do Estado de São Paulo entrevistado também concorda que, da forma como são organizados os cartórios atualmente, uma ação dessa natureza pode inviabilizar o trabalho de um cartório: “Quebra! Duas ações dessas numa Vara... quebra! O Estado tem que pensar nisso e deve se aparelhar pra tanto”. (Promotor)

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Diante do número diminuto de escreventes na 6º Ofício da Fazenda Pública da Capital (em torno de quatorze) e da notícia de que o Tribunal de Justiça pretende a relotação de 450 escreventes de primeira instância para ocupar o cargo de 2º escrevente nos gabinetes dos ilustres desembargadores, não há pessoal para atender os parentes dos autistas que procuram o cartório judicial esperançosos de receber o auxílio objeto da condenação judicial.

c) falta de formação técnica de um juiz para analisar e resolver problemas relacionados à

área médica ou finanças públicas:

Não cabe ao julgador, nos termos da sentença proferida, como vem sendo feito (atualmente), verificar a situação pessoal de cada autista e, particularmente, determinar o abrigo em uma determinada instituição; verificar se o atestado médico comprova ou não a condição de autista; mandar a executada providenciar o recolhimento do valor da mensalidade da instituição privada de educação; expedir guia de levantamento; suspender a internação; promover a remoção do autista para outra entidade especializada ou outras coisas do gênero. Conforme o dispositivo da sentença, acima destacada, é o Secretário de Estado da Saúde que, a requerimento dos responsáveis do autista, mediante atestado médico comprobatório, deve verificar, individualmente, a instituição indicada ao paciente mais próximo possível de seus familiares, facultando-se a indicação de outra entidade adequada, se houver fundamentação válida para isso. Não há, no dispositivo da sentença, previsão para que o juiz da execução substitua atividade cabente, exclusivamente, ao Secretário de Saúde do Estado de São Paulo (o julgador não é médico para identificar um quadro de autismo, não sabe escolher a instituição mais adequada para cada caso específico e não possui conhecimento técnico para analisar a prescrição médica para saber qual é o regime de tratamento cabível a uma situação específica).

Esta decisão instaurou verdadeiro tumulto processual tendo, inclusive, sido oferecida

exceção de suspeição contra o magistrado por “falta de sensibilidade à causa autista”. Apesar de

julgada improcedente a exceção, o juiz foi afastado da causa.

Conforme relatado por membros do Ministério Público, outra peculiaridade do caso foi

constatada no primeiro pedido de execução, que foi instrumentalizado na via coletiva. Objetivou-se,

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por meio de uma mesma execução, a inserção de diversos autistas em instituições especializadas de

tratamento médico e educacional. Ocorre que o quadro clínico dos autistas é bastante variado, sendo

o tratamento variável conforme as características de cada paciente37. Assim, a tentativa de liquidar

objetos distintos em um mesmo incidente processual também contribuiu para tumulto no processo38.

Esta dificuldade, entretanto, foi rapidamente solucionada pela dissolução da execução

coletiva em execuções individuais. Importante ressaltar que nem sempre a execução coletiva

relacionada à ação civil pública dos autistas é inviável, como no exemplo de questionamento sobre

a qualidade dos serviços prestados por instituição conveniada39.

Atualmente a ação continua em curso. Novas habilitações e execuções (individuais ou

coletivas) são ajuizadas quando não é possível a solução pacífica do conflito entre o responsável

pelo autista e a Administração Pública.

37 Nas palavras dos representantes do Ministério Público do Estado de São Paulo: “Acho que tinham trinta e dois autistas numa mesma habilitação ou execução. Foi assim que descobri que cada caso era um caso. Não se pode pedir um mesmo tratamento para autistas com 18 anos, outro com 4, outro com 3, outro com 7. Não dava pra pedirmos numa única execução o tratamento para cada um deles. Num determinado momento do processo o juiz falou que seria necessário individualizar. Então nós começamos a ajuizar ações individuais.” (Promotor) 38 É exemplo de fator que contribuiu para o tumulto na execução coletiva a constante juntada de petições de inúmeros interessados (partes e instituições de tratamento especializado). 39 O membro da Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrevistado informou que possivelmente ajuíze execução coletiva, conforme se verifica no relato que segue: “Esse caso é de uma entidade que tem convênio com a Secretaria de Saúde e eles prestam um serviço de atendimento a autistas com base numa resolução. Os autistas vão pra lá de manhã e ficam lá o dia inteiro. O problema é que eu fui fazer uma visita à instituição e identifiquei que ela não estava de acordo com a resolução. Eles têm muito boa intenção, mas o espaço é pequeno, não tem área de lazer e faltam alguns trabalhos. A partir disso, eu oficiei a Secretaria da Saúde relatando as contrariedades com a resolução, solicitando uma reunião com a Defensoria, a Secretaria, a VAP e o grupo de mães, mais cópia dos convênios e de todos os relatórios apresentados pela VAP. Nesse caso, não adianta a gente apertar a Associação, pois eles recebem 609 Reais por mês e investem 2.000 pra cada autista internado. O Estado não paga adequadamente o que seria necessário para desenvolver o trabalho da forma como eles entendem que seria. Como eles têm algumas outras doações, eles conseguem arcar, mas é óbvio que a gente pode ter certeza de que a coisa não fica perfeita. Existe uma relação entre o Estado, a Associação, as mães e o próprio usuário do serviço, que precisa ser adequada e equilibrada pra poder conseguir chegar numa solução. É isso que eu estou tentando fazer nesse caso especificamente. Colocamos como uma execução coletiva daquela sentença.” (Defensor).

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2.2. Vítimas do Choque de Trens da CPTM

Há 10 anos, em 28 de julho de 2000, dois trens da Companhia Paulista de Trens

Metropolitanos se chocaram, deixando 104 pessoas feridas e 9 mortas. Conforme relatado pelos

advogados das vítimas40 e na mídia41, uma falha na rede de energia elétrica da linha férrea reduziu a

capacidade de imobilização de um trem que estava parado em trecho de declive entre as estações

Jaraguá e Perus, que passou a se movimentar até se chocar com outro trem que se encontrava

parado na estação Perus.

A Companhia adotou iniciativas com o objetivo de identificar as vítimas imediatas do

acidente e seus familiares (pessoas que estavam presentes na estação no momento do acidente e

foram efetivamente feridas) para lhes prover assistência médica, restituição de gastos funerários e

indenização. As medidas consistiram tanto na abertura de escritório e fornecimento de número

telefônico “0800” especialmente para cadastramento e acompanhamento das vítimas do acidente,

como no pagamento de indenizações em dinheiro ou cestas básicas42.

Segundo informações prestadas pelos advogados da Companhia Paulista de Trens

Metropolitanos entrevistados, houve somente 4 casos de negociação de indenização. O valor pago

nas indenizações variou entre R$ 15.654,67 e 18.700,0043. Devido às dificuldades de contatar as

vítimas que realizaram negociações e ao sigilo de informações sobre as vítimas garantido pela

40 Informação retirada de despacho proferido em 30/11/2001, nos autos ação civil pública, nº 583.53.2000.020559-5, em curso perante a 34º Vara Cível do Fórum Central da Comarca da Capital de São Paulo. 41 http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/perus.htm e http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/trem_acidente.htm 42 Corrobora com o afirmado o advogado da CPTM: “O acidente de Perus que foi um acidente que teve uma repercussão grande na mídia pelo número de vítimas que foram envolvidas, sejam as vítimas fatais ou as vítimas de dano de lesão corporal. A CPTM à época fez uma proposta às vítimas pra poder evitar o litígio judicial, tal qual como ocorreu agora no metrô também com a questão da linha 4 lá do buraco que teve o acidente. Também foram chamados os parentes das vítimas e foram propostos algum acordo, o objetivo, o padrão, o mesmo valor e tal. Quem aceitou essa proposta não precisou levar para o Judiciário e já teve ali a sua indenização recebida” (Advogado CPTM) 43 Dados obtidos a partir de petição juntada pela CPTM em ação civil pública, processo nº 583.53.2000.020559-5.

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CPTM, o grupo de pesquisa não conseguiu obter detalhes sobre o ambiente e tempo das

negociações44.

A despeito das iniciativas mencionadas acima, foi instituída a Associação de Defesa das

Vítimas do Choque de Trens da CPTM – ADV, que houve por bem ajuizar ação civil pública45 com

pedido de antecipação de tutela, cujo objetivo foi obter a condenação genérica da CPTM consistente

na fixação de sua responsabilidade pela totalidade dos danos materiais e morais causados pelo

acidente e à realização das seguintes obrigações específicas relacionadas à prestação de serviços da

companhia: a) a não colocação em funcionamento de composições que não possuam calços de

segurança e b) o treinamento dos seus funcionários para situações de emergência, c) construção de

muros nas plataformas, e d) a redução da velocidade dos trens.

Ajuizada em 06 de agosto de 2000, a ação teve o pedido de antecipação de tutela indeferido

pelo juízo de primeira instância46, conforme se verifica pelo transcrito da decisão transcrito abaixo:

Existe inequívoca verossimilhança em torno da pretensão voltada à responsabilização genérica da ré, na forma do art. 97 do CDC, pelos danos experimentados pelas vítimas do trágico acidente da Estação Perus, ou por seus sucessores. O saneador, nesse ponto não questionado, proclama tal aparente responsabilidade, que independe de culpa, com base no art. 14 do CDC e, mesmo, no art. 17 do Decreto 2.681/12 (v. fl. 818, item 13.2). Contudo, valendo-me do raciocínio exposto no mesmo tópico do saneador, não enxergo, em absoluto, o chamado perigo da demora. Efetivamente, ao invés de antecipação de tutela, o que não deixa de representar medida anormal, por inverter a ordem natural do processo, parece-me muito mais adequado, consoante também assinalado no mesmo item 13.2 de fl. 818, que os próprios interessados cuidem de ajuizar as respectivas ações individuais.

44 O advogado da companhia de trens não divulgou informações sobre os processos individuais: “(...) Essas informações nós não passamos porque é de cunho pessoal pra família do sujeito que fez acordo extrajudicial e recebeu indenização. A indenização é de dano material e dano moral. Como tem essa questão moral e essa questão pessoal, se quiserem esse valor você vai atrás do sujeito e busca essa informação através da vítima, mas eu CPTM não vou repassar.” 45 Processo nº 583.53.2000.020559-5 46 Despacho proferido em 19/02/2003.

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Contra referida decisão foi interposto Agravo de Instrumento, cujo provimento foi negado

pela Décima Segunda Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo47.

Abaixo é transcrito trecho do acórdão:

Posto que a responsabilidade objetiva do transportador, cuja culpa é presumida, permita admitir a verossimilhança do pedido, ausente está, nas circunstâncias descritas pelo magistrado, o requisito do perigo de dano grave e de difícil reparação, eis que em caso de procedência a condenação será genérica, nos termos do artigo 95 da Lei n. 8.078/90, não podendo prescindir de liquidação específica dos danos causados ao consumidor, que terá de provar-lhes a existência, amplitude e nexo causal, antes de passar a execução, provisória até o trânsito em julgado de sentença genérica, a qual haverá de ser necessariamente liquidada por artigos (...). Diante disso e da situação de verdadeiro caos que se instalaria no processo, caso as liquidações de interesse de cada uma das vítimas nele houvesse de se fazer, a rigor nem haveria utilidade prática na antecipação, se, com muito maior agilidade e economia, os interessados poderão propor ações reparatórias individuais, com especificação e demonstração dos eventuais danos sofridos, pleiteando, ali, a antecipação dos efeitos da tutela condenatória, se for o caso.

Passados 10 anos do ajuizamento da demanda coletiva, ainda não houve juízo definitivo de

mérito, encontrando-se a ação em fase de produção de provas48.

Na visão dos advogados entrevistados da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, a

criação da associação e o ajuizamento da demanda coletiva foram resultados de atitude oportunista

de um advogado, que vislumbrou no acidente uma chance de obter vantagens políticas e financeiras

através da captação de clientes e da visibilidade obtida com o acidente.

47 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de instrumento nº 1.177.921-6, julgado em 26 de

julho de 2003. Des. Relator: Matheus Fontes. 48 Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/PortalTJ3/Paginas/Pesquisas/Primeira_Instancia/Civel/Por_comarca_civel.aspx, acesso em 25/11/2010.

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Já o advogado de uma das vítimas do acidente, que ingressou com demanda individual,

informou não possuir conhecimento sobre a existência da Associação de Defesa das Vítimas do

Choque de Trens da CPTM – ADV ou do ajuizamento de ação coletiva.

Isso porque outra via utilizada para solucionar o conflito foi o ajuizamento de demandas

individuais. Conforme informações obtidas por petição juntada pela Companhia Paulista de Trens

Metropolitanos aos autos da ação civil pública49, foram ajuizadas 53 (cinqüenta e três) ações

indenizatórias individuais perante os fóruns da Lapa, de Franco da Rocha e João Mendes (Fórum

Central da Capital de São Paulo).

Dentre as 53 (cinqüenta e três) ações individuais, 1 (uma) foi julgada extinta sem exame de

mérito, 11(onze) foram julgadas improcedentes, 18 (dezoito) foram julgadas procedente em parte, 8

(oito) foram julgadas procedentes, 4 (quatro) ainda se encontram em fase instrutória, 6 (seis)

tiveram acordo homologado judicialmente, 1 (uma) tramitou em segredo de justiça e 4 (quatro) não

foram localizadas.

Salvo um processo que foi julgado improcedente no ano de 2002, todos os demais

processos obtiveram sentença somente entre os anos de 2005 e 2010. Tendo os processos sido

ajuizados entre 2001 e 2002, a média de julgamento foi entre 3 (três) e 9 (nove) anos.

Somente foi possível encontrar o valor de indenização arbitrado em 7 (sete) das ações

individuais. O menor valor arbitrado foi de R$ 3.988,24 (três mil novecentos e oitenta e oito reais e

vinte e quatro centavos) e o maior valor arbitrado foi de R$ 148.846,50 (cento e quarenta e oito mil

reais oitocentos e quarenta e seis reais e cinqüenta centavos). As demais indenizações foram de

4.000,00 (quatro mil reais), R$ 10.000,00 (dez mil reais), R$ 21.148,84 (vinte e um mil cento e

49 Em entrevista, os representantes jurídicos da Companhia de Trens optaram por manter o sigilo de informações sobre as demandas individuais. Além disso, a busca processual disponibilizada pelo sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não apresenta dados suficientes que indiquem serem as demandas ajuizadas contra a CPTM decorrentes do acidente ora em análise.

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quarenta e oito reais e oitenta e quatro centavos), R$ 30.000,00 (trinta mil reais) e R$ 53.968,29

(cinqüenta e três mil novecentos e sessenta e oito reais e vinte e nove centavos).

Considerando os sete processos em que foi possível identificar o valor arbitrado a título de

indenização, o único processo contra o qual foi interposto recurso é aquele em que o valor da

indenização foi de R$ 148.846,50 (cento e quarenta e oito mil reais oitocentos e quarenta e seis

reais e cinqüenta centavos). Atualmente, o processo está pendente de julgamento de recurso

especial pelo Superior Tribunal de Justiça.

Bem assim, não foi possível identificar os critérios considerados pelo Poder Judiciário

quando da fixação dos valores indenizatórios.

Devido ao decurso de 10 anos de ocorrido o acidente, e crendo que a maioria dos

indivíduos interessados em obter indenização já se apresentaram extrajudicialmente ou

judicialmente, os representantes da Companhia de Trens acreditam que o conflito está sendo

solucionado pelas vias da negociação e principalmente das demandas individuais, tendo a demanda

coletiva perdido o objeto.

2.3. Caso de Loteamento Irregular

O conflito verificado em São Luiz do Paraitinga, em termos amplos, tem por objeto

questões relativas à moradia50 e ao loteamento irregular51 de áreas ambientalmente

protegidas (urbanas e rurais) ou de risco.

50 Conforme pesquisa acerca de Conflitos Coletivos sobre a Posse e a Propriedade Urbana e Rural: (...) o direito à moradia adequada, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e reafirmado em diversos instrumentos de direitos humanos, é claramente definido pelo artigo 11 do PIDESC como “... o direito de todos a um nível adequado de vida para si e para sua família, incluindo adequada alimentação, vestuário e moradia, e a contínua melhoria das condições de vida”. As obrigações dos Estados relativas a esse direito incluem o dever de adotar medidas para conferir segurança na posse, prevenir a discriminação e assegurar a igualdade no acesso, posse e uso da terra e da moradia; assegurar moradia e terra a custos acessíveis, etc. O PIDESC, no artigo 2(1), estabelece a obrigação dos Estados de “adotar medidas... ao

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Este conflito antecedeu ao desastre ocorrido em 2009 com a enchente do Rio Paraitinga52.

Muitos dos problemas de loteamento irregular, que ganharam maior visibilidade pelo desastre, já

existiam anteriormente como consequência da ausência de planejamento urbano e da devida

fiscalização por parte da administração pública, conforme se apurou nas entrevistas realizadas e em

visita ao município53.

máximo de seus recursos disponíveis, com o objetivo de atingir progressivamente a plena realização dos direitos reconhecidos no Pacto, por todos os meios apropriados, incluindo particularmente a adoção de medidas legislativas”. (Série Pensando o Direito - volume 7, p. 40, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), disponível em <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={329D6EB2-8AB0-4606-B054-4CAD3C53EE73}>, acesso em 18.11.2010). Para José Afonso da Silva o direito à moradia se coaduna com o direito de não ser privado arbitrariamente de uma habitação e de conseguir uma e, por outro lado, também o direito de obter uma, o que exige medidas e prestações estatais. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 342). 51 A Lei nº 6.766/99 dispõe sobre o parcelamento do solo urbano. Conforme o seu artigo 37, é vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado. Uma vez notificado a respeito da irregularidade do loteamento, o loteador deverá providenciar a sua regularização, sob pena de, em não o fazendo, autorizar a Prefeitura a fazê-lo, às expensas daquele, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes (art. 40). A despeito das penalidades e consequências civis e administrativas decorrentes do desenvolvimento e manutenção de loteamento irregular, o fato também constitui crime contra a Administração Pública (art. 50). 52 Na virada do ano de 2009 para 2010 a cidade de São Luiz do Paraitinga foi praticamente destruída em razão do transbordamento do Rio Paraitinga. Um dos motivos para o desastre foi a mudança do regime de chuvas, que acabou por deixar a terra da região saturada, muito encharcada, não permitindo mais a absorção pelo solo das águas das chuvas. Conforme informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em dezembro de 2009, o índice de precipitação de chuvas na região foi de 605 (seiscentos e cinco) milímetros, quando o normal para o mês varia entre 150 (cento e cinqüenta) e 200 (duzentos) milímetros. Apenas no dia 31 de dezembro de 2009 choveu 200 (duzentos) milímetros, o que significa dizer que, em um único dia, choveu mais do que a o previsto para todo o mês de dezembro. São Luiz do Paraitinga é uma cidade histórica de mais de 10.417 (dez mil, quatrocentos e dezessete) habitantes, localizada no Estado de São Paulo, próxima ao município de Parati (RJ) e de Cunha (SP), a aproximadamente a 241 km (duzentos e quarenta e um quilômetros) do município de São Paulo. 53 A corroborar essa afirmação, as palavras do Defensor Público entrevistado: “(...) na verdade eu já tinha um contato prévio de outras ações civis ambientais com movimentos populares ligados aos pequenos agricultores em São Luiz do Paraitinga. Nós já havíamos implementado com certo êxito ações questionando os impactos sócio-ambientais derivados da expansão descontrolada do monocultivo no município”. No mesmo sentido, as considerações do representante da Secretaria de Turismo de São Luiz do Paraitinga a respeito da preexistência do problema da ocupação irregular do município: “O problema é antigo, né? Então, nós estamos no meio de uma serra, vales e serras, é uma cidade construída na beira do rio, que hoje estaria de forma irregular pela atual Lei Ambiental, e depois ela se expandiu para os morros. E devido aos poucos cuidados, ambientais e método de construção também que fizeram de qualquer jeito, construções populares e essas construções vieram quase a cair com essas chuvas aí (...) Antes das enchentes já tinha esse problema de ocupação irregular. Ainda, as palavras da assessoria jurídica da prefeitura de São Luiz do Paraitinga: (...) a cidade inteira, ela foi construída numa área de preservação (...). A gente tinha episódios de enchentes que as casas, as pessoas estavam até acostumadas, que a água entrava e tudo, mas nunca na proporção que aconteceu. (...) o déficit habitacional já era imenso no município e agora se agravou, então a gente priorizou

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Como destacou um dos entrevistados, ao se referir ao episódio das enchentes ocorridas em

São Luiz do Paraitinga na passagem de 2009 para 2010:

Foi a gota d’ água. E, além disso, eu provei, a gente prova e nós vamos provar na ação civil que toda aquela ocupação de áreas de risco, classificadas como topo de morro de comunidades pobres no Alto do Cruzeiro, que independem dessa tragédia, toda época de chuva forte havia interdição de casas por rachaduras, escorregamento de solo e movimentação de solo e tudo o mais foi não só insuflada, fomentada por ações do município como patrocinadas por ex-candidatos a prefeitos que bancaram usucapiões gratuitas para aquela população regularizar o solo ali. Por incrível que possa parecer a total irresponsabilidade.

(...) Como eu falei para você, a tragédia vinha dando sinais de que um dia ia acontecer, todo ano (...) Essas ausências de políticas habitacionais e ambientais consistentes fizeram com que a tragédia atingisse a dimensão que atingiu” (Defensor Público).

Conforme os relatos de moradores e autoridades da cidade, muitos são os núcleos urbanos

constituídos de maneira irregular, em áreas de risco ou sem infraestrutura adequada, não

apresentando, ainda, as características exigidas pela Lei federal nº 6.766/99 (“Lei do Uso do Solo

Urbano”)54. Prova disso são os bairros de São Benedito, o Alto do Cruzeiro, a Várzea dos

Passarinhos e o bairro das Casas Populares, situado próximo ao cemitério da cidade55.

essas pessoas que perderam as suas casas e estão em área de risco, então vão ser imediatamente removidas, então elas tiveram prioridade na escolha das casas.

54 Importante destacar a tramitação do Projeto de Lei nº 3.057/2000 (para acessar o texto substitutivo, acesse: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/legislacao/regularizacao-fundiaria/Substitutivo13122007.pdf>), que buscou disciplinar novos instrumentos urbanísticos, tais como a intervenção, a demarcação urbanística e a legitimação da posse – estes dois últimos já incorporados à Lei nº 11.977/2009, conversão da Medida Provisória n. 459/2009, que disciplina o Programa Minha Casa, Minha Vida –, idealizados a fim de prevenir e combater a constituição e consolidação de espaços ilegais nas cidades. Para maiores informações a respeito do assunto, remetemos o leitor às conclusões exaradas em estudo analítico desses novos instrumentos urbanísticos previstos no projeto de lei de responsabilidade territorial (Cf. Série Pensando o Direito – volume 9, pp. 130-144, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), disponível em <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={329D6EB2-8AB0-4606-B054-4CAD3C53EE73}>, acesso em 18.11.2010), no qual os referidos mecanismos são avaliados comparativamente com aqueles já existentes e previstos nos vigentes diplomas legais que tratam do assunto,

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Particular atenção merece o bairro de Santa Terezinha, resultado do loteamento de um

terreno particular. Nesse caso, a área foi partilhada e os lotes vendidos, sem, contudo, que os

proprietários da área construíssem a infraestrutura básica necessária, de modo a viabilizar a

prestação dos serviços públicos, em contrariedade ao disposto na Lei do Uso do Solo Urbano.

Este foi o único caso que se teve notícia de que resultou na propositura de Ação Civil

Pública por parte do Ministério Público56, objetivando o cumprimento de obrigação de fazer,

consistente na construção de obras de infraestrutura e saneamento básico57. Nesta ação foi celebrado

Termo de Ajustamento de Conduta, que, descumprido, ensejou a propositura de execução por parte

do Parquet. A demanda continua em curso.

Vale destacar que até 2009 a cidade de São Luiz do Paraitinga não dispunha de um Plano

Diretor que ordenasse e regulasse a ocupação urbana na localidade, não obstante, ao que foi

informado, já houvesse empenho por parte das autoridades públicas nesse sentido, juntamente com

equipe da UNESP58. O Plano Diretor teve longa tramitação na Câmara, sendo que sua aprovação

veio a culminar com o desastre verificado na região no fim do ano de 2009 e início de 201059.

como por exemplo, a Lei federal nº 6.766/99 (“Lei do Uso do Solo Urbano”). A análise conclui, em termos gerais, que referidos instrumentos, isoladamente, não dão conta do grande problema enfrentado nos procedimentos de regularização fundiária, e propõe que a eficácia desses instrumentos ocorra por meio de diálogo com o planejamento das cidades, bem como tenham aplicação combinada com outros instrumentos urbanísticos.

55 Nesse sentido, vide: <http://www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br/plano_diretor/jornal/jr-n9.pdf>, acesso em 12.10.2010. 56 Loteamento Santa Terezinha. Processo no. 579.03.000.681-7 (Autos Principais) e no. 579.03.000.350-8-1 (Embargos)_TJSP_Comarca de São Luiz do Paraitinga. De se destacar, contudo, que há notícia de outras ações judiciais envolvendo a questão de ocupação/exploração irregular do uso do solo, em detrimento da preservação ambiental. A esse respeito, confiram-se as seguintes ações civis públicas em trâmite perante a Comarca de São Luiz do Paraitinga – SP nºs 0000784-74.2009.8.26.0579 e 0001195-88.2007.8.26.0579. De acordo com a assessoria jurídica da prefeitura: “(...) já tinham vários inquéritos. A gente tinha, no início do ano, decretado congelamento de algumas áreas de alguns loteamentos clandestinos. A gente já tinha tomado essa iniciativa e agora por risco de vida mesmo as pessoas têm que ser removidas imediatamente”. 57 Não foi possível aferir, no caso, se houve pedido indenizatório, já que o processo encontra-se apenas parcialmente digitalizado. 58 A primeira atuação da UNESP em São Luiz do Paraitinga aconteceu em 2005, com o Programa – Sistema de Governança Municipal, promovido com apoio da Fundação para o Desenvolvimento da Unesp

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Esse episódio de destruição da cidade pelas chuvas e enchente do rio somente veio a

agravar, assim, a questão da moradia na região, que além de já ser irregular, resultou na urgente

necessidade de remoção da população que ocupava, sobretudo, zonas de risco, e a sua realocação60.

A reconstrução de São Luiz do Paraitinga, após o desastre já relatado, contou com a

participação de diferentes atores. Houve a criação e revitalização de diversos conselhos, formados

por representantes de instituições da sociedade civil e órgãos públicos.

(Fundunesp) e governo estadual. O programa, voltado para cidades de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), auxilia a administração com um conjunto de softwares que organizam um banco de dados único, com informações de áreas como Educação e Saúde disponíveis para os cidadãos. Outra ação do programa foi a capacitação de gestores públicos com a metodologia participativa. Também foi desenvolvido o Plano Estratégico de Desenvolvimento Saudável e Sustentável (Pedess) local e regional, e o Plano Diretor Participativo. (Informações obtidas em <http://www.unesp.br/aci/jornal/255/capa.php>, acesso em 12.10.10). 59 Esse plano, aprovado em 15 de dezembro de 2009 e sancionado em meio à crise das enchentes, permitiu que diferentes órgãos de governo estaduais e federais tomassem atitudes imediatas para enfrentamento emergencial dos problemas, segundo informações disponíveis em <http://www.unesp.br/aci/jornal/255/capa.php>, acesso em 12.10.10. Um exemplo foi a construção de casas populares pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), em razão da aprovação das chamadas Zonas Especiais de Interesse Social, previstas no plano. 60 Ao indagarmos alguns dos entrevistados sobre eventual mobilização institucional a respeito da questão de ocupação irregular foi ressaltado que: “A ideia foi congelar, inicialmente o que já estava (constituído), para não ampliar. E depois, (o Poder Público municipal), com recursos próprios, que não são grandes, né? São 20 (vinte) milhões por ano, sendo 25% (vinte e cinco por cento) pra educação, 15% (quinze por cento) pra saúde, 54% (cinqüenta por cento) pra folha de pagamento, sobram, mais ou menos 11% (onze por cento) pra investir na prefeitura, que não quer dizer que seria só investimento em casas. Daí, devido a esse recurso pequeno, aos poucos ia se resolvendo, né? Mas muito lentamente, demoraria anos. Com a vinda da catástrofe, que é um problema que já existia antes e veio agravar (a situação) até de locais que a gente achava que era seguro (...) E com a enchente veio esse aporte grande financeiro, que possibilitou fazer isso de forma rápida, em seis meses construir 150 (cento e cinqüenta) casas e retirar essas pessoas ou boa parte delas. (Secretário do Turismo). No mesmo sentido as considerações de representante do CERESTA: (...) na verdade, assim, o município já tinha identificado várias áreas que eram irregulares, mas não tinha começado a remoção ainda,. Nenhuma família tinha sido removida, né? O que tinha sido feito era o congelamento de todas essas áreas. Então, assim, eles não cresceram, foram congelados (...) É um decreto de congelamento. Então foram colocadas placas nos bairros, nos loteamentos que eram irregulares pedindo para as pessoas não comprarem, não construírem e isso evitou bastante que tivesse um crescimento dessas áreas. O agente do Governo do Estado de São Paulo, pessoa também ligada à CDHU, destacou que, antes das enchentes que atingiram São Luiz do Paraitinga no fim de 2009, um dos programas da Secretaria da Habitação do Estado já atuavam no município. Trata-se do Programa Cidade Legal, que é, segundo o entrevistado, um programa da Secretaria de Habitação implantado em todo o Estado de São Paulo em que ela faz um convênio com o município para a regularização dos lotes, loteamentos então irregulares. Constitui, portanto, um programa que busca que todo mundo ganhe a titularidade de sua propriedade.

