Sermão Gratulatório a Francisco Xavier

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Sermões de Vieira

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SERMO GRATULATRIO A S. FRANCISCO XAVIER

Pelo nascimento do quarto filo varo, que a devoo da Rainha nossa Senhora confessa dever a seu celestial patrocnio. Quartus frater [1] . I A significao das palavras do tema. Os nmeros, sobrenomes dos reis. O que encerra o nmero ou sobrenome de quarto. O peso do nome de Jesus e de Maria. O nome e sobrenome do Redentor do mundo, e o nome e sobrenome do redentor e restaurador de Portugal, D. Joo, o Quarto. Por que silenciou o autor, no sermo antecedente, o nome de S. Francisco Xavier a cuja poderosssima intercesso atribui a rainha todas as suas felicidades? A intercesso de Bersab na coroao de Salomo. Assunto do sermo: as graas da presente merc, alcanada de Deus por S. Francisco Xavier mais se devem ao mesmo Xavier que a Deus. Estreito mapa para to universal alegria! Pequeno tema para to grande felicidade! Feliz e alegre a monarquia de Portugal, com o novo nascimento do quarto infante; felizes e alegres Suas Majestades, com o novo aumento do quarto filho; felizes e alegres Suas Altezas com a nova companhia do quarto irmo: Quartus frater. - Toda esta significao se encerra nestas poucas palavras. E significa mais alguma outra felicidade e alegria - ou dentro ou fora deste mundo - o mesmo nmero ou sobrenome de quarto? Sim, porque os nmeros so os sobrenomes dos reis. E el-rei D. Joo, o Quarto, de gloriosa e imortal memria, que est no cu, j tinha o nome de D. Joo em um neto, o prncipe nosso senhor, que Deus guarde; e agora, com o novo nascimento do quarto infante, se lhe inteirou vivamente em ambos o nome e sobrenome de D. Joo, o Quarto. No requeria menos monte que dois Atlantes o peso de to grande nome, Do peso do nome de Maria, posto aos ombros da Madalena, disse grave e elegantemente S. Pedro Crislogo: Veniat Maria, venial materni nominis bajula [2] . - E, se passarmos s campanhas de Amalec, acharemos com maior exemplo, no soberano filho desta mesma me, repartido o seu nome e sobrenome entre os dois maiores heris daquela idade, Josu e Moiss. O nome e sobrenome do Redentor do mundo, depois de o remir na cruz, foi Jesus Crucificado. Assim o nomearam os anjos, assim S. Paulo. Estava pois na campanha de Amalec Josu, pelejando na testa do exrcito, e Moiss, no cume do monte, com os braos abertos em forma de cruz orando, e significavam um e outro - como sentem comumente os santos padres - Josu, no seu nome, o nome de Jesus, e Moiss, com os braos em cruz, o sobrenome de Crucificado. E por que no representavam ambas as figuras ou s Josu ou s Moiss? Porque nenhum deles, posto que to grandes heris, era suficiente para sustentar s, seno divididos, o peso de tal nome e tal sobrenome: Quia neuter eorum par erat utrique substituendo cognomini - diz Orgenes. - Quase me no atrevo a aplicar a semelhana, e pass-la do nome e sobrenome do Redentor do mundo ao do redentor e restaurador de Portugal. Mas para um rei, a quem o mesmo Jesus, e na mesma cruz, no duvidou trespassar a sucesso do seu prprio imprio, facilmente me, perdoar a sua benignidade - na semelhana somente - a aplicao e diviso de todo o seu nome. Agora, falando com os leitores do primeiro sermo de ao de graas, pelo mesmo nascimento do prncipe, cuja celebridade neste repito, duvido se me havero perdoado passar nele em perptuo silncio, e no fazer meno alguma do intercessor, ou terceiro, que nos alcanou este quarto. certo que talvez se deve mais o agradecimento diligncia de quem solicita, intercede e alcana as mercs, que liberalidade, posto que soberana, de quem as faz. - Egredimini et videte, filiae Sion, regem Salomonem in diademate que coronavit ilium mater sua (Cnt. 3, 11): Sa s janelas, filhas de Jerusalm, e vede o rei Salomo coroado com o diadema de que o coroou sua me. - Quem coroou a Salomo, no h dvida, como consta do texto sagrado, que foi seu pai Davi, o qual privou da coroa a Adonias, filho seu mais velho, e a deu a Salomo. Pois, se Davi foi o que lhe deu a coroa, por que diz o mesmo Salomo - cujas so estas palavras, no captulo terceiro dos Cnticos - que o coroou no seu pai, seno sua me: In diademate quo coronavit ilium mater sua? - Porque, ainda que Davi foi o que coroou a Salomo, e lhe deu a investidura do reino, as diligncias, os empenhos, e a intercesso de Bersab, sua me, como to valida e amada do mesmo Davi, foi a que lhe impetrou e conseguiu a coroa. E julgou o juzo de Salomo no tal caso, que mais devia a coroa intercesso de sua me que liberalidade de seu pai. Toda esta demonstrao no fere a outrem, seno a mim, pelo total silncio j confessado, com que no sermo de ao de graas pelo felicssimo nascimento do novo e quarto infante, nem uma s palavra falei em S. Francisco Xavier. Em S. Francisco Xavier, tomo a dizer, aquele grande orculo e patrono singular da Rainha, nossa Senhora, a cuja poderosssima intercesso atribui Sua Majestade todas as suas e nossas felicidades, e muito particularmente na sucesso, dantes to suspirada, e agora to multiplicada de prncipes naturais. Pois, se neste - que no quero chamar ltimo, seno quarto prncipe - com prodigiosa fecundidade de todos sucessivamente vares, devemos novas e maiores graas, como no sermo prprio delas, e discorrendo por todas, em nenhuma achei lugar em que pr a Xavier? No foi descuido, ou desateno minha, seno grandeza sua. Uma personagem to grande no cabe em partes. Por isso me resolvi a fazer novo sermo, que fosse todo seu, e este. Mas, segundo a sentena que propus de Salomo, dela se segue uma terrvel conseqncia. Salomo, no seu caso, julgou que mais devia a coroa intercesso de sua me, que lha conseguiu, que liberalidade de seu pai, que lha deu: logo, diremos ns no nosso caso que as graas da presente merc, alcanada de Deus por S. Francisco Xavier, mais se devem ao mesmo Xavier que a Deus? A resposta desta dvida demanda tanto fundo, que me no atrevo a embarcar nela sem pedirprimeiro a graa. Ave Maria. II Os beneficios que se devem a Deus, e nada aos homens, e os benefcios que se devem maior aos homens que a Deus. A quem devia mais o povo de Israel