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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Les Serments de Strasbourg”: importância histórica e filológica na consolidação do francês ANA CRISTINA BEZERRIL CARDOSO João Pessoa – PB 2007

Serments de Strasbourg

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    Les Serments de Strasbourg:

    importncia histrica e filolgica na

    consolidao do francs

    ANA CRISTINA BEZERRIL CARDOSO

    Joo Pessoa PB

    2007

  • ANA CRISTINA BEZERRIL CARDOSO

    Les Serments de Strasbourg:

    importncia histrica e filolgica na consolidao do francs

    Dissertao apresentada como requisito para obteno do grau de Mestre em Letras, na rea de Linguagem e Ensino, do Programa de Ps-Graduao em Letras.

    Orientador: Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior

    Universidade Federal da Paraba Joo Pessoa 2007

  • ANA CRISTINA BEZERRIL CARDOSO

    Les Serments de Strasbourg:

    importncia histrica e filolgica na consolidao do francs

    Dissertao apresentada como requisito para obteno do grau de Mestre em Letras, na rea de Linguagem e Ensino, do Programa de Ps-Graduao em Letras.

    BANCA EXAMINADORA

    PROF. DR. JUVINO ALVES MAIA JNIOR

    Professor orientador UFPB

    PROF. DR. MILTON MARQUES JNIOR

    1 examinador UFPB

    PROF. DR. HENRIQUE GRACIANO MURACHCO

    2 examinador USP

    PROF. DR. LUCIANA CALADO

    Suplente UFPB

    Joo Pessoa, agosto de 2007.

  • AGRADECIMENTOS

    A minha filha Batrix, aos meus pais, a minha tia Vilma e a Emmanuel, pelo apoio

    familiar e afetivo e, sobretudo, pela pacincia que tiveram comigo durante todo o perodo de

    realizao deste trabalho de pesquisa;

    A Juvino Alves Maia Jnior, professor e orientador, por acreditar na minha capacidade

    de pesquisa e tambm pela ateno e generosidade com que sempre me tratou;

    professora e amiga, Maria de Guadalupe Melo Coutinho, pela gentileza e boa

    vontade dispensadas leitura deste trabalho;

    A todos os amigos, colegas e professores que, de maneira formal ou informal,

    ajudaram na construo deste trabalho.

  • Aprs les Serments de Strasbourg, et seulement aprs,

    le franais existe. (Bernard Cerquiglini)

  • RESUMO

    Os Juramentos de Estrasburgo, considerado o primeiro documento da lngua francesa,

    so o leitmotiv deste trabalho. Eles esto dentro da obra do sculo IX , Histoire des fils de

    Louis, le Pieux, do historiador Nithardo. Esse livro foi escrito todo em latim, exceto o trecho

    dos Juramentos que est em lngua romnica (proto-francs) e em lngua alem. Nossa

    pesquisa analisa o trecho romano dos Juramentos e objetiva compreender o porqu de esse

    registro ter sido realizado nessa lngua e no em latim como era o costume da poca. Com

    esse intuito, fazemos um estudo filolgico do texto em questo, assim como construimos um

    panorama histrico dos elementos formadores da lngua francesa. Afora o estudo evolutivo

    (sincrnico e diacrnico) do documento apresentamos alguns fatos importantes para o

    desenvolvimento e para a defesa da divulgao da lngua francesa. Ademais, avaliamos a

    situao atual dese idioma, sua importncia lingstica e poltica. Terminamos nossa pesquisa

    apresentando a francofonia, movimento que vai alm da identidade lingstica da comunidade

    francfona.

    Palavras-chave: Juramentos de Estrasburgo Lngua romnica Francofonia

  • RESUM

    Les Serments de Strasbourg, considrs comme premier document de la langue

    franaise, sont le leitmotiv de ce travail. Ils se trouvent dans luvre du IXme sicle, Histoire des fils de Louis le Pieux, de lhistorien Nitharde. Ce livre a t presque intirement crit en

    latin lexception de la partie des Serments qui est en langue romane (proto-franais) et en

    langue allemande. Notre recherche analyse la partie romane de ce document et a comme

    objectif de comprendre le pourquoi de cet enregistrement fait en roman et non pas en latin

    comme il tait dusage lpoque. Dans ce dessein nous faisons une tude philologique du

    texte, ainsi quun panorama historique des lments formateurs de la langue franaise. Au-

    del de ltude volutive des vocables du document, nous prsentons quelques faits

    importants pour le dveloppement et pour la dfense de la langue franaise. En outre, nous

    valuons la situation actuelle du franais, son importance linguistique et politique. Nous

    concluons notre recherche en prsentant la francophonie, mouvement qui va au-del de

    lidentit linguistique de la communaut francophone.