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Dentre as partes envolvidas/interessadas, destacam-se: a) a população diretamente atingida,

que ficou desabrigada ou, então, que não poderia continuar nas áreas irregulares, agora com o risco

agravado pelo desastre decorrente das chuvas e enchente do Rio Paraitinga; b) os proprietários e

responsáveis pela construção do loteamento irregular, no caso dos loteamentos irregulares, como é a

situação do Loteamento Santa Terezinha; c) a prefeitura da Municipalidade; d) os membros do

Ministério Público atuantes em São Luiz do Paraitinga; e) a Magistrada da Comarca local; f)

associações civis (dentre elas, destaca-se a AMI Paraitinga); g) os professores da UNESP,

responsáveis pela condução do projeto do Plano Diretor; h) o governo do Estado, por meio da

CDHU; i) Defesa Civil (Coronel Aquita); j) CERESTA (Centro de Reconstrução Sustentável de

São Luiz do Paraitinga)61.

No caso do loteamento os atores diretamente envolvidos são os adquirentes dos lotes desses

parcelamentos irregulares ou clandestinos; o proprietário ou loteador que, no mais das vezes,

desaparece ou queda-se inerte quanto à regularização do loteamento; e o Poder Público (no caso, o

Município ou o Distrito Federal), que normalmente é demandado em juízo para a regularização do

empreendimento ilícito ou para fins de ressarcimento62.

61 O CERESTA nasceu para ser um centro integrado de trabalho, a juntar órgãos públicos e demais instituições envolvidas na reconstrução da cidade e na aplicação do Plano Diretor do município. Segundo informações obtidas no Jornal da reconstrução, Ano I, nº 1, São Luiz do Paraitinga, 1ª quinzena, março de 2010, estarão no local destinado à instalação do centro, a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de São Paulo (UNESP) e a Universidade de Taubaté (Unitau), além de: o Conselho da Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat); o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); a Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano do Estado de São Paulo (CDHU); a Defesa Civil; e o programa de inclusão digital Acessa São Paulo e a Assessoria de Planejamento da Prefeitura. 62 A esse respeito, as considerações extraídas do Relatório Final de Pesquisa Conflitos Coletivos sobre a Posse e a Propriedade Urbana e Rural, segundo as quais: (...) a legislação internacional de direitos humanos, os Estados devem proteger os indivíduos e os grupos contra despejos e deslocamentos forçados e respeitar o direito à moradia adequada, mediante o cumprimento de obrigações positivas e negativas decorrentes dos instrumentos internacionais de direitos humanos. Além disso, devem adotar medidas positivas para efetivar os direitos à terra e à segurança da posse mediante políticas e programas públicos de moradia, acesso à terra e regularização fundiária. (Série Pensando o Direito - volume 7, p. 65, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), disponível em <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={329D6EB2-8AB0-4606-B054-4CAD3C53EE73}>, acesso em 18.11.2010). Destaca-se, ainda, que, de acordo com a Agenda Habitat, uma chamada global à ação em todos os níveis, que oferece, dentro de uma estrutura de metas, princípios e compromissos, uma versão positiva e sustentável dos assentamentos humanos – onde todos tenham uma moradia adequada, um ambiente sadio e

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A despeito da diversidade de situações, os ocupantes/adquirentes, seja por barreiras

culturais, de informação, econômicas ou mesmo jurídicas, não são os que exigem individualmente

do proprietário ou do Poder Público a regularização da área, ressarcimento ou alguma obrigação de

fazer. Conforme pesquisa jurisprudencial realizada, geralmente a questão do loteamento irregular é

levada à apreciação do Judiciário pelo Ministério Público63, em sede de ação civil pública64. É o que

seguro, serviços básicos, e escolhas livres e produtivas de emprego, todos os 156 (cento e cinquenta e seis) países que ratificaram o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 24/01/1992 e promulgado pelo Decreto n. 591/1992, devem, a cada cinco anos, reportar sobre os progressos obtidos em relação à efetivação dos direitos constantes do Pacto. Como informa o Relatório Final de Pesquisa Conflitos Coletivos sobre a Posse e a Propriedade Urbana e Rural, antes referido (p. 66), dentre as questões mais proeminentes que os Estados devem prover informações, estão: a) número de indivíduos e famílias sem-teto; b) número de indivíduos e famílias em situação inadequada de moradia e sem acesso a serviços básicos tais como água, gás, energia elétrica, saneamento; c) número de indivíduos e famílias vivendo em locais super adensados, estruturalmente inseguros ou sob outras condições que afetem sua saúde ou sua segurança; d) número de indivíduos e famílias vivendo nos assentamentos informais; e) número de indivíduos e famílias despejados nos últimos cinco anos e numero de pessoas que necessitam de proteção legal contra despejos arbitrários; f) número de pessoas cujos custos de moradia estão acima de qualquer limite de capacidade de pagamento, de acordo com sua renda mensal ou capacidade de pagamento; g) número de indivíduos e famílias em lista de espera para obter uma moradia ou acomodação adequadas, tempo de espera na lista e medidas adotadas pelo país para atender a essas pessoas; h) número de pessoas em diferentes residindo em diferentes tipos de habitação: publica, privada própria, aluguel, privada ou publica ocupada, assentamento informal, cortiço, etc. Os Estados também devem prover informações relativas à legislação e às políticas existentes para efetivar o direito à moradia.

63 A respeito da atuação do Ministério Público em conflitos fundiários, vide considerações críticas constantes do Relatório Final de Pesquisa Conflitos Coletivos sobre a Posse e a Propriedade Urbana e Rural (Série Pensando o Direito - volume 7, pp. 78-79, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), disponível em <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={329D6EB2-8AB0-4606-B054-4CAD3C53EE73}>, acesso em 18.11.2010).

64 Confira a este respeito dois acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, um deles envolvendo situação ocorrida na Comarca de São Luiz do Paraitinga: TJSP, Apelação Cível nº 209.366.4-8-00, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Sérgio Gomes, j. 28.03.2006 e Apelação Cível nº 990.09.366578-6, 3ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Donegá Morandini, j. 28.09.2010. O que se infere dessas decisões é que tanto Municipalidade, quanto loteador ou proprietário do terreno são tidos como responsáveis solidários, seja para efeitos de regularização da obra, seja para efeitos de ressarcimento dos danos causados aos adquirentes dos lotes, que são considerados consumidores, conforme ressalvou trecho do segundo acórdão acima referido, cujos termos são transcritos a seguir: (...) Reconhecida as obrigações do Município em velar pelo exato cumprimento da Lei Federal n. 6766/79 e da sua própria legislação sobre a matéria, tem sido admitida, em tese, a sua responsabilidade solidária no ressarcimento dos danos causados aos adquirentes dos lotes, que são considerados consumidores. (...) (grifos nossos). Para maiores detalhes acerca do assunto, confira: TJSP, Agravo de Instrumento nº 424.893-5/4, Relator Desembargador Laerte Sampaio. Assim, pode-se concluir que até mesmo em razão de uma vulnerabilidade é que os adquirentes se quedam inertes na busca pela regularização do loteamento, restando ao Ministério Público, no mais das vezes, mobilizar o Judiciário visando à regularização de tal situação.

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se verifica, inclusive, no caso do loteamento Santa Terezinha, situado em São Luiz do Paraitinga,

antes referido.

No que diz respeito às formas de solução adotadas visando à regularização do loteamento

irregular, é importante distinguir dois momentos: um anterior e outro posterior à ocorrência das

enchentes e transbordamento do Rio Paraitinga.

Antes, verificou-se a propositura de ação civil pública por parte do Ministério Público em

alguns casos, como o do loteamento irregular de Santa Terezinha. Neste processo, houve a

celebração de Termo de Ajustamento de Conduta que foi descumprido, ensejando execução

judicial, a qual ainda se encontra pendente.

Há notícias, também, de instauração de procedimentos investigativos, como Inquéritos

Civis, por parte do Ministério Público local, para apurar supostas situações de irregularidade65.

Depois das enchentes, manteve-se a instauração de procedimentos investigativos por parte

do Parquet. Diante da necessidade emergencial de remover moradores de áreas de risco e da

exigüidade de terrenos disponíveis para a construção de casas populares por parte do Governo do

Estado (CDHU), foram também realizadas desapropriações e, nos casos em que houve resistência

por parte dos proprietários, houve o ajuizamento de ações expropriatórias66.

65 Segundo relato do membro do Ministério Público local, o órgão está bem sobrecarregado desde a época da enchente, têm sido realizados atendimentos ao público de segunda-feira a sexta-feira, sendo que foram instaurados mais de 70 (setenta) inquéritos civis e a maioria relativa aos problemas da enchente. 66 Processos nos. 579.10.000.077-4 e 579.10.000.078-2 _TJSP_Comarca de São Luiz do Paraitinga.

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Nessa etapa, dos relatos colhidos67 pode-se constatar que o Ministério Público

desempenhou importante papel de interlocução e de canal de comunicação, sendo a instituição

eleita pela comunidade local como legítima intermediadora entre Poder Público e a população68.

Nos casos levados ao Judiciário, diante da necessidade de uma solução rápida e eficaz a fim

de viabilizar a desapropriação dos terrenos e a construção de conjunto habitacional para a

realocação das pessoas que tiveram suas casas destruídas ou encontravam-se em áreas de risco, a

Magistrada propôs a realização de audiência preliminar, tão logo as ações foram distribuídas,

67 Nesse sentido, transcrevem-se, a seguir, trechos da entrevista realizada com Promotora: (...) na verdade eles (cidadãos, a população) acabam procurando mesmo o Ministério Público pra todo tipo de conflito. A promotora cita os seguintes exemplos de situações: Ah começaram a construir as casas do CDHU e estavam fazendo depósito de material inerte em local de várzea ou de repente eles (cidadãos, a população) acreditam que o caminhão que está fazendo a construção das casas CDHU está provocando rachadura na casa deles; ou a construção que está sendo feita em razão de obras de contenção está aumentando a porcentagem de poeira e os problemas respiratório; ou porque a prefeitura está oferecendo auxílio-moradia emergencial pro vizinho e pra ele não. Em entrevista de juiz e de promotor a respeito da existência de eventual canal de comunicação utilizado pela população, destacaram: (...) ela (a população) não está sendo bem informada do que está ocorrendo né.? É assim fazem essa, por exemplo, fazem audiência pública, mas audiência pública eu, por exemplo, não vou falar da minha casa (...), o João também não vai poder levantar a mãozinha e falar da casinha dele, ele tem que ter um canal pra se manifestar com o poder público, ter essa troca. Esse canal ele existe hoje? (questão formulada às entrevistadas). Ao que responderam: Não, então eles acabam usando o Ministério Público. (...) É e eles (cidadãos, população) acabam usando realmente o Ministério Público porque, por exemplo, quando teve o dia da entrega dos contratos da CDHU porque o sorteio foi dividido em três etapas – primeiro pra quem era proprietário, porque aqui em São Luís tem um grande problema de que (...) a grande parte dos imóveis não tem matrícula, né? Eles têm aqui o contrato de gaveta, então seria pra esses “proprietários ou possuidores”; a segunda etapa que foi realizada seria para os ocupantes; e a terceira para aquelas que estão recebendo auxílio moradia e se sobrassem casas. E quando foi pra assinar o primeiro contrato das casinhas da CDHU que eram para esses “proprietários e possuidores”, a população veio no Ministério Público e pediu para que eu estivesse presente no dia da assinatura do contrato para que a prefeitura de certa forma não estivesse induzindo eles a nada de errado, e a gente acaba tendo que ir, né? Então você acaba participando ativamente. Na mesma linha, as palavras da assessoria jurídica da prefeitura: “Eles (a população) têm o Ministério Público, que é o canal deles. E tem a Defensoria Pública aqui em Taubaté, que é a comarca maior que tem aqui, ne?”. A respeito da existência de ouvidoria no CERESTA, ressaltou-se que até o momento não há um canal de comunicação no centro, até mesmo por falta de pessoa, mas salienta: o ideal que a gente acredita é ter mesmo um canal,. O ideal não, vai ser necessário para a gente evitas essas demandas judiciais, né? (a respeito das possíveis ações individuais ressarcitórias). 68 Vale destacar as considerações apresentadas por integrante da associação civil local AMI PARAITINGA no sentido de que, no dia da enchente, o cargo do Ministério Público local estava vago. Quem estava respondendo era o Dr. Antonio Carlos Osório, que é promotor e luizense, mas atua em Taubaté. Quando a água estava subindo muito, o pessoal do rafting procurou por ele e ele, muito antes da Defesa Civil chegar, já foi atuando no salvamento das pessoas com auxílio do pessoal do rafting.É importante mencionar que ele mesmo idealizou a criação da AMI, pois conta com uma experiência de atuação em missão no Timor Leste. Idealizou a AMI para conseguir material de construção e ajudar muita gente a reconstruir suas casas. Mobilizou-se para conseguir doações, pois a atuação isolada do Poder Público seria insuficiente.

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convocando todas as partes envolvidas e incentivando a composição dos interesses, assumindo

postura conciliatória69.

Paralelamente às iniciativas acima, houve após as enchentes a criação do CERESTA, a que

já se fez referência, para unificar todos os organismos atuantes na reconstrução e ordenação

sustentável da cidade. Entretanto, ainda não se tem notícia da criação de um canal unificado de

ouvidoria ou comunicação para a escuta mais próxima da população70. Segundo os relatos, a

população não recorre a este centro com frequência, sendo que, no caso em que ali chega, deve

dirigir-se ao órgão do qual necessita informação.

Não houve ainda nenhuma tentativa ou projeto para utilização de mecanismos extrajudiciais

para a solução de conflitos, muito embora esta demanda tenha aparecido nas entrevistas.

Dos relatos obtidos, conforme já se ressaltou, observa-se que a população sempre recorreu

ao Ministério Público, a fim de legitimar toda e qualquer situação envolvendo a desocupação das

áreas e realocação. Salienta-se que quando da ocorrência do desastre natural, verificou-se

verdadeira situação de caos na localidade. A população desamparada não atendia a qualquer

comando, sendo que imediatamente foi determinado o envio da Defesa Civil de São Paulo para a

cidade, tendo atuado na contenção da calamidade um dos profissionais que atuaram por ocasião do

acidente do avião da TAM. De acordo com o relato de representante do Judiciário, colhido em

entrevista realizada em 28.09.2010, uma das vozes mais ativas na ordenação de tal situação de

pânico inicial foi a do Coronel Aquita.

69 A corroborar, as impressões da assessoria jurídica da prefeitura acerca da integrante do Judiciário de São Luiz do Paraitinga: (...) ela é extremamente aberta para isso, para essa conciliação. Ela tem uma formação nesse sentido, ela sempre busca conciliação. 70 Há que se destacar, contudo, que, conforme se apurou, foram realizadas algumas audiências públicas, em 09.04.2010, 12.04.2010 e 01.10.2010, na Praça da Matriz de São Luiz do Paraitinga com o intuito de permitir a participação da população nos processos decisórios relacionados à reconstrução da cidade e de conferir transparência à gestão do centro. Este, nesse primeiro momento, apresentou-se como o principal canal de comunicação entre população, Poder Público e demais instituições comprometidas com a reestruturação do município. De acordo com as informações colhidas em entrevista realizada com o representante da Defensoria Público do Estado, as audiências públicas foram conduzidas levando em conta os parâmetros básicos fixados na resolução nº 25 do Ministério das Cidades, disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/legislacao/regularizacao-fundiaria/legislacao-federal/resolucoes-do-conselho-nacional-das-cidades/ResolucaoN25De18DeMarcoDe2005.pdf, acesso em 28.11.2010.

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3. ANÁLISE DOS CASOS

3.1. Caso dos Autistas

A) Replicabilidade do caso

O caso dos autistas relaciona-se à proteção constitucional de direitos sociais (saúde e

educação) e ao controle jurisdicional de políticas públicas. Casos semelhantes podem ser objeto de

demandas coletivas em relação a outros direitos e temas: trabalho, moradia, lazer, segurança,

previdência social, assistência aos desamparados, proteção à infância, dentre outros incluídos ou

não na agenda política do Poder Executivo.

B) Poder Judiciário como ponto de partida?

Foi ajuizada ação civil pública com o objetivo de compelir a Fazenda Pública do Estado de

São Paulo a custear tratamento médico e educacional especializado às pessoas com autismo

residentes no Estado de São Paulo. Ao final do processo foi proferida sentença genérica que julgou

procedente a demanda para compelir o Administrador Paulista a realizar políticas públicas voltadas

aos autistas.

Esta sentença genérica foi o ponto de partida para a criação de sistema de encaminhamento

de casos internamente às Secretarias da Educação e da Saúde71, e para o ajuizamento de habilitações

e execuções individuais ou coletivas.

71 Conforme informado pelo Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, foi criada uma sistemática de atendimento aos pedidos e reclamações de responsáveis por autistas interna às Secretarias da Saúde e da Educação: “basta o requerimento administrativo e a prova que a mãe é a responsável, os documentos da criança, documento de endereço e laudo médico que dê conta que ele seja autista. Isso já está minuciado na ação civil pública: é só a mãe se deslocar até a Secretaria da Saúde, que faz a verificação da validade desse atestado médico. Verificada a veracidade de tudo aquilo a que foi veiculado, eles montam o processo e encaminham pra nós, daqui da chefia de gabinete vai pra um departamento que chama CAPE –

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A despeito de admitir o papel desta sentença no reconhecimento do direito dos autistas em

obter tratamento especializado custeado pelo Estado, representante da Secretaria da Educação do

Estado de São Paulo entrevistado afirma que o caso foi uma exceção. Para ele, a maioria dos

conflitos envolvendo direitos sociais é resolvida administrativamente e não é função do Poder

Judiciário intervir na fixação da agenda de políticas públicas do Poder Executivo, conforme pode

ser verificado no trecho da entrevista transcrito abaixo72:

Na questão dos autistas não existia uma política pública incisiva como tem hoje. De fato foi necessária uma provocação judicial. Não que os autistas não tivessem atendimento, mas não o tinham nesses moldes. Para os libras, por outro lado, não foi necessária uma intervenção do Ministério Público para ter um intérprete de libras dentro de uma sala de aula; não precisou da manifestação do Ministério Público para ter cuidador dentro de sala de aula. Então, na verdade, é muito pontual esse grupo de atuação do Ministério Público que atua em face das pessoas com deficiência, mobilidade reduzida e etc. São atividades extremamente pontuais até mesmo porque para todas essas tratativas eles nos convocam: “olha recebi uma demanda de que tem um cego sem atendimento” e nós vamos ver o que está acontecendo, buscando resolver o problema na fonte. Então, hoje não é imprescindível a intervenção do Ministério Público pra tomarmos qualquer medida administrativa ou com política. Até mesmo porque judicialização não é nosso objetivo. Hoje o que tem ocorrido é o fenômeno da judicialização; é o Poder Judiciário decidindo questões de política pública. Não é nem o perfil. O Poder Judiciário não é revestido para tanto e nem quer essa atribuição, e o Estado não quer deixar a política social ao talante de outro poder. Ele é Poder Judiciário e nós somos o Executivo.”

Já para os membros da magistratura, do Ministério Público e da sociedade civil

entrevistados, o Poder Judiciário é um importante ambiente de diálogo e visibilidade de conflitos

sociais, na medida em que atua como elemento de pressão, sem o qual o Poder Executivo se

mantém inerte:

Centro de Apoio Pedagógico Especializado. No CAPE eles viabilizam de acordo com o estudo da região geográfica que a pessoa reside e eles disponibilizam o atendimento, sempre atentos ao prazo de 30 dias a contar do dia do protocolo.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 72Adicionalmente, o Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo afirmou: “Mas então dentro de uma vertente de vinte, trinta questões o Judiciário intervêm em uma, por exemplo, cadeirante, você não tem nenhuma manifestação do Ministério Público relativamente à inacessibilidade, nós já estamos tornando acessíveis todas as escolas públicas, até 2012, 2013 o objetivo é tornar acessíveis todas.”(Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

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Eu vejo o Estado profundamente afastado da vida das pessoas. Eu não vejo o Poder Judiciário como um salvador da pátria, mas eu acho que, nessas questões de saúde, fora da força do Poder Judiciário não há qualquer alternativa. (Juiz)

Eu acho que o Poder Público continua muito omisso. Isso eu estou vendo na área da saúde e também na área de fusão. Temos, a todo o momento, que avisar o administrador que existe uma lei de responsabilidade e que vamos entrar com uma ação. Só assim eles falam: “ah, é verdade”. (Promotor de Justiça)

A grande dificuldade é a seguinte: o Estado tem uma obrigação, só que eles simplesmente não têm interesse em fazer. Isso é um absurdo porque o autista é cuidado no mundo inteiro sem haver necessidade nenhuma de ter condenação judicial, uma obrigação de fazer imposta pelo Judiciário. No mundo inteiro não existe isso. Existem entidades que cuidam de autistas e são prestigiadas pelos governos. Elas tratam, cuidam e os governos fazem várias ações pra ajudar os autistas. Nos Estados Unidos o atendimento é sensacional, na Europa a maioria é muito boa, aqui na América Latina nós encontramos no Uruguai um bom atendimento, e aqui no Brasil nós estamos com essa dificuldade. (advogado e pai de autista)

Em posicionamento intermediário, o Defensor Público do Estado de São Paulo entrevistado

concorda que há a possibilidade do Poder Judiciário intervir em políticas públicas e que, no caso

envolvendo o custeio de tratamento especializado para autistas, a sentença genérica foi um ponto de

partida importante. Entretanto, conforme se verifica no trecho de entrevista transcrito abaixo, o

Defensor acredita no poder de mobilização da sociedade civil, que permite a resolução do conflito

fora do cenário judicial:

Sem o Judiciário os direitos poderiam ser efetivados. Aliás, eu acredito muito no poder do povo, no poder da sociedade, na capacidade de mobilização. A Defensoria é uma criação da sociedade civil. Ninguém precisou do Judiciário. Ninguém propôs uma ação e disse: “Estado cumpra esta determinação aqui; essa norma da Constituição Federal”. Então, eu acho que muitos direitos não precisariam do Judiciário para serem efetivados, embora obviamente eu acredite na possibilidade do Judiciário efetivar políticas públicas que não são efetivadas na omissão do Estado. Eu acho que o mundo ideal, o mundo que eu sonho seria aquele mundo que não precisaria de Defensoria, do Ministério Público, de

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advogado e nem de ninguém. Bastaria que a pessoa tivesse o seu direito violado simplesmente ir lá no administrador público, bater na porta e falar “me dê o que é de direito, o que está na Constituição”. O problema é que esse é o mundo ideal, não é o mundo real em que nós vivemos. A gente precisa de instituições que contribuam para a efetivação dos direitos.

Assim, nota-se que os entrevistados identificaram o ajuizamento da ação civil pública e a

prolação de sentença genérica procedente como ponto de partida importante para o

desenvolvimento de uma política de atendimento e custeio de tratamento médico e educacional de

autistas no Estado de São Paulo.

Houve inclusive um ceticismo dos entrevistados quanto à possibilidade de um mecanismo

eficaz fora do Poder Judiciário para obrigar o Poder Público a assumir a obrigação de prestar a

assistência que a lei prevê. Sendo omisso, a ação do Poder Público dependeria da coerção de que

uma decisão judicial é dotada.

Muito embora a sentença tenha estimulado a criação de uma sistemática para resolução do

conflito internamente às Secretarias da Educação e da Saúde, esta iniciativa não foi imediata.

Inicialmente foram promovidas habilitações e execuções no Judiciário visando, dentre outros

pedidos, (i) o custeio do tratamento de autista em instituição particular especializada, (ii) a

transferência do autista para outra instituição e (iii) questionar a qualidade do tratamento oferecido

pelas instituições indicadas pelo Estado.

Mas algumas limitações apareceram no Judiciário: além dos servidores, juiz e funcionários

do cartório não possuírem expertise para lidar com as questões levantadas73, a grande quantidade74

de habilitações e execuções passou a interferir significativamente no funcionamento do cartório.

73 O juiz, em regra, não possui conhecimentos aprofundados sobre medicina, que seriam essenciais para determinar a prestação de uma intervenção médica em detrimento de outra. Além disso, o juiz também carece de conhecimentos específicos sobre gestão orçamentária, especialmente no que se refere à gestão de recursos públicos.

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Paralelamente, o receio da multa de R$ 50.000 (cinqüenta mil reais) fixada para a hipótese

de descumprimento da obrigação declarada em sentença estimulou as Secretarias da Educação75 e

da Saúde a cumprirem a decisão e se estruturarem para o atendimento dos autistas. A partir desse

momento, o Poder Judiciário passou a atuar essencialmente como fiscalizador do sistema, na

medida em que atua somente em casos nos quais não foi possível solucionar consensualmente o

conflito entre a administração e o beneficiário da política pública.

C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento (alguma padronização)?

A possibilidade de ajuizamento das liquidações e execuções em juízo pode importar em

tratamento desigual dos requerentes, uma vez que cada caso será solucionado individualmente.

Inclusive, o próprio texto da sentença inicialmente estimulou a desigualdade de tratamento

entre seus beneficiários: ao determinar que o autista seja atendido por instituição especializada

próxima de sua residência, a sentença obrigou o Estado a custear instituições caras para autistas

residentes em áreas nobres da cidade, enquanto custeava instituições muito mais baratas para os

autistas residentes em áreas pobres da cidade76.

74 Não se sabe precisar ao certo quantas habilitações foram ajuizadas. Entretanto, a decisão de extinção das habilitações e os relatos dos entrevistados indicam que foram ajuizadas centenas de habilitações e execuções relacionadas ao objeto da sentença proferida na ação civil pública ora em análise. 75 Corrobora com esta afirmação a fala do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo: “Por quê? Se nós não fizermos isso é multa diária de cinqüenta mil reais por dia de não cumprimento da obrigação. Até hoje, deixando bem grafado, 2005 veio a decisão monocrática, 2006 foi pro o Tribunal de Justiça, 2008 transito em julgado. Em todo esse ínterim nenhuma vez nós sofremos nenhum processo de improbidade administrativa nem de desobediência nem de descumprimento. Até hoje nós não tivemos nenhum evento relativamente ao não cumprimento da decisão judicial. O que a gente busca hoje é não só o cumprimento de medida judicial. Na verdade, isso gerou uma série de ações” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo). 76 A afirmação feita pelo representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo corrobora com este entendimento: “Uma série de pontos da decisão elas são segregatórios. Alguns itens são inexeqüíveis. Por exemplo, vamos fazer um exemplo muito pontual. O juiz, quando da decisão, escreveu: “condeno o Estado de São Paulo a disponibilizar atendimento especializado a todos os autistas nas cercanias de suas residências, coisa e tal”. Antigamente não existia um vetor, não existia um limite de gasto, então um cara milionário que mora no Itaim Bibi teve o custeio de uma instituição ao lado de sua casa, que custava sete mil e duzentos reais. Já o cara que mora em Itaquera, a instituição mais próxima da residência dele custa duzentos reais. Você vê que até em uma decisão judicial o rico continua sendo privilegiado e o pobre continua sendo

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Tal desigualdade passou a ser combatida com o estabelecimento, pelas Secretarias da Saúde

e da Educação, de convênios com entidades particulares especializadas na educação e tratamento

clínico de autistas. Assim, atualmente a Secretaria da Saúde paga R$ 610,00 e a Secretaria da

Educação paga R$ 1000,00 para cada autista, independentemente da instituição e de suas

características e localização.