a sua conservao: a Deus ou a Moiss? Por que a graa do nascimento do novo prncipe, no s se deve mais a Xavier que a Deus, seno s a Xavier O milagre do paraltico. O notvel recado de el-rei Ezequias ao profeta Isaas. Que diferena h de meu Deus a Deus meu? Razes por que o que Deus concedeu ao grande Jos no o podia negar ao maior jesuta. H benefcios de Deus em que todas as graas se devem a Deus, e nada aos homens. E h benefcios, tambm divinos, em que parece que as graas mais se devem aos homens que a Deus, Vamos por partes. Os benefcios do primeiro gnero so aqueles que Deus faz por amor de si mesmo, como refere por boca de Isaas: Propter me, propter me faciam [3] . - E ento faz Deus estes benefcios por amor de si mesmo, diz S. Dionsio Areopagita, quando ele o autor, e ele o motivo, sem haver outrem fora de si que o mova ou provoque a isso: Quando ipse sui ipsius et sibi ipsi provocator et motor est. - Tal foi o benefcio da criao do mundo, antes do qual no havia homem nem anjo que lhe pudesse pedir ou mover a que o criasse. Assim que todas as graas devidas a Deus por to grande e universal benefcio, so pura e meramente suas, sem haver nem poder haver quem tivesse parte nelas. Os benefcios do segundo gnero so aqueles que Deus faz por intercesso e rogos de outrem, principalmente quando o mesmo Deus est deliberado, e empenhada sua providncia ou justia a fazer e executar o contrrio. Pelo pecado da adorao do bezerro no deserto, provocado Deus da rebelio e idolatria daquele ingrato povo, to poucos dias depois de o ter libertado do cativeiro do Egito com tantos prodgios, deliberou a sua justia, a sua ira e o seu furor, como diz o texto, de o extinguir totalmente e sepultar no mesmo deserto. Enfim lhe perdoou Deus pelas oraes e instncias de Moiss; e dependeu tanto destas oraes e da fora delas a conservao do povo, diz Davi, que, tendo Deus j aberta a brecha nas muralhas, para assolao de todos, se a fortssima resistncia de Moiss se no opusera na mesma brecha defensa, sem dvida seria todo assolado e destrudo: Et dixit ut disperderet eos, si non Moyses, electus ejus, stetisset in confractione in conspectu ejus [4] . - E no preciso destas circunstncias, parece que as graas desta absolvio mais se devem aos fortssimos embargos do advogado, que sentena revogada do juiz, to justa e to justificada na causa, que, se no fora por eles, sem dvida e sem remdio se havia de executar: Si non Moyses stetisset in confractione. - Note-se muito aquele si non. De maneira que, se Moiss no resistisse to fortemente a Deus, sem dvida havia Deus de destruir o povo. Logo, as graas de tamanho benefcio mais se devem resistncia de Moiss que desistncia de Deus. A conseqncia no menos que de Aristteles: Propter quod unumquodque tale, et illud magis. - Quem foi aquele, por amor de quem perdoou Deus ao povo? Moiss. Moiss foi o propter quod, logo a ele lhe pertence o mais: et illud magis. J nesta conseqncia forosa, e no forada, segundo a estimao humana, ningum estranhar dizer-se que as presentes graas-como se inferia-sejam mais devidas a Xavier que a Deus. Mas eu no me contento com esta resposta. E, restituindo a questo ao mesmo caso e nascimento do quarto irmo, novamente acrescentado aos nossos prncipes, merc que a devoo da Rainha, nossa senhora, e o aplauso de todo o reino reconhece recebida do poderoso patrocnio do santo, por antonomsia seu, no duvido afirmar constantemente que as graas deste to repetido favor, no s se devem a Xavier mais que a Deus, seno todas a Xavier. E por qu? Porque, dando todas as graas a Xavier, damos a Csar o que de Csar, e no negamos nem tiramos a Deus o que de Deus. E se no, vamos ao caso, e vejamos com que entrou nele Deus, e com que entrou Xavier. Deus entrou com dar os poderes a Xavier; Xavier entrou com aplicar a virtude dos mesmos poderes a nosso favor e benefcio. Logo, a Deus, que glorificado em seus santos: Gloriosus Deus in sanctis suis - no se lhe nega nem se lhe tira nada do que lhe pertence, que toda a glria da liberalidade e magnificncia com que deu ao seu santo os seus poderes. Prova? Sim, e em um dos maiores milagres de Cristo, Redentor nosso. Estava o Senhor no concurso de uma provncia inteira, dentro em uma casa particular, e, no podendo romper pela multido, nem entrar pela porta quatro homens que levavam um paraltico no seu leito, subiram por cima dos telhados, e, feita uma abertura capaz, por ela e por cordas desceram e puseram diante do divino Mdico o enfermo, ou quase morto, sem sentido nem movimento, e o Senhor com duas palavras lhe restituiu a vida, a sade, e as foras, to inteiramente, que por seu p, o que tinha vindo em oito, e com o mesmo leito s costas, foi admirao e pasmo aos que o viram, que eram todos. Mas esses, assim admirados e pasmados, que disseram ou fizeram? Glorificaverunt Deum, qui dedit potestatem talem hominibus (Mt. 9, 8): Glorificaram a Deus por haver dado tal poder aos homens. - De sorte que glorificaram e deram a Deus a glria, no da obra e benefcio milagroso, seno de ter dado os poderes ao homem que a fez, tendo a Cristo por puro homem, como a palavra hominibus significa. Assim que tudo o que pertencia a Deus, era a glria de ter dado os seus poderes, e tais poderes: Qui dedit potestatem talem hominibus. - E por que no deram tambm as graas a Deus? Porque essas pertenciam ao homem obrador do milagre e benefcio, assim como ns as devemos dar todas a Xavier. 