    Mots-cl: Serments de Strasbourg Langue romane Francophonie

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................8

    1 O nascimento da lngua francesa .................................................................................10 1.1 A Glia .........................................................................................................................12

    1.2 As invases germnicas (a partir do sculo IV)............................................................15

    1.3 Carlos Magno e os Juramentos de Estrasburgo ...........................................................18

    2 Estudo filolgico ..............................................................................................................28 2.1 Etapas da lngua francesa .............................................................................................28

    2.2 A assemblia de Estrasburgo .......................................................................................33

    2.3 Estudo dos vocbulos ...................................................................................................39

    2.3.1 O juramento de Lus, o Germnico ...............................................................39

    2.3.2 O juramento dos soldados .............................................................................46

    2.4 Consideraes gerais sobre a anlise dos Juramentos de Estrasburgo ........................47

    2.4.1 Ortografia ............................................................................................................47

    2.4.2 Morfossintaxe ......................................................................................................48

    2.5 Algumas concluses ....................................................................................................50

    3 Da Frana para o mundo ...............................................................................................51 3.1 Momentos importantes para a lngua francesa........................................................51

    3.2 A franconia .............................................................................................................54

    CONCLUSO ........................................................................................................................59

    REFERNCIAS......................................................................................................................62

  • INTRODUO

    L invitation au voyage...

    Iremos realizar neste trabalho uma viagem ao longo da histria da lngua francesa.

    Apesar de o nascimento do francs datar do sculo IX, nossa viagem comear bem antes

    para podermos compreender como tudo aconteceu e s terminar no sculo XXI. Faremos

    uma viagem de doze sculos.

    O desejo de conhecer a origem da lngua que ensinamos foi o que nos motivou a

    realizar este trabalho. Quanto mais o tempo passa, quanto mais experincia e conhecimento

    gramatical e lingstico adquirimos, mais necessidade sentimos de voltar s origens. Como

    compreender o estado presente da lngua sem compreender sua formao, seu comeo?

    Nosso objeto de pesquisa so os Juramentos de Estrasburgo, um documento curto, mas

    de extrema importncia para a consolidao do francs, visto que foi a partir dele que a lngua

    francesa passou a existir oficialmente como tal. Os Juramentos de Estrasburgo datam do

    sculo IX, e so considerados o primeiro documento da lngua francesa. Eles esto registrados

    dentro da obra, Histoire des fils de Louis, le Pieux, do historiador Nithardo. Esse livro foi

    escrito todo em latim salvo o trecho dos Juramentos de Estrasburgo que est em proto-francs

    e em alemo. Objetivamos compreender o porqu de esse registro ter sido realizado nessa

    lngua e no em latim, como era o costume da poca.

    Para apresentarmos nossa pesquisa e nossas reflexes, dividimos esta dissertao em

    trs sees.

    A primeira seo nos d uma viso histrica, geogrfica e poltica do territrio onde se

    deu o nascimento do francs, ou seja, o atual territrio da Frana. Esta seo por sua vez, est

    subdividida em trs partes: a primeira trata da Glia; a segunda das invases germnicas a

    partir de sculo IV, e a terceira de Carlos Magno e dos Juramentos de Estrasburgo.

    A segunda seo apresenta, mais detalhadamente, o objeto do presente trabalho um

    estudo filolgico do documento. No entanto, antes desse estudo, apresentamos as etapas pelas

    quais passou a lngua francesa. Em seguida, mergulhamos no trecho da obra onde se

    encontram os Juramentos e s ento partimos para a anlise propriamente dita do documento.

    Em primeiro lugar, fazemos um estudo evolutivo dos vocbulos que constituem o Juramento

    de Lus, o Germnico; em segundo lugar, analisamos o Juramento dos soldados e em terceiro

  • e ltimo lugar, tecemos consideraes gerais sobre a estrutura ortogrfica e morfossinttica do

    documento.

    Na terceira seo, aps o estudo do nosso objeto de pesquisa, mostramos um pouco do

    caminho percorrido pela lngua francesa; momentos importantes para a sua evoluo, para

    defesa. E, para terminar e concluir nosso trabalho, apresentamos a franconia; movimento

    surgido nos anos 60 que possui hoje em dia 55 Estados membros e governos participantes, e

    13 membros observadores. A francofonia constitui, na realidade, mais que uma simples

    comunidade lingstica, embora a lngua francesa continue sendo seu denominador comum,

    ela veicula em todo o mundo valores universais como a fraternidade, a tolerncia, o

    humanismo e o respeito identidade cultural de cada pas.