Essa estimativa média do valor de tratamento pago por autista sugere uma preocupação

com o estabelecimento de critérios objetivos para a isonomia de tratamento.

D) Quem paga a conta?

Por se tratar de direito social, cuja prestação foi constitucionalmente designada ao Poder

Executivo, os gastos necessários à sua efetivação devem ser arcados pelo Estado.

Considerando esse ônus da Administração, houve certa convergência no entendimento dos

entrevistados ao reconhecerem que compete às Secretarias da Saúde e da Educação cumprirem o

determinado na sentença condenatória e arcarem com os custos de implementação de um possível

sistema de solução do conflito.

sucateado. Qual que foi o nosso objetivo? Vendo que existia um aproveitamento por parte de quem não precisava se valer do Estado e um cerceamento do direito do pobre ao tratamento digno, nós, por pró-atividade e não reatividade, fomos até o Ministério Público e falamos: “Olha, não houve a menção do que seria exeqüível ou inexeqüível. Há uma segregação implícita nessa decisão judicial: eu não vou deslocar o rico para Itaquera e como é que eu vou deslocar o pobre pro Itaim Bibi? Para que o rico continue no mesmo ambiente dele e o pobre também, vamos estabelecer tratamento equânime entre as partes, seja rico ou pobre? Então a gente vai pegar uma média orçamental: quanto eu pago na AMA? Na AMA eu pago mil reais por mês por criança nossa lá dentro. Quanto que você paga pra AACD? Pago mil reais. Quanto que você paga pra Pestalozzi? Pago mil reais, mil e duzentos. Que tal se nós estipulássemos o teto máximo de mil reais?”. (...) Nós viabilizamos um tratamento digno, honesto e saudável para as crianças que moram lá em Itaquera ou no Capão Redondo e inviabilizamos o gasto desnecessário, o abuso que estava ocorrendo por parte de uma população um pouco mais abonada financeiramente”.

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E) Quem fiscaliza?

O Ministério Público, o Poder Judiciário, as Secretarias da Saúde e da Educação foram os

atores indicados pelos entrevistados como possíveis agentes fiscalizadores da criação de um sistema

alternativo de solução do conflito77.

Embora seja parte autora (substituto processual) da ação coletiva, o Ministério Público foi

indicado como um possível designer de sistemas alternativos de solução de conflitos, uma vez que

possui certo know how e experiência em meios autocompositivos adquiridos no âmbito do Inquérito

Civil e na elaboração de Termos de Ajustamento de Conduta78. Ao mesmo tempo, o Ministério

Público não corre o risco de vir a ser julgador de uma demanda caso as partes resolvam abandonar o

meio de solução extrajudicial escolhido e partir para a solução adjudicada estatal.

O Poder Judiciário também foi visto como um ator necessário ao suporte deste desenho de

sistemas alternativos, na medida em que possui distanciamento do objeto do conflito e poder de

77 Todos os entrevistados indicaram o Ministério Público e o Poder Judiciário como fiscais na criação e implementação do DSD, ao passo que apenas o representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo indicou o Poder Executivo para tal função. 78 Conforme afirmado pelos membros do Ministério Público do Estado de São Paulo: “E eu tenho chamado as diretorias e os responsáveis junto com a sociedade civil. Eles sentam juntos. Tem que apartar briga e tal, é um médico brigando com o Conselho Gestor e tal. Mas eu falei assim “olha eu estou intermediando, intermediando no sentido até de sair e deixar que vocês resolvam, o problema não sou eu que tenho que resolver. Quem deve responder é aquele que tem interesse e precisa da prestação de serviço e você que presta o serviço.” Eles estão começando, engatinhando a se compor. Estão começando devagar. Na verdade, na nossa área o inquérito civil atua pra intermediar. Só, só pra intermediar. Porque, primeiro, além dele investigar, ele acaba colocando as partes, o reclamante e o reclamado, em contato e falar “dá pra fazer o acordo? Dá pra evitar a ação judicial?”. Na verdade, o inquérito civil serve para isso. E há casos a gente usa pra isso, e há casos que não são raros que a gente percebe que você chama o Secretário Municipal da Saúde, “não, não podemos fazer isso porque a Secretaria Estadual não faz”. Chama a Secretaria Estadual e aí a gente põe os dois sentados “não, mas se ele for eu não vou”, “não, os dois vem”, os dois vem porque tem a requisição, aí um senta e o outro senta. No começo tem aquele estado de beligerância e no fim já temos um projeto piloto que a Secretaria da Saúde Municipal está fazendo com a Secretaria da Saúde Estadual. Um primeiro projeto piloto que o problema maior da saúde em São Paulo é de referência, a pessoa vai num posto de saúde.”

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coerção, estabelecendo obrigações às partes e criando pressões para que elas atuem dentro da

legalidade79.

Não se descartou também a construção do sistema pelo Executivo (no caso, as Secretarias

da Educação e da Saúde) por conhecer de perto o conflito e ser diretamente afetado em caso de

demanda judicial80. Mas este parti pris por parte do Executivo foi apresentado como obstáculo para

a sua indicação como o responsável pelo desenho e implementação da solução81.

Quando indagados a respeito do eventual responsável pela fiscalização de um possível

sistema extrajudicial de solução de conflitos, os entrevistados tenderam a reconhecer o Poder

Judiciário e o Ministério Público como órgãos indicados. O Poder Judiciário foi recomendado em

razão de sua imparcialidade para lidar com o forte componente público das questões tratadas, bem

como pelo seu poder de coerção. O Ministério Público foi indicado por sua função de identificar e

fiscalizar as ilegalidades e omissões no agir do Poder Público.

F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente? Vantagens ou

desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)

O desenho criado para a solução deste conflito é permanente. A obrigação do Estado de São

Paulo em prestar atendimento médico e educacional aos autistas está declarada em sentença

79 Pela imposição de multas, por exemplo. 80 O Representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo indicou o próprio Poder Executivo como ator responsável pela fiscalização da implementação do DSD: “Eu que sou responsável pela fiscalização. Quem paga é quem fiscaliza, né?” e “Essa ação civil pública gerou tudo isso. Aí, além de nós termos que desenvolver papeis de saneadores de uma questão nós ainda acabamos desenvolvendo uma questão de fiscalização que era muito além das nossas atividades”. Mas o entrevistado não descarta a possibilidade de o Ministério Público acompanhar a Administração nessa função: “eles têm esse poder porque envolve dispêndio de recurso público. Se eles ficarem inertes a isso, é responsabilidade exclusiva da administração. Se ele quiser, pode acompanhar, mas quem fiscaliza somos nós. Através de quem? Diretoria de Ensino, porque toda instituição de ensino que funciona tem uma autorização para tanto”. (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 81 O representante da sociedade civil, por exemplo, não vislumbra a possibilidade do Poder Executivo atuar como fiscal do sistema, uma vez que, faltando vontade política, o Administrador assume postura inerte: “Você vai chegar lá e eles vão dizer que vão querer fazer acordo, mas eles não vão cumprir ... Até pro Tribunal eles fazem isso, tanto que o Tribunal não agüenta mais.” (Advogado e pai de autista)

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transitada em julgado e volta-se a todos os autistas residentes no Estado, cujo número atual se

desconhece. Há também a constante possibilidade de nascimento de novos autistas82, que também

deverão receber tratamento médico e educacional especializado custeado pelo Estado de São Paulo.

Um dos obstáculos enfrentados pelos atores envolvidos no conflito foi a tentativa de

implementação da política pública com intermédio do Poder Judiciário. Tal como exposto

anteriormente, o ajuizamento de diversas habilitações trouxe complicações à solução do

conflito. A proposição de habilitações e execuções em um mesmo juízo sobrecarregou o

cartório judicial onde a ação civil pública fora julgada, especialmente considerando a

escassez de funcionários e espaço físico para comportar a quantidade de incidentes

promovidos83.

Outra complicação enfrentada pelo juízo da condenação foi a falta de expertise dos

magistrados para lidar com questões específicas de outras áreas do conhecimento, como a

medicina ou a gestão de orçamento público84.

A existência de sentença com previsão de multa diária de R$ 50.000 e prazo de 30 dias para

cumprimento da obrigação foi um importante elemento de pressão, mas também implicou em gastos

maiores dos que seriam necessários caso não houvesse essa decisão judicial. Um exemplo disso

foram os consideráveis gastos realizados em seguida à prolação da sentença, época em que ainda

não existiam os convênios ou estipulação de valor mensal de pagamento às instituições por autista85.

82 Conforme se verifica pela fala do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, não se sabe ao certo o número de autistas residentes no Estado de São Paulo: “Não existe nenhum dado estatístico dizendo quantos são os autistas residentes no Estado de São Paulo. CEADES não tem esse dado, nós não temos esse dado e nem o Ministério da Saúde. Ninguém sabe. Nós partimos de um estudo científico que diz que é um autista a cada cem mil, aí vem um outro estudioso e diz é um a cada cinqüenta. Eu fui numa reunião na Linamara que disse ser um pra cada dez mil. Então não se tem dado crível algum. É um dado hipotético, irreal, fictício que a gente trabalha com o que tem, mas nós não temos a real noção de quanto são os autistas residentes” 83 Vide trecho de decisão colacionado na descrição do conflito. 84 Vide trecho de decisão colacionado na descrição do conflito. 85 Vide transcrição de entrevista realizada com representante da Secretaria da Educação.

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A decisão judicial, se por um lado garantiu de forma permanente o tratamento prioritário de

autistas em relação às demais pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais86, por outro

também contribuiu a uma burocratização e engessamento na política pública voltada aos autistas.

Quando questionados sobre a instituição de um sistema alternativo de solução de conflitos,

os entrevistados ressaltaram vantagens como a facilitação da comunicação entre a Administração

Pública e os familiares de autistas87, aprimoramento da divulgação da política pública e fiscalização

das instituições de tratamento especializado. Isto implicaria em uma possível redução na quantidade

de habilitações que continuam a ser ajuizadas.

Alem disso, na sistemática existente atualmente, a responsabilidade de divulgar o conteúdo

da sentença condenatória ficou a cargo das partes envolvidas no conflito, quais sejam: a Fazenda

Pública do Estado de São Paulo (representada pelas secretarias da Saúde e da Educação), o

Ministério Público do Estado de São Paulo88, advogados particulares e a Defensoria Pública do

Estado de São Paulo.

86 Nesse sentido se posicionou o representante da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo: “Por que você trabalhar só com autista e esquece do deficiente físico? Como é que ele vai se sentir? Então trabalha em benefício do cadeirante, mas não trabalha em benefício do cego? Então na verdade tenta se atingir a se abarcar todas essas questões de relevância. Hoje um tema que está muito em voga é a questão de acessibilidade em prédio público, direito da pessoa com deficiência, direito é intérprete de libra, (...), autista, então tudo que é relacionado à pessoa humana ao indivíduo ao cidadão como detentor de direitos e obrigações isso hoje está muito mais em voga do que você comprar micro ônibus, muito mais do que transporte escolar, transporte escolar já é viabilizado, aumenta a frota? Aumenta, mas não precisa comprar como comprava há vinte anos atrás que a prioridade hoje não é essa.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo) 87 Conforme relatou um pai de autista: “o que vocês teriam que fazer era tentar uma aproximação pra que o governo apresentasse um projeto de atendimento para os autistas. Eles não fazem isso, entendeu? Eles se negam. Quem foi condenado é o governo do Estado, a obrigação de custear é do Estado. Eles ficam tentando transferir essa obrigação para o SUS para eles não colocarem nenhum tostão. Então o que acontece? Eles ficam pegando a tabela do SUS e dizem assim “olha o tratamento de autista se enquadra aqui e eu só posso pagar seiscentos reais por mês”, mas seiscentos reais por mês é o que você gasta com fonoaudiólogo, com psiquiatra. Ele tem alimentação especial, ele precisa de exercício físico, ele precisa de espaço... Agora, quando ele recebe todo esse tratamento acontece como o meu filho: o meu filho é espetacular” (advogado e pai de autista) 88 Em despacho preferido em 06 de março de 2008 nos autos da ação civil pública ora em análise o juiz determinou que o Ministério Público ampliasse a divulgação do conteúdo da sentença: “Lembrando que é recomendado ao exeqüente Ministério Público ampliar a divulgação do comando da sentença, a fim de que os autistas de famílias pobres, residentes nas periferias desta capital e nas distantes cidades deste Estado, possam ser atendidos e consigam o desenvolvimento necessário para buscar uma vida próxima da desejada por todos (estudando, produzindo, gerando alegrias e retorno ao investimento da sociedade), por trinta dias, aguarde-se notícia do cumprimento da sentença condenatória.”

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Entretanto, conforme relatado pelos entrevistados, não houve por parte de nenhum dos

envolvidos mobilização específica para divulgar a existência de política pública voltada ao

tratamento médico e educacional. A comunicação dos possíveis beneficiários do conteúdo da

sentença foi feita “boca a boca” pelos familiares de autistas.

Nós não temos tradição disso, né? O Poder Público não faz propaganda e o Judiciário também não. E não é algo que interesse à mídia. Vamos dizer à mídia que agora tem tratamento para autismo no Estado de São Paulo. O repórter dirá: “E daí? Eu vou publicar isso numa manchete? Para que? “Vai beneficiar só os autistas”. Acho que isso é cultural.” (Promotor)

“A nossa clientela vem aqui muito de boca em boca.” (Defensor)

Por fim, a criação de um sistema alternativo ao existente também permitiria uma maior

fiscalização das instituições particulares de tratamento especializado conveniadas. Segundo relatos

dos entrevistados, foi possível identificar tratamento oportunista por parte de algumas instituições,

fato este que será analisado adiante.

G) Diálogo interinstitucional

Vários marcos legais e institucionais, como a Constituição Federal de 88, a Lei da Ação

Civil Pública, e o Código de Defesa do Consumidor (estes dois últimos compondo o microssistema

processual coletivo), contribuíram para que as demandas sociais passassem a ser propostas com

mais frequência ao Poder Judiciário, ampliando a sua competência e ao mesmo tempo conferindo-

lhe capacidade de agir politicamente.

A propositura da ação coletiva em busca de tutela aos direitos de pessoas autistas demonstra

a visão que diferentes atores (Sociedade, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros)

possuem do Poder Judiciário como um agente político legítimo para solucionar situações de

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incerteza envolvendo as atribuições da Administração Pública. Bem assim, a prolação de sentença

genérica favorável representa uma chancela do Poder Judiciário quanto à sua legitimidade para

atuar em tais casos, atuando na fase de reconhecimento dos direitos de autistas e de liquidação e

execução da sentença.

Isto significa que, in casu, o Poder Judiciário atuou tanto na criação como na

implementação da política pública. Mas é interessante notar, contudo, que independentemente de

questionamentos sobre a legalidade do despacho que determinou a extinção das habilitações,

naquela oportunidade o magistrado declarou sua limitação para interferir na criação e

implementação da política pública:

Não há, no dispositivo da sentença, previsão para que o juiz da execução substitua atividade cabente, exclusivamente, ao Secretário de Saúde do Estado de São Paulo (o julgador não é médico para identificar um quadro de autismo, não sabe escolher a instituição mais adequada para cada caso específico e não possui conhecimento técnico para analisar a prescrição médica para saber qual é o regime de tratamento cabível a uma situação específica).

Quando assumida a função de implementar políticas públicas pelo Poder Executivo, a

realização do direito dos autistas em obter custeio estatal de tratamento médico e educacional

especializado passou a se dar de forma mais célere e menos custosa. Isto porque os autistas são

atendidos diretamente pelas Secretarias da Saúde e da Educação e encaminhados a instituições por

elas indicadas sem que seja necessário apresentar documentações para processamento pela máquina

judiciária, nem pagar as custas exigidas para tanto.

A comunicação estabelecida entre as Secretarias da Saúde e da Educação na implementação

de política pública envolvendo autistas também foi importante, embora não tenha significado a

criação de uma política global ou implicado em deslocamento de verbas orçamentárias para tanto. O

procedimento instituído é o mesmo que para outros casos não judicializados envolvendo deficientes

mentais.

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No momento atual de implementação da política pública pela Administração Pública, o

Poder Judiciário passou a agir apenas como fiscal, na medida em que pode intervir nos casos em

que for inviabilizada ou prejudicada a negociação entre as Secretarias e o responsável por autista.

H) Barreiras da Administração Pública?

A principal barreira enfrentada pela Administração pública no caso diz respeito à

impossibilidade de realizar políticas públicas para solucionar todos os conflitos envolvendo

prestação de direitos sociais existentes na sociedade. A infinitude de conflitos existentes combinada

com limitações orçamentárias obriga o Poder Executivo a eleger prioridades de atuação.

Desta maneira, alguns interesses inseridos no contexto dos direitos sociais necessariamente

deixarão de ser tutelados pelo Administrador. São duas as maneiras de inserir interesses sociais na

pauta de políticas públicas: a) estar entre as prioridades do administrador ou b) obter sentença

judicial procedente.

Segundo explicações do representante da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, a

escolha das prioridades é realizada pela Casa Civil com o auxílio de membros da sociedade:

A demanda chega através da Câmara dos Deputados, através da Casa Civil, do Governador do Estado. Em conversas com alguns representantes da sociedade, eles elegem prioridades. Sempre tem que ter eleição de prioridade porque não dá pra fazer tudo, mas ao menos vamos sentar e, num prazo programado de quatro anos, tentar atingir a todos para que... por que você trabalha só com autista e esquece do deficiente físico? Como ele vai se sentir? Então trabalha em benefício do cadeirante, mas não trabalha em benefício do cego? Na verdade, tenta se atingir a se abarcar todas as questões de relevância.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

I) Comportamentos oportunistas? Vulnerabilidades?

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Segundo informações prestadas pelo representante da Secretaria da Educação, houve

comportamento oportunista por parte de instituições particulares. Diante da possibilidade de obter

financiamento de suas atividades pelo Estado, instituições particulares com problemas

orçamentários, mal geridas ou que cuidam de pessoas com outras enfermidades passaram a tentar

estabelecer convênios com as Secretarias da Educação e da Saúde sob o pretexto de serem

especializados no tratamento de autistas:

você não tem ideia da quantidade de instituições que quiseram ser patrocinadas exclusivamente pelo Governo. Na verdade, o que a gente faz é inviabilizar isso, mas uma série de instituições quis ser patrocinada exclusivamente porque não existe melhor pagador do que o Estado. (...) Então, hoje estamos nesses termos. Quando nós pagadores de uma ação civil pública diagnosticamos que uma instituição está em vias de falência e acaba se valendo de um dispositivo desse, nós trabalhamos no sentido de inviabilizar essa conduta. Por exemplo, eu vou dar um exemplo sem citar nome, uma instituição veio aqui e apresentou de uma vez só vinte orçamentos, até então era uma instituição desconhecida na região de Santo André e eu fui até lá, peguei o carro e fui até lá. Na hora que eu cheguei houve uma movimentação completamente estranha. Você sabe quando está sendo maquiado o negócio. Na hora que eu fui até o centro, a sala central deles tinha uns quinze deficientes de várias doenças: síndrome de down, autista, uma série de crianças com vários problemas, inclusive um brincando com fezes. Essa ação civil pública gerou tudo isso. Aí além de nós termos que desenvolver papeis de saneadores de uma questão nós ainda acabamos desenvolvendo uma questão de fiscalização que ia muito além das nossas atividades. (...) Clínicas que cuidavam de toxicômanos estavam começando a mudar a razão social pra cuidar de autistas. É um absurdo, um absurdo.” (Assessor da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo)

As Secretarias da Educação e da Saúde, com o auxílio dos membros do Ministério Público,

realizaram a atividade de fiscalização sobre a idoneidade das instituições particulares que

pleitearam o custeio de suas atividades ao Estado Paulista.

Há ainda, no caso, desnível de poder entre as partes. De um lado se encontra o Estado,

responsável por realizar políticas públicas voltadas aos direitos sociais, e do outro lado estão os

autistas e seus familiares, beneficiários de política pública.

O momento no qual o desnível de poder entre as partes envolvidas no conflito esteve mais

visível foi antes da judicialização do conflito, quando da tentativa de inserir o custeio de tratamento

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especializado a autistas entre as prioridades políticas do Administrador. Considerados

individualmente, pois ausente a articulação entre os familiares de autistas, os reclames destes não

possuíram força suficiente adentrar na pauta do Poder Executivo.

Após a prolação da sentença genérica procedente, a situação modificou-se. A existência de

multa diária no valor de R$ 50.000 coagiu o Estado a encontrar meios de fornecer tratamento

especializado a autistas. Entretanto, segundo informações prestadas por pai de autista, mesmo após

a prolação da sentença procedente os autistas enfrentam dificuldades em exigir ao Estado o

fornecimento de tratamento especializado adequado:

A dificuldade que a gente está encontrando é que o governo se recusa a cumprir a sentença, então a gente está... se vê obrigado a se socorrer do Judiciário pra obrigá-lo a cumprir. O Ministério Público já pediu o complemento há seis anos atrás e o governo até hoje não fez nada. É uma luta ingrata porque eles têm o poder. (advogado e pai de autista)

3.2. Vítimas de choque de trens da CPTM

A) Replicabilidade do caso

O caso CPTM foi selecionado por tratar de conflito acidentário no qual há envolvimento do

Poder Público, como parte, e por tratar de questões indenizatórias, possuindo certos pontos de

contato com os conflitos que deram ensejo às câmaras de Indenização dos Acidentes Aéreos da

TAM (CI 3054) e da Air France (PI 447) - quais sejam, a ocorrência de um desastre envolvendo

prestação de serviços a consumidores, o evento morte (foram 9 vítimas fatais e 104 pessoas feridas),

a solução e reparação de danos pela via indenizatória. O caso CPTM se diferencia destes

mencionados casos na medida em que a parte responsável por suportar os custos é o Poder Público,

uma vez que a CPTM é uma Sociedade de Economia Mista.

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A replicabilidade do caso está justamente no fato de que, a despeito dos cuidados adotados

pelas Companhias, ainda ocorrem diversos acidentes na prestação do serviço de transporte público

que resultam na morte ou ferimento de usuários. Um exemplo recente de desastre com

características semelhantes é o acidente ocorrido na construção da linha 4 do metrô da cidade de

São Paulo em 2007, com a formação de uma grande cratera, morte de várias pessoas e risco às

edificações do entorno.

B) Poder Judiciário como ponto de partida?

Salvo os poucos casos em que a companhia de trens negociou indenizações

extrajudicialmente, o Poder Judiciário esteve intimamente ligado com a solução do conflito

(individual e coletiva).

Nas 26 (vinte e seis) ações individuais em que a Companhia de Trens foi condenada a

indenizar a vítima do acidente, o Poder Judiciário esteve presente desde a fase de conhecimento até

o pagamento do valor arbitrado na sentença condenatória. Em 6 (seis) casos houve homologação de

acordo no curso do processo.

Na ação coletiva objetivou-se a obtenção de uma sentença genérica que permitisse aos

interessados ajuizarem liquidações e execuções individuais. Ocorre que, conforme informado pelos

advogados da companhia de trens, a obrigação já foi quase integralmente cumprida em sede das

ações promovidas individualmente pelas vítimas, o que pode significar a perda de objeto do

processo coletivo.

Verifica-se, pois, que o conflito foi amplamente judicializado, desde a fase de imputação de

responsabilidade à Companhia de Trens até o momento de pagamento das indenizações.

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C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento (alguma padronização)?

A despeito de os advogados da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos não terem

divulgado informações sobre os acordos, é possível verificar que os valores pagos às vítimas em

negociação extrajudicial foram, em média, de R$15.000.

Já no âmbito judicial, o ajuizamento de ações individuais espalhadas por diversas varas do

Estado de São Paulo significou em solução diferente para cada vítima, conforme se verifica quando

da análise dos valores arbitrados a título de indenização, que variam de 4.000,00 (quatro mil) a

150.000,00 (cento e cinqüenta mil).

Nesse sentido se posicionou um dos advogados do Jurídico da CPTM: “Varia muito: tem

juiz que dá cem salários mínimos de dano moral, outros quinhentos, outros duzentos, outro não dá

e outro dá dez mil”

Nas diversas ações individuais não houve critérios de tratamento isonômico entre as partes,

o que poderia ser garantido pela resolução do conflito pela via coletiva.

D) Quem paga a conta?

Tendo em vista que o conflito consiste em acidente ocorrido em relação à prestação de

serviços de transporte, há responsabilidade objetiva da transportadora. Esta responsabilidade

objetiva está prevista no art. 734 do Código Civil e corresponde àquela prevista no artigo 14 do

Código de Defesa do Consumidor, na qual a fornecedora de serviços responde pelo ato ou fato

danoso independentemente de culpa.

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Nesse sentido, e segundo determinação legal, a CPTM é responsável por suportar os custos

na reparação dos danos causados aos usuários pelo fato do acidente. É importante notar que não

houve envolvimento de seguradoras no caso, uma vez que a CPTM não possui contratos de seguro

voltados à cobertura de gastos em casos de acidente.

Pelos motivos acima apresentados e segundo opinião dos entrevistados, o sujeito

responsável por suportar os custos de implementação de suposto desenho de solução de conflitos

acabaria sendo o mesmo responsável pelo cumprimento das obrigações específicas e pagamento das

indenizações, ou seja, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

E) Quem fiscaliza?

Considerando que o conflito foi solucionado majoritariamente pela via das ações

individuais indenizatórias, o Judiciário se destacou como ator fiscalizador.

Por outro lado, se considerada a realização de um desenho de resolução alternativa de

disputas, os entrevistados apontaram o Ministério Público, enquanto aglutinador de interesses

diversos e responsável por resguardar o interesse público e a adequada aplicação da Lei, como

possível responsável pela implementação e fiscalização do desenho.

Bem assim, também indicaram o Poder Judiciário como possível responsável pela

fiscalização do desenho criado, na medida em que, havendo envolvimento de interesse público no

conflito, competiria a este órgão garantir com imparcialidade a observância da Lei.

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F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente? Vantagens ou

desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)

O desenho de solução de conflitos do caso CPTM é provisório porque existiria somente até

a resolução do conflito, ou seja, somente até o pagamento das indenizações às vítimas envolvidas

no acidente.

A via adotada para solucionar o conflito apresentou debilidades relacionadas à

demora da prestação jurisdicional e à falta de isonomia quanto ao valor indenizatório pago

para cada vítima.

Pela análise dos processos individuais ajuizados, foi possível identificar que o

processo encerrado mais rapidamente perdurou por cerca de 3 (três anos). Há, entretanto,

processos que demoraram 9 (nove) anos para encerrar ou que ainda estão em curso. Estes

dados apenas confirmam que uma significativa desvantagem do processo judicial é a

demora para se obter uma sentença de mérito89.

Assim, tendo o conflito sido resolvido principalmente por meio de ações individuais

processadas e julgadas em juízos distintos, houve desigualdade nos valores arbitrados e na

estipulação de critérios indenizatórios para cada caso. A significativa diferença entre os

menores e os maiores valores arbitrados apenas corrobora com o afirmado.

Vale ressaltar que houve isonomia de tratamento das vítimas nos quatro casos em

que houve negociação extrajudicial de indenização, uma vez que os valores pagos variaram

pouco (giraram em torno de R$15.000,00).

89 Nesse sentido se manifestou o advogado da CPTM: “Quem não aceitou (negociação de indenização) vai pro Judiciário e enfrenta a morosidade. Tem instrução, realização de perícia, conjunto probatório, sai decisão procedente ou improcedente, tem apelação pro Tribunal. São mais 3 ou 4 anos pro Tribunal e, eventualmente, se há alguma violação de dispositivo de lei federal que enseje recurso especial vai pro STJ. Aí já foge da esfera da própria companhia. Aí falam: “poxa passaram 10 anos e ainda não houve pagamento de todas as indenizações?”. A responsabilidade não é da CPTM. A responsabilidade é de todo um processo judicial.”

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Os principais desincentivos para a criação e implementação de um desenho alternativo para

a solução deste conflito estão relacionados com certa blindagem da Administração pública, que será

analisada a seguir.

G) Diálogo interinstitucional

A ampla judicialização do conflito importou na transferência ao Judiciário da apuração da

extensão da responsabilidade da Companhia de Trens pelos danos sofridos pelas vítimas.

Durante as entrevistas realizadas com os advogados da Companhia Paulista de Trens

metropolitanos foram levantados alguns problemas e dificuldades em relação à possibilidade de o

Poder Público remover do ambiente judicial a solução de seus conflitos.

Primeiramente, por se tratar de sociedade de economia mista, suas atividades são

fiscalizadas pelos organismos de controle da administração. Caso a CPTM queira negociar

indenizações, estas deverão ser justificadas ao Tribunal de Contas do Estado, ao Procurador Geral e

em alguns casos ao Governador, havendo uma burocracia que visa a resguardar a Companhia da

ocorrência de fraudes, hipótese em que haveria a responsabilização direta dos funcionários e

dirigentes envolvidos na negociação90.