602.O nascer, como disse Salomo de si, igual nos prncipes, e nos que o no so; e o nascimento no s milagre, seno milagre semelhante ao que acabamos de referir, porque, ainda que tiveram parte nele os homens, no o puderam conseguir seno das telhas acima. No nascimento, pois, do nosso prncipe, em que pleiteamos as graas entre Xavier e Deus, bastava a distino de Deus ao homem, dos poderes obra, e das graas glria, para que, dando toda a glria a Deus, e todas as graas a Xavier, Xavier pacificamente, e sem questo, ficasse logrando a preeminncia deste grande e novo direito. Mas no este ainda o fundo da resposta, a que eu disse no princpio me temia arriscar. Qual , pois, ou pode ser, sobre toda a novidade do que est dito? que no s obrou Xavier na merc que nos fez, com os poderes de Deus como de Deus, seno com os poderes e com o mesmo Deus, tudo como seu, e por isso com maior e absoluto direito a todas as graas. Vamos Escritura, e abramos nela um novo e grande reparo. Sitiado em Jerusalm el-rei Ezequias por um exrcito dos assrios poderosssimo, recebeu uma embaixada do rei, que era Senaqueribe, na qual lhe persuadia ou mandava que se entregasse, oferecendo condies, no s indecentes majestade real, mas blasfemas contra a divina. E como o estado ou aperto da cidade era alheio de toda a esperana de a poder defender, mandou Ezequias as mesmas condies por escrito ao profeta Isaas, com um recado, no qual lhe rogava muito orasse por ele ao Deus seu: Si quo modo audiat Dominus Deus tuus [5] . - Esta palavra Deus tuus: Deus vosso - a qual duas vezes se repete no mesmo recado, muito enftica, porque Ezequias no era gentio, seno fiel e muito pio, e adorava o mesmo Deus verdadeiro de Isaas, a quem tambm ficava fazendo oraes. Pois, se o Deus do profeta e o Deus do rei era o mesmo, por que no diz Ezequias orai a Deus, ou orai ao nosso Deus, seno ao Deus vosso: Deus tuus? - Porque Deus, ainda que o mesmo, por muito diferente modo era Deus do profeta que Deus do rei. Do rei era seu Deus, do profeta era Deus seu. E que diferena h de Deus seu a seu Deus? Muito grande. Santo Agostinho dizia: O Deus! utinam possem dicere meus! Deus! e que ditoso seria eu, se ao nome de Deus pudesse acrescentar o possessivo meus! - Meu Deus quer dizer que Deus me possui a mim; Deus meu quer dizer que eu o possuo a ele, Meu Deus quer dizer que Deus me tem sujeito a seu mandar; Deus meu quer dizer que eu o tenho sujeito a meu querer. Quem isto pode dizer, verdadeiramente possui to inteiramente a Deus, que pode usar dele como de coisa sua. Por isso o rei chamou ao Deus de Isaas Deus seu: Deus tuus - e por isso Isaas - em admirvel prova de Deus ser seu - sem fazer orao a Deus, respondeu de repente aos embaixadores do rei que seria vencedor, e o modo com que o seria: Venerunt servi regis ad Isaiam, et dixit ad eos Isaas [6] . - Entre a embaixada do rei e a resposta do profeta no houve meio, como que ele usasse da vontade e da onipotncia de Deus, sem a consultar, como sua. Deus Deus de todos os homens; mas nem todos os homens so os seus, seno aqueles que muito intimamente ama e estima. Tais eram os apstolos, dos quais disse o evangelista: Cum dilexisset suos [7] . - Do mesmo modo todos os homens so de Deus, mas Deus no seu de todos, seno daqueles que, subidos ao supremo grau do amor e da unio so j possuidores nesta vida do mesmo Deus. Tal era Xavier, como ele mesmo confessava nos seus colquios com Deus. Quid mihi est in caelo, et a te quid volui super terram (SI. 72, 25)? Porventura, Deus meu, ou na terra ou no cu, quero eu ou tenho outra coisa seno a vs? Pars mea - id est, possessio mea - Deus, in aeternum (ibid. 26): Todos os meus bens sois vs, nem possuo, ou tenho de meu outra coisa. - Por esta alienao de tudo o mais possua e dominava Xavier a Deus, e a tudo o que de Deus, como sujeito a ele, e propriamente seu. Por isso mandava os mares e os ventos; por isso ressuscitava os mortos; por isso lhe eram presentes os futuros; por isso parava o sol e os orbes celestes. E ningum me estranhe a palavra dominava, porque, depois que Deus permitiu pena dos seuscronistas que dissessem dele: Obediente Domino voci hominis [8] - o que Deus concedeu ao grande Josu, no o podia negar ao maior jesuta. E porque Xavier, em todas as mercs maravilhosas que de sua mo recebe o mundo, no s obrava como intercessor, seno como Senhor, ou certamente possuidor de tudo o que de Deus, e do mesmo Deus mais seu que tudo, no h dvida que na glorificao da merc presente, deixada a Deus toda a glria, a ele se devam todas as graas. III Quo devidas so a Francisco Xavier todas as graas pelo nascimento do novo infante. As dificuldades do quarto filho. Os termos ou intervalos da providncia divina na gerao dos filhos. A esterilidade natural que aos terceiros partos se segue, confirmada no cu e nos elementos. A SSma. Trindade, e a razo fundamental do limite posto por Deus fecundidade do nmero ou parto terceiro. Os trabalhos e perigos de Jafet, terceiro filho de No, e os sofrimentos da rainha de Portugal depois do terceiro parto. A tempestade do lago de Genezar entre a terceira e quarta vigia. J sabemos como devemos gratificar a S. Francisco Xavier a merc presente. Mas, para que saibamos quo devidas lhe so todas as graas pelo nascimento do novo infante, necessrio que comecemos - o que porventura se no considera - desde o nascimento do terceiro at chegar ao quarto: Quartus frater. Segundo os termos ou intervalos da providncia divina, coisa notvel, e notada na Histria Sagrada, ou pararem os partos no terceiro filho, ou degenerarem depois deles as geraes, ou ser muito dificultosa a passagem para chegar ao quarto. Naquela Arca, em que Deus, afogado no dilvio o mundo, guardou para a conservao e continuao dele a propagao do gnero humano, no houve mais que trs filhos, Sem, Cam, e Jafet. Na fecundidade de Ana, com quem Deus se mostrou to liberal, posto que milagrosa, que diz o texto sagrado? Visitavit Dominus Annam, et concepit tres filios et duas filias (1 Rs. 2, 21): Visitou Deus a Ana, e concebeu e pariu trs filhos e duas filhas. - De maneira que os filhos vares foram somente trs; e o sexo masculino, que ela tinha pedido: Si dederis servae tuae sexum virilem [9] - logo parou no terceiro parto, e degenerou ao feminino. E, posto que a providncia divina vigia sobre os reinos e reis com maior cuidado: Sunt maxima curae regna Deo - no deixa de se observar neles esta mesma regra. De Judas, aquele primeiro rei em que se continuou a srie dos que precederam a Davi, e depois dele at Cristo, diz o texto sagrado que lhe nasceram de sua mulher trs filhos, e nota que, nascido o terceiro, parou nela a fecundidade, e no passou ao quarto: Tertium quoque peperit, quo nato, parere ultra cessavit [10] . - At nos mesmos elementos, sendo eles quatro, deixou Deus como estabelecida a mesma lei. O primeiro, que a terra, fecundo em todos os gneros das vidas, tambm trs: vegetativa, sensitiva e racional; o segundo, que a gua, fecundo nos peixes; o terceiro, que o ar, fecundo nas aves; mas o quarto, que o fogo, totalmente estril e infecundo. S com o cu parece que dispensou o Criador, aparecendo no quarto dia da criao, e no cu tambm quarto, o sol fonte da luz, de quem a recebem os outros astros para o governo universal do mundo e dos tempos. Mas to fora esteve de ser isto dispensao daquela lei, ou exceo daquela regra, que antes foi a maior confirmao dela. Por qu? Porque, precedendo no terceiro dia a maior de todas as fecundidades, que a das plantas, tudo o que no seguinte apareceu no cu no foi produzido por ele, ou parto seu, seno uns fragmentos ou pedaos da luz criada no primeiro dia, os quais foram postos no cu, no como filhos prprios e naturais, seno alheios e peregrinos; e por isso no disse Deus ao cu germinet, ou producat. O que diz o texto : Posuit in firmamento caeli (Gn. 1, 17): que ps no firmamento do cu o que estava j produzido. Com que no mesmo firmamento ficou perpetuada a esterilidade natural que aos terceiros partos se segue, nem com o cu dispensada. E, se quisermos inquirir curiosamente a razo fundamental deste limite posto por Deus fecundidade do nmero, ou parto terceiro, posto que no sempre observado, seno em casos maiores, acharemos que a causa mais conatural de to notvel providncia no est menos radicada que na essncia do supremo exemplar e eficiente de todas as coisas criadas, Deus enquanto trino. Diz Aristteles, e com ele Santo Toms, que o modo de obrar segue naturalmente o modo de ser. E qual o modo de ser da virtude divina em si mesma, ou, como falam os telogos, ad intra? A primeira pessoa, que o Padre, fecunda, e gera o Filho; a segunda, que o Filho, tambm fecunda, e, juntamente com o Padre, produz o Esprito Santo; mas no Esprito Santo, que a terceira, pra e cessa de tal sorte a divina fecundidade, posto que infinita e imensa, que no pode gerar nem produzir outra que seja a quarta. Daqui se infere que, se a providncia e onipotncia divina, obrando fora de si, e ad extra, conservasse no modo de obrar a proporo do modo de ser, toda a natureza criada ficaria totalmente estril no parto terceiro, sem jamais passar ao quarto; mas como propagao do mundo era necessria esta passagem, para que nela desse a necessidade alguma satisfao natureza, ou lhe pagasse algum tributo, talvez entre um e outro extremo, no s estende a mesma providncia os intervalos do tempo, mas os carrega de tais trabalhos e perigos, que s por merc de Deus quase milagrosa se pode escapar do meio deles, e, depois de terceiro parto, chegar ao quarto. Dos trs filhos de No, que dissemos, o terceiro era Jafet, de que ns descendemos. E como Deus os tinha guardados na Arca, e debaixo de chave, para a propagao do gnero humano, seguro estava nos segredos da sua providncia que, sendo ele o terceiro filho, lhe havia de suceder o quarto e os demais. Mas de que modo, e quando? Por meio dos trabalhos, perigos e horrores do dilvio, depois de flutuar muitos meses metido vivo, e como morto, naquele atade escuro, batido por todas as partes das montanhas das ondas, sem leme, sem farol, sem piloto, at que, por merc do cu, chegou a salvamento, e tomou porto em terra. E quem, vista deste espelho, se no lembra ainda agora com horror do que padeceu a sade da rainha, nossa senhora, quase naufragaste no largo intervalo do terceiro ao quarto parto, na nova qualidade do mal, no rigor e freqncia dos sintomas, no descaimento das foras, no lento e habituado do calor, de cuja espcie s se duvidava, e, sobretudo, na desconfiana sempre mal declarada dos mdicos, aonde o perigo ameaa s supremas cabeas? O amor, depois da perda, v-se na dor, antes dela no receio. E tal era a tristeza e desconsolao de todo o reino no receio daquela adorada e arriscada vida, em cuja respirao se sustentava a de todos. Do reino passavam estes lastimosos ecos s mais remotas partes da monarquia, onde muito antes tinha levado ou trazido a fama a das virtudes pessoais, reais e hericas, com que todos estes vassalos se gloriavam de o ser de to soberana senhora. E assim como na tempestade da Arca se aguardavam com suspenso as novas que traria o corvo ou a pomba, assim, suspensos ns entre temor e esperana, em aparecendo ao longe navio de Portugal, subidos s torres mais altas, com os instrumentos que acrescentam a vista, palpitando entretanto os coraes, vigivamos se trazia bandeira, e de que cor: o temor receando que fosse da cor do corvo, para se cobrir de luto e de tristeza; e a esperana, confiando em Deus que fosse a de pomba, com o raminho verde da oliveira, para se vestir de gala e alegria. Mas, passando da tempestade da Arca da barquinha dos apstolos na tormenta do lago de Genezar, tambm aqui, para maior propriedade, era a passagem entre os dois ltimos quartos nuticos e militares, por outro nome vigias, isto , entre o terceiro e o quarto: circa quartam vigiliam [11] - diz S. Marcos. - Estavam pois os apstolos no sumo da aflio, como aqueles a quem mais doa o trabalho e o perigo; e porque a tempestade, por ser da sua mais particularmente Senhora, era tambm cordialmente mais sua. Oravam instantemente ao cu, mas cuidavam que Deus os no ouvia, e que passava de largo: Volebat praeterire eos [12] . - E, sendo que nesta ocasio at o maior de todos os apstolos duvidou e foi repreendido de pouca f: Modicae lidei, quare dubitasti [13] ? - s a f, que sua majestade tinha no seu santo nunca vacilou, e sempre esteve constante. verdade que tambm ele por algum tempo parece que se ausentou e escondeu; mas, enfim, a perseverana da mesma f o descobriu e achou to propcio, como se alegre e risonho lhe respondera com aquelas palavras divinas, e por isso suas: Qui me invenerit inveniet vitam, et hauriet salutem [14] . - Duas coisas lhe trouxe o seu santo, quando, enferma, s parece que necessitava de uma, que era a sade; mas na sade que lhe trouxe para si, lhe trouxe tambm a vida para o novo filho. A sade fcil, como bebida: hauriet salutem - e a vida difcil, como achada: inveniet vitam - e to difcil, como at agora ponderamos, havendo de ser esse filho o quarto: Quartus frater. IV Os trs privilgios do casamento do infante. O parto de Deus, segundo as palavras de Isaas. Diferenas entre parir e parturir A certeza de um filho varo. O prodigioso nascimento no dia quinze de maro. Que dizer do nascimento de um menino, assistido no s com a mo do Senhor, seno com o mesmo Senhor duas vezes todo? Assim o provou o sucesso, em cujas circunstncias mostrou bem Xavier que ele era o que obrava, mas com os poderes, no s de Deus, mas do Deus seu. E comeando pela do felicssimo parto, foi coisa notvel que primeiro se soube publicamente que era nascido o novo prncipe, do que precedesse notcia alguma de que estava para nascer, e se oferecessem a Deus as oraes to necessrias naquela hora, sinal manifesto de entrar ali o concurso dos poderes divinos. Conta ou revela Isaas, como quem nos segredos de Deus o maior profeta dos maiores, que, falando uma vez o mesmo Deus consigo, disse desta maneira: Numquid ego, qui alios parere fatio, ipse non pariam (Is. 66, 9)? Basta que, sendo eu o autor da fecundidade, e que fao sair luz todos os que nascem, no terei tambm um parto que seja propriamente meu? - Ora, no h de ser assim. Primeira, ou ultimamente, o nascido do meu parto ser um filho varo, e o parto to apressado, to fcil e to feliz, que se diga dele: Antes de parturir pariu: Ante quam parturiret, peperit; ante quam veniret partus ejus, peperit masculum (ibid. 7). - A nossa lngua no tem palavra que responda ao parturir, e em dia to festivo permita-se-me ludere in verbis [15] - e dizer que parturir rir no parto. Tal o parto da aurora, me do sol, o qual nasce alegrando o mundo, e ela o pare rindo. E tal foi o do nosso belo infante ao rir, no s de uma, mas de duas auroras, uma no cu, outra na terra, se no quisermos acrescentar a terceira do Oriente, festejando as maravilhas do seu apstolo. No podia ele obrar seno como Deus, pois exercitava os seus poderes. S o mundo mistura o riso com dor: Risus dolore miscebitur [16] . - As mercs de Deus so puras, e alheias de toda a tristeza, e mais em casos to alegres como o de nascer. Nasceu Eva de Ado, e por tal modo, que parecia inevitvel a dor, havendo ele de sofrer que se lhe arrancasse uma costa do lado. Mas, como a mo de Deus era a que obrava aquele parto - que assim lhe chama Santo Agostinho - foi com tal tento e recato, que primeiro adormeceu a Ado com um sono to profundo, que nem por sonhos pudesse sentir dor: Immisit soporem in Adam: tulit unam de costis ejus [17] . Assim obra Deus parecendo-se consigo, e assim Xavier parecendo-se com Deus: Deus no parto, que chamamos seu, evitando totalmente a dor; e Xavier no que tambm atribumos a seus poderes, tirando-lhe o tempo das dores. Houve em um e outro parto dois privilgios notveis. O primeiro, na dispensao de uma lei; o segundo, na moderao e reparo de outra. Na sentena da primeira mulher condenou-a Deus a ela e a todas a duas penas: uma, que parissem os filhos com dor: In dobre parles filios [18] - outra, que estivessem sujeitas ao varo: Et sub viri potestate eris [19] . - E como dispensou Deus a primeira, e moderou e reparou a segunda? A primeira dispensou-a, fazendo que o parto, que chamou seu, fosse sem dor: Antequam parturiret, peperit [20] . - A segunda moderou-a e reparou-a, fazendo que o filho fosse varo: Peperit masculum [21] - porque no tal caso j o varo fica sujeito e debaixo do poder da mulher, tendo obrigao de a obedecer e reverenciar como me. Alm destes dois privilgios, houve no nascimento do nosso infante outro terceiro. E foi que as mes antes do parto no sabem se h de ser filho ou filha, e a rainha, nossa Senhora, por instinto ou inspirao do seu santo, soube certamente que havia de ser varo: masculum. - Assim consta que o declarou Sua Majestade serenssima rainha da Gr-Bretanha, afirmando que lhe havia de dar afilhado, e no afilhada. E para mim no foi menor prova desta mesma prescincia o voto ou devoto propsito, com que Sua Majestade determinou, que tanto que o que trazia em suas entranhas se pudesse pr em p, o havia de vestir do hbito de S. Francisco Xavier. E daqui se infere que supunha a rainha, nossa Senhora, que havia de ser filho, e no filha? Sim. Porque, se o hbito houvesse de ser de Santo Agostinho, S. Bernardo, S. Domingos, ou S. Francisco, bem o podia vestir filha, como o vestem as filhas destes santos patriarcas; mas havendo de ser de Xavier e da Companhia, no o podia vestir, seno sendo filho: Peperit masculum. A outra circunstncia deste prodigioso nascimento foi ser no dia de quinze de maro, e na madrugada dele. Este dia, como consta do captulo vinte e trs do Levtico, era o da mais solene festa, assim pela memria e agradecimento da liberdade particular do cativeiro do Egito, como pela significao da universal e futura do cativeiro do gnero humano e redeno do mundo. As palavras do Levtico so: Mense primo, quarta decima die mensis ad vesperum. Phase Domini est: et quintadecima die mensis hujus, solemnitas azymorum Domini est [22] . - O primeiro ms, que se chamava Nis, responde ao nosso maro, e os dias naturais naquele tempo comeavam ao pr-do-sol no princpio da noite, e acabavam ao pr-do-sol outra vez no fim do dia, como Deus os tinha institudo no primeiro dia da criao: Factum est vespere et mane, dies unus [23] . - Daqui se segue que o nosso infante, nascendo pela madrugada, nasceu quase ao meio-dia daquele dia. E, segundo as duas figuras do cordeiro pascal e po asmo, saiu luz deste mundo entre os dois maiores prodgios e mistrios da divindade humanada, que foram a instituio do Santssimo Sacramento, e a morte de Cristo na cruz. Porque o primeiro foi institudo segunda hora da noite, que foi a da ceia; e o segundo sucedeu, conforme o nosso contar, s trs da tarde do dia, que foi a da morte, Computando agora estas horas que passaram no intervalo de um mistrio a outro, consta pontualmente que foram dezenove: as nove antecedentes ao nascimento do infante, e as dez seguintes a ele, Mas com que propriedade no mesmo cmputo? Verdadeiramente admirvel. Como se no nmero das mesmas horas nos dissera S. Francisco Xavier, e nos apontara com o dedo, nas nove, os nove dias da sua novena, e na dcima, os dez dias das suas sextas-feiras; e em ambos a hora de cada um deles, em que Sua Majestade, com to constante e confiada devoo e f - inda contra o parecer dos mdicos, nas mesmas vsperas do parto - mereceu ao seu santo o felicssimo nascimento de to estimada prenda. Que figura nos parece agora que far neste mundo um prncipe, que entra nele acompanhado de um e outro lado daquelas mesmas insgnias, com que no mesmo ms e no mesmo dia se representou o mesmo Cristo ao mundo antes de vir a ele, nos dois maiores trofus da sua onipotncia, o seu Sacramento e a sua cruz? Tremo de considerar na matria, porque, em qualquer aplicao dela, quase periga a reverncia de to soberanos mistrios. No prespio nasce Cristo humilde entre dois animais, porque vinha a fazer de animais homens; e no Tabor aparece glorioso entre Moiss e Elias, que foram vistos em majestade: Visi in majestate (Lc. 9, 31). - Mas que majestade a de Moiss comparada com a do Sacramento, e a de Elias com a da cruz? Se no nascimento do Batista diziam consigo os montanheses: Quis, putas, puer iste erit? Etenim manus Domini erat cum illo [24] - que diremos ns do nascimento deste prodigioso menino, assistido no s com a mo do Senhor, seno com o mesmo Senhor duas vezes todo? V O que se pode conjecturar com fundamento do lugar e nmero em que a providncia colocou o novo infante na ordem sucessiva de seus irmos. O que mais estimam os prncipes em si, e o que mais estima neles o mundo. Os exemplos das sagradas letras. Os frutos da quarta novidade, e o quarto infante de Portugal. Os efeitos do esprito de Elias em Eliseu, e do esprito de Xavier no novo prncipe. O mistrio do bezerro de ouro, que surgiu por ocasio do nascimento de Eliseu, e os felicssimos auspcios do novo infante para a evangelizao da parte ainda idlatra da sia. Mas no quero prognosticar mais grandezas, que as que cabem no meu tema, posto que to pequeno: Quartus frater. - Atrever-me-ei a dizer deste quarto irmo o que disse Nabucodonosor, quando, alm dos trs que no quiseram adorar a sua esttua, viu passeando na fornalha, como em um jardim, e entre as labaredas, como entre flores, outro quarto, que lhe pareceu semelhante ao Filho de Deus: Et species quarti similis Filio Dei [25] ? - Mas Nabucodonosor era gentio, e parecer espcie de gentilidade dizer tanto. O que s farei que, imitando os santos padres, os quais, fundados naquele grande texto: Omnia in mensura, et numero, et pondere disposuisti [26] - dos nmeros em que a sabedoria e providncia divina disps todas as coisas, coligem as inteligncias e mistrios que nelas se encerram. Tomado, pois, o peso e a medida ao lugar e ao nmero em que a mesma providncia colocou o novo infante na ordem sucessiva de seus irmos: Quartus frater- vejamos do mesmo lugar e de mesmo nmero o que se pode e se deve conjecturar com fundamento. 617.O que mais estimam os prncipes em si, e o que mais estima e celebra neles o mundo, para cujo governo nasceram, serem sbios na paz, e valorosos na guerra. E destas duas virtudes to excelentes e verdadeiramente reais, nos oferece a Histria Sagrada dois famosos exemplos no mesmo nascimento de filhos, e no mesmo nmero de quartos. Salomo foi rei pacfico, e o mais sbio de todos os homens; e o mesma Salomo, filho de Davi, e quarto filho. Judas, tronco da tribo real, foi ele, e a mesma tribo, o mais valoroso e belicoso de todos; e o mesmo Judas, filho de Rben, e filho quarto. Mas porque estas eminncias, posto que to altas - como as do Monte Apenino - se no levantam da terra, de nenhum modo se podem igualar ao que eu conjecturo e espero do nosso quarto prncipe, e do muito mais que S. Francisco Xavier nos promete nele. J no me fundo em exemplos das sagradas letras, seno em lei expressa do mesmo Deus. No captulo 19 do Levtico, mandava Deus que os frutos da primeira, segunda e terceira novidade das rvores se no tocassem, e que todos no quarto ano, e na quarta novidade se oferecessem e sacrificassem a ele: Quarto autem anno omnis fructus sanctificabitur laudabilis Domino [27] . - A razo natural era porque s na quarta novidade esto os frutos perfeitos e sazonados, e por isso dignos de se oferecerem e sacrificarem ao Criador. E se Deus queria que se observasse esta lei na gerao das rvores, quanto com maior direito nas rvores da gerao? Estava a portuguesa no tronco real, no s estril mas quase seca, e quando pelo peregrino enxerto, to venturoso como augusto, depois do primeiro, segundo e terceiro fruto, se v enriquecida do quarto, como pode deixar este de se consagrar todo a Deus? Ningum cuide que prognostico s faixas do novo infante a prpura eclesistica, antes me lembro, e lembrados devemos estar, que junta esta prpura com a real na nossa nao, lhe foi causa da sua mais lamentvel fatalidade, Tertuliano chegou a dizer que nem os cristos podiam ser Csares, nem os Csares cristos: Si christiani Caesares esse possent, aut Caesares christiani. - Mas esse foi um dos erros em que caiu aquele profundo entendimento. O que eu quero dizer que as virtudes do nosso novo prncipe sero to cristmente reais, e to regiamente crists, que, no contente com a observncia dos preceitos da lei de Cristo, remontando-se o seu esprito aos pices altssimos dos conselhos evanglicos, no s ser um real e sublime exemplo da perfeio religiosa, mas consumadamente santo. Estes foram os impulsos inspirados por S. Francisco Xavier, com que, desde as entranhas maternas, semelhana do grande precursor, o determinou Sua Majestade vestir, no da prpura em que eu falava, mas do hbito do mesmo apstolo, para que com ele recebesse o mesmo esprito, e seja um Xavier segundo. Agora peo ateno. Pediu Eliseu a seu mestre Elias que nele se dobrasse o seu esprito: Fiat in me duplex spiritus tuus [28] - no porque pedisse ou desejasse que o esprito de Elias fosse dobradamente maior nele, Eliseu, mas para que, multiplicado o mesmo esprito, sendo singular em cada um, fosse dobrado em ambos. Respondeu Elias que pedia uma coisa muito dificultosa: Rem difficilem postulasti [29] -mas enfim lha concedeu, e o modo deste trespasso, ou multiplicao do mesmo esprito, foi lanar Elias o seu hbito sobre Eliseu, como mais expressamente declaram os Setenta Intrpretes: Et tulit melotem Eliae, quae ceciderat super eum. - E como o poder e vontade de Xavier est sempre certa para ouvir as oraes e santos desejos da rainha, nossa Senhora, e nenhum pudesse ser mais santo que desejar ao filho o seu esprito, assim como Elias infundiu e dobrou o seu em Eliseu por meio dos seus vestidos, assim, com semelhante bno do cu, quando a seu tempo o belssimo infante, por conselho e inspirao do mesmo Xavier, se lhe presentar vestido da roupeta e barretinho, que lhe vestiro nascendo, no h dvida que o santo - pagando tambm nisso a sua me - o enfeitar por dentro de todas as jias e graas do seu apostlico esprito. Mas no pra aqui, e s nesta semelhana, o meu pensamento, antes o que nele parece dificultoso: Rem difficilem postulasti - se confirma admiravelmente pelo sucesso e escritura seguinte. Assim como disse S. Paulo; Adimpleo ea quae desunt passionum Christi in carne mea [30] - assim diz o Eclesistico, no cap. 48, que as coisas que o esprito e zelo de Elias tinha intentado, e no pde conseguir e executar, porque foi arrebatado ao cu, essas acabou depois, e tiveram seu complemento em Eliseu: Elias quidem in turbine tectus est, et in Eliseo completus est spiritus ejus [31] . - Isto posto, saibamos agora que intentou o zelo e esprito de Xavier, e no pde levar ao cabo, porque o cu o arrebatou como a Elias. coisa certa e manifesta que Xavier acabou a vida na ilha de Sancho, s portas da China, onde ele queria entrar, por ser a fonte das idolatrias do Oriente, e no pde. segredos da providncia divina! Entre a conceio e nascimento do nosso infante chegam as novas a Portugal de que as portas da China, fechadas a Xavier, se abriram de par em par pblica pregao do Evangelho. E quem poder negar que o concurso de tais e to remotas circunstncias de tempo a tempo, e de pessoa a pessoa, seja um prodigioso argumento de que este menino, sendo herdeiro do esprito de Xavier, como do seu hbito, ser em maior idade o Eliseu que d glorioso fim e complemento quela grande empresa, intentada e no conseguida pelo seu amado Elias: In Eliseo completus est spiritus ejus? Ainda no est posta a coroa a esta famosa figura, que quase se pode chamar proftica. Afirma Santo Epifnio que no dia em que nasceu Eliseu, um dos bezerros de ouro que fabricou Jeroboo, mugiu lamentavelmente, e foi o mugido to forte, como se fosse um trovo, que se ouviu em toda Jerusalm. Para inteligncia deste prodgio, devem supor os que o no sabem que Jeroboo, criado de Roboo, rei das doze tribos, se levantou com a maior parte delas, e com o ttulo tambm de rei fez a sua corte em Siqum; e para que os novos sditos, vindo a Jerusalm, onde estava o templo do verdadeiro Deus, se no unissem outra vez a seu legtimo senhor, fundiu dois bezerros de ouro como o do deserto, os quais, por seu mandado, todos adoravam. E um destes bezerros o que mugiu no nascimento de Eliseu, como adivinhando-o, e doendo-se lastimosamente de que aquele menino, ento nascido, havia de ser o destruidor de toda a idolatria: Qua voce significabatur illa die natum esse infantem, qui vtulos aureos, caeteraque idola everteret, - Eu lhe chamei menino, e a declarao do bruto orculo- que do santo -lhe deu mais propriamente o nome de infante: Natum infantem. - Mas se os dolos de ouro e os bezerros eram dois, por que mugiu um s? Porque ao outro j a espada de Elias lhe tinha cortado a cabea, e as vozes de seu zelo o tinham emudecido; e o segundo, que ele ainda no pudera vencer, ficava para triunfo de Eliseu. Pode haver caso mais prprio da nossa conjectura? Chamemos a Xavier Elias, e ao infante nascido - a quem ainda no sabemos o nome - demos-lhe o de Eliseu, e est declarado o mistrio de ser um s bezerro o que mugiu. O outro, ou a outra ametade da idolatria da sia, j Xavier a tinha derrubado, emudecido e convertido confisso da verdadeira f. A da China, que o outro bezerro j meio rendido, como de tantos milhes de gente, guarda a sua ltima vitria para o nosso infante, no mugindo tristemente no seu nascimento, mas berrando e chamando por ele, como desejoso e faminto. VI O infante D. Henrique e o caminho martimo das ndias. Se a providncia divina fiou e encarregou os princpios da celestial conquista da sia a um infante de Portugal, os fins dela, j to facilitados, por que os no fiar a outro? Quo grato divina aceitao o devoto e religioso oferecimento de Suas Majestades, no quarto fruto da me, e no quarto filho de ambos. Os beneficios de Deus a Abrao pelo oferecimento e sacrifcio de seu filho Isac. Agradecimentos do pequeno Xavier ao grande. E se a algum lhe parecer demasiada esta minha esperana, e que, tendo tanto de admirvel, ainda tem mais de dificultosa, porque no tem lido as nossas crnicas, ou se esquece delas. Esta navegao, estas viagens, este caminho martimo para a ndia, China, e toda a sia, havia-o antigamente? No, nem rasto ou pensamento humano de tal caminho; antes, os mais doutos e sbios entendimentos o tinham por impossvel. Quem foi pois o que intentou e conseguiu esta to notvel e nunca imaginada empresa? certo que o infante D, Henrique, filho de el-rei Dom Joo, o Primeiro, de Portugal, e irmo de el-rei Dom Duarte. Desterrou-se da corte na flor da idade este herico prncipe, foi-se viver entre o rudo das ondas nas praias mais remotas do reino; e dali, por meio dos seus fortssimos argonautas, rompendo mares, vencendo promontrios, descobrindo novas terras, novos cus e novos climas, com imensos trabalhos e horrendos perigos, e com igual constncia de quarenta anos, enfim, mostrou ao mundo o que o mesmo mundo no conhecia de si, e no possibilitou somente, mas facilitou aquele natural impossvel. Era governador da Ordem Militar de Cristo, instituda por el-rei seu pai contra os infiis, e a estes fez novas guerras; era insigne cosmgrafo e matemtico, e a esta cincia acrescentou a prtica do que s tinha escuras opinies, ou no tinha chegado a ter suspeitas; era, sobretudo, varo de elevado esprito, vida santa, e pureza, como dizem as histrias, virginal; e, ao passo que ia descobrindo novas gentes brbaras e idlatras, o zelo ardentssimo de as converter f lhe ministrava novos espritos, e Deus, a quem tanto servia e agradava, maiores impulsos para prosseguir a empresa. E se a providncia divina fiou e encarregou os princpios desta celestial conquista a um infante de Portugal, os fins dela, j to facilitados, por que os no fiar a outro? Se um terceiro filho de El-rei D. Joo, o Primeiro, foi o que lanou a primeira pedra no edifcio j to levantado da Igreja oriental, o filho quarto de el-rei D. Pedro, o Segundo, do mesmo sangue real, e de pais to zelosos da propagao da f e piedade crist, por que no ser aquele para quem Deus tenha guardado o fechar as abbadas do mesmo edifcio, e levantar nelas por remate o trofu do Crucificado, com as cinco triunfantes divisas, que o mesmo Senhor, e da mesma cruz, nos mandou pintar nas nossas bandeiras? Este o quarto irmo dos nossos prncipes: Quartus frater - e este o quarto da rvore real, que Deus mandava lhe fosse consagrado nas outras rvores: Omnis fructus quarto anno sanctificabitur Domino. - A palavra sanctificabitur no declara quem h de consagrar e oferecer a Deus este quarto fruto da rvore, ato em que grandemente resplandeceu, no s a real urbanidade, seno a cincia, e sempre bem acordada ateno da rainha, nossa Senhora. Escrevem as cartas que, quando Sua Majestade quis oferecer e consagrar a Deus o seu quarto fruto no hbito de S. Francisco Xavier, pediu a el-rei, que Deus guarde, o seu consentimento, obsquio no s devido, mas em prudente teologia necessrio, pelo domnio maior que o pai tem sobre o filho, ainda que seja alcanado por oraes da me. Porque Samuel foi alcanado por oraes de Ana, diz S. Joo Crisstomo que Ana se podia chamar no s me, seno me e pai de Samuel: Nequaquam aberraverit, qui hanc mulierem pueri simul et matrem et pairem appelarit, cujus deprecatio effecit ut Samuel nasceretur [32] . - Mas, ainda no tal caso, o direito paterno precede ao materno, e no concurso de ambos, quando filho o que se sacrifica, consiste a perfeio do oferecimento. Esta faltou no sacrifcio de Isac, porque Abrao no se atreveu a pedir o consenso de Sara. E, contudo, no passando o sacrifcio a outro efeito mais que o da vontade, sendo esta s de um dos pais, daqui se infere quo grato seria divina aceitao o devoto e religioso oferecimento de Suas Majestades no quarto fruto da me, e no quarto filho de ambos. Pelo oferecimento de Abrao, sendo s seu: Quia fecisti hanc tem [33] - lhe prometeu Deus o aumento de sua casa, que foi o maior do mundo, a perpetuidade de sua descendncia, a vitria de todos seus inimigos, e, sobretudo, a bno de todas as gentes, que propriamente se cumpriu e vai cumprindo na f e conhecimento do verdadeiro Deus em todas as gentilidades. E, assim como j prognosticamos, com tanto fundamento, a f e converso que resta das orientais aos felicssimos auspcios do novo infante, assim podemos confiar que, pelo sacrifcio e oferecimento que dele tem feito a Deus a piedade e voto de seus gloriosos pais, na real casa e prospia de Suas Majestades se verifiquem todas as outras feitas de Abrao. E para eu dizer uma palavra, posto que no ouvido, prodigiosa infncia do mesmo prncipe, se a mesma palavra for to venturosa que Sua Alteza a seu tempo a leia, o que s lhe protesto que, quando se vir vestido do hbito, e revestido do esprito de Xavier, todas as suas aes sejam referidas a ele, e no a si. Confiado Eliseu na virtude do vestido que tinha recebido de Elias, quis que o Jordo se lhe abrisse, para que ele, como o mesmo Elias, o passasse a p enxuto. Mas o rio no obedeceu. E que fez ento Eliseu, quase desconfiado? Exclamou com alta voz: Ubi est Deus Eliae (4 Rs. 2, 14)? Onde est o Deus de Elias? - E tanto que o Jordo ouviu o nome de Elias, logo se dividiu. Invoque, pois, o discpulo ao mestre, o filho espiritual ao pai, o pequeno Xavier, ao grande, que, como Deus, que lhe deu os poderes, seu: Deus Eliae - assim quer que depois de se darem ao mesmo Deus todas as glrias, o mesmo prncipe, e todos, dem a Xavier todas as graas. [1] Como curiosidade, notamos que essas palavras da epstola de S. Paulo aos Romanos, que Vieira aplica ao quarto irmo dos prncipes reais de Portugal, na realidade no tratam de um quarto irmo, mas de Quarto, cristo contemporneo de S. Paulo: Sada-vos Caio, meu hospedeiro, e toda a igreja. Como tambm Erasto, tesoureiro da cidade, e Quarto, irmo (Rom. 16, 23). [2] Venha Maria, venha a portadora do nome de minha me (S. Pedr. Crisl.). [3] Por amor de mim, por amor de mim o farei (Is. 48,11). [4] E disse que os destruiria, se Moiss, seu escolhido, se no houvesse posto em meio ante ele (SI. 105, 23). [5] O Senhor teu Deus certo que de algum modo ter ouvido (Is. 37. 4). [6] Os servos do rei foram ter com Isaas, e Isaas lhes respondeu (Is. 37, 5 s.). [7] Como tinha amado os seus (Jo. 13, 1). [8] Obedecendo o Senhor voz de um homem (Jos. 10, 14) [9] Se deres tua escrava um filho varo (1 Rs. 1,11). [10] Pariu ainda terceiro filho, nascido o qual, no tornou mais a parir (Gn. 38, 5). [11] Junto da quarta viglia (Mc. 6, 48). [12] Queria passar-lhes adiante (ibid.). [13] Homem de pouca f, por que duvidaste (Mt. 14, 31)? [14] Aquele que me achar achar a vida, e alcanar a salvao (Prov. 8, 35). [15] Jogar com as palavras. [16] O riso ser misturado com a dor (Prov. 14, 13). [17] Infundiu o Senhor Deus um profundo sono a Ado, e tirou uma das suas costelas (Gn. 2, 21). [18] Tu em dor parirs teus filhos (Gn. 3, 16). [19] E estars sob o poder de teu marido (ibid.). [20] Antes que tivesse dor de parto, pariu (Is. 66, 7). [21] Deu luz um filho varo (ibid.). [22] No primeiro ms, no dia quarto do ms, sobre a tarde, a pscoa do Senhor; e no dia quinze deste ms a solenidade dos asmos do Senhor (Lev. 23, 5 s). [23] E da tarde e da manh se fez o dia primeiro (Gn. 1, 5) [24] Quem julgais vs que vir a ser este menino? Porque a mo de Deus estava com ele. [25] E o aspecto do quarto semelhante ao do Filho de Deus (Dan. 3, 92). [26] Todas as coisas dispuseste com medida, conta e peso (Sab. 11, 21). [27] No quarto ano, porm, todo o seu fruto ser santificado e consagrado em honra do Senhor (Lev. 19, 24). [28] Seja dobrado em mim o teu esprito (4 Rs. 2, 9). [29] Dificultosa coisa pediste (ibid. 10). [30] Cumpro na minha carne o que resta a padecer Jesus Cristo (Col. 1, 24). [31] Elias foi envolto num redemoinho, mas o seu esprito ficou todo em Eliseu (Eclo. 48, 13). [32] Chrys. hom. I de fede Annae. [33] J que fizeste esta ao (Gn. 22. 16).