  • 1 O nascimento da lngua francesa

    Une langue est un organisme vivant qui nat, se dveloppe et se transforme. Elle dpend du caractre intellectuel du peuple qui la parle, de son temprament physique, des conditions gographiques du pays et surtout des circonstances historiques. 1

    Georges Hacquard

    No incio era o latim. Com o passar do tempo diversas modificaes foram ocorrendo

    na lingua latina. Embora no fossem duas lnguas distintas, mas dois aspectos de uma mesma

    lngua, surgiu o que se convencionou nomear sermo urbanus (latim clssico) e sermo vulgaris

    (latim vulgar).

    Ccero j observara esses dois aspectos do latim numa carta a um amigo2:

    Verumtamen quid tibi ego videor in epistulis? nonne plebeio sermone agere tecum? nec enim semper eodem modo; quid enim simile habet epistula aut iudicio aut concioni? quin ipsa iudicia non solemus omnia tractare uno modo: privatas causas, et eas tenues, agimus subtilius, capitis aut famae scilicet ornatius; epistulas vero quotidianis verbis texere solemus3. (Ccero Epistulae ad Familiares XXI apud http://www.thelatinlibrary.com)

    O sermo urbanus, como o prprio Ccero diz, era a lngua aprimorada, utilizada nos

    discursos e outros escritos, em que havia zelo no vocabulrio, no estilo e na gramtica. Era

    1 Uma lngua um organismo vivo, que nasce, se desenvolve e se transforma. Ela depende do carter intelectual do povo que a fala, da sua constituio fsica, das condies geogrficas do pas e sobretudo das circunstncias histricas. Nesta dissertao todas as tradues, do francs para o portugus, so de nossa responsabilidade, salvo as dos Juramentos. 2 Nesta dissertao, todas as tradues, do latim para o portugus, foram realizadas pelo Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior. 3 Contudo, para ti eu pareo o qu nas cartas? No verdade que pareo usar contigo a lngua vulgar? E nem sempre do mesmo modo? Que tem de semelhante a epstula ao tribunal ou assemblia? Alm disso no costumamos tratar de um s modo os prprios julgamentos como um todo: as causas privadas e as da plebe; aquelas conduzimos com mais rigor de raciocnio, essas evidentemente com mais ornamento de fama. Na verdade, costumamos tecer as epstulas com palavras cotidianas.

  • uma lngua escrita, lngua dos doutos, artificial e rgida, sem mobilidade, razo pela qual

    permaneceu tanto tempo estvel.

    O sermo vulgaris era inicialmente a lngua falada pelas classes inferiores, tendo sido

    adotada, pouco a pouco, por todo o Imprio Romano. Estima-se em 800 anos a durao do

    latim vulgar, que se definiu no sculo II, antes de Cristo. Esse latim era a lngua falada

    cotidianamente, instrumento de comunicao diria de todas as classes, como soldados,

    marinheiros, artfices, agricultores e artistas. Era, por assim dizer, a soma dos falares da

    sociedade romana e, como lngua dos militares, acompanhou-os, conseqentemente, em todas

    as suas conquistas. Adotada por povos to diversos, sofreu influncias e influenciou os falares

    e as culturas por onde chegou o Imprio Romano.

    Ora, o latim vulgar que continuava sendo a lngua falada pelos romanos nas terras

    dominadas, paulatinamente foi se fundindo s lnguas dos dominados. Transformou-se e

    sofreu transformaes. Vrios elementos agiram nessas modificaes lingsticas, tais como o

    clima, a extenso territorial, o momento em que se deu a conquista, os povos dominados e,

    principalmente, o tempo em que a regio permaneceu sob dominao romana. Foi, pois,

    dessas influncias recprocas, que nasceram as lnguas neolatinas. Entre elas as mais

    divulgadas so: o portugus, o espanhol, o francs, o italiano e o romeno.

    Como afirma Perret (2003, p.32) a lngua me do francs o latim, mas um latim

    familiar j bastante diferente da lngua clssica. Esse latim, alm do seu desgaste natural,

    sofreu influncias por duas vezes com o fenmeno do bilingismo. Em um dado momento, a

    lngua latina foi influenciada pelo gauls e, em um outro, por lnguas germnicas. As

    particularidades do francs so, por conseqncia, o resultado dessas lnguas em contato.

  • 1.1 A Glia

    Figura 1.

    Glia independente por volta do sculo I a.C.

    Disponvel em: . Acesso em: 16 out. 2006.