O agente público responde pessoalmente se o acordo vier a ser considerado ilegal,

fazendo com que a sentença dê maior segurança à sua atuação. Por este motivo, muitas

vezes a Companhia de Trens prefere arcar com o valor imputado em sentença judicial do

90 Nesse sentido se posicionou o advogado da CPTM entrevistado: “quando você lida com dinheiro público você sempre tem aquele cuidado de não cair em improbidade, porque você às vezes você faz um acordo nos autos que pode ser questionado no futuro. Vão falar assim: “mas por que você fez aquilo? Por que esse valor foi maior do que aquele que você pagou no outro caso?”. Tem sempre esse receio.”

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que com o risco de negociar indenizações, ainda que isto signifique o pagamento de

valores muito superiores aos que poderiam ser pagos na solução extrajudicial.

Outro argumento utilizado pelos advogados da CPTM para justificar as dificuldades de

realização de negociação nos conflitos mais complexos é o fato de que, pelo ordenamento jurídico

vigente, a Administração Pública ser obrigada a recorrer de decisões desfavoráveis até as instâncias

de superposição, salvo nos casos de dispensa legal9192.

H) Barreiras da Administração Pública?

Os advogados da CPTM levantaram alguns problemas e dificuldades em relação à

possibilidade de o Poder Público fazer uso de desenho de sistemas de resolução alternativa de

disputas, relacionados principalmente à inafastabilidade da jurisdição e indisponibilidade do bem

público93.

Há, entretanto, a possibilidade de serem resolvidos extrajudicialmente os conflitos de

pequena complexidade ou valor, além de determinados conflitos serem tratados, inclusive

preventivamente, com o intermédio do Ministério Público em momentos de Inquérito Civil e

através da celebração de Termos de Ajustamento de Conduta.

91 Nesse sentido se posicionou o representante jurídico da CPTM: “Aí fala “poxa passaram 10 anos e ainda não houve pagamento de todas as indenizações?”, a responsabilidade não é da CPTM, a responsabilidade é de todo um processo que foi levado um processo judicial e que a CPTM não apresenta recurso protelatório, mas essa regra do jogo de apresentar recurso, de recorrer e de ir para o Tribunal é uma regra que é obrigatória para a administração, ela não pode não fazer isso, tem até recurso de ofício. Então eu vejo de forma positiva essa iniciativa, mas vejo muitos problemas para a gente tentar equaciona-los e achar uma via alternativa que a gente consiga atingir os objetivos sem ferir Constituição, sem ferir a lei, entendeu? (Advogado da CPTM) 92 A obrigatoriedade do Poder Público recorrer de decisões em seu desfavor, constante do Código de Processo Civil, se limita às condenações superiores a 60 salários mínimos. Entretanto, em 2004 foi proposto projeto de Lei nº 3615 que objetiva acabar com o duplo grau necessário. Referido Projeto de Lei ainda está em trâmite no Congresso Nacional 93 Nas palavras do advogado da CPTM: “Eu vejo de forma positiva essa iniciativa, mas vejo muitos problemas para tentar equacionar até achar uma via alternativa que consiga atingir seus objetivos sem ferir a Constituição, sem ferir a lei, entendeu?”

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Os óbices levantados em relação à criação de um desenho de sistema alternativo de solução

de disputas para seus conflitos de maior complexidade estão diretamente relacionados à

indisponibilidade dos direitos envolvidos e ao princípio da inafastabilidade da jurisdição.

O problema que surge em relação ao princípio da inafastabilidade do judiciário é a

possibilidade dos beneficiários de transação realizada extrajudicialmente poderem pleitear ao Poder

Judiciário a revisão ou mesmo nova indenização sobre o mesmo fato, uma vez que não há trânsito

em julgado do acordado em negociações, ainda que se trate de titulo executivo.

Até mesmo frente à existência hipotética de sentença que declare genericamente o direito

das vítimas ao recebimento de indenização, caso em que o DSD surgiria apenas na fase de

liquidação e cumprimento da obrigação, os entrevistados entenderam ser difícil criar um sistema

alternativo de solução para os conflitos envolvendo empresas públicas. Isto porque o Tribunal de

Contas do Estado de São Paulo tende a se posicionar contrariamente à utilização de mecanismos

extrajudiciais de solução de conflitos nas causas em que o Poder Público está envolvido94.

Igualmente, a necessidade de cobrar o valor liquidado não poderia escapar do sistema de

precatórios, o que significa ser necessária a judicialização do conflito em algum momento95.

94 Sobre essa posição restritiva do Tribunal de Contas, vide nota de rodapé n.2 acima. 95 Atualmente, a questão está pendente de julgamento pelo STF: “Decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu liminarmente um recurso que tramita no Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) e contesta decisão daquele tribunal que afastou a execução de precatório contra sociedade de economia mista prestadora de serviço público. A decisão do ministro ocorreu na Ação Cautelar (AC) 2719, ajuizada pela Companhia de Abastecimento de Água e Saneamento do Estado de Alagoas (Casal) contra o Sistema PRI Engenharia de Planejamento S/C Ltda, que, por sua vez, propôs o recurso contestando a decisão do TJ-AL. Ao analisar o pedido, o ministro Gilmar Mendes considerou que questão idêntica está sendo discutida em um Recurso Extraordinário (RE 599628). Como o STF reconheceu a repercussão geral da matéria, todos os recursos propostos sob o mesmo fundamento ficarão suspensos até que seja decidido o mérito da questão. O julgamento do RE 599628 foi interrompido no último dia 3 de novembro por pedido de vista. O ministro destacou que a empresa em questão é sociedade de economia mista prestadora de serviço público essencial e, por isso, ‘sua sujeição ao mesmo regime das empresas privadas pode comprometer a continuidade do serviço público’. Com esses argumentos, o relator concedeu a liminar para suspender o recurso em trâmite no TJAL até o julgamento definitivo do caso análogo por parte do Plenário do STF. Em seguida, ele determinou o envio da ação ao tribunal alagoano para que seja apensada aos autos do processo e sejam decididos conjuntamente após o julgamento do Supremo.” Notícia disponibilizada no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal em 17 de novembro de 2010.

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Os entrevistados sustentam que o desenho de sistemas extrajudiciais de solução de conflitos

seria melhor recepcionado por instituições privadas96, nas quais há grande preocupação com a

imagem da empresa, gerenciamento e contingenciamento de recursos, e não há gestão de verba

pública ou obrigatoriedade de recorrer.

Por fim, foram indicadas como variáveis que devem necessariamente ser consideradas nas

hipóteses de antecipação da solução do conflito a possibilidade de encurtar/evitar o confronto

judicial, autorização legal para dispensa de recurso, o valor patrimonial da imagem da empresa, a

gestão orçamentária e a possibilidade de êxito na demanda judicial.

I) Comportamentos oportunistas? Vulnerabilidades?

Sob a ótica dos advogados da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, a criação da

associação e o ajuizamento da demanda coletiva foram resultados de atitude oportunista de um

advogado, que vislumbrou no acidente uma chance de obter vantagens políticas e financeiras

através da captação de clientes e da visibilidade obtida com o acidente.

96 O advogado da CPTM informa que as empresas privadas tem maior preocupação com a imagem da empresa: “a Air France tem a preocupação com a imagem da empresa e a empresa vive disso. Ela tem que ter uma imagem positiva pra ela ter uma rentabilidade”. Afirma ainda que, a despeito de ser uma sociedade de economia mista, ela possui preocupação com a imagem da empresa: “Na administração já é diferente. É lógico que ela leva em consideração critérios de imagem. Até a gente tem um sistema aqui que é o sistema de atendimento ao usuário que é o SAU. Esse SAU para questões pequenas também é uma forma de solucionar problemas de forma extrajudicial. O usuário faz o relato dizendo que ao embarcar estava um tumulto muito grande em determinada estação que o óculos dele caiu e ele teve um prejuízo de trinta reais. Se fizerem uma pergunta jurídica eu tenho que ressarcir esse valor de trinta Reais? Eu vou falar “olha, culpa de terceiro, não teve responsabilidade da CPTM. Foi um descuido do usuário. O usuário não comprovou se ele estava de óculos ou não estava de óculos, não tem testemunha. Ele que vá buscar o Judiciário se ele quiser esses trinta Reais”. Essa é uma visão técnica. Se eu pagar pra ele esses trinta Reais, isso não impede que ele vá ao Judiciário e busque esses trinta Reais, eu estou falando trinta Reais pra chamar bem a atenção mesmo, mas a empresa pode falar “olha, por questão da imagem tendo comprovada a situação ali o fato paga os trinta Reais”.

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Apesar disso, não conseguimos entrar em contato com a associação ou com o advogado que

ajuizou a ação coletiva, não sendo possível afirmar ao certo se tal conduta foi realmente

oportunista97.

Outra possibilidade de oportunismo neste caso está relacionado ao “efeito carona”. Por se

tratar de empresa de transporte público na qual há a circulação milhares de pessoas por dia em cada

uma de suas estações, existe a possibilidade de indivíduos não atingidos diretamente pelo acidente

ou que não estiveram presentes na estação ao momento da colisão tentarem receber indenizações

devido ao fato do acidente.

Na solução atribuída ao caso, coube ao Poder Judiciário identificar tais práticas, casos em

que os processos foram julgados improcedentes.

O caso possui desnível de poderes entre as partes. Em um pólo do conflito está a

Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, sociedade de economia mista e prestadora de serviços

de transportes a uma massa consumidora, e do outro estão os consumidores vítimas do acidente.

Entretanto, a incidência das normas constantes do Código de Defesa do Consumidor ao conflito

atua no sentido de remover a desigualdade entre as partes em litígio.

3.3. Loteamento irregular

A) Replicabilidade do caso

A presença de loteamentos irregulares e clandestinos é uma realidade dos centros

urbanos, realidade esta recorrente e resultante, sobretudo, da especulação, da carência de

97 Um possível indicativo de que as alegações feitas pelos advogados da CPTM sobre a existência de comportamento oportunista do advogado autor da ação civil pública é o fato de que ele foi, no ano de 1998, eleito para o cargo de Deputado Federal. http://www.seade.gov.br/produtos/eleicoes/candidatos/index.php?page=pol_det&cand=10541722859 (acesso em 09/12/2010)

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oferta imobiliária98 e, também, da grilagem de terras públicas. Esta realidade tem sido

observada no Estado de São Paulo99.

Sob a ótica ambiental, as consequências decorrentes do loteamento irregular podem ser

gravíssimas, em alguns casos, inclusive, irreparáveis, na medida em que se executam obras sem o

necessário e prévio licenciamento ambiental nem a observância de quaisquer condições mínimas

sanitárias e urbanísticas.

Há a construção em áreas de risco, como encostas e margens de cursos d’água,

muitas vezes com o lançamento de detritos sólidos e esgotos nos rios e lagos naturais, em

razão da inexistência de rede de coleta de águas pluviais, com a ocorrência de enchentes e

desabamentos nesses locais100

, o que coloca em risco e causando prejuízo à população

que ali habita, à fauna, à flora e toda a biodiversidade existente.

98 A respeito da situação do município de São Luiz do Paraitinga em particular, destaca a assessoria jurídica da prefeitura: (...) São Luiz não tem terreno mais, não tem área mais para se construir. As pessoas sofrem e a especulação imobiliária aqui é muito alta porque, como não tem imóvel, então hoje o imóvel aqui é muito caro, o terreno aqui é muito caro. 99 É bastante comum a ocorrência de loteamento irregular em áreas de proteção ambiental. Só no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, durante a pesquisa jurisprudencial da 1a etapa, foram encontrados os seguintes acórdãos sobre o tema: 015.960-5/3, 49.042-4/4, 79.458-5/0, 6.205-4/4, 088.216-4/4, 118.747.5/2, 212.157-5/5-00, 274.209.5/7, 340.199-4/1-00, 386.607-4/1-00, 404.000-4/0-00, 416.905-5/7-00, 426.767-4/0-00, 433.206.4/8, 434.437 4/9-00, 456.64 7-4/8-00, 695.655-5/1-00, 725.825-5/0-00, 838.681-5/0-00, 988.473-5/1-00, 994.08.143670-2, 994.09.011348-4, 994.09.266261-4, 994.09.345717-0, 6.205-4/4, 515.601-4/8-00, 354.274-5/5-00, 426.767-4/0-00, 472.040-4/5-00, 547.580-5/3-00, 552.770-5/2-00, 678.328-5/5-00, 695.655-5/1-00, 729.572-5/3-00, 755.017-5/7-00, 811.048-5/5-00, 348.198.4/5-00 e 994.04.057038-0. (Pesquisa realizada em agosto de 2010 pela equipe, no banco eletrônico de acórdãos do TJSP, com as palavras-chave: "loteamento irregular" e “individuais homogêneos” e “liquidação”, sem delimitação temporal.)

100 Para maiores detalhes a respeito das consequências da ocupação urbana desordenada, confira Diagnóstico da Legislação: identificação das normas com incidência em mitigação e adaptação às mudanças climáticas. DESMATAMENTO/ MUDANÇA NO USO DA TERRA. Brasil, disponível em: <http://www.planetaverde.org/mudancasclimaticas/index.php?ling=por&cont=pesquisa&codpais=1>, acesso em 17.11.2010. Este relatório não apenas traz os inúmeros casos em que se verificou a recorrência da realidade ora apresentada, assim como apresenta um importante diagnóstico da relação entre as seguintes questões: moradia, ocupação irregular do solo, planejamento urbano, áreas de preservação ambiental, modificações climáticas e seus reflexos na ocorrência de desastres naturais.

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Trata-se, pois, de conflito recorrente que acontece tanto em grandes quanto em

pequenos centros urbanos, mas com o mesmo grau de complexidade e dramaticidade101

B) Poder Judiciário como ponto de partida?

Nesse caso, o Judiciário não funcionou como verdadeiro ponto de partida, mas

como foro de visibilidade ao problema, principalmente após as enchentes ocorridas no final

de 2009 e no início de 2010 que, amplamente divulgadas pela mídia102, deflagraram, com

consequências ainda mais graves, o problema preexistente da ocupação urbana irregular103.

Posteriormente, a questão veio a ser efetivamente judicializada através da propositura de

ação civil pública104, por parte da Defensoria Pública do Estado, a qual ainda continua em

curso.

101 A respeito da recorrência de conflitos envolvendo a questão da moradia, tal como aquele que se verifica em São Luiz do Paraitinga, que teve os desastres naturais como mero estopim do problema antes existente, merece destaque a seguinte passagem do Relatório Final de Pesquisa Conflitos Coletivos sobre a Posse e a Propriedade Urbana e Rural: “O conflito de interesses diante da posse e propriedade em áreas urbanas é situação crescente, devendo se agravar com o tempo. O planeta tornou-se urbano, as vidas se desenvolvem em áreas urbanas, as políticas públicas estão voltadas para áreas urbanas, os interesses econômicos idem. O solo é repartido em metros e instrumentos urbanísticos ficcionam sua disposição diferenciada em três partes (direito de superfície) em uma tentativa de um aproveitamento no limite físico das possibilidades de uso de uma propriedade imobiliária. As cidades se agigantam e ganham nomes que o Direito não acompanha, tais como megalópolis, cidades globais, macro-metrópolis, entre outras terminologias que procuram conceituar as dinâmicas contemporâneas destes contingentes populacionais disformes e quase ingovernáveis. É a realidade se sobrepondo ao Direito, desobediente e desorientada. Ao atuar, o operador do Direito percebe a enorme distância existente entre o aparato normativo disponível e os conflitos insurgentes. Fazendo o seu papel, o operador força a entrada desta realidade em suas normas, em geral, sem muito sucesso. (...) O que se pretende dizer é que há uma realidade à margem do Direito, vivendo e crescendo, e que não é composta por bandidos e criminosos. Essa realidade, informal, atinge igualmente tanto direitos individuais quanto coletivos e difusos, nos mesmos moldes informais. Deve haver o reconhecimento que essa informalidade não é uma opção, e sim falta dela e, em parte, tem havido uma mudança de postura na legislação internacional e nacional, decisões judiciais arrojadas e interpretações que procuram aproximar o Direito desta parcela significativa da sociedade, e não o contrário, como tradicionalmente tem sido feito. (Série Pensando o Direito - volume 7, p. 84, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), disponível em <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={329D6EB2-8AB0-4606-B054-4CAD3C53EE73}>, acesso em 18.11.2010). 102 Para maiores detalhes do desastre ocorrido em São Luiz do Paraitinga, confira cobertura realizada pelos meios de comunicação: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1437081-5605,00-SAO+LUIZ+DO+PARAITINGA+PARECE+TER+SIDO+BOMBARDEADA+DIZ+GENERAL+DO+EXERCITO.html; http://www1.folha.uol.com.br/especial/2010/chuvaemsaoluizdoparaitinga/, ambos acessados em 25.11.2010. 103 De se destacar, como já acenado anteriormente, que a questão da ocupação irregular já havia sido suscitada no Judiciário de São Luiz do Paraitinga em casos isolados.

104 Processo nº 0000546-21.2010.8.26.0579, em trâmite perante a Comarca de São Luiz do Paraitinga – SP.

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Como se destacou, a ação judicial está em curso, de modo que ainda não foi

prolatada a sentença na ação civil pública referida, mas de acordo com o pedido da

Defensoria Pública, cada munícipe que tenha experimentado perda habitacional ou

interdição de moradia em decorrência das enchentes teria direito a receber individualmente

indenização por danos morais e materiais, de acordo com o art. 97 do Código de Defesa do

Consumidor (CDC), além de danos morais coletivos. Estar-se-á diante de sentença

genérica, nos termos do artigo 95 do CDC, que deverá ser liquidada e executada pelos

beneficiários e seus sucessores na forma estabelecida no mesmo diploma legal.

C) Critérios objetivos e isonomia de tratamento (alguma padronização)?

Nos casos de calamidades que atingem diretamente as condições de moradia e

habitação de uma determinada população, tais como aquela que se verificou em São Luiz

do Paraitinga, questiona-se a possibilidade de atribuir um tratamento uniforme às vítimas,

na medida em que as condições de moradia variariam de um cidadão para outro.

É possível, por exemplo, que uma pessoa possua um imóvel mais valioso do que a outra,

tanto pela propriedade em si, quanto em função de sua localização; que um indivíduo sofra maiores

perdas materiais do que o outro, o que acabaria por interferir na eventual possibilidade de

tratamento isonômico da questão.

Contudo, vislumbra-se, em termos gerais, a possibilidade de criação de critérios objetivos

para garantir uma padronização de tratamento dos indivíduos envolvidos105. Dentre tais critérios,

105 Ao cuidar do assunto, o Defensor Público afirmou ser possível estabelecer critérios objetivos e isonomia de tratamento a vítimas de acidentes como aquele que se verificou em São Luiz do Paraitinga, destacando que: (...) existem precedentes para esse tipo de solução de conflitos construídos desde a Corte Interamericana de Direitos Humanos em San José da Costa Rica, como precedentes construídos aqui no Brasil para tentar recompor vítimas da violência do Estado na época da ditadura militar. Se essa camada da população tem acesso a uma compensação rápida, por que a camada miserável na pode ter? É possível ter, precedentes existem.”

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destacaríamos (i) a renda familiar106; (ii) o valor do metro quadrado conforme a localização da

propriedade107; dentre possíveis outros.

Da análise dos pedidos formulados na Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública

do Estado verifica-se que, de algum modo, foram eleitos critérios, redundando na fixação de um

valor padrão de 80 (oitenta) mil reais a título de reparação pelos danos materiais sofridos por cada

munícipe que tenha experimentado perda habitacional, interdição de moradia ou perda de bens

móveis ou semoventes em decorrência das enchentes, assim como de um valor uniforme de 200

(duzentos) salários mínimos, a título de danos morais sofridos pelos mesmos indivíduos.

Segundo um dos entrevistados, os valores indenizatórios foram postulados na Ação Civil

Pública com base nos índices fornecidos pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT):

Ele (o IPT) diz que o custo médio no mercado no Estado de São Paulo de construção civil é de mil reais o metro quadrado. Uma casa de pessoa pobre segundo eles (o mesmo Instituto) tem quarenta a cinqüenta metros quadrados, cinqüenta mil reais, mais a compra de um terreno em local seguro e tal, cinqüenta mil.

Podia ser de 100 (cem) mil, em termos indenizatórios, dependendo da origem daquela população, em termos de indenização material, para que ela (a vítima) tivesse dinheiro rápido pra comprar e construir. E mais, vamos supor, 100 (cem) mil pra danos morais108, que é mais ou menos a média do que se paga a uma

106 Segundo informações fornecidas pela representante da AMI Paraitinga, foram elevados como critérios para a escolha das casas a serem reconstruídas pela associação civil, notadamente os seguintes: (i) condições de saúde do possível beneficiado; (ii) idade; e (iii) condição financeira. Via de regra, a população vinha à AMI, onde era feito um cadastro e depois era selecionado o beneficiado, conforme os critérios destacados. Até o presente, a informação transmitida é de que foram reconstruídas 8 (oito) casas pela entidade, sendo que a primeira delas teve como beneficiário pessoa portadora de deficiência visual. 107 De acordo com o relato do membro Defensor Público, é possível, em casos como os de São Luiz do Paraitinga, que envolve desastre natural decorrente, dentre outras causas, de alterações climáticas, e perdas habitacionais, tarifar os valores devidos às vítimas. Para ele, o valor indenizatório já deveria vir tarifado no regramento de textos normativos como o da Lei nº 12.187/2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC. Com base nesses possíveis parâmetros legais gerais, fixar-se-ia o valor reparatório devido a cada vítima. 108 Segundo o entrevistado, os danos morais são estimados com fulcro no artigo 953, parágrafo único, do Código Civil. Como destacado, os valores são meras propostas. Podem ser fixados a menor, inclusive. São anseios coletivos, apenas.

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vítima ou parente de vítima da tortura no regime militar. Duzentos mil reais por pessoa, e isso eu volto a repetir, existe precedente. (Defensor Público)

A despeito da possibilidade de uniformização, ressaltou, criticamente, o entrevistado:

Nunca vai ser o ideal, porque sempre a pessoa vai reclamar, é mais ou menos. Mas, é o seguinte. É a velha história: entre um bom processo, como eu acho que o nosso da Defensoria é - essa ação coletiva que está incorporando o discurso da alteração climática e a ausência de políticas habitacionais e ambientais -, vai durar uns vinte anos para transitar em julgado, já que com certeza seja eu, seja o Estado vamos levar isso ao STF, e 200 (duzentos) mil na mão agora ou 100 (cem) mil, eu vou sempre recomendar que pegue.

(...) Essa solução extrajudicial é para pacificar o conflito, é conciliatória. Na conciliação, ambos têm que ceder um pouco. Só que eu volto a repetir: a população que eu atendo está disposta, está disposta a ceder, eles perderam tudo, mas os exercentes do poder são arrogantes, eles não cedem, eles não reconhecem. (Defensor Público)

A conclusão a que se chega é que se pensarmos uma política geral, não há saída senão a

eleição de um tratamento isonômico. Em assim sendo, como destacou o Defensor Público: “Tanto o

Poder Judiciário, o Poder Público e as vítimas vão ceder. O Poder Público vai ceder o quê? ‘Eu

não vou mais ter o processo moroso de vinte anos pra eu pagar lá na frente por precatório eterno,

eu vou pagar já 200 (duzentos) mil.’ A pessoa pode até pensar que tem direito a 1 (um) milhão, mas

vai receber 200 (duzentos) mil. (...) é uma forma justa e célere de recompor isso daí.”109

D) Quem paga a conta?

Em conflitos dessa natureza, constata-se que o Poder Público é o órgão mais diretamente

envolvido e, portanto, o candidato natural para suportar os custos de um programa extrajudicial de

109 A corroborar essa colocação, a consideração final e exemplificativa do integrante da Defensoria Pública: Pergunta para as vítimas pobres de São Luiz – se você tivesse recebido 100 (cem) mil reais você estaria mais feliz do que estar aqui ainda nessa Creche Mãe Maria até hoje? Com certeza eles aceitariam.

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solução de conflitos. Em regra, os entes privados no conflito não contam com grau de mobilização a

ponto de suportar tais custos.

Segundo as entrevistas, com os custos arcaria o Executivo, já que coordenou, inclusive, o

recebimento de doações110 após a divulgação do desastre que acometeu a cidade.

Não obstante as doações individuais recebidas111, ressalta-se a preocupação do Governo

Federal com relação a esta questão através da realização de recente chamada pública para a seleção

de propostas com vistas ao atendimento de localidades atingidas por fenômenos naturais causadores

de danos às condições de habitabilidade112.

O resultado da referida chamada pública culminou no desembolso de aproximadamente R$

150 (cento e cinquenta) milhões de reais a 163 (cento e sessenta e três) municípios, dentre os quais

se inclui São Luiz do Paraitinga, objeto de estudo no item anterior113.

Vale destacar também, que São Luiz do Paraitinga atualmente integra o Plano de Ação

(PAC) para as Cidades Históricas, lançado pelo Ministério da Cultura em outubro de 2009, em

110 Valor estimado em R$ 539.949,00 (quinhentos e trinta e nove mil, novecentos e quarenta e nove reais). 111 Segundo a assessoria jurídica da prefeitura, algo em torno de 500 (quinhentos) e 600 (seiscentos) mil reais. Vale destacar que, em razão da ação ajuizada pela Defensoria Pública do Estado, a aplicação de tais valores a qualquer destinação foi bloqueada por decisão judicial. Determinou-se que o Executivo local apresentasse um plano de aplicação de tais valores. De acordo com as informações prestadas pela mesma entrevistada, a ideia é: pegar esse dinheiro, e a gente fez um plano de trabalho que foi apresentado para a juíza na semana passada nesse sentido. A ideia de usar esse dinheiro, ela foi feita, foi aprovada pelo conselho de planejamento, que é um conselho criado pela prefeitura, em que você tem: o poder público municipal (executivo e legislativo), você tem membros da sociedade, você tem associações e foi deliberado isso. Esse dinheiro doado deverá ser revertido para aquisição de novas áreas para empreender conjuntos habitacionais e para aparelhar a Defesa Civil do município, né? Então, essa é a destinação que a gente quer dar. Não há, segundo a própria entrevistada, nenhuma ideia de criação de fundo de reparação com tal valor. Para ela, eventuais reparações seriam com recurso público. 112 Confira: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-de-habitacao/programas-eacoes/chamada-publica/chamada-publica>, acesso em 12.08.2010. 113 Informações disponíveis em: <http://www.cidades.gov.br/ministerio-dascidades/destaques/SelecaoCalamidade_Jun2010.pdf>, acesso em 12.08.2010.

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Ouro Preto (MG). Sua adesão foi realizada em caráter emergencial, dada a gravidade da situação

que sobreveio à enchente do início de 2010114.

Segundo informações coletadas em entrevista realizada com a representante do jurídico da

Prefeitura de São Luiz do Paraitinga e com a representante do CERESTA, a cidade contou, ainda,

com o repasse de verbas por parte do Ministério da Integração, com o qual possui um convênio.

Desse órgão recebeu aproximadamente R$ 15 (quinze) milhões de reais.

São Luiz do Paraitinga foi também uma das localidades eleitas para ser beneficiada com os

valores destinados ao Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos (FID)115. Serão R$ 2 (dois)

milhões para a fiação elétrica subterrânea no centro histórico da cidade e outros R$ 2 (dois) milhões

para a construção de Parque Urbano/Ambiental em benefício da sustentabilidade ambiental do Rio

Paraitinga. O Itesp (Fundação Instituto de Terras de São Paulo) também vai receber

aproximadamente R$ 558.600,00 (quinhentos e cinqüenta e oito mil e seiscentos reais) para

recadastrar os imóveis que tiveram a documentação perdida com a inundação da cidade116.

114Vide: Jornal da reconstrução, Ano I, nº 8, São Luiz do Paraitinga, 2ª quinzena, junho de 2010. A fim de restaurar e conservar o que há de patrimônio histórico no Brasil, o Ministério da Cultura lançou no ano de 2009 o Programa de Aceleração do Crescimento das Cidades Históricas. O projeto deverá injetar R$ 150 (cento e cinqüenta) milhões por ano em 124 cidades históricas, com obras de requalificação urbanística, infraestrutura urbana, financiamento para recuperação de imóveis privados, restauro de monumentos e promoções do patrimônio cultural. Dentre as cidades que serão beneficiadas pelo Programa, estão 27 capitais/municípios da Costa do Descobrimento, da Chapada Diamantina e da rota do ouro em Minas Gerais e em Goiás, 18 localidades na Bacia do Rio São Francisco, além de demais localidades tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). (Fonte: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,pac-das-cidades-historicas-preve-r-150-mi-por-ano,412352,0.htm>, acesso em 14.10.2010). Para maiores informações, vide: <http://www.cidades.gov.br/noticias/pac-cidades-historicas-tem-lancamento-em-ouro-preto-mg/>, acesso em 14.10.2010. 115 Previsto na Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 1985, o FID teve sua criação autorizada no âmbito do Estado de São Paulo pela Lei Estadual nº. 6.536, de 13 de novembro de 1989, alterada pela Lei nº. 13.555, de 9 de junho de 2009. Seu objetivo é gerir os recursos destinados à reparação dos danos ao meio ambiente, bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Ao consumidor, contribuinte, pessoas com deficiência, idoso, saúde pública, habitação e urbanismo, e cidadania, bem como a qualquer outro interesse difuso ou coletivo no território do Estado, devolvendo-os à população de São Paulo como ressarcimento. Podem ser financiados Projetos relativos à: reconstituição, reparação, preservação e prevenção dos interesses difusos ou coletivos, no Estado de São Paulo. (Informações obtidas em: http://www.justica.sp.gov.br/novo_site/Noticia.asp?Noticia=4309, acesso em 28.11.2010). 116 Confira: http://www.justica.sp.gov.br/relação_de_projetos_aprovado_d.o.e.pdf, acesso em 28.11.2010.

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Em assim sendo, 3 (três) dos 12 (doze) projetos selecionados pelo Conselho Gestor do

Fundo Estadual de Interesses Difusos encontram-se em São Luiz do Paraitinga. Os recursos são

provenientes de indenizações pagas à Justiça. Para serem aprovados, os projetos devem reparar

interesses difusos relativos a habitação e urbanismo, patrimônio histórico, infância e juventude,

bens culturais e preservação do meio ambiente, por exemplo117.

Em 9 de dezembro de 2009, a Lei nº 12.114 criou também o Fundo Nacional sobre

Mudança do Clima – FNMC, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, que tem como objetivo

assegurar recursos para apoio a projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que visem

à mitigação da mudança do clima e à adaptação à mudança do clima e seus efeitos118.

De acordo com o artigo 5º, parágrafo 4º, da referida lei, a aplicação dos recursos do FNMC

poderá ser destinada, dentre outros, às seguintes atividades:

(...) III - adaptação da sociedade e dos ecossistemas aos impactos das mudanças climáticas;

(...) VIII - pesquisa e criação de sistemas e metodologias de projeto e inventários que contribuam para a redução das emissões líquidas de gases de efeito estufa e para a redução das emissões de desmatamento e alteração de uso do solo;

(...) X - apoio às cadeias produtivas sustentáveis;

(...) XIII - recuperação de áreas degradadas e restauração florestal, priorizando áreas de Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente e as áreas prioritárias para a geração e garantia da qualidade dos serviços ambientais.

117 Conforme: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/821413-sao-luiz-do-paraitinga-sp-vai-receber-r-45-mi-para-recuperar-cidade-apos-cheias.shtml, acesso em 28.11.2010. 118 É interessante aqui destacar a análise que estudiosos a respeito do assunto têm feito quanto à eficiência e boa gestão desse fundo. Vide entrevista realizada com Vanêsca Buzelato Prestes, Procuradora do Município de Porto Alegre, Diretora do Instituto O Direito por um Planeta Verde e Coordenadora-Geral do Projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos, disponível em <http://www.planetaverde.org/index.php?pag=2&sub=1&cod=242>, acesso em 17.11.2010. .

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Vale dizer, ainda, que o FNMC terá como agente financeiro o Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que poderá habilitar o Banco do Brasil, a Caixa

Econômica Federal e outros agentes financeiros públicos para atuar nas operações de financiamento

com recursos do FNMC, continuando a suportar os riscos perante o fundo (artigo 7º, caput e

parágrafo 1º).

O fundo em questão foi recentemente regulado pelo Decreto nº 7.343, de 6 de outubro

2010. Os recursos do FNMC poderiam, assim, servir a custear um programa extrajudicial de

solução de conflito para casos tais como o de São Luiz do Paraitinga, conforme salientou, inclusive,

o membro da Defensoria Pública, que apenas lamentou a inexistência de um desenho prévio,

estabelecido na própria lei, para a liberação célere e emergencial de verbas em casos de desastres e

calamidades, tal como se verificou no Município de São Luiz do Paraitinga119.

E) Quem fiscaliza?

Indagados sobre a possibilidade de um desenho extrajudicial de solução de conflito

para o caso de São Luiz do Paraitinga, a maioria dos entrevistados apontou como possível

designer do sistema o próprio Executivo – a Municipalidade, a quem caberia implementar o

projeto, sendo que a fiscalização seria exercida pelo Ministério Público e pelo Poder

Judiciário120.

119 Nesse sentido as palavras do entrevistado: Mas aí (referência feita à Lei que institui o FNMC) não reconhece o direito indenizatório às vítimas dessas alterações, como existe o direito indenizatório extrajudicial mais célere das vítimas da ditadura militar. Por exemplo, sem entrar no mérito das duas coisas, são duas coisas gravíssimas, deu para entender? Como já existe então reconhecido que existem verbas tarimbadas para direcionar indenização pelo menos habitacional de quem perdeu casas ou fonte produtiva com um desastre climático ou não, deu para entender? Você teria uma comissão no âmbito estadual ou até municipal para no município coletar as provas, documentos, as provas, pelo menos testemunhais, e os requerimentos das pessoas que comprovassem os requisitos mínimos de que no nexo causal entre a ação destrutiva e a sua perda, né, coletaria, mandaria para uma comissão estadual que, num prazo de até 6 (seis) meses, daria a resposta. E a resposta sendo positiva, já estaria tarifado no regramento que, a partir dessa lei, iria regulamentas esse direito do valor indenizatório que eu postulo de acordo com os índices do IPT. (Defensor Público) 120 Na verdade, a fiscalização é mais de uma vez atribuída ao sistema de justiça, como um todo. Nesse sentido as palavras da representante do jurídico da prefeitura: É a Defensoria, na verdade ela vem fiscalizar, que é o que ela alega, que está fiscalizando, a aplicação do recurso, enfim, mas (...). De acordo com a entrevistada, o Ministério Público e a Defensoria Pública não têm apresentado atuação conjunta na cidade. Conforme narrado: Algumas medidas que vão ser feitas, a gente vai até o Ministério Público e conversa para fazer isso,

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F) Forma de solução de conflitos (desenho provisório ou permanente? Vantagens ou

desvantagens? Incentivos ou desincentivos?)

Pensando na implementação de um possível desenho extrajudicial para solucionar o

conflito que se vislumbra em São Luiz do Paraitinga, o agente do Governo do Estado e

funcionário da CDHU sugeriu que se buscasse um designer ou mediador que já tivesse

expertise nesse sentido dentro do Estado. Para ele, o ideal seria pensar em alguém que

representasse isenção de interesses. Com base nisso, ele sugere a própria instituição do

Ministério Público, que não está atrelada ao Poder Executivo, sobretudo ao pensar na

hipótese de a Prefeitura ser acionada para efeitos de indenizações civis.

A respeito especificamente do possível designer, a atuar como interlocutor na solução de

conflitos tais como aquele verificado em São Luiz do Paraitinga, o entrevistado acima referido

destaca que: o fato é um protagonista das questões que estão na melhoria da qualidade da

prestação de serviço e das ações de Estado. É você ter esse personagem podendo ser acionado pelo

Estado, dotado, portanto, de isenção. Por isso ele não pode, ele tem que estar ligado a uma

instituição de muito peso, porque se isso virar um prestador qualquer de serviço no mercado, aí ele

fica mais vulnerável ao contratador.

O desenho do sistema de solução de conflitos em São Luiz do Paraitinga é

provisório, porque sua duração vai até a resolução do conflito, porém recorrente, como já se

destacou acima.

Nas entrevistas realizadas foi constatada a desarticulação dos atores envolvidos:

em mais de uma entrevista, a criação do CERESTA foi apontada como um modo de

suplantar a dificuldade de diálogo interinstitucional e uniformização das diretrizes e

medidas de reconstrução de São Luiz do Paraitinga.

para ter esse fundamento com o Ministério Público, para a gente fazer junto e a Defensoria está mais, assim, ausente e fazendo esse poder que ela entende fiscalizatório.

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Entretanto, de acordo com as entrevistas, sobretudo com membros da sociedade civil

vinculados a associações locais e do membro da Defensoria Pública, a população não vai ao

CERESTA, mas sim recorre aos integrantes do Ministério Público local e da Defensoria Pública,

exercendo estes órgãos, portanto, a função de canal de comunicação. Afirmou-se que o CERESTA

acabaria atuando como uma espécie de “braço” do Poder Municipal local121.

No caso da AMI São Luiz do Paraitinga, segundo entrevista realizada com uma das

idealizadoras e coordenadoras do projeto, deliberou-se, após algumas reuniões, que a associação

civil não se vincularia a nenhuma instituição pública, tampouco se instalaria no espaço destinado ao

CERESTA. Essa opção objetivou, acima de tudo, desvincular a entidade de qualquer questão

política.

De acordo com o relato de representante da associação civil em referência, o Poder Público

municipal em São Luiz do Paraitinga hoje é muito ‘medroso’, de modo que todas as decisões

tomadas são muito vacilantes. Tudo chega, de um modo ou de outro, ao Ministério Público, sendo

que tão-somente quando a promotora fala ok, se faz. Trata-se, segundo se apurou, de característica

da gestão atual. Este teria sido também um dos fatores que levou a AMI a optar por não se articular

com o Poder Público local, para não estar relacionada e sua imagem não se atrelar à temeridade e,

sobretudo, morosidade na condução da reconstrução da cidade e na tomada de decisões.

Um dos aspectos que foi destacado como desvantagem do sistema adotado é a falta de

implementação de políticas preventivas para problemas que já são antigos e conhecidos de todos,

sobretudo do Poder Público.

Ao tratar do FNMC, o integrante da Defensoria Pública do Estado destacou:

121 Indagada a respeito da existência de um canal de ouvidoria no CERESTA, a representante do centro entrevistada salientou: (...) isso a gente está tentando ainda implantar. Um sistema, criar um site, criar alguma coisa mais direta com a população.

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(...) eles (referência feita às três esferas de governo) tinham primeiro que reconhecer as falhas em termos de políticas ambientais e habitacionais no país que detém o maior déficit habitacional do continente americano, deu para entender?

São mais de oito milhões de unidades habitacionais da população pobre aqui que obriga esses pobres a ficar em alta vulnerabilidade social, né? E incorporar, por exemplo, nesse Fundo Nacional de Alterações Climáticas, que é recentíssimo, ele contempla o quê? Financiar pesquisa igual a que você está fazendo, mas eles não contemplam. Criar através do Fundo mecanismos sérios de indenização habitacional para quem teve a perda, deu para entender? Ou indenização para quem teve perda produtiva, porque eu posso ter perda habitacional, mas eu posso ter perdido a minha fonte de renda (...), deu para entender?

Esse Fundo deveria incorporar isso que seria, eu acho, que a forma mais honesta, célere e justa de uma resposta rápida até para essas perdas habitacionais.

Quanto às vantagens de um desenho alternativo ao aplicado ao caso, um dos entrevistados

destacou que as políticas extrajudiciais são as mais consistentes e céleres para tentar solucionar

casos como o de São Luiz do Paraitinga, de políticas públicas envolvendo saúde, dentre outros. Para

ele, “(...) cada vez que o Estado começar a gastar de um Fundo Nacional, derivando para fundos

estaduais de indenização por desastres através das mudanças climáticas, ele vai começar a pegar

no bolso.” Pensa-se: “(...) tá aumentado isso aqui, não é mais paliativa, está me custando muito”.

Com base nisso, então, “ele vai começar a implementar políticas preventivas sérias que não

existem (...)”. (Defensor Público)

Outro ponto que também foi destacado, anteriormente, pelo representante da mesma

instituição, é a morosidade de um processo judicial. Pensando-se em um modelo alternativo ao

judicial, evita-se a transposição da solução da questão para a ‘fila dos precatórios’, o que não

pacifica o conflito, tampouco resolve o problema daqueles que ainda não retornaram para suas casas

e que perderam tudo.

Foi destacada a necessidade e importância de uma participação geral, das mais diversas

vozes, na solução de conflitos como o que se verifica em São Luiz do Paraitinga. Essa seria uma

forma de legitimar qualquer atuação. Nesse sentido as considerações da assessoria jurídica da

prefeitura:

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(...) ser uma atitude isolada do poder público, a gente sabe que vai ter questionamento. É por ser aqui uma comarca pequena.

(...) Então, a ideia é mesmo colocar numa mesa de discussão o poder público municipal, executivo, legislativo, o Ministério Público, sociedade, para a gente definir o que vai ser feito.

Pensando em um sistema eficaz de solucionar conflitos tal como aquele verificado em São

Luiz do Paraitinga, a representante do CERESTA destacou que os Conselhos Municipais poderiam

funcionar como bons interlocutores entre Estado e população. Isso porque são compostos por

pessoas da comunidade e sempre atuam como portadores das expectativas da comunidade122.

Em entrevista realizada com representantes do Judiciário e Ministério Público locais, foi

destacado que para solucionar conflitos como aquele que ocorrido em São Luiz do Paraitinga o

Judiciário deveria figurar como última opção.

Pensando em um sistema alternativo ao Judiciário, as entrevistadas destacaram a

possibilidade de constituição de uma comissão administrativa, com pessoas relacionadas à área

específica (por exemplo, de perigo, de urbanismo, de reconstrução, etc.). Essa comissão

administrativa deveria possuir poderes para embasar ações inclusive da prefeitura, tudo com base

em um planejamento feito especificamente para tais fins. Nesse caso, à Câmara Municipal caberia

fiscalizar os atos administrativos do Poder Executivo. São situações novas no Brasil, como

destacado por uma das entrevistadas, mas que em outros países funcionam muito bem. Só se

chegaria ao Judiciário em situações extremas.

Valendo-se do exemplo implementado no Canadá, invocado durante a entrevista, foi

ressaltado que naquele país os advogados são as pessoas que normalmente coordenam as antes

referidas comissões administrativas, os setores de conciliação e mediação.

122 Segundo a entrevistada, o Conselho é formado pelo Poder Público, pela sociedade civil, por representantes de ONGs, há representantes de todos os setores, inclusive da Câmara de Vereadores.

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Ao se imaginar a adoção de sistema semelhante ao canadense para a realidade brasileira,

suscitou a representante do Judiciário entrevistada que se falássemos, aqui, que um advogado

coordenaria um sistema de solução de conflitos haveria um verdadeiro tumulto, pois o advogado

não seria a pessoa mais indicada, capaz de inspirar confiança. Isso ainda mais se considerada a

situação de São Luiz do Paraitinga, que é um município pequeno e tem um agravante, ao ver das

entrevistadas (representantes do Judiciário e do Ministério Público): o espírito político que todas as

pessoas têm123.

O desincentivo à via judicial, segundo estas mesmas entrevistadas, não teria por motivo

apenas o fato de querer desafogar o Judiciário, pois para isso já há, por exemplo, o processo

eletrônico, que resolve parte do problema. A verdade, como ressaltado, é que, na grande parte das

vezes, uma sentença não resolve um litígio. Ao contrário, ela compra outro. Nas palavras das

próprias entrevistadas:

(...) por melhor que o juiz seja, por melhor que o tribunal mantenha, né? Muitas vezes ela (a sentença) não tem a praticidade, a decisão não casa com o que você quer, entendeu? Então muitas vezes você precisa fazer ajustes como fazer, dar um prazo pra ele sair, como é que eu vou colocar na sentença todos esses detalhes (...), não dá pra pensar tudo isso, (...)

G) Diálogo interinstitucional

123 Para as entrevistadas, é fundamental que haja um despreendimento dos anseios políticos ou dos interesses pessoais que norteiam todas as ações na cidade. Tudo em São Luiz do Paraitinga seria ainda mais complicado porque todos são parentes, amigos de infância ou conhecidos uns dos outros. A criação de uma comissão administrativa nos termos propostos e destituída de todo e qualquer interesse pessoal seria muito difícil, portanto. Daí porque o que teria funcionado muito bem logo após a ocorrência do desastre natural foi a atuação da Defesa Civil. Como seus integrantes vieram totalmente ‘desprendidos’ e com expertise para atacar o problema em si, todas as suas orientações foram imediatamente acolhidas, sem qualquer resistência.

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A moradia é direito social constitucionalmente assegurado no artigo 6º da CF/88124,

sendo matéria de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios, conforme dispõe o artigo 23, IX, do mesmo diploma125.

Além de constituir matéria de competência comum, a questão da habitação figura, ainda, no

rol do artigo 21 da Constituição Federal, que traz dentre as competências da União a de instituir

diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes

urbanos (inciso XX), assim como a de planejar e promover a defesa permanente contra as

calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações (inciso XVIII).

Paralelamente, o artigo 30, inciso VIII, do texto constitucional atribui ao Município a

competência de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante

planejamento e controle do uso parcelamento e da ocupação do solo urbano.

Tem-se, assim, que a questão da moradia/habitação é matéria que envolve todos os entes

federados, que deverão manter um diálogo interinstitucional para atender ao objetivo

constitucionalmente assegurado. Esse diálogo existirá não apenas para garantir que o direito à

moradia se consagre, mas também para que outros direitos que envolvem diretamente a questão da

habitação, tais como a proteção do meio ambiente, a proteção ao patrimônio histórico, cultural,

artístico, turístico e paisagístico, dentre outros, sejam efetivados.

Voltando-nos especificamente para o caso em estudo, pode-se afirmar que houve um

diálogo interinstitucional, sobretudo entre Governo do Estado e Governo do Município. Das

informações colhidas nas entrevistas, a atuação do Governo Federal voltou-se à doação de verbas

para a realização de obras de contenção e, sobretudo, à atuação conjunta do IPHAN (Instituto do

124 Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010). 125 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; (...).

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Patrimônio Histórico Artístico e Cultural)126 com o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do

Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico)127.

O CERESTA, a que se fez referência acima, foi idealizado e criado justamente para permitir

que em um único local estivessem todos os órgãos envolvidos na reconstrução de São Luiz do

Paraitinga128, facilitando, como foi destacado em algumas entrevistas, o diálogo entre os diversos

poderes institucionais envolvidos no projeto de reconstrução da cidade.

Importante destacar que uma pessoa, originariamente pertencente aos quadros da Secretaria

da Habitação do Governo do Estado de São Paulo (CDHU), foi designada e ‘emprestada’ à Casa

Civil do Estado para coordenar, articular as ações do Estado em São Luiz do Paraitinga.

Segundo o que foi relatado, essa pessoa fazia o diálogo interinstitucional, evitando, assim,

delongas e dificuldades na solução de uma questão que se mostrava urgente, diante do ocorrido. A

seguir, alguns trechos de entrevista realizada em 20.10.2010 com esse interlocutor:

(...) tinham muitas secretarias trabalhando e muitas delas dependem de ações que eram da Casa Civil e do Planejamento que não são as atividades fim, mas são coordenadoras das outras. Então ele me designou pra quê? Para que eu representasse a Casa Civil e o Planejamento nas ações porque, às vezes, uma secretaria precisa conversar com a outra para fazer isso e sempre faz isso através

126 Para maiores detalhes, acesse: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do>. 127 Para maiores detalhes, acesse: <http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC/menuitem.a943691925ae6b24e7378d27ca60c1a0/?vgnextoid=528dcf75c7e9b110VgnVCM100000ac061c0aRCRD&cpsextcurrchannel=1>. 128 Segundo entrevista realizada com representante do CERESTA em 28.09.2010, integram o CERESTA, dentre outros: órgãos do Governo Federal, do Governo Estadual, membros da associação civil. Nas palavras da entrevistada: Do Governo Federal seria o IPHAN, já que São Luiz do Paraitinga passava por um processo de tombamento. Do Governo Estadual tem o CONDEPHAAT e a unidade técnica deles com os arquitetos que estão desenvolvendo projetos do Centro Histórico (...) Durante um tempo ficou a Defesa Civil do Estado, sendo que agora ali se encontra apenas a Defesa Civil do Município. Há também no CERESTA a Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS - http://www.cpos.sp.gov.br), o Conselho Municipal do Turismo (CONTUR), o Instituto Elpídio dos Santos, professores, alunos e técnicos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (UNESP). De acordo com a assessoria jurídica da prefeitura, o CERESTA foi idealizado por agente público do próprio Executivo local, juntamente com um professor da UNESP, que já atuava em São Luiz do Paraitinga auxiliando na elaboração do Plano Diretor da cidade.

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ou porque precisa do Planejamento e precisa pedir programação de recurso ou de ações de articulação que a Casa Civil é que fazia. Então eu fui designado ad hoc representando o Governo nas ações de reconstrução de São Luís do Paraitinga e servia também de ponte por quê? Os problemas da prefeitura ela não tinha que falar com ‘n’ secretarias, ela se reportava a mim e eu tentava articular a resolução dos problemas com ela, então foi esse o papel que eu venho desempenhar. Além do que, às vezes, você precisa modelar alguma solução que depende da articulação de mais de uma secretaria, por exemplo, as ações lá imediatas da Defesa Civil. Tudo bem a Defesa Civil tem uma rotina de procedimentos e tem já uma capacidade de agir rapidamente a Defesa Civil atuou lá diretamente ou através da companhia do Estado que fez a recuperação das estradas de sinais através da coordenação da Defesa Civil. A Energia de Saneamento através da SABESP, através do DAEE, através da SABESP logo entravam ações lá pra recompor a estação de tratamento foi inundada, fazer aquela barragem na encosta da Rua dos Carvalhos que acabou de ficar pronta pra proteger porque as casas todas estavam sob risco de demolição e já fazer o primeiro desassoreamento do rio que foi feito logo no começo lá abaixo que é quando o Rio Paraitinga se junta com o tal do Rio do Chapéu que tinha dado um problema lá e começar a elaborar o plano todo de recuperação da... regularização da bacia toda de São Luís. São coisas que estão em curso, as obras de desassoreamento mais pesadas foram agora recém contratados porque tem que fazer o termo de referência e o... então essas imediatamente tem capacidade executiva e foram cada um fazer a sua função, no entanto tinham algumas questões que precisavam ser resolvidas pela união de esforços de algumas secretarias né, então no caso a CDHU foi montar o conjunto habitacional, (...). (Agente do Estado e representante da CDHU, responsável por articular as ações do Governo do Estado no Município de São Luiz do Paraitinga)

H) Barreiras da Administração Pública?

Um dos aspectos que restou destacado em quase todas as entrevistas envolvendo o

caso, como fator a gerar maiores dificuldades na condução de qualquer projeto, é o fato de

São Luiz do Paraitinga ser um município pequeno. Esse aspecto dá origem a dificuldades

de ordem política. Tudo indica que é mais difícil implementar e legitimar novas iniciativas,

tal como a eventual apresentação de um sistema alternativo para a solução de conflitos.

Ao tratar da cultura da Administração Pública brasileira, o agente do Governo do Estado e

funcionário da CDHU ressaltou que há uma diferença fundamental de mentalidade em relação à

iniciativa privada quando se cuida de solucionar eventuais conflitos.

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Partindo da experiência implementada no caso de reparação das vítimas dos acidentes

aéreos da TAM e da Airfrance, o entrevistado destacou as seguintes preocupações:

(...) como é que eu agilizo, como é que eu, nem de um lado fico com um cara pedindo uma indenização do tamanho de um bonde, para fazer um acordo no meio e para mesmo atender de uma forma menos jurídico-formal, né, a família que está sob trauma?

Na opinião do entrevistado, as empresas privadas adotam soluções como aquelas

implementadas nas Câmaras de Mediação TAM/Airfrance porque a imagem delas é um patrimônio

violento. Então, quanto mais eu cuidar desse patrimônio... Além disso, a imagem está sob risco

quando acontece uma coisas dessas, né? E, no setor privado, o raciocínio é: “eu vou perder lucro”,

né? Porque se a minha imagem fica ruim, o cara não viaja na minha companhia e tal.

Ao ser indagado sobre a eventual transposição do mesmo raciocínio ao segmento público,

destacou o entrevistado que muitas vezes até há a preocupação na resolução do problema de plano.

Ocorre que, como salientado: (...) o ponto crucial de qualquer prestação de serviço é o cara que

fica no guichê, o cara que dá o atendimento. Se ele não está imbuído do mesmo espírito, ele acaba

traduzindo coisas que não são adequadas. Então, talvez alguém especializado nisso pudesse

colimar melhor o objetivo do Estado e não “ah, vamos dar uma maquiada no problema”. A ideia

que ele trouxe é de não apenas solucionar o problema porque se aproxima o período eleitoral.

I) Comportamentos oportunistas? Vulnerabilidades?

Alguns entrevistados apontaram haver uma motivação política por trás das medidas

adotadas em São Luiz do Paraitinga, muitas delas justamente na véspera das eleições.

Com relação a comportamentos oportunistas, destaca-se a questão da concessão do auxílio

moradia. Conforme relatou o agente do Governo Estadual e funcionário da CDHU, para sua

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concessão é feito um cadastro da população. Esse cadastro é realizado com base nas informações

transmitidas pelos moradores do município. Na medida em que cessa a situação emergencial que

justifica o auxílio, cessa-se a sua concessão.

Ocorre que foram verificados casos em que o indivíduo que não fazia jus ao benefício

estava auferindo-o. Diante dessa realidade, chegou-se a bloquear de um modo geral a concessão do

auxílio, o que ensejou a propositura de ação judicial pela Defensoria Pública questionando casos de

pessoas que estavam recebendo o benefício e não tinham direito a ele e, de outro lado, casos de

pessoas que não o recebiam, a despeito de a ele fazerem jus129.

No caso em estudo, foram aferidos alguns núcleos humanos classificados como vulneráveis.

Via de regra, integram a população de baixa renda local, em particular a população rural. Para o

membro da Defensoria Pública, são pessoas que estavam em estado de vulnerabilidade

habitacional por ação direta dos poderes públicos, assim como aqueles que, mesmo não estando,

tradicionalmente, em área de vulnerabilidade ambiental e habitacional perderam suas moradias e

as tiveram interditadas por omissão de políticas ambientais sérias.

129 (...) a discussão a respeito do auxílio moradia tinha muita discussão assim: tinha gente que recebeu e não deveria ter recebido. Por que como que é isso? É feito um cadastro da população, mas o cadastro da população é feito com as informações que eles que a população dá e depois na hora que você vai habilitar é que você pede, mas foi feito o cadastro a CDHU vai e acata a indicação das famílias que o pessoal do social da prefeitura fez. Aí “ah porque um recebeu e o outro não recebeu e a pessoa não se informou”, então é coisa desse tipo, mas nada que vamos dizer assim que merecesse maior atenção que senão a de “ah o senhor não cadastrou? Então cadastra”. Fulano lá denunciou que outro está recebendo e apura e conserta tá. Até a própria Defensoria moveu daí uma ação contra a CDHU que ela estava pagando estava concedendo... primeiro que estava concedendo pra quem não deveria ter recebido e de fato aconteceu, tinha gente que tinha casa de aluguel na área que foi lá na Várzea dos Passarinhos, mas ele não morava lá, morava o inquilino e ele se cadastrou. (grifos nossos) E ele se cadastrou. Tem esses oportunismos né? (questão da entrevistadora) E as regras do auxílio moradia é o seguinte, na medida em que a razão de ser do auxílio moradia auxílio emergencial até que se regularize a situação da moradia, na medida em que se regulariza a situação – fulano, fulano morava de aluguel lá a casa rodou, ele foi para o abrigo, ele precisa do auxílio moradia, aí ele achou uma outra casa para alugar e ele alugou a casa. Desconfigurou a situação emergencial, ele voltou à situação em que ele estava antes. Então aí se vai interromper, então vai se fazendo avaliação mês a mês da situação auxílio moradia. Então teve uma ação que de fato foi movida pelo Defensor pra continuar dando auxílio moradia para as pessoas porque tinham algumas pessoas... por que o que acontece? As pessoas vão lá reclamar “olha perdi o meu auxílio”, aí o cara pegava e movia...

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Essa população ficou à margem, em um primeiro momento, de qualquer informação,

esclarecimento em relação às soluções ambientais que seriam empreendidas, quanto ao destino a ser

imposto às suas vidas, assim como sobre a possibilidade de ter novamente suas casas e como as ter

(mediante financiamento? Com o auxílio do Estado? A fundo perdido – a título ressarcitório?).

O que restou ressaltado em alguns dos depoimentos colhidos130 é que a reestruturação do

comércio e da economia luizense foi muito rápida, pois teria contado com o apoio financeiro do

Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), que inclusive teria aprovado uma linha de crédito

com grandes vantagens.

O mesmo, porém, não ocorreu com relação à questão habitacional131. Diante dessa

realidade, a representante da sociedade civil local chega a indagar e a sugerir: O Governo Federal

não teria uma linha de crédito para essas situações de catástrofes? Deveria ser algo semelhante ao

que ocorreu com o comércio.

Ao tratar da vulnerabilidade da população civil, destaca a idealizadora da AMI Paraitinga:

Parece que está todo muito perdido. Está tudo muito desarticulado. Muitas pessoas que sabem que não podem fazer e não suportam mais a situação, acabam fazendo por conta e escondido.

(...) Muitos reclamam que não conseguem reconstruir suas casas, que há lentidão para aprovação dos projetos arquitetônicos. Tudo isso chega ao MP (Ministério Público).

130 Nesse sentido, as colocações da representante da AMI Paraitinga e do Defensor Público do Estado. 131 De acordo com o depoimento do representante do Governo do Estado e funcionário da CDHU, paralelamente à reconstrução das casas, foi necessário ir rapidamente para o caso da atividade comercial e de serviços e industrial. O Estado pôde dar financiamento com uma linha de crédito facilitada através da Nossa Caixa Desenvolvimento. Destacou o entrevistado, entretanto, que: Infelizmente, o fato de ter vendido a Nossa Caixa (Banco do Estado de São Paulo) não permitia que a gente desse financiamento para outras atividades. A nossa Caixa Desenvolvimento financia capital de giro e o reequipamento, então, mas isso foi importante. Uma série de mais de quase 100 (cem) dos empresários locais, que para uma cidade do tamanho de São Luiz, é bastante contraíram empréstimos para recompor, comprar uma máquina e tal com a Nossa Caixa Desenvolvimento.

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Um exemplo da ineficácia do sistema adotado é que IPHAN e CONDEPHAAT teriam que ter um grupo/conselho deliberativo na cidade. Isso não há, é tudo feito em São Paulo. Há até um grupo desses órgãos no CERESTA, mas lá só obtêm as plantas e levam tudo a São Paulo. Não resolve nada.

(...) No caso da CDHU, estabeleceu-se prazo para as pessoas que quisessem reconstruir suas casas se cadastrarem. A CDHU, então, forneceria crédito conforme o salário. As pessoas foram fazer os cadastros.

Foram, porém, suscitados os seguintes problemas:

Em São Luiz do Paraitinga é tudo condomínio, será considerada a renda de quem? As casas no município são caras – é tudo patrimônio histórico, cultural, tombado– a linha de crédito aprovada é muito baixa para o que se precisa fazer obedecendo às determinações legais. Resultado: a população vai e ninguém sabe informar nada. Acaba não surtindo efeito.

Outro aspecto que também foi destacado quanto a essa população tida por vulnerável foi o

fato de terem muitas promessas, mas até o final de fevereiro (mais de mês após o desastre), não

tinha uma solução. Ao contrário, tinham em mãos contas de cobrança de eletricidade, água, etc.,

baseadas em estimativas do consumo médio dessas casas que vieram a ser destruídas, a despeito do

consumo inexistente em tal período132.

Vale, nesse ponto, ressaltar que São Luiz do Paraitinga é uma estância turística, muito

conhecida pelo ecoturismo (destaque para o rafting), pelas festas e folclore locais, destacando-se o

132 Nesse sentido, as considerações críticas do membro da Defensoria Pública: “Quer dizer, o mundo capitalista, a premência econômica contra eles (a população em geral) não parava mesmo que a vida deles estivesse trucidada pela tragédia ambiental. E eram várias, eles sabiam que o Brasil todo, principalmente a região, se intensificou, se uniu em mobilização humanitária intensiva e houve donativos humanitários pra chegar nas vítimas do flagelo e até março nada chegou, eles tinham esses questionamentos, mas eu não tinha resposta pra dar. Então o que eu tinha que fazer junto com os movimentos populares? Procurar dar essas respostas pra eles. Então a fim de ..., como era muita gente, eu tentei organizar e promovi junto com o MDPA (Movimento de Defesa dos Pequenos Agricultores de São Luiz do Paraitinga) uma audiência pública. Talvez tenha sido a reunião pública, a maior reunião pública de São Luiz do Paraitinga – cerca de 900 (novecentas) pessoas compareceram (...)”.

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seu carnaval de marchinhas133. A festa tem importante papel econômico na realidade da cidade,

sendo que, no período, a população da cidade chega a triplicar134.

Conforme os depoimentos de professor da UNESP entrevistado e do representante da

Secretaria de Turismo municipal, o carnaval sempre foi um divisor de opiniões em São Luiz do

Paraitinga. De um lado, há os que defendem uma regulamentação da festa e forte intervenção do

Poder Público, coordenando as questões de trânsito local, horários de funcionamento do comércio,

passagem dos blocos, inclusive, limitando o número de visitantes, em virtude dos vários episódios

de depredação do patrimônio histórico da cidade. De outro, há os sustentam que o evento seja

livremente realizado, sem qualquer ingerência do Poder Pública, uma vez que o carnaval não lhe

pertenceria.

Com a ocorrência da tragédia das enchentes em São Luiz do Paraitinga, a discussão a

respeito do assunto se intensificou. Isso porque o evento sempre foi associado à movimentação da

economia e, diante da destruição da cidade, seria mais uma forma de obtenção de renda para a sua

reconstrução. Como se destacou em entrevista realizada com professor da UNESP e representante

da Secretaria de Turismo municipal:

(...) deixou de ser injetado na economia da cidade algo em torno de 20 (vinte) milhões de reais que é o equivalente a um orçamento anual da prefeitura, que (com o carnaval) entra em 5 (cinco) dias. Então é um valor considerável. As pessoas estão endividadas, alguns estão até desesperados aqui na cidade, mas também é um grande momento pra reflexão, pensar no modelo ideal de carnaval, um evento sustentável, né? Porque já não era mais.

133 Confira: http://www.paraitinga.com.br/slparaitinga/A_Cidade/Festas e http://www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br/carnaval.htm, acesso em 25.11.2010. 134 Nesse sentido, as palavras da assessoria jurídica da prefeitura: Então, a gente está retomando, porque a cidade, ela vive praticamente do turismo, né? A gente não tem indústria, a gente não tem agronegócio aqui. Enfim, você pega duas ou três grandes empresas que têm plantação de eucaliptos, mas isso para a grande população. E todo mundo se beneficiava, de um jeito ou de outro, direto ou indiretamente do carnaval. Então, era família que alugava a sua casa, era o comerciante que abria um bar eventual. Todo mundo, a economia era movida pelo carnaval. A intenção é de se fazer, realizar o carnaval em 2011, está sendo difícil para a gente. Muito difícil, porque os poucos funcionários que a gente tem está ligado com projetos de reconstrução, fazendo todas as ações e ainda tem que ter uma comissão especial para tratar disso, porque demanda um trabalho muito grande. (...) Já tem uma comissão, estamos fazendo. Tudo é por conta da prefeitura, né? O carnaval é por conta da prefeitura, a gente não tem nenhum patrocinador que vem até aqui.

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Os entrevistados antes referidos antevêem que, após a ocorrência do desastre, e, sobretudo,

no ano de 2011, em que a vida voltará um pouco ao normal, sendo possível retomar as atividades

festivas, tais como a relacionada ao carnaval, os conflitos envolvendo essa questão serão ainda

maiores. Isso porque até agora os esforços somente foram envidados para a reconstrução da cidade,

e ainda assim, há muito a ser feito. Pouco se debateu a respeito do carnaval e o evento se aproxima.

Diante da nova realidade da cidade, a tendência parece ser a de liberar e intervir pouco

durante a festa, até para a recuperação da economia local. Porém há o temor de parcela da

população quanto à precariedade em que se encontram alguns casarões, há insatisfação daqueles

que não puderam reconstruir suas casas e não poderão com elas auferir a renda programada com a

locação do imóvel no período festivo.

4. UM CASO COMPARATIVO: O PROGRAMA INDENIZATÓRIO DA BRITISH

PETROLEUM

Dentre as iniciativas que estão servindo como um material paralelo de apoio instrumental à

pesquisa, um caso mais recente de desenho de sistema de disputas que foi analisado pela equipe é

referente ao acidente ocorrido no dia 20 de abril de 2010 na plataforma da British Petroleum (BP),

no Golfo do México, e seus conseqüentes danos ao meio ambiente e à população costeira.

A referida companhia vem adotando uma série de medidas no sentido de reverter ou

minimizar os danos causados pelo acidente, bem como para abrir um canal de comunicação com

aqueles que sofreram mais diretamente os seus efeitos, tendo disponibilizado um setor de seu

website, chamado de “Gulf of México response”, para informar sobre as ações que vem sendo

empreendidas.

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Foram criados cinco diferentes programas de indenizações, cada um direcionado a um

grupo específico de vítimas. Um deles é reservado somente às reclamações do governo e consiste

em um processo autônomo e prioritário para as indenizações dos entes governamentais, como, por

exemplo, estados, counties e tribos indígenas. Outro atende a reclamações para a reparação de

embarcações danificadas por sua participação no Vessels of Opportunity Program, programa

começado em junho e que busca reunir esforços e remunerar embarcações independentes com o fim

de contribuir para a limpeza do Golfo. Outro canal foi criado para indenizar os real state brokers

prejudicados com o acidente. Um quarto programa visa a atender e indenizar os trabalhadores, em

exercício no dia do acidente, das outras 33 plataformas de petróleo do Golfo que ficaram

paralisadas em face da moratória135 determinada pelo governo norte-americano.

Por fim, e o que está mais relacionado com o objeto desta pesquisa, foi criado pela British

Petroleum um programa de indenizações, o Gulf Coast Claims Facility, para compensar os

indivíduos e negócios comerciais pelos custos e danos sofridos em função do derramamento de

petróleo causado pelo acidente ocorrido com plataforma da companhia. A BP se comprometeu a

fornecer US$ 20 bilhões para projetos de restauração e que visem a atuar sobre os efeitos imediatos

do derramamento.

Vale notar que a criação destes programas está respaldada em lei, no Oil Pollution Act de

1990, que regula as medidas a serem tomadas e as responsabilidades em casos de acidentes. Tal

diploma determina que a parte responsável deve estabelecer procedimentos para o pagamento de

reclamações por danos emergenciais136.

135 BAKER, Peter; BRODER, John M.. White House Lifts Ban on Deepwater Drilling in The New York Times, 12 de outubro de 2010.

136 Oil Pollution Act 1990: SEC. 1005. INTEREST; PARTIAL PAYMENT OF CLAIMS. (a) GENERAL RULE.—The responsible party or the responsible party’s guarantor is liable to a claimant for interest on the amount paid in satisfaction of a claim under this Act for the period described in subsection (b). The responsible party shall establish a procedure for the payment or settlement of claims for interim, short-term damages. Payment or settlement of a claim for interim, short-term damages representing less than the full amount of damages to which the claimant ultimately may be entitled shall not preclude recovery by the claimant for damages not reflected in the paid or settled partial claim.

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Nesta mesma lei está indicada a responsabilidade da empresa pelos custos de remoção e

limpeza, pelos danos materiais, pelos lucros cessantes, pelas perdas de subsistência por uso de

recursos naturais, dentre outros137.

Quanto ao procedimento adotado, os pedidos de indenização podem ser feitos (via e-mail,

fax, telefone ou pessoalmente) ao programa por meio de dois procedimentos distintos, porém não

excludentes: i. o Emergency Advance Payment, por meio do qual são feitas as reclamações visando

adiantamentos emergenciais da indenização; ii. o Final Payments, pelo qual são feitas as

reclamações de indenização pelo total de danos causados, o que ocorre em um prazo de 3 anos.

Deste último são deduzidas as quantias já adiantadas em caráter emergencial, bem como outros

recursos recebidos em decorrência do acidente, como, por exemplo, seguro desemprego, seguros

privados e outras compensações governamentais. O pagamento final, contudo, somente é feito

mediante a assinatura de um compromisso de desistência de qualquer reclamação contra a British

Petroleum138.

Uma observação interessante quanto ao programa é que a sua condução foi assumida, no

dia 23 de agosto de 2010, por Kenneth Feinberg, o mesmo special master e designer que atuou em

casos de relevância, como no Fundo de Compensação às vítimas do acidente de 11 de setembro de

2001, em que realizou um trabalho pro-bono de 33 meses; e na mediação do conflito entre

veteranos da Guerra do Vietnam e produtores do herbicida “Agente Laranja”, que após 8 anos no

Judiciário resolveu-se em acordo.

Alguns problemas também começam a aparecer, de acordo com notícias e reportagens mais

recentes sobre o caso. Um deles é o enorme número de reclamações sobre a demora para o

pagamento das indenizações emergenciais. De acordo com notícia publicada no NYTimes em 15 de

137 Oil Pollution Act 1990: SEC. 1002. ELEMENTS OF LIABILITY. 138 Claim Filing Instructions, página 2: “If you accept that determination, to receive a Final Payment you will have to sign a release waiving any rights you may have against BP to assert additional claims, to file an individual legal action, or to participate in other legal actions associated with the Spill” (http://www.gulfcoastclaimsfacility.com/Instructions_GCCF_ClaimForm.pdf).

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setembro de 2010139, antes de assumir a administração do programa, Feinberg prometeu às vítimas

do derramamento na costa dos EUA rapidez nas indenizações, que seriam feitas em até 48 horas,

para indivíduos, ou até 7 dias, em se tratando de empresas comerciais. Ao contrário do previsto, o

programa tem levado semanas para processar os pedidos. Isso se dá em função do elevado número

de pedidos e requerimentos – conta-se mais de 50 mil –, sendo que muitos deles apresentam um

déficit de documentação, o que dificulta a rapidez do procedimento. Feinberg, apesar de afirmar à

população que a contratação de advogados seria dispensável para a participação no programa,

admitiu, posteriormente, o papel importante destes no assessoramento das pessoas para entrar com

demandas e requerimentos no programa, principalmente no que tange à apresentação de

documentos probatórios.

Além disso, como mostra outra notícia publicada no NYTimes em 2 de outubro de 2010140,

alguns riscos de fraude e oportunismos contra o programa também têm sido considerados. Feinberg

fala de um pedido de US$ 20 bilhões de uma empresa e de US$ 5 milhões de um atendente de

restaurante, sem qualquer prova do dano. Entre os inúmeros requerimentos, estão pedidos de

restituição de compras em supermercado, pedidos de uma folha só e pedidos sem qualquer

documentação. Existem ainda alguns pedidos que, segundo Feinberg, são considerados suspeitos e

serão investigados e encaminhados para o Departamento de Justiça norte-americano. Sobre os

riscos de fraude em programas de indenização como este, vale notar a existência, desde o desastre

em Louisiana com o furacão Katrina, do Center for Disaster Fraud, criado para apurar possíveis

fraudes.

O programa de indenização da British Petroleum tem passado por medidas de

reestruturação, após sua entrada em funcionamento, sendo repensados certos pontos do programa

original e sendo aceitos pedidos complementares para aqueles que receberam pouco em sua

primeira indenização emergencial141. Ainda, após o termino do prazo para entrar com pedidos de

indenizações emergenciais, o que ocorreu no dia 23 de novembro de 2010, outras mudanças foram

139 ROBERTSON, Campbell; SCHWARTZ, John. Rethinking the Process for BP Spill Claims in The New York Times, 15 de setembro de 2010. 140 SCHWARTZ, John. Claims to BP Fund Attract Scrutiny in The New York Times, 2 de outubro de 2010.

141 ROBERTSON, Campbell; SCHWARTZ, John. Rethinking the Process for BP Spill Claims in The New York Times, 15 de setembro de 2010.

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cogitadas. Feinberg concordou em permitir um processo de recurso das decisões tomadas pelo

programa e, também, possibilitou o ingresso de pedidos para pagamentos trimestrais não

definitivos142.

Com a análise do programa criado pela British Petroleum para lidar com a reparação dos

indivíduos e negócios comerciais atingidos pelo derramamento de petróleo, foi possível visualizar e

acompanhar, comparativamente, a criação e o desenvolvimento de desenhos de solução de

controvérsias para casos que envolvem conflitos de interesse público. O governo federal norte-

americano tem marcado presença no caso e, além de ter colaborado para a indicação de Feinberg

como administrador do programa, elaborou relatório com o intuito de apresentar um plano de longo

prazo para a reparação do meio ambiente do Golfo. Dentre as medidas recomendadas estão a

criação de um Conselho para a recuperação da costa do golfo e a criação de um Fundo que reúna as

multas pagas pela British Petroleum143.

5. CONCLUSÕES E PROPOSIÇÕES

A partir da pesquisa empírica, constatou-se que atualmente há uma série de desincentivos à

resolução extrajudicial de conflitos por parte da Administração Pública (aspectos culturais, legais, o

sistema de cobrança por precatórios, os controles exercidos pelo Tribunal de Contas dos Estados e

da União, dentre outros). O objetivo desta parte propositiva da pesquisa é trazer algumas formas de

se incentivar a implementação de desenho de sistemas de resolução alternativa de disputas (Dispute

System Design - DSD) para conflitos de interesse público.

Além da consideração de casos concretos, a partir de dados obtidos em relação a

precedentes que deram certo (leading cases)144, realizou-se nesta pesquisa a análise de outras

142 Editorial do The New York Times. Mr. Feinberg and the Spill, 25 de novembro de 2010 143 BRODER, John M. Panel Wants BP Fines to Pay for Gulf Restoration. In The New York Times, 27 setembro de 2010. Editorial do The New York Times. A Plan for the Gulf, 28 de setembro de 2010.

144 Como, no Brasil, a criação de câmaras indenizatórias em acidentes aéreos: a Câmara de Indenização Voo 3054, criada em decorrência do acidente aéreo com o Voo Tam 3054; e o Programa de Indenização 447,

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formas de incentivo à solução extrajudicial de conflitos. A parte propositiva tem a função de

apontar alguns pontos fundamentais para que se possa pensar a respeito da implantação de DSD

envolvendo conflitos de interesse público no Brasil. Trata-se de questões necessárias para que o

debate em torno do tema avance.

Nos casos analisados no capítulo 3 deste relatório, há um forte envolvimento da

Administração (principalmente do Município e Estado), ator em face do qual se pretende algum tipo

de prestação ou valor. Nem sempre ficou claro o quanto os aspectos envolvendo o conflito são

passíveis de transação e o quanto os entes estatais são dotados de mecanismos internos de decisão

para dar uma resposta rápida no caso de implantação de um programa extrajudicial de solução de

conflitos.

Esta falta de clareza quanto aos limites do que é possível ser objeto de transação e a forma

de sua satisfação (v.g., precatórios) constituem desincentivos. Trata-se de ponto sensível, pois

qualquer sistema a ser pensado envolvendo DSD para tratar de conflitos de interesse público deve

levar em conta este aspecto essencial. Se o Poder Público age ou responde sem a velocidade que se

espera em um desenho extrajudicial proposto, o próprio programa ou forma alternativa de solução

tem sua serventia questionada ou eficiência comprometida.

Considere-se, por exemplo, o ponto envolvendo a Lei de Improbidade Administrativa e a

Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF. Cada uma, a seu modo, constitui um marco na história

recente da administração pública brasileira. Elas reforçam a necessidade de planejamento,

transparência, controle e responsabilização, para que assim a noção de accountability seja

incorporada ao cotidiano do gestor da coisa pública brasileira. Embora a eficiência da

Administração Pública também seja princípio consagrado constitucionalmente, as entrevistas

realizadas deixaram entrever uma dificuldade dos componentes dos órgãos públicos em adotar

idéias ligadas a formas de resolução de controvérsias que não sejam a sentença judicial. É que a

originado com o acidente do Voo Air France. E, nos EUA, os casos do Fundo de Compensação criado para indenizar os familiares e beneficiários das vítimas do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, o caso British Petroleum (Gulf Coast Claims Facility) e o caso Orange (Agent Orange Settlement).

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adoção de um DSD ou a adesão a uma modalidade de mecanismo alternativo de solução de conflito

significa, para o ente público, assumir certas posições e responsabilidades. Neste aspecto, as leis de

responsabilidade fiscal e de improbidade, a falta de regras claras do que pode ser transacionado e a

ausência de mecanismos ágeis dos órgãos para autorizar decisões funcionam como desincentivos

para a criação de um DSD envolvendo conflitos de interesse público.

As regras e mecanismos de accountability em todas as suas dimensões (vertical, horizontal

e societal) são ingredientes importantes no arranjo de um programa extrajudicial de solução de

conflitos. Sob este aspecto, a via judicial é muito mais segura para o ente público, já que a solução

judicial se sobrepõe (embora não elimine) às várias formas de controle externo – do Ministério

Público, do Tribunal de Contas dos Estados e da União, além das Leis de Responsabilidade Fiscal e

de Improbidade Administrativa. A atuação da Administração no processo judicial, no qual tudo é

burocrático e lento, deixa-a confortável, tendo em vista que os ditames de transparência e controle

estão atendidos, ainda que a solução judicial conspire contra a exigência de eficiência145, seja da

Administração, seja na forma de resolução da controvérsia. Ao mesmo tempo em que se transfere a

questão ao Poder Judiciário, isentando a Administração de maior responsabilidade – pois, afinal, a

decisão caberá ao Poder Judiciário – ganha-se também no quesito tempo – pois a demora do Poder

Judiciário pode ser estrategicamente benéfica aos interesses da Administração, embora nociva aos

interesses da sociedade.

Assim, não basta a previsão de um programa de DSD se os atores envolvidos

desconhecerem seu conceito, funcionamento e finalidade. Da mesma forma, a inexistência de regras

claras de atuação e incentivos para abandonar a forma judicial, visando à adoção de desenho de

sistemas de resolução alternativa de disputas, constituem empecilhos para a adoção de programa

extrajudicial no Brasil para conflitos de interesse público.

Agrega-se a tudo isso a cultura e mentalidade dos envolvidos. A via do DSD necessita

conquistar a confiança dos envolvidos no conflito. Nos casos estudados, boa parte dos temas

145 Valor que norteia a atividade da Administração Pública, como enuncia o artigo 37 da Constituição Federal. É importante destacar que a CF/88 inaugura uma nova ordem jurídica, fundada em princípios tais como o da moralidade, o da eficiência, o da boa-fé, etc.

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relaciona-se com o interesse público, em que o grau de indisponibilidade do bem em jogo é, não

raras vezes, objeto de discussão146. Por essa razão, tão importante quanto prever, seja por meio de

lei, seja pela via de projetos pilotos, a adoção de DSD e mecanismos extrajudiciais de solução de

conflitos, é a criação de incentivos para que haja a sua adoção em casos concretos.

As entrevistas realizadas e até mesmo a seleção dos casos demonstraram uma forte

dependência do Poder Judiciário como órgão decisor e foro para a resolução dos conflitos. Nessa

linha, o Poder Judiciário funciona como arena não propriamente para resolver conflitos, mas para

transferir o problema147. Do lado do jurisdicionado, no entanto, a visão é diferente. O Poder

Judiciário é enaltecido como instância que transmite confiança, mas cuja velocidade e efetividade

para resolver conflitos são vistas como defeito148. Por essa razão, um DSD deve ter a virtude de

congregar a confiança que o Poder Judiciário inspira com uma celeridade e efetividade que ele não

tem. Neste aspecto, o Poder Judiciário poderia desempenhar, em um eventual desenho extrajudicial

de conflitos, um papel certificador e legitimador.

Na experiência norte-americana, alguns atos normativos - The Administrative Dispute

Resolution Act of 1996 (ADRA), The Alternative Dispute Resolution Act of 1998 e The Freedom of

Information Act (FOIA) tratam de temas aqui trazidos. Por meio destes diplomas, o uso de meios

alternativos de solução de controvérsias em procedimentos administrativos e disputas envolvendo a

146 Vale destacar, contudo, que a indisponibilidade do interesse público é um conceito doutrinário/jurisprudencial e não legal, e que deve ser mais um norte para o exercício da função pública do que um óbice a imobilizar o gestor público. 147 Os resultados da pesquisa deixaram clara a centralidade da solução de conflitos no Judiciário, que de certa forma pautou providências do Executivo, designando prioridades na agenda (como se verificou no caso dos autistas), além de exercer o controle judicial de omissão administrativa. 148 Vide os dados do relatório do 3o trimestre de 2010 do Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil), que visa a retratar sistematicamente a confiança da população no Judiciário. Trata-se de uma pesquisa trimestral, realizada em sete regiões metropolitanas brasileiras, que trabalha com dois subíndices: o subíndice de percepção, pelo qual é medida a opinião da população sobre a Justiça e a forma como ela presta o serviço público; e o subíndice de comportamento, através do qual se busca identificar a atitude da população, se ela recorre ao Judiciário para solucionar determinados conflitos ou não. Seguindo tendência já identificada nos trimestres anteriores, houve a má avaliação do Judiciário como prestador de serviços públicos, mas embora o Judiciário seja considerado lento, caro e de difícil utilização, nas perguntas sobre comportamento, a maioria dos entrevistados declarou que “certamente” procuraria o Judiciário para resolver eventuais conflitos. 41% dos entrevistados declaram que já entraram com algum processo ou ação na Justiça (pessoalmente, ou alguém residente em seu domicílio). respostas possíveis para esta pergunta são: (i) não; (ii) dificilmente; (iii) possivelmente; (iv) sim, com certeza. Cf Relatório ICJBrasil, 3o trimestre de 2010, 2a onda, Ano 2. Disponível em <http://www.direitogv.com.br/Default.aspx?PagId=DKHFMLQM&navid=1262. Acesso em 09/12/2010.

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Administração Pública, notadamente as agências, é encorajado e disciplinado. Há, ainda, menção a

determinadas figuras de resolução de controvérsias, como é o caso da arbitragem, assim como a

alusão a árbitros e neutrals. É tratado também o tema da confidencialidade desses players, outro

tema sensível quando se fala de DSD e meios alternativos de solução de conflitos (ADR), ainda

mais quando se trata de conflitos complexos de interesse público.

A definição do DSD também está ligada ao âmbito do conflito. Nos conflitos em que a

questão gira em torno da definição de valores para indenizar, havendo um limite previamente

definido (fundo ou seguro), o foco é na administração destes valores. Tarefa mais ambiciosa é

submeter ao DSD a solução do conflito que significa uma transação mais ampla. No caso de São

Luis do Paraitinga, por exemplo, a discussão não girou apenas em torno de valores de indenização,

mas, antes disso, ao que estaria compreendido na indenização. Da mesma forma, no caso dos

Autistas, a definição das obrigações é um problema em si, já que muitas delas surgem a cada dia,

sem dizer que a forma de sua satisfação não é, na maior parte das vezes, em dinheiro, mas sim em

obrigações que consistem em prestações do Estado, entregando determinado bem, serviço ou

fazendo alguma coisa. Sem dizer, ainda, que há aspectos do conflito que não se circunscrevem ao

valor da indenização material, mas sim a aspectos envolvendo os desgastes emocionais e

psicológicos daquele que pretende algum tipo de reparação moral.

É preciso mencionar ainda que, não raras vezes, o conflito tem um encaminhamento em

função de pressões internas e externas sofridas pelos entes envolvidos que também podem ser um

incentivo para que um programa de DSD seja pensado. Neste aspecto, casos confiados ao Poder

Judiciário podem sofrer pressão em razão da repercussão social e nos meios de comunicação que

provocam um empenho do Poder Judiciário em dar uma resposta (ainda que provisória) mais breve.

Por sua vez, a resposta do Poder Judiciário, a pressão dos meios de comunicação, da opinião

pública e mesmo pressões políticas provocam, no caso da Administração, uma urgência que

influencia a velocidade de suas decisões internas e providências. Esses aspectos, que combinam

elementos de accountability, são também relevantes e tanto podem servir como ingrediente a

fomentar a adoção de DSD como podem funcionar como desincentivo.

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A seguir, algumas proposições, de caráter geral e específico, para que o desenho de

sistemas de resolução alternativa de disputas seja considerado uma alternativa viável e real para

conflitos de interesse público. Estas proposições trazem também novas hipóteses e perguntas sobre

o tema da pesquisa, incidindo principalmente sobre os incentivos necessários para que a

Administração considere o desenho extrajudicial de solução de conflitos como uma alternativa.

5.1. Proposições normativas: regras claras para autorizar os entes públicos a celebrar

acordos e transacionar

A ausência de regras claras sobre o que é possível ser objeto de acordo e transação, com a

aplicação de uma ou mais modalidades de meios alternativos de solução de conflitos, dificulta

enormemente a atuação da Administração nesta área. Saber se determinado ponto é disponível ou

passível de transação, assim como dotá-la de poderes para transação, é premissa fundamental para

qualquer programa de DSD em que a Administração participe. Quando há disposição clara acerca

desta autorização, a atuação do Poder Público ganha em eficiência e objetividade149.

Por essa razão, a definição de competência da Administração para transacionar, com a

definição exata (i) das matérias, (ii) dos valores e limites e (iii) dos agentes competentes ou da

possibilidade de delegação de tal competência, com a adoção de mecanismo interno ágil para

decidir com eficiência, são fatores que cimentam o caminho em direção à adoção de DSD em

conflitos de interesse público no Brasil.

Além de regras de competência, são importantes as regras de procedimento que

estabeleçam diretrizes para a resolução alternativa do conflito, e permitam um maior controle e

transparência das decisões, respeitando o elemento de accountability. Vale notar, entretanto, que

149 Um exemplo disso está no artigo 10, parágrafo único, da Lei 10.259/2001 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal), segundo o qual “Os representantes judiciais da União, autarquias, fundações e empresas públicas federais, bem como os indicados na forma do caput, ficam autorizados a conciliar, transigir ou desistir, nos processos da competência dos Juizados Especiais Federais”. Há também um debate sobre a possibilidade negocial de bens indisponíveis, dispensa de recorribilidade e de execução fiscal (pagamento por precatórios e Requisição de Pequeno Valor) no âmbito da Fazenda Nacional (PGFN), com variadas disposições normativas a respeito.

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essas normas não podem ser rígidas a ponto de asfixiar a atuação administrativa. Nesse sentido, um

olhar detido deve também recair sobre a atual lei que regula o processo administrativo no âmbito da

Administração Pública Federal (Lei 9784/1999).

Outra preocupação que se deve ter em mente no estabelecimento de um permissivo para a

Administração transacionar é a questão da isonomia no tratamento das partes e das demandas. Não

se pode permitir que os agentes ou entes administrativos transacionem sem que qualquer critério de

isonomia seja levado em consideração. Para evitar uma tal desigualdade poderiam existir diretrizes

e balizas determinando critérios de tratamento, além de um arquivo centralizado com a memória

dos precedentes para a consulta dos padrões anteriormente utilizados.

Durante a pesquisa dos casos, ficou evidenciado que as partes envolvidas e os operadores

do direito sentem a necessidade de que haja uma participação, ainda que mínima, da autoridade

estatal para legitimar a atuação de alguém para resolver conflitos. Notou-se um entendimento dos

entrevistados no sentido de que só a autoridade judicial seria capaz de encaminhar soluções para

conflitos, de modo que, no caso de designação de uma pessoa/ente diferente dela, haveria a

necessidade de autorização para essa designação. Do lado dos entes estatais envolvidos (Estado e

Município), essa necessidade veio à tona, assim como das pessoas lesadas nos casos estudados, que

também externaram maior conforto quando se trata de caso em que o Poder Judiciário esteja

presente de alguma forma.

A diversidade de temas, a peculiaridade dos casos, a variação dos entes envolvidos e o

âmbito daquilo que pode ser objeto de um DSD impedem a predefinição ou padronização de um

desenho único (one size does not fit all).

5.2. Criação de Câmaras e foros de solução de controvérsias envolvendo a Administração

As câmaras são instrumentos interessantes para o incentivo de resoluções extrajudiciais de

conflitos já que consistem em foros que são colocados à disposição de potenciais demandantes,

abrindo-se um novo caminho para que se busque a resolução do conflito antes (ou mesmo sem) que

ele chegue ao Judiciário.

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A experiência de determinados foros criados com a finalidade de resolver controvérsias

envolvendo a Administração já é uma realidade no cenário brasileiro, sendo o principal exemplo o

da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF). Criada no seio da

Advocacia-Geral da União – que possui a competência de transacionar nas ações de interesse da

União150 – pelo Ato Regimental nº 5, de 27.09.2007, esta Câmara constitui um esforço para dar

continuidade aos trabalhos de conciliação/mediação que já vinham sendo realizados por câmaras ad

hoc da AGU151.

Nos casos analisados na pesquisa, há a presença do particular e do Estado (Município,

Estado e, em certo sentido, a União), o que aumenta o grau de complexidade na concepção de um

DSD, notadamente em função dos limites e competências dos atores envolvidos.

Os contornos do conflito e os atores envolvidos são elementos que influem na definição das

Câmaras, bem como em saber se elas devem ser de vocação permanente ou provisória, institucional

ou ad hoc (como são as câmaras de indenização voltadas a um acidente específico). Dentre os casos

estudados, no caso envolvendo os autistas a vocação seria para a criação de uma câmara

permanente, tendo em vista que a cada minuto está a nascer um autista que pode pleitear aquilo que

a decisão judicial garante aos autistas do Estado de São Paulo. Já no caso CPTM, a vocação seria de

câmara provisória, pois o conflito envolve os atingidos pelo acidente. Quanto a SLP, tudo

dependeria do que a Câmara se dispusesse a tratar. O seu caráter provisório ou permanente está

ligado ao recorte do conflito a ser solucionado via câmara.

150 A Lei Complementar n. 73, de 10.01.1993 (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União), dispõe em seu artigo 4o que são atribuições do Advogado-Geral da União: VI - desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente;”. Este inciso foi regulamentado pela Lei n. 9469/1997. 151 Vide cartilha da CCAF e seu ementário disponíveis no site http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/download/cartilhas/Cartilha_CCAF_03_02_09.pdf; Acesso em 09.12.2010.

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A divisão entre câmaras ad hoc e institucionais também dependerá do ente envolvido e de

sua disposição em resolver o conflito via DSD. A criação de câmara institucional perante órgão do

Executivo não empenhado em resolver o conflito pode comprometer a sua utilização cotidiana.

5.3. A figura do designer, do observador e do Special Master

O estudo empírico dos três casos selecionados, bem como os casos que serviram de forma

instrumental à pesquisa, suscitaram diversas perguntas sobre a figura do designer de um programa

de resolução extrajudicial de conflitos. Quem deve ser esse designer? Deve ser um grupo de pessoas

ou um único indivíduo? Deve ser indicado pelas partes ou por alguma instituição (Judiciário)? Qual

deve ser o seu perfil? Deve estar mais próximo do conflito – possuir conhecimento técnico sobre a

matéria em questão – ou deve ter conhecimento e domínio sobre as técnicas de solução de

conflitos?

Também chamou atenção a figura do Special Master152, terceiro que pode ser indicado

pelo Judiciário (court-appointed) ou pelas partes e que passou a assumir um papel importante

dentro da técnica de gerenciamento de demandas (case management)153. Apesar de poder cumprir

diversas outras funções, o Special Master atua especialmente na resolução consensual de casos

complexos (Special Settlement Master) – aqueles que envolvem dados técnicos complexos, longas

audiências e negociações, grande número de pessoas e interesses, assumindo muitas vezes para isso

o papel de designer de sistemas de solução de conflitos.

Nos EUA, o advogado Kenneth Feinberg154 atuou como Special Master e designer em

vários casos relevantes, como (i) no Fundo de Compensação às vítimas do acidente de 11 de

setembro de 2001, em que realizou um trabalho pro-bono de 33 meses; (ii) na mediação do conflito

152 Federal Rules of Civil Procedure. Rule 53. Masters. Sobre o Special Master, vide FEINBERG, Kenneth. Creative use of ADR, the court-appointed special settlement master. 59 Alb. L. Rev. 881, 1995-1996 e FARRELL, Margaret G. The Function and Legitimacy of Special Masters. 2 Widener L. Symp. J. 235 1997. 153 MCGOVERN, Francis. Mass Tort Litigation and Insurance Coverage Cases - Five Models for Judicial Case Management. 22 Brief 25 1992-1993 154 Com quem entramos em contato e trocamos emails no curso da pesquisa.

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entre veteranos da Guerra do Vietnã e produtores do herbicida “Agente Laranja” que, após 8 anos

no Judiciário, resolveu-se em acordo; e no caso British Petroleum (Gulf Coast Claims Facility),

relatado nesta pesquisa. Há uma diferença em como assumiu essa posição em cada um destes casos.

No caso “Agente Laranja”, Feinberg foi o Special Master indicado pelo Judiciário para coordenar

uma resolução extrajudicial do conflito. Por sua vez, no caso do Fundo de Compensação às vítimas

do 11 de setembro, o Congresso norte-americano aprovou o Air Transportation Safety and System

Stabilization Act, lei que previu a criação do tal fundo, com a indicação de um Special Master pelo

Attorney General, sendo que suas competências e modo de atuação foram estabelecidas pela própria

lei155. Por fim, no caso BP, Feinberg foi indicado para a condução do fundo devido a um acordo

realizado entre a companhia BP e o governo federal norte-americano. Outra diferença entre os

programas mencionados está no dano em que eles buscam reparar: perdas econômicas, de renda,

lucros e reparação por morte ou dano à integridade física.

Os juízes apontam Special Masters para suprir necessidades que estão fora do seu alcance,

como questões relacionadas a um conhecimento específico, determinada técnica ou assunto. Um

master pode dedicar muito mais tempo a um caso específico e analisar todas as suas facetas e

complexidades. Pode, também, possuir o conhecimento técnico necessário para a compreensão de

certos aspectos do conflito, aliando-o à habilidade na mediação e gestão de conflitos. Vale notar que

o master difere de um perito comum, já que, de acordo com as Federal Rules of Civil Procedure, é

possível lhe atribuir maiores poderes.

O Special Master é normalmente pessoa que conta com a confiança do julgador e das

partes envolvidas, e a preservação da ética é fundamental para o bom desenvolvimento do seu

trabalho. Por essa razão, reuniões antes da indicação do Special Master para resolver a existência de

possíveis conflitos de interesse podem ser úteis. É ainda necessário haver um código de ética

específico para orientar sua conduta.

155 SEC. 404. ADMINISTRATION. (a) IN GENERAL.—The Attorney General, acting through a Special Master appointed by the Attorney General, shall: (1) administer the compensation program established under this title; (2) promulgate all procedural and substantive rules for the administration of this title; and (3) employ and supervise hearing officers and other administrative personnel to perform the duties of the Special Master under this title.

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O Special Master tanto pode emprestar sua técnica para a resolução do conflito, como

também atuar no gerenciamento de recursos, uma vez já fixado o dever de indenizar. Nesta segunda

hipótese, o Special Master é chamado a administrar fundos/recursos finitos156, com a tarefa de fazer

a distribuição entre aqueles que fazem jus a eles, da melhor forma possível (Neutral Fund

Administrator).

Além do Special Master, que muitas vezes se confunde com a figura do designer, já que

podem assumir papéis semelhantes, há também a figura do observador, que foi relevante nos casos

das Câmaras de Indenização dos acidentes aéreos TAM e Air France e que também está prevista no

Projeto de Lei da Ação Civil pública (Projeto de Lei 5139/2009). O projeto prevê, em seu capítulo

XI 157, a possibilidade de criação de um programa extrajudicial de prevenção ou reparação de danos,

permitindo que o demandado ou potencial demandado – caso ainda não haja um processo em

andamento – apresente em juízo uma proposta de programa extrajudicial, unilateralmente ou de

forma consensual, para a homologação judicial. Além da homologação por parte do Judiciário, o

projeto também estabelece como mecanismo de controle a supervisão da execução e implementação

156 Sobre fundos, se falará mais à frente 157 CAPÍTULO XI – DO PROGRAMA EXTRAJUDICIAL DE PREVENÇÃO OU REPARAÇÃO DE DANOS Art. 57. O demandado, a qualquer tempo, poderá apresentar em juízo proposta de prevenção ou reparação de danos a interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, consistente em programa extrajudicial. § 1o. O programa poderá ser proposto no curso de ação coletiva ou ainda que não haja processo em andamento, como forma de resolução consensual de controvérsias. § 2o. O programa objetivará a prestação pecuniária ou a obrigação de fazer, mediante o estabelecimento de procedimentos a serem utilizados no atendimento e satisfação dos interesses e direitos referidos no caput. § 3o. Em se tratando de interesses ou direitos individuais homogêneos, o programa estabelecerá sistema de identificação de seus titulares e, na medida do possível, deverá envolver o maior número de partes interessadas e afetadas pela demanda. § 4o. O procedimento poderá compreender as diversas modalidades de métodos alternativos de resolução de conflitos, para possibilitar a satisfação dos interesses e direitos referidos no caput, garantidos a neutralidade da condução ou supervisão e o sigilo. Art. 58. A proposta poderá ser apresentada unilateralmente ou em conjunto com o legitimado ativo, no caso de processo em curso, ou com qualquer legitimado à ação coletiva, no caso de inexistir processo em andamento. Art. 59. Apresentado o programa, as partes terão o prazo de cento e vinte dias para a negociação, prorrogável por igual período, se houver consentimento de ambas. Art. 60. O acordo que estabelecer o programa deverá necessariamente ser submetido à homologação judicial, após prévia manifestação do Ministério Público. Art. 61. A liquidação e execução do programa homologado judicialmente contarão com a supervisão do juiz, que poderá designar auxiliares técnicos, peritos ou observadores para assisti-lo.

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do programa pelo juiz, que pode indicar para cumprir tal papel auxiliares técnicos, peritos ou

observadores. Dessa forma, da maneira com que se estabelece no referido projeto de lei, o

observador seria um terceiro indicado pelo Judiciário que atuaria na fiscalização da implementação

do programa extrajudicial.

Diferentemente do estabelecido pelo Projeto de Lei, o terceiro indicado pelo juiz, no caso

do Special Master, adota uma postura mais ativa em relação ao desenho do sistema alternativo de

solução de conflitos, não restrita apenas à fiscalização e acompanhamento de sua implantação.

É verdade que se o indicado a prestar a obrigação de pagar ou de fazer não se dispuser a

instaurar o programa, poucas são as chances de ele ser levado à frente. Mas considera-se importante

que a instauração não fique sujeita apenas à iniciativa e aprovação do demandado, podendo-se

considerar neste caso a indicação pelo próprio Judiciário ou mesmo por outros atores, como o

Ministério Público. Trata-se de uma política que faz com que o Poder Judiciário assuma uma

posição de não apenas consentir com programas e soluções extrajudiciais, mas também de

convencer as partes a adotá-los e indicá-los fortemente158. Por outro lado, isso não significa uma

interferência na definição do design, do designer e do meio a ser adotado. Mas apenas uma forma

de indicar o programa como caminho diferente daquele proposto pela sentença judicial.

A definição do encarregado a definir o design deve ser acompanhado da idéia de

participação de todos os envolvidos na construção do desenho e na indicação de eventual mediador,

special master ou outra pessoa que administre alguma outra forma de ADR.

Nos EUA, o custo dos Special Masters é estabelecido pelo juiz e cobrado das partes. Em

geral, o seu custo é repartido entre elas igualmente. Os critérios usados para estabelecer a

158 Neste sentido, vide a Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre a “Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências”, a qual, em seu art. 1º, parágrafo único, dispõe que aos órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão.”

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remuneração dos masters são diversos (principalmente hora trabalhada e preço fechado). Os custos

podem ser altos, mas, muitas vezes, as partes e as cortes entendem que vale a pena, tendo em vista o

custo-benefício e que o acordo, e conseqüente fim do litígio, representam uma economia tanto para

a sociedade, quanto para as partes.

Sempre que indivíduos são apontados para exercer tarefas de julgar ou de resolver conflitos,

indicados ou não pelos tribunais, a questão da imparcialidade aparece de forma central. Com o

Special Master, não é diferente. Existem alguns mecanismos institucionais para garantir a

imparcialidade e eliminar possíveis conflitos de interesse. No entanto, na legislação norte-

americana, não existem critérios legais (na Rule 53 da Federal Rules of Civil Procedure) para a

qualificação do master ou procedimento para sua escolha. Normalmente, é uma sugestão do juiz. O

atributo mais importante é ter a completa confiança do julgador e das partes. Pode ser escolhido por

seu conhecimento técnico, por ter experiência com casos pretéritos, por sua habilidade em

mediação, ou por todos estes fatores.

Nos casos analisados, o assunto designer e Special Master teve lugar quando se indagou a

respeito da pessoa ou órgão mais indicado para funcionar como designer, assim como aquele que

seria mais indicado para fazer a interlocução entre todos os envolvidos.

5.4. Criação de Fundos

A criação de fundos específicos está sujeita à previsão legal, que também trate de sua

destinação. Nesse cenário, a contribuição que os fundos destinados a indenizar determinado conflito

complexo podem dar é precedida da questão acerca dos limites desse fundo. Há fundos cuja verba é

finita e há fundos que podem ser regularmente regados com novos valores. E a tarefa do gestor do

conflito e do fundo será diferente com o primeiro perfil e o segundo. Além disso, as pessoas que

contribuem com o fundo também suscitam o problema da destinação dos valores que o compõem.

Buscamos analisar, como material instrumental à pesquisa, casos importantes em que o

desenho de sistema de disputas foi aplicado na prática no cenário internacional. Um caso muito

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relevante é o Fundo de Compensação para as vítimas do dia 11 de setembro nos Estados Unidos159.

Outro, mais atual e ainda em andamento, é o Gulf Coast Claims Facility, que busca indenizar

indivíduos e empresas prejudicados pelo acidente na plataforma de petróleo da companhia British

Petroleum.

Percebemos, como não poderia deixar de ser, que uma questão essencial para a construção

de tais sistemas de resolução alternativa é a origem dos recursos. Assim, no caso do acidente de 11

de setembro, o Congresso Nacional criou um programa extrajudicial, comandado por um Special

Master, com extrema discricionariedade para compensar as vítimas por meio de recursos públicos

na medida em que fossem necessários. No caso BP, há uma discussão sobre a possibilidade da

criação de um fundo pelo Congresso, para que os recursos recolhidos em forma de multas sejam

empregados na reconstrução do meio ambiente do Golfo.

Elementos presentes de forma diferente nestes dois casos abrem uma porta para a

exploração de desenhos de resolução de disputas nos casos de tragédias e desastres naturais. Há a

possibilidade da criação de fundos, e sobre eles, desenhos de resolução de disputa, para lidar com

certos casos que pedem celeridade no tratamento e no emprego mais eficaz dos recursos destinados.

É possível relacionar estes dois casos ao estudo empírico da pesquisa sobre a enchente na

cidade de São Luiz do Paraitinga. Trata-se de um desastre natural que exigiu a mobilização de

recursos e provocou diversas doações provenientes tanto da sociedade civil quanto de entes da

federação. O que aconteceu, entretanto, é que, apesar da disponibilidade de recursos, assistiu-se à

uma gestão desordenada e falhas no plano de aplicação de recursos, o que deu origem à

judicialização do caso e à busca de maior transparência na gestão dos recursos.

No âmbito legislativo, importante mencionar a recém aprovada Lei no 12.340, de

01.12.2010, que dispõe sobre “o Sistema Nacional de Defesa Civil - SINDEC, sobre as

159 Esse Fundo de Compensação foi criado pelo Congresso americano poucas semanas depois dos atentados, o fundo de compensação foi parte de uma medida legislativa maior que visava proteger a indústria da aviação norte americana. Apesar de à primeira vista o fundo transparecer esse objetivo precipuamente econômico, ele desenvolveu um papel importante como medida comunitária de ajuda e assistência às vítimas diretas do atentado e suas famílias, ajudando-as a reconstruir suas vidas. O regulamento do fundo determinava a distribuição dos recursos cedidos pelo Tesouro americano – justamente por se tratarem de recursos públicos – de uma maneira distinta da tradicional reparação de danos. Reflexo disso foi, na determinação dos benefícios, o papel de destaque dado à necessidade dos beneficiários, e não ao nível de renda que possuíam. Apesar de ter sofrido diversas críticas, seu sucesso foi incontestável: distribuiu US$ 7 bi a mais de 5 mil famílias no período de 2 anos. ACKERMAN, Robert M., The September 11th Victim Compensation Fund: An Effective Administrative Response to a National Tragedy in 10 Harvard Negotiation Law Review, 135 (2005).

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transferências de recursos para ações de socorro, assistência às vítimas, restabelecimento de

serviços essenciais e reconstrução nas áreas atingidas por desastre, e sobre o Fundo

Especial para Calamidades Públicas, e dá outras providências”. Cumpre salientar, no

entanto, que o fundo criado tem a finalidade específica de tratar da “execução de ações de

socorro, assistência às vítimas, restabelecimento de serviços essenciais e reconstrução”

(art. 4o da lei), enquanto o conflito exposto em São Luiz do Paraitinga tem dimensões

maiores, que vão além daquilo que a lei disciplina.

Por essa razão, em conflitos complexos como o de São Luiz do Paraitinga, a questão

dos fundos e de quem paga a conta só podem ser respondidas com a clara definição de qual

conta deverá ser paga e a adequada coordenação entre os entes públicos envolvidos para a

definição de sua eventual parcela de participação no fundo. Saber quais modalidades de

indenização o fundo abrange, bem como a coordenação entre União, Estados e Municípios

são questões a serem enfrentadas na definição de um programa extrajudicial de solução de

conflitos.

O fundo público financeiro é toda reserva de receita para a aplicação determinada em lei e

possui disposição no ordenamento jurídico brasileiro. Sua criação é regulada tanto pela Constituição

Federal como pela lei de direito financeiro que estabelece as diretrizes para a elaboração do

orçamento público, e determinam que o fundo somente pode ser instituído por meio de lei ou

autorização legislativa. Eles não possuem personalidade jurídica e seu controle é feito pelo

Tribunal de Contas do ente federativo que direcionou recursos a ele160.

Dentro desse panorama geral do fundo público, seria interessante a possibilidade de, para

lidar com situações de emergência, que o Poder Executivo pudesse, por meio de um decreto

executivo, determinar a criação de um fundo e um respectivo plano de aplicação de recursos. Aqui

encontramos uma barreira da legislação atual. Para que isso pudesse acontecer, seria necessária uma

lei que permitisse, frente a situações de emergência e calamidade pública, a criação de tais fundos

por decreto.

160 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Fundos Públicos Financeiros. Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 12, n. 56, maio-junho, 2004.

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A partir desse ponto, a discussão se concentra na figura do desenho de solução de disputas.

Como deveria ser determinada sua estrutura e a regulação da gestão dos recursos? Deveria ser feita

pela lei que permitiria a criação dos fundos ou por decreto? Seria útil já possuir elementos mínimos

do desenho na lei, para que fossem mais detalhados pelo decreto, frente à situação real? Quem

deveria ser o responsável pela administração do fundo? Deveria ser um órgão colegiado? Por quem

eles deveriam ser indicados? Qual ente federativo teria o poder de baixar tais decretos?

6. REFERÊNCIAS

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111

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112

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7. ANEXO: CASOS MAPEADOS NA 1A FASE DA PESQUISA

A seguir, uma breve descrição dos casos mapeados na 1a fase da pesquisa, mas não

selecionados para o estudo mais aprofundado de casos, e que podem ser objeto de análise

semelhante à realizada neste relatório, seguindo-se o mesmo percurso metodológico da pesquisa.

A) Indenização de pescadores por dano ambiental 161

Em 29 de setembro de 2003, a empresa Irmãos Biagi S.A. - Açúcar e Álcool, sediada no

município de Serrana-SP, deixou vazar cerca de 150 mil litros de melaço (subproduto da fabricação

de açúcar e matéria-prima na fabricação de álcool combustível) no Rio Pardo.

O acidente, causado pelo rompimento de um tanque de armazenamento do melaço, reduziu

os níveis de oxigênio da água do rio e ocasionou a morte de milhares de peixes em diversos

municípios.

Em Colômbia-SP, cidade situada a 150 kms do município de Serrana, a mortalidade de

peixes foi tamanha que, além de impedir os pescadores da região de trabalharem, bloqueou os canos

de captação de água do município, interrompendo o abastecimento de água por cerca de 30

horas162.

161 O ajuizamento de ações civis públicas em favor de pescadores pela ocorrência de danos ambientais não está restrito ao caso relatado. Por meio de pesquisa exploratória realizada nos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul foi possível identificar outras ações similares. No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul foram encontrados os recursos nº 70019284116, 70019317080 e 70019352186, e no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro foram encontrados os recursos nº 200700204167 e 0115061-04.2000.8.19.0001. 162 http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u83509.shtml

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Independentemente das multas por danos ambientais aplicadas à empresa poluidora pela

Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental – CETESB, as prefeituras dos municípios

paulistas de Colômbia, Colina e Viradouro, o Ministério Púbico da comarca de Barretos-SP, e a

associação de pescadores “Colônia de pescadores Z-20” promoveram, cada um, ação civil pública

com o objetivo de condenar o poluidor a indenizar os pescadores e seus familiares163.

Referidas ações foram todas extintas sem julgamento de mérito por ilegitimidade ativa.

Contra estas decisões, foram interpostas Apelações, que foram providas para reconhecer a

legitimidade do Ministério Público e das Prefeituras Municipais para promover ação civil pública

em benefício de pescadores. Apenas uma das Apelações ainda está pendente de julgamento.

B) Explosão no Osasco Plaza Shopping

Em 11 de junho de 1996, ocorreu uma explosão no Osasco Plaza Shopping, em Osasco,

Estado de São Paulo, ocasionada pelo acúmulo de gás de cozinha em um espaço livre entre o piso e

o solo do recinto. Na ocasião, 42 pessoas morreram, 300 foram feridas e houve a destruição de

cerca de 40 lojas.

Frente a esta tragédia, o Ministério Público ajuizou ação civil pública164 contra o Shopping

e seus administradores (B-Sete Participações S/A, Administradora Osasco Plaza Shopping S/C

Ltda., Gian Paolo Zanotto, Ubirajara Kyrillos e Maria Carla Lunardelli) com a finalidade de

condená-los à reparação dos danos patrimoniais e morais sofridos pelas vítimas do acidente, seus

cônjuges, sucessores e dependentes.

163 Processo nº 1939/2003, em curso perante a 1º Vara Cível da Comarca de Viradouro; Processo nº 2307/2003, em curso perante a 1º Vara Cível da Comarca de Barretos; Processo nº 1282/2007, em curso perante a 1º Vara Cível da Comarca de Barretos; Processo nº 1939/2003, em curso perante a 1º Vara Cível da Comarca de Barretos; Processo nº 1660/2003, em curso perante a 1º Vara Cível da Comarca de Barretos; Processo nº 1576/2003, em curso perante Vara Distrital de Colina; Processo nº 2247/2003, em curso perante a 1º Vara Cível da Comarca de Barretos. 164 Ação Civil Pública nº 1959/96, processada perante a 5º Vara Cível da Comarca de Osasco.

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Reconhecendo haver relação de consumo entre o Shopping e aqueles que o freqüentam, o

juiz de primeira instância julgou a ação procedente, determinando que o Shopping e seus

administradores respondessem objetiva e solidariamente pelos danos causados às vítimas da

explosão.

Contra referida decisão foi interposta Apelação, que foi provida em parte pelo Tribunal

para declarar serem os administradores pessoas físicas responsáveis apenas em caráter subsidiário

pelos danos causados pela explosão165_166.

Novamente inconformados, os réus interpuseram Recurso Especial, que foi indeferido pelo

Superior Tribunal de Justiça, confirmando a condenação do Shopping e de seus administradores167.

Tendo as decisões apenas declarado a existência do direito das vítimas e familiares de

obterem indenização, sem estabelecer o quantum debeatur, aqueles que ainda não haviam

estabelecido acordo com o Shopping ou que não tivessem sua ação individual julgada no mérito

165 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 71.502-4/0, julgada em 24 de junho de 1999. Des. Relator: José Osório. 166 Trechos do acórdão: “(...) 0 fato (que parece haver impressionado o eminente Prof. Leães) de não haver uma remuneração direta ao shopping por parte do freqüentador em nada desnatura a relação de consumo que se estabelece entre eles. Esse tema (da onerosidade de alguns serviços prestados pelos shoppings) já pode ser tido como definitivamente resolvido no direito brasileiro. Mesmo antes da vigência do CDC, fírmou-se jurisprudência no sentido de que as empresas, particularmente as de supermercado e as de shopping center, devem indenizar as vítimas de furto de veículo em seus estacionamentos, haja ou não remuneração pela estadia. Essa orientação consolidou-se na súmula n. 130 do STJ (...)”, “ (...) A proteção do CDC abrange não só os consumidores como também todas as vítimas do evento. Nos precisos termos do art. 17, todas as vítimas estão equiparadas aos consumidores no que diz respeito à responsabilidade pelo fato do serviço (...)”, “(...) Os réus estão sendo demandados em razão de responsabilidade própria. Como titulares do shopping em cujas dependências deu-se a explosão, respondem objetivamente pelos danos, independentemente de apurar-se ou não a responsabilidade de outros agentes que tenham participado da cadeia de causalidade. Contra esses, poderão os réus agir regressivamente, com ampla oportunidade para produzir prova. A produção dessa prova no presente processo é inócua e prejudicial à defesa dos consumidores.(...)”, e “(...)As vítimas são consideradas consumidoras porque convidadas a entrar num ambiente de compras pertencente e administrado pelas rés. Evidente o fornecimento de serviços relativos ao lazer, à diversão, à oportunidade de compras. Nesse ambiente existem vias e praças, que não são dos lojistas nem do Poder Público. São do próprio shopping. Esses serviços deviam ser fornecidos em condições de segurança e não o foram. Essa segurança devia ser prestada pelas rés, indiferente e inócuo - nas relações entre vítimas e réus - procurar terceiros, eventuais causadores, ou co-participantes do evento danoso (...)”. 167 Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 279273 / SP, julgado em 4 de junho de 2002. Min. Relator: Ari Pargendler. Min. Relator para Acórdão: Nancy Andrighi.

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puderam ajuizar ação individual para liquidar e executar o valor devido a título de danos morais e

materiais168.

Concomitantemente ao processamento das ações judiciais, a administração do Shopping

promoveu negociações com as vítimas do acidente, oferecendo-lhes indenizações e tratamentos

médicos, sem, contudo, reconhecer a culpa pelo acidente.

C) Aviação Civil

Em 2006, PROCON, IDEC, ADECON-PE169 e o MDC-MG170 ajuizaram ação civil

pública com pedido de antecipação de tutela171 em face da ANAC e das companhias aéreas BRA,

GOL, Ocean Air, Pantanal, Rio-Sul, TAM, Total Linhas Aéreas e VARIG, objetivando fossem os

réus condenados a prestar assistência material e informativa aos consumidores, bem como a repará-

los pelos danos materiais e morais sofridos em decorrência dos atrasos ou cancelamentos de vôos172.

O pedido de antecipação de tutela foi deferido para determinar à ANAC que elaborasse

resolução sobre o dever das companhias aéreas de prestar assistência informativa e material aos

passageiros pelos atrasos nos vôos173.

168 Exemplo: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 165.304-4/7, julgado em 6 de setembro de 2000. Des. Relator: Julio Vidal. 169 Associação de defesa da cidadania e do consumidor de Pernambuco. 170 Movimento das donas de cassa e consumidores de Minas Gerais. 171 Processo nº 2006.61.00.028224-0. 172 Caso encontrado no site do IDEC: http://www.idec.org.br/aj_proc_lista.asp?tp=AVIACAOCI 173 Trechos do despacho, proferido em 10 de julho de 2007: “Ora, diante da normativa escassa sobre o assunto, tenho que a ANAC deverá normatizar o assunto - assistência de informação e material aos usuários dos vôos em atraso - de modo uniforme, estabelecendo padrões mínimos à assistência material, seguindo as diretrizes das Convenções Internacionais de Aviação em que a República Federativa do Brasil é signatária, sobretudo a Convenção de Chicago de 1944 e a Convenção de Montreal de 1999 e Anexos (www.aerolex.com.br); bem como ao Código Brasileiro de Aeronáutica.” e “Acolho, pois, parte do pedido dos autores e do Ministério Público Federal, forte no artigo 461 do CPC e 11 da LACP, para determinar a ANAC, que elabore em 15 dias, minuta de resolução dispondo sobre assistência material e prevendo sanções para seu descumprimento, bem como abra o processo legal de consulta e audiências públicas previstos nos artigos 27 e 28 da Lei 11.182/05, de modo que em prazo de 90 dias seja editada e fiscalizada a norma pertinente, seguindo as diretrizes das Convenções Internacionais de Aviação e o Código Brasileiro de Aeronáutica, sob as penas da lei”.

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Posteriormente, a OAB se habilitou no processo para integrar o pólo ativo e requereu nova

antecipação de tutela, que foi deferida pelo magistrado, para impor às companhias (i) a prestação de

assistência informativa sobre os vôos para toda a população, e (ii) a prestação de assistência

material aos passageiros pelos atrasos ou cancelamentos de vôos174.

Buscando cumprir o determinado pelo magistrado na decisão que deferiu o primeiro pedido

de antecipação de tutela, a ANAC apresentou, em maio de 2009, minuta de resolução para consulta

e audiência pública. Cerca de um ano depois, a resolução foi publicada, passando a vigorar em

junho de 2010175.

A ação civil pública ainda não foi encerrada, havendo, inclusive, 7 Agravos de instrumento

aguardando julgamento pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região176.

Não obstante as determinações judiciais e a edição da Resolução nº 114 da ANAC, notícias

recentes informam que diversos vôos continuam a atrasar ou a serem cancelados177.

D) Seguro de Saúde178

174 Trecho do despacho, proferido em 13 de janeiro de 2009 “a) que a ANAC fiscalize com rigor o horário dos transportes, e que as empresas aéreas informem a todos os passageiros, de forma clara, adequada e de fácil compreensão, com antecedência mínima de 2 horas a contar do horário previsto para embarque, eventuais problemas que possam retardar ou mesmo impedir a partida do vôo, cominada multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por omissão e, b) nos casos de atraso ou cancelamento, o dever de prestar todo o auxílio aos consumidores, diante da impossibilidade do cumprimento do horário do vôo, independentemente do motivo do atraso ou cancelamento, garantindo adequada alimentação, suporte de comunicação, instalações (hospedagem e transporte) compatíveis, para o descanso dos consumidores e guarda de seus objetos pessoais, sob pena de multa diária, por empresa ré, fixada no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais)”. 175 Resolução nº 114: http://www.anac.gov.br/biblioteca/resolucao/2010/RA2010-0141.pdf 176 Agravos de Instrumento nº: 2009.03.00.008686-2, 2009.03.00.008684-9, 2009.03.00.003123-0, 2009.03.00.002566-6, 2007.03.00.086146-0, 2007.03.00.085606-3 e 2007.03.00.085418-2. Des. Relatora: Consuelo Yoshida. 177 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/776713-falta-de-tripulacao-provocou-atraso-de-voos-da-gol-diz-sindicato.shtml, http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,atrasos-de-voos-voltam-a-crescer-em-todo-o-pais,589848,0.htm e http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/08/03/cidades,i=205791/ATRASO+NOS+VOOS+FEZ+O+NUMERO+DE+RECLAMACOES+CRESCER+50+NO+JUIZADO+ESPECIAL+DO+AEROPORTO+JK.shtml

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O IDEC179 ajuizou, em 2004 e 2005, cinco ações civis públicas com pedido de antecipação

de tutela180 em face de companhias de seguro de saúde (Porto Seguro - Seguro Saúde S/A, Amil -

Assistência Médica Internacional, Golden Cross Assistência Internacional, Plano de Saúde Santa

Cruz, Saúde ABC Planos de Saúde Ltda, OMINT Serviços de Saúde Ltda, Vera Cruz Associação de

Saúde e Sul América Saúde S/A), objetivando fossem declarados ilegais os reajustes de

mensalidades realizados nos contratos de planos de saúde celebrados antes da promulgação da Lei

9.656/98.

Referida Lei, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, criou a

Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e lhe atribuiu a responsabilidade de controlar e

acompanhar os reajustes de mensalidade dos planos de saúde.

Salvo algumas exceções, as regras de reajuste previstas na Lei 9.656/98 não são aplicáveis

aos contratos de seguro de saúde firmados antes de 1999.

Em todas essas ações civis públicas, houve deferimento da liminar requerida, para

determinar (i) que todos os contratos de plano de assistência à saúde firmados antes de janeiro de

1999 tenham a mensalidade reajustada pelo índice de 11,75%, (ii) a suspensão da exigibilidade dos

reajustes com índices superiores, e (iii) no caso de reajuste de mensalidade com índices acima de

11,75%, que a empresa emitisse novos boletos com reajuste realizado com base neste índice

determinado.

178 Caso encontrado no site do IDEC: http://www.idec.org.br/aj_proc_lista.asp?tp=PLANSAUDE 179 Em alguns casos, o IDEC dividiu o pólo ativo da ação com o Ministério Público ou o Procon. 180 Processos nº 2004.073460-9, 2004.075027-2, 2004.077302-7, 2005.070965-8, 2005.072986-9, todos em curso perante varas cíveis do foro central da comarca da capital de São Paulo.

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Ao final do julgamento, todas as ações civis públicas foram julgadas procedentes para

declarar a nulidade das cláusulas de reajuste com índice superior a 11,75%.

Posteriormente, o Ministério Público do Estado de São Paulo celebrou termos de

compromisso com a ANS, homologados judicialmente, nos quais foram estabelecidos outros

índices de reajuste para as mensalidades dos contratos de plano de assistência à saúde firmados

antes de janeiro de 1999.

Com o objetivo de ver declarados nulos os termos de compromisso, de modo a restabelecer

o índice de reajuste das mensalidades em 11,75%, o IDEC ajuizou duas ações civis públicas com

pedido de antecipação de tutela181 e uma ação anulatória com pedido de antecipação de tutela182 em

face da ANS, da União e de seguradoras.

As duas ações civis públicas foram remetidas para o Estado do Rio de Janeiro, uma vez que

nesse Estado já havia ação similar proposta pelo IDEC. Ainda não houve julgamento final nestas

ações.

Por outro lado, a ação anulatória foi julgada improcedente pelo magistrado paulista183, por

entender não haver confronto entre o termo de compromisso e as normas do consumidor, bem como

181 Processos nº 2005.61.00.017855-9 e 2007.61.00.003669-5, em curso perante varas federais da capital do Estado de São Paulo. 182 Processo nº 2007.237706-3, em curso perante varas cíveis do foro central da comarca da capital do Estado de São Paulo. 183 Trecho da sentença, proferida em 03 de fevereiro de 2009: “(...) Ora, a proposta de anulação dessa r. decisão faz pressupor a inépcia da atuação profissional desses destacados membros da Magistratura e do Ministério Público paulista, sugestão essa de todo desarrazoada, dado o zelo que tais profissionais sempre dedicaram às suas respectivas atuações em prol da Justiça. E quanto à atuação da ANS, no que concerne à edição dos índices de reajuste a serem aplicados a contratos como esses aqui em discussão e celebrados pela requerida e por empresas congêneres, não está ela em discussão nestes autos, até porque foi postulado, na exordial da referida ação civil pública (e afinal, acolhido pela r. sentença lá proferida) o respeito aos índices para tanto apontados por aquela autarquia. (...) Também deve ser considerado o fato de que a transação entabulada nos autos da referida ação civil pública e judicialmente homologada, além de disciplinar o modo

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não terem o magistrado e o representante do Ministério Público incidido em erro ao concordarem

com os termos das transações.

E) Sistema Financeiro de Habitação

O Sistema Financeiro da Habitação – SFH, instituído pela Lei 4.380, de 21 de agosto de

1964 com o objetivo facilitar a aquisição de habitação por pessoas de baixa renda, foi responsável

por uma oferta de cerca de seis milhões de financiamentos184.

Ocorre que o sistema também se tornou objeto de embates judiciais, decorrentes, em sua

maioria, da incerteza quanto ao índice de correção monetária aplicável aos contratos de

financiamento para aquisição de imóvel.

Na pesquisa jurisprudencial realizada no site do Tribunal de Justiça de São Paulo foi

possível identificar uma185 ação civil pública186 ajuizada em 1995 pela Associação dos Mutuários do

Sistema Financeiro de Habitação – SFH/CEF de Mogi das Cruzes em face da Companhia de

de execução do julgado, presta-se igualmente a prevenir futuros litígios (conforme, aliás, definição trazida pela norma do Código Civil, artigo 840), que certamente poderiam vir a ocorrer entre a requerida e os consumidores de seus planos de seguro saúde, em virtude da aplicação do que restara decidido naqueles autos. E, exatamente com o escopo de prevenir esses futuros litígios e de disciplinar a forma de aplicação do índice de reajuste indicado pela ANS aos consumidores outrora beneficiados por decisão provisoriamente proferida no âmbito daquele processo é que foi entabulada a referida transação, a qual, tanto o órgão do Ministério Público oficiante, como o magistrado que conduzia o feito, consideraram proveitosas aos interesses desses consumidores, levando à sua concretização e homologação judicial. Constata-se, destarte, não se fazerem presentes os elementos que levariam à anulação do referido julgado, na medida em que não se pode falar em proibição legal à pratica desse ato, pois o digno Promotor de Justiça oficiante tinha plenos poderes para assim proceder, não havendo nos autos mínimos elementos a demonstrar que ele tivesse incidido em erro essencial ao atuar da forma como agiu. Tampouco se pode considerar que esse ato atingiu a esfera de direitos indisponíveis de consumidores da requerida submetidos a seus efeitos, pois tomou por base índice de reajuste fixado pela ANS, da forma, aliás, como proposta na exordial daquele feito e determinada pela r. sentença lá anteriormente proferida, inexistindo unilateralidade, por parte da requerida, quanto à escolha do referido índice e, por conseguinte, tampouco violação às normas do artigo 51 e seus incisos, do Código de Defesa do Consumido.(...).”. 184 Conforme informações do Banco Central. http://www.bcb.gov.br/?SFHHIST 185 Entretanto, se empregadas conjuntamente as palavras-chave “sistema financeiro de habitação” e “ação civil pública” no campo de jurisprudência do site do Tribunal de Justiça de São Paulo, serão encontradas 144 ocorrências. Deste modo, é possível afirmar que o processo relatado não se trata de caso único. 186 Processo nº 361.01.1995.008011-5, em curso perante a 4º Vara Cível de Mogi das Cruzes.

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Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU. Objetiva-se “o

cumprimento da equação inicial prestação/salário (PES/CP), com a desvinculação das variações

da taxa referencial das prestações pagas, bem como indenização em dinheiro pelos danos

verificados nos apartamentos compromissados a venda” 187.

O magistrado de primeira instância extinguiu o processo sem análise do mérito, sob o

fundamento de que a ação civil pública é via inadequada para tutelar direitos individuais

homogêneos.

Contra referida decisão, foi interposta Apelação. O Tribunal houve por bem reformar o

entendimento do magistrado a quo, de modo a determinar o normal seguimento do feito em

primeira instância.

O processo ainda não foi sentenciado, estando em momento de apresentação das alegações

finais pelas partes.

F) Caso Serra do Mar

O Projeto Serra do Mar constitui uma ação integrada do Governo do Estado de São Paulo

para a recuperação ambiental de porções de território da Serra do Mar que foram objeto de

ocupações irregulares ao longo do tempo, e tem como componentes principais: a erradicação das

ocupações de áreas do Parque da Serra do Mar e de áreas em risco geotécnico e ambiental e a

recuperação socioambiental e urbana dos núcleos habitacionais passíveis de consolidação,

associadas à promoção da sustentabilidade socioeconômica da população residente188.

187 Trecho retirado de acórdão: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível n 56.301-4/3, julgada em 12/11/1997. Des. Relator: Souza Lima. 188 Dados e informações disponíveis em http://www.habitacao.sp.gov.br/programas-habitacionais/saneamento-ambiental/recuperacao-socioambiental-da-serra-do-mar-saiba-mais.asp; http://www.iflorestal.sp.gov.br/Plano_de_manejo/PE_SERRA_MAR/index.asp; e

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O Parque Estadual da Serra do Mar é a maior área contínua de Mata Atlântica

preservada no Brasil, contando, aproximadamente, com 315 (trezentos e quinze) mil

hectares. Sua área abarca as divisas dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro,

continuando até o Irari, no sul do estado paulista.

Em razão da ocupação humana desordenada, o meio ambiente sofreu notáveis e

irreversíveis impactos decorrentes de assentamentos habitacionais precários. Objetivando a proteção

e recuperação ambiental dessa expressiva área, foi desenvolvido o Projeto em questão189.

O plano de atuação desenhado para a concretização do projeto prevê as seguintes

intervenções: a) recuperação socioambiental e urbana de núcleos habitacionais, passíveis de

consolidação; b) restauração e conservação das funções ambientais de áreas na Serra do Mar,

atualmente ocupadas irregularmente, com a promoção do re-assentamento das famílias que

ocupam áreas do parque e áreas de risco geotécnico e ambiental; c) promoção da sustentabilidade

socioeconômica da população dos núcleos habitacionais; d) recuperação e manutenção da qualidade

da água que abastece toda a Baixada Santista.

Figuram como potenciais organizadores e condutores do projeto: (i) a Secretaria do Meio

Ambiente; (ii) a Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo; (iii) a Secretaria de Habitação do

Governo do Estado de São Paulo; (iv) a Secretaria de Segurança Pública; (v) a Secretaria do

Saneamento e Energia; (vi) a Secretaria estadual da Economia e Planejamento; (vi) O Poder

Judiciário estadual e a Defesa da Cidadania; (v) a Secretaria do Desenvolvimento e Cultura; (vi) a

Procuradoria Geral do Estado de São Paulo; (vii) a Coordenadoria Estadual de Defesa Civil; (viii)

Prefeitura Municipal de Cubatão.

http://homologa.ambiente.sp.gov.br/serradomar/default.asp, acesso em 04.08.2010. Vale destacar a biodiversidade que integra essa região, conforme informações do último endereço virtual em referência. 189 Dentre os principais fins do Parque Estadual da Serra do Mar, ressalva-se a promoção da proteção e da conservação da biodiversidade, assim como a manutenção da qualidade de vida nos núcleos urbanos localizados no seu entorno. Além disso, o referido parque contribui para o equilíbrio do clima e estabilização das encostas, afastando o risco de deslizamentos de terras e, ainda, desempenha papel fundamental na garantia do suprimento de água em quantidade e qualidade, abastecendo as principais bacias tanto no planalto como no litoral (http://homologa.ambiente.sp.gov.br/serradomar/para_que_serve.asp).

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Há previsão de implementação de dois núcleos pilotos de mediação comunitária em

urbanização e pós-ocupação, com vistas à emancipação e autonomia do grupo social que se

redimensiona.

G) Casos Bacias Hidrográficas Guarapiranga e Tietê Cabeceiras

A análise deste caso teve por objeto o estudo preliminar de pesquisa de campo e projetos

desenvolvidos pelo Instituto Pólis190, que é entidade não governamental voltada ao estudo e

formulação de políticas públicas municipais e estratégias de desenvolvimento local, junto às

organizações da sociedade civil existentes nas sub-bacias do Ribeirão Parelheiros (Guarapiranga) e

do Ribeirão Balainho (Tietê-Cabeceiras), ambas componentes da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê,

que percorre a região metropolitana de São Paulo.

Segundo o relatório de pesquisa de campo desenvolvido pela referida entidade em meados

de 2004191, tais áreas são objeto de disciplina das leis de proteção de mananciais hídricos que

prescrevem as normas de ocupação, assim como prevêem, de modo genérico, a sua conservação, e

um sistema de gerenciamento de recursos hídricos integrado, os sub-comitês da Bacia Hidrográfica

do Alto Tietê192.

Não obstante a proteção ali conferida, tais áreas foram ocupadas desordenadamente por

moradias, que contribuíram para a expansão urbana irregular e degradação ambiental da região,

com o uso inadequado do solo e da água.

190 Com a colaboração de outras entidades. 191 Disponível em: http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/POLIS_Atores%20locais_Rel_Pesq.pdf, acesso em 11.08.2010. 192 Leis 898/75 e 1172/76 modificada pela Lei Estadual Nº 11.216/02, além da Lei Federal do Estatuto da Cidade (Lei nº10.257/01).

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Tendo por base esse cenário, em que conflitam direitos igualmente fundamentais e com

amparo constitucional (direito à moradia e direito ao meio ambiente sadio e sustentável), é que foi

desenvolvido o trabalho ora estudado e tem se buscado a implementação de projetos para a

melhoria das condições de vida e habitabilidade dos bairros e da região. No caso deste projeto, em

particular, com enfoque voltado principalmente para o fortalecimento da comunidade local.

A pesquisa de campo realizada teve por objetivo primeiramente realizar um levantamento

das organizações da sociedade civil, existentes nas bacias do Ribeirão Parelheiros, afluente do

Reservatório Guarapiranga e do Ribeirão Balainho, em Suzano, afluente do Rio Taiaçupeba, que

compõem a Bacia do Tietê-Cabeceiras.

Depreende-se do referido Relatório193 que nortearam o mapeamento do cenário instalado

nas mencionadas localidades indagações como: (i) como se desenham as relações entre os agentes

locais? (ii) como estes vocalizam as estratégias de atuação, ou como se organizam e/ou negociam

com o poder público sobre as questões de água e solo? (iii) como se articulam entre si e com os

outros atores que se apresentam no contexto local – desde sub-prefeitura, Secretarias do Meio

Ambiente, Sabesp, além dos sub-comitês de Bacia Hidrográfica, e como negociam as suas

demandas? Em outras palavras, buscou-se interrogar acerca do potencial de articulação desses

atores para que se transformassem efetivamente em ‘atores sociais’, coletivos – capazes de elaborar

estratégias e de intervir efetivamente no espaço público, e negociar direitos como os estabelecidos

em leis, que incluem os direitos ambientais, a relação com o local e natureza e sua conservação.

Paralelamente, conforme relatado194, manteve-se contato com organizações locais que não

necessariamente participassem diretamente do Sistema Integrado de Gerenciamento dos Recursos

Hídrico do Estado de São Paulo (SIGRH-SP), para: a) a compreensão dos níveis de participação e

conhecimento dos representantes dessas entidades sobre o contexto da política de Recursos Hídricos

Estadual; e, além disso, b) decifrar e delinear como eles agem nesse contexto de área de uso restrito

por fator ambiental e, ao mesmo tempo, periferia distante da Metrópole Paulistana, apropriada pelo

193 http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/POLIS_Atores%20locais_Rel_Pesq.pdf, página 9. 194 Idem.

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mercado imobiliário urbano e utilizada como alternativa de moradia para a população

desempregada ou de baixa renda, que sofre com a falta de políticas públicas habitacionais

adequadas.

Em conclusão, verifica-se que o interesse de tal trabalho foi (i) o de traçar um diagnóstico

de como vivem as pessoas que ocupam as mencionadas áreas; (ii) registrar como se articulam e

negociam as suas demandas, seja com o poder público, seja com a instância de gestão partilhada, os

sub-comitês de bacia; e (iii) como vocalizam as impressões, percepções que têm sobre os conflitos

para o acesso e uso do solo e da água.

A escolha do projeto em questão tem por fundamento central a previsão no seu programa

do uso experimental de uma metodologia para capacitar atores locais sobre os conflitos e

negociação relativas à gestão de água e solo em área de mananciais195, que contribua para estimular

a participação mais informada dessas organizações juntamente com os outros atores relevantes, e

nesse sentido:

1) contribuir para o fortalecimento da ação dos atores locais na capacidade de discussão,

tomada de decisão, negociação dos conflitos e gestão de água e solo em áreas periurbanas de

grandes metrópoles, no caso em tela da Região Metropolitana de São Paulo; e

2) produzir, testar, finalizar e disseminar materiais de treinamento que possam ser usados

por outros pesquisadores, instituições, organizações não governamentais nesses.

H) Caso Gameleira / Tubarão

195http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/V_Barban%20et%20all_Processo%20Teraguas_IBDI.pdf, acesso em 11.08.2010.

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O caso em análise196 envolve terreno adquirido pelo Município de Salvador (BA), mediante

a celebração de contrato de permuta com o Grupo Votorantim, de extensão aproximada de 38.000

m² (trinta e oito mil metros quadrados).

Parte da área do referido terreno foi doada à Associação Comunitária dos Moradores da

Gameleira e Adjacentes para a construção de casas financiadas pelo Governo Federal, através da

implementação do Programa de Crédito Solidário, destinadas a 200 (duzentas) famílias que

recebem de zero a três salários mínimos, autorizado que o pagamento seja efetivado em até 20

(vinte) anos.

Ocorre que, em 15 de setembro de 2006, um dia antes da assinatura dos contratos de

financiamento com a Caixa Econômica Federal, a área destinada ao Programa Crédito Solidário foi

totalmente invadida e ocupada por famílias ligadas à Comunidade do Tubarão. Disso decorreram

várias ações judiciais de reintegração de posse ajuizadas pelos Moradores da Gameleira e

Adjacentes, pela Prefeitura de Salvador e pelo Grupo Votorantim.

Na tentativa de resolver pacífica e extrajudicialmente o conflito, foram promovidas, sob o

comando do Ministério Público Estadual, diversas reuniões e audiências públicas com os

envolvidos. Também participou das tratativas e negociações a Secretaria da Habitação do

Município de Salvador.

Por fim, em abril de 2007, as partes envolvidas chegaram a um acordo e firmaram

compromisso197 através do qual a Associação Comunitária dos Moradores de Gameleira e

Adjacências se comprometeu a ceder à Associação Beneficente em Defesa da Comunidade do

Tubarão 50 (cinqüenta) unidades habitacionais, a serem construídas através do mesmo Programa

Crédito Solidário da Caixa Econômica Federal. Esta última, por sua vez, autorizou o acréscimo de

36 (trinta e seis) unidades ao projeto.

196 Para maiores detalhes, ver: http://www.sedur.ba.gov.br/caso.tubarao.htm, acesso em 11.08.2010. 197 Para a íntegra do Instrumento de Compromisso, vide: http://www.sedur.ba.gov.br/pdf/termo.acordo.tubarao.pdf, acesso em 11.08.2010.

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127

Os beneficiários, de seu lado, se comprometeram não só a efetuar o cadastro necessário à

concessão do crédito e a se enquadrar nos seus requisitos, fornecendo toda a documentação exigida,

mas também se responsabilizaram pela construção das unidades habitacionais em regime de

mutirão.

O Estado e o Município baianos, em contrapartida, comprometeram-se com a

disponibilização de verbas orçamentárias, aquisição de nova gleba e futura ampliação da área

habitacional do dito projeto.

Figuraram como potenciais organizadores e condutores do projeto: (i) Associação

Comunitária dos Moradores de Gameleira e Adjacências; (ii) Associação Beneficente em Defesa da

Comunidade do Tubarão; (iii) Município do Salvador – Secretaria Municipal da Habitação e

Procuradoria Geral do Município; (iv) Ministério Público do Estado – Promotoria de Justiça da

Cidadania; (v) Ministério das Cidades; (vi) Caixa Econômica Federal; (vii) Governo do Estado da

Bahia - Secretaria de Desenvolvimento Urbano; (viii) Defensoria Pública do Estado da Bahia; e (ix)

Procuradoria Geral do Estado.

A escolha deste caso teve por fundamento não só o êxito da solução extrajudicial198

alcançada com o esforço e contribuição de vários atores, dentre os quais se destacam as

comunidades envolvidas e o próprio Poder Público, mas também o comprometimento de todos na

constante e progressiva implementação do acordado.

Outro aspecto que chamou a atenção para o caso em análise foi o fato de ele ter alto grau de

litigiosidade, ter sido efetivamente levado ao Judiciário, e, ao fim, ter sido solucionado fora dele.

198 Não obstante vários tenham sido os recursos ao Judiciário decorrentes desse conflito, a solução a que se chegou, ao final, foi extrajudicial, com a participação de todos os interessados e satisfação dos interesses de todos os envolvidos.

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Vale, ainda, destacar que o Estado da Bahia na Lei nº 11.041/2008199, que institui a Política

e o Sistema Estadual de Habitação de Interesse Social e cria o Fundo Estadual de Habitação de

Interesse Social, dentre outras providências, previu expressamente, em seu artigo 5º, XV200, o uso

de instrumentos como a mediação e a conciliação para a solução de conflitos fundiários, o que, por

si só, já é um incentivo à realização de novas iniciativas como a descrita no caso

Gameleira/Tubarão. Essa normativa segue a linha da Resolução Recomendada nº 87, de 8 de

dezembro de 2009, emitida pelo Conselho das Cidades do Ministério das Cidades201.

199 Regulamentada pelo Decreto nº 11.539 , de 15 de maio de 2009.

200 Art. 5º - Na estruturação, organização e atuação da PEHIS deverão ser observadas as seguintes diretrizes:

(...) XV - adoção de institutos jurídicos e procedimentos voltados para a prevenção, mediação e conciliação nas situações de conflitos fundiários; (...).

201 Disponível em: http://www.cidades.gov.br/conselho-das-cidades/resolucoes-concidades/resolucoes-recomendadas/87%20Resolucao%20Conflitos%20versao%20final.pdf, acesso em 11.08.2010. A título de esclarecimento, resoluções recomendadas são normativas relativas aos atos de outras unidades administrativas das esferas do Poder Público e entidades da sociedade civil.