    A Glia foi uma das regies onde o latim se fundiu com a lngua local. Localizada

    aproximadamente onde hoje se situa a Frana e, limitada pelos Pirineus ao Sul, pelos Alpes ao

    Sudeste, pelo Atlntico ao Oeste e ao Norte, pela Blgica tambm ao Norte e pelo Reno ao

    Leste, a Glia foi uma das partes da Europa invadida e dominada pelos romanos. Antes de os

    latinos chegarem, a regio j estava ocupada. Inicialmente pelos lgures, pelos ibricos, celtas

    e pelos aquitanos. Sua ocupao pelos gauleses aconteceu sucessivamente, entre 700 e 500

    anos antes de Cristo. Vindos da Europa Central, esses povos de origem germnica ocuparam

    dois teros da Europa. Por volta do sculo VII a.C., o deslocamento e a movimentao dos

    gauleses no territrio francs foram considerveis. Eles tentaram invadir a Aquitnia no

    Sudoeste, mas devido resistncia do povo local, no conseguiram permanecer na regio e

  • rumaram em direo ao Norte e ao Oeste. No puderam dominar o Sul porque a regio j era

    domnio romano cerca de 100 anos antes, como podemos ver na figura 1. Apesar disso,

    mesmo com a regio de Narbona j pertencendo aos romanos, os gauleses ainda atacaram

    Roma no ano de 388 a.C.

    Embora de origem comum, os gauleses eram divididos em inmeras colnias e viviam

    freqentemente em guerra uns contra os outros. Apesar das desavenas e das diferenas,

    possuam um aspecto unificador que era a religio, razo pela qual reuniam-se anualmente

    para celebrao de seus deuses. Para os gauleses, seus sacerdotes, os druidas, gozavam de

    grande influncia poltica acumulando, inclusive, as funes de juiz e educador. Eram eles,

    ento, os responsveis pela manuteno dos costumes e da tradio celtas as quais recusavam

    transmir por escrito; a transmisso era oral como afirma Walter (1988, p.37-38): Si nous

    connaissons mal le gaulois, cest en particulier parce quil a laiss peu de tmoignages

    crits: les druides, gardiens de la religion, se refusaient transmettre leur savoir par crit.4

    Segundo Perret (2003, p.22-26), apesar de se conhecer pouco da lngua gaulesa, pois

    no h muitos documentos escritos, sabe-se que falavam vrios dialetos do substrato de uma

    lngua celta inicial. Com exceo do basco, h poucas marcas desses dialetos nos dias atuais.

    Esses traos so encontrados principalmente na toponmia e em termos rurais. Considera-se

    que foi devido a um substrato gauls que houve a passagem do /u/ latino [u] para o /u/ do

    francs atual [y]. No entanto, o autor observa tambm que essa possvel influncia

    contestada por ter ocorrido tardiamente. Outra mudana fonolgica que teria acontecido

    devido influncia gaulesa seria a palatizao de algumas consoantes e a manuteno do s

    final. Alm dessas consideraes de ordem fontica, tambm se v o sistema numrico

    vigesimal como mais um trao deixado pelos celtas na cultura francesa.

    Como os gauleses no possuam alfabeto prprio, utilizavam o dos gregos ou o dos

    romanos. Na atual regio da Frana, alguns parcos testemunhos lingsticos foram

    encontrados em objetos votivos e em trs peas em metal de maior vulto: os chumbos do

    Larzac (Sudoeste); de Chamalires (Sudeste); e de Lezoux (Centro-Sul). Ademais, foi

    tambm encontrado um grande calendrio em Coligny (Sudeste).

    Devido s disputas internas, os povos gauleses terminaram se enfraquecendo.

    Aproveitando essa diminuio de fora, em 58 a.C., o general Jlio Csar, no comando das

    tropas romanas, atacou com um exrcito disciplinado e potente, e em cinco anos j havia

    4 Se ns conhecemos mal o gauls, isso acontece particularmente porque ele deixou poucos testemunhos escritos: os druidas guardies da religio se recusavam a trasmitir seus conhecimentos por escrito.

  • tomado posse de mais da metade da Glia. Sem apresentar quase nenhuma resistncia, os

    povoados gauleses foram paulatinamente sendo invadidos.

    Nos seus Comentrios sobre a guerra da Glia, Jlio Csar faz relatos interessantes

    sobre os povos e a lngua dos invadidos. Primeiro, observa que o gauls no a nica lngua

    falada na Glia e, segundo, que os termos gauls e celta designam o mesmo povo. BELLVM GALLICVM LIBER PRIMVS I. Gallia est omnis diuisa in partes tres, quarum unam incolunt Belgae, aliam Aquitani, tertiam qui ipsorum lngua Celtae, nostra Galli appellantur. Hi omnes lngua, institutis, legibus inter se differunt. .5 (WALTER, 1988, p.36)

    Em 52 a.C., seis anos depois dessa invaso, Vercingetrix, chefe gauls da Auvrnia,

    vendo seu povo sucumbir dominao romana e desejando acabar com a situao, reuniu

    todo o povo gauls para lutar contra os invasores. Embora tenha conseguido vencer a primeira

    batalha, a de Gergvia, entre maio e junho de 52 a.C., foi impossvel vencer a segunda, a

    famosa batalha de Alsia, entre agosto e setembro do mesmo ano. Vercingetrix se rendeu e

    este feito marcou a passagem definitiva da Glia para o domnio romano.

    Figura 2.

    Glia depois das conquistas romanas por volta do sculo II d.C.

    5 Guerra das Glias livro primeiro. O territrio da Glia dividido em trs partes: uma habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanos e a terceira por aqueles que, na sua prpria lngua se auto-denominam celtas, e na nossa, gauleses. Todos eles se diferenciam uns dos outros pela lngua, pelas instituies e pelas leis.

  • Disponvel em: . Acesso em: 14 out. 2006.

    Depois de conquistada por Jlio Csar, a Glia viveu um longo perodo de paz, j que,

    a partir daquele momento, os gauleses no tinham mais o direito de lutar entre si. Como se

    pode observar na figura 2, com as conquistas romanas o territrio gauls foi

    consideravelmente ampliado. Os romanos, porm, pouco mudaram da estrutura social e do

    governo gauleses. Todavia, no se pode dizer o mesmo em relao cultura romana, que foi

    totalmente assimilada. Sob a autoridade de governadores romanos, os vencidos conservaram

    seus chefes, mas foram obrigados a pagar impostos e a fornecer soldados. O povo permaneceu

    nas suas terras, uma vez que os romanos eram pouco numerosos e preferiam se instalar nas

    cidades. A partir de ento, os dois povos unidos passaram a constituir o que se convencionou

    chamar civilizao galo-romana - verdadeira mistura das duas culturas.

    A influncia romana se fazia notar em vrios setores, desde as roupas lngua, s

    casas luxuosas. Os gauleses mais abastados foram aos poucos adotando os usos e costumes

    refinados dos romanos, chegando tambm a financiar belas construes nas cidades como, por

    exemplo, a construo de templos, teatros, monumentos, aquedutos, banhos pblicos e fontes.

    No campo, a vida quase no sofreu mudanas. A influncia romana foi pouqussima. bom

    lembrar, entretanto, que uma importante mudana aconteceu na agricultura, com a introduo

    da cultura da uva e de rvores frutferas. Ademais, no se pode esquecer a construo das

    estradas romanas que permitiram o fcil deslocamento dos soldados e asseguraram a paz no

    pas.

    Mas nem tudo pde ser assimilado pelos gauleses, j que a grande discrdia entre os

    dois povos foi a religio. Os druidas nunca aceitaram os deuses romanos, fato que provocou a

    perseguio dos sacerdotes gauleses e, em seguida, o seu desaparecimento. Nesse momento

    uma nova religio se disseminava pelo mundo, o Cristianismo, trazida do Oriente pelos

    comerciantes. Apesar de ser rejeitada pelos romanos, que perseguiam e matavam os cristos, a

    nova religio acabou se instalando.

    1.2 As invases germnicas (a partir do sculo IV)

    Do sculo I at o sculo IV, a paz reinou na Glia. Depois de to longo perodo de

    tranqilidade, a regio foi devastada durante aproximadamente 100 anos, por invases,

  • ataques e massacres. Os povos invasores vinham sobretudo do norte da Europa, regio da

    atual Alemanha. A civilizao galo-romana chegara ao fim.

    Vrios povos tentaram invadir a Glia. Os germanos foram um deles. Estes, embora,

    nunca conseguissem se instalar realmente no territrio galo-romano, pois sempre eram

    expulsos, acabaram, aos poucos, exaurindo as defesas romanas; enfim, em 406, um grupo

    vindo da Hungria tomou de assalto a Glia, dominando-a quase totalmente. Restaram apenas

    sob o poderio romano as cidades protegidas por muralhas, os famosos remparts. Por volta de

    450, os hunos, povo nmade da sia chefiados por tila, invadiram a regio. A fora deles

    era tanta que provocou a fuga dos outros povos germanos. tila aterrorizou a todos por onde

    passou, praticamente sem encontrar resistncia. Porm, em 451, dois exrcitos, um galo-

    romano e outro germnico, decidiram se unir para expuls-los. tila foi finalmente derrotado

    em Chalons-sur-Marne, na regio da atual Champanhe.

    Derrotados os hunos, a Glia, terra de ningum, foi sendo paulatinamente invadida por

    outros povos germnicos, dentre os quais estavam os francos. Eles eram pouco numerosos e

    viviam divididos em bandos sem grande poderio, mas, apesar disso, quela poca, j haviam

    dominado o Norte (hoje a Blgica e a Holanda). Em 481, Clvis foi eleito rei de uma das

    tribos e, sob a sua liderana, a vida e a importncia poltico-social dos francos comearam a

    mudar. O novo rei, um adolescente de 16 anos, hbil, esperto e cruel, conseguiu em pouco

    tempo conquistar um grande territrio, como podemos ver na figura 3, logo adiante.

    Ambicioso, mandava assassinar at mesmo os outros reis francos para tornar-se nico. Devido

    a esse comportamento, quase toda a Glia ficou sob seu poder e, por volta de 509, ele

    derrotou os ltimos exrcitos romanos, promovendo, assim, a unificao de todos os francos.

  • Figura 3.

    As conquistas de Clvis sculo VI d.C.

    (GRIMAL, 1960, p.10).

    O cristianismo, nova religio vinda do Oriente, foi, poca galo-romana, bastante

    perseguido, mas, apesar de tudo, conseguiu se instalar rapidamente na Glia. Durante o tempo

    das invases, o nmero de adeptos da nova religio s aumentou. No ano de 496, Clvis,

    ento rei dos francos, percebendo a fora desse movimento religioso e sob a influncia de sua

    mulher, Clotilde, que j havia se tornado catlica, decidiu se converter ao catolicismo. Junto

    com ele alguns milhares de guerreiros francos tambm se tornaram cristos. A converso do

    rei foi um fato importante para a difuso do cristianismo e, conseqentemente, do latim, que

    tinha sido adotado como lngua litrgica oficial no sculo IV (WALTER, 1988, p.49).

    Clvis tornou-se, assim, protetor e protegido dos lderes religiosos, que, por sua vez, faziam

    com que toda a populao crist obedecesse ao rei. Ele foi o primeiro rei catlico da Frana, e

    sua morte, em 511, consolidou a dinastia merovngia, que deve seu nome a Meroveu,6

    6 H dvidas quanto verdadeira existncia do rei franco saliano Meroveu. Segundo a Enciclopdia Britnica (http://www.britannica.com), ele teria vivido de 411 a 458, embora no haja registros contemporneos sobre ele e poucas sejam as informaes a seu respeito nas histrias posteriores dos francos. Encontramos tambm, no mesmo texto enciclopdico, possveis explicaes sobre o nome desse rei. Uma delas entende que -Mero/Mer seria uma aluso ao mar, do latim mare + -wig/weg/vus referncia a "viajante", "rota, caminho" ou "transporte, veculo" (em alemo: weg; em latim: via). Quanto ao termo saliano, este viria de sal, uma lembrana do lar dos francos pr-migrao, isto , as praias do mar do Norte.

  • lendrio rei fundador da dinastia dos reis francos slicos. Em 561, cinqenta anos aps a

    morte de Clvis, a dinastia merovngia comeou a perder sua fora, e o reino, a se decompor.

    As terras francas foram divididas em Nustria, Austrsia e Borgonha. Os merovngios,

    descendentes de Clvis, reinaram ainda cerca de 200 anos aproximadamente, at meados do

    sculo VIII. Em cada reino franco havia a figura do Mordomo ou Prefeito do Palcio, um

    funcionrio que representava o rei no palcio real. Na realidade eles eram os governantes de

    facto do reino.

    Em meados do sculo VIII, o esfacelamento do poder merovngio facilitou a

    consolidao real da importncia do mordomo do palcio. Numa batalha em Poitiers, por

    volta de 732, o reino franco, ameaado por uma invaso de rabes muulmanos vindos da

    Espanha, foi salvo graas ao mordomo do palcio, Carlos Martel. Uns 20 anos depois, em

    751, seu filho, Pepino, o Moo, tornou-se rei com consentimento papal, iniciando nesse

    momento uma nova dinastia, a dos pippinidas (ou pepinidas) que pouco tempo depois seria

    nomeada carolngia, quando Carlos Magno chegou ao poder.

    1.3 Carlos Magno e os Juramentos de Estrasburgo

    Com a morte de Pepino, o Moo, em 768, o reino foi divido entre seus filhos

    Carlomano e Carlos Magno. Em 771, Carlomano faleceu e Carlos Magno assumiu o poder de

    um reino franco unificado. Nessa poca, a Glia desapareceu e nasceu a Francia.

    Grande conquistador, Carlos Magno tomou a Itlia dos lombardos, combateu contra os

    muulmanos na Pennsula Ibrica e conquistou a Saxnia. Cristo fervoroso, guerreou

    levando sempre consigo o cristianismo aos povos conquistados. No ano de 800, em Roma, foi

    coroado imperador pelo Papa vindo a falecer em 814.

    Alm da expanso do cristianismo, Carlos Magno criou escolas e promoveu a

    renascena carolngia, uma tentativa de revalorizao das letras greco-latinas que haviam

    perdido valor durante todo o perodo das invases germnicas, poca em que os dialetos

    germnicos logicamente predominavam. Os merovngios, descendentes de Clvis, assim

    como os prprios carolngios, eram povos de lngua germnica, teudisca lingua. Segundo

    Rene Balibar (apud PERRET, 2003, p.34), existia, poca de Carlos Magno uma grande

    diferena de status entre as lnguas germnicas, lnguas dos senhores, que gozavam de

    grande considerao, e o falar dos povos romanos: falar dos servos e dos vencidos e jargo

    agrcola.

  • Foi justamente graas renascena carolngia, com a retomada dos estudos de textos

    em latim clssico, que surgiu a conscincia de que a lngua falada pelo povo havia sofrido

    tantas modificaes que j no podia ser mais reconhecida como latim, conforme se pode

    ratificar pelas palavras de Perret (2003, p.35):

    Avec Charlemagne, qui rtablit lEmpire dOccident, une influence

    civilisatrice et la renaissance des lettres latines furent paradoxalement lorigine de lapparition dune nouvelle langue crite, qui deviendra le franais. Charlemagne reconstitua un empire dOccident qui comportait le territoire de la France ( lexception de la presqule bretonne), celui de lAllemagne et une grande partie de celui de lItalie (un peu plus bas que Rome), vaste espace quil administrait et gouvernait efficacement: il tentait aussi de redonner ses peuples la civilisation quils avaient perdue.7

    Ainda se pode verificar uma reforma na organizao educacional da poca, instaurada

    pelo monge Alcuno, segundo tambm se pode confirmar na passagem a seguir (Idem,

    ibidem, loc.cit):

    Il fit venir dAngleterre (York) le moine Alcuin pour mettre en place un

    enseignement en latin pour les moines qui narrivaient plus comprendre le texte de

    la Vulgate (nom donn la traduction de la Bible en latin par saint Jrme, vers

    400). Sur son conseil, lempereur mit en place un enseignement trois niveaux.. Au

    niveau suprieur, lcole palatine dAix-la-Chapelle formait les lites intellectuelles;

    au niveau intermdiaire, des coles piscopales ou monastiques, dont labbaye Saint-

    Martin-de-Tours, dirige par Alcuin, formaient les adolescents. Dans les campagnes,

    une initiation des enfants au calcul et la grammaire aurait d tre faite par les

    curs, mais cet enseignement de premier niveau ne put stablir durablement.

    Cest alors que les nouveaux lettrs, qui avaient rappris le latin classique,

    commencrent se moquer des barbarismes du latin mrovingien de leurs

    prdcesseurs. Mais, tandis que la langue simplifie, pleine de termes populaires des

    scribes mrovingiens, tait encore accessible au peuple, les lettrs carolingiens

    prirent conscience que la langue parle avait tellement volu quil tait maintenant

    impossible de faire comprendre un texte de vrai latin qui ne lavait pas

    tudi(PERRET, 2003, p.35)8.

    7 Uma influncia civilizadora e o renascimento das letras latinas, provocados por Carlos Magno, que restabeleceu o Imprio do Ocidente, foram paradoxalmente a origem do aparecimento de uma nova lngua escrita que viria a ser o francs. Carlos Magno reconstituiu um Imprio do Ocidente reunindo o territrio da Frana (com exceo da quase ilha bret), o da Alemanha e uma grande parte do territrio da Itlia (um pouco mais abaixo de Roma), vasto espao que ele administrava e governava com eficcia: ele tentava tambm dar novamente a esses povos a civilizao que eles haviam perdido. 8 Ele trouxe da Inglaterra (York) o monge Alcuin para implantar um ensino de latim para os monges que no conseguiam mais compreender o texto da Vulgata (nome dado traduo da bblia em latim por So Jernimo, por volta do ano 400). Sob seu conselho, o Imperador instaurou um ensino em trs nveis. O nvel superior da

  • Como ressalta e explica Perret, por volta do ano 800, o latim do norte da Glia, isto ,

    da Francia, j possua caractersticas bastante particulares e no se confundia mais com o

    verdadeiro latim. Tanto assim que, em 813, os bispos, reunidos em Conclio na cidade de

    Tours, decidiram que os padres deveriam fazer seus sermes na lngua materna do povo, in

    rusticam romanam linguam, ou seja, em lngua tedesca. Na realidade, esta data marca o

    primeiro reconhecimento oficial da lngua romana que viria, posteriormente, a ser o francs

    propriamente dito. Contudo, o que era considerado assunto importante e srio como histria,

    filosofia e teologia era escrito em latim.

    Segundo Wright (apud PERRET, 2003, p.35), teria ocorrido uma reforma na

    pronncia do latim durante o perodo carolngio e esse fato teria favorecido a prpria crise da

    lngua latina. Melhor dizendo, a pronncia do latim escrito, que se apoiava nos falares da

    poca e de cada regio, com a reforma carolngia, deveria tornar-se homognea, posto que era

    a lngua oficial do Imprio. O latim deveria ento ser lido pronunciando-se todas as letras, o

    que evidentemente no foi possvel e o tornou incompreensvel para o povo. En voulant

    duquer les foules, on avait recre une lite (WALTER, 1988, p.67).9

    Essa lngua romana falada no sculo IX, que provm do latim e de outras lnguas indo-

    europias, como o gauls e o frncico, j nessa poca, havia sofrido tantas modificaes que

    seria impossvel no lhe conceder o status de lngua independente do latim, diferentemente do

    italiano ou o espanhol, por exemplo, que ainda estavam bem prximos da lngua latina.

    Como observa Perret (2003, p.37), no houve descontinuidade entre o latim falado por

    Jlio Csar e a lngua falada na Francia do sculo X. O que houve, com efeito, foram

    mudanas resultantes de influncias recprocas entre a lngua do invasor romano e os vrios

    dialetos existentes na Glia, desde a invaso de Csar at a poca de Carlos Magno. Foi o

    retorno s origens que evidenciou a existncia de duas lnguas: o latim - lngua oficial -, e

    uma lngua materna - a lngua romana.

    Durante a Idade Mdia, essa romana lingua abrigava grande variedade de dialetos; no

    final do sculo XII, pode-se, no entanto, perceber um uso comum entre eles no momento em

    escola palatina de Aix-la-Chapelle formava as elites intelectuais; o nvel intermedirio, das escolas episcopais ou monsticas, entre elas a abadia de Saint-Martin-de-Tours dirigida por Alcuino formavam os adolescentes. No campo, uma iniciao das crianas ao clculo e gramtica, teria sido realizada pelos padres, mas esse ensino de primeiro nvel no pde se estabelecer de forma duradoura. Foi ento que os novos letrados, que tinham reaprendido o latim clssico, comearam a zombar dos barbarismos do latim merovngeo de seus predecessores. Mas, enquanto que a lngua simplificada repleta de termos populares dos escribas merovngeos ainda era acessvel ao povo, os letrados carolngeos tomaram conscincia de que a lngua falada havia evoludo tanto, que era impossvel, naquele momento, fazer compreender um texto em verdadeiro latim a quem no o tinha estudado. 9 Desejando educar a massa, havamos recriado uma elite.

  • que surge a chamada langue dol no Norte do territrio, a langue doc no Sul e ainda dialetos

    franco-provenais na regio de Lyon, Genebra e Grenoble (WALTER, 1988, p.52). Essa

    lngua vulgar no obedecia regra alguma, assim continuando at o sculo XVI quando foi

    normatizada.

    Os primeiros escritos que atestam a existncia dessa lngua romana, desse proto-

    francs, so vocabulrios. Tritter, na sua Histoire de la langue franaise (1999, p.15), afirma

    que, desde os sculos VII e VIII, se escreveu em proto-francs, poca roman primitif;

    todavia, devido a tantas guerras e percalos, poucas foram as provas que chegaram aos dias

    atuais. Os testemunhos mais antigos da existncia de uma lngua romana escrita so na

    realidade os glossrios, dentre os quais o mais famoso o Glossrio de Reichenau, do final do

    sculo VIII e incio do sculo IX, que traduz em lngua romana aproximadamente 1.300

    termos latinos difceis da Vulgata de So Jernimo, a verso latina da Bblia. No se trata de

    um texto e sim de um lxico. Do mesmo gnero so as Glossas de Kassel, as Glossas de Paris,

    o Vocabularius optimus, entre outras.

    Sem desmerecer os glossrios, , porm, em 14 de fevereiro de 84210 que comea

    oficialmente a histria da lngua francesa com os Juramentos de Estrasburgo. Desse famoso

    texto existem duas cpias apcrifas conservadas na Biblioteca Nacional da Frana. A mais

    antiga11 do final do sculo IX (Vide fac-smile, figura 4) e a outra uma cpia12 incompleta

    da precedente feita no sculo XV (HAGGE, 1996, p.19). Considerado a certido de

    nascimento do que viria a ser o francs, esse documento foi escrito em lngua romana e em

    lngua tedesca, ou seja, alem.

    Os Juramentos de Estrasburgo so o marco que consolidou a existncia de uma lngua

    francesa. Trata-se de um documento curto mas precioso, como bem assinala Vasconcelos

    nas suas Lies de filologia portuguesa (s.d., p.208).

    Segundo Walter (1993, p.12-13 apud http://www.restena.lu), durante a Idade Mdia

    (sculo V- X) s se escrevia em latim, lngua oficial da Igreja e do poder. Os Juramentos de

    Estrasburgo so o testemunho oficial da importncia conferida s lnguas vulgares ao

    reproduzir essas lnguas por escrito. A autora reconhece a pouca espontaneidade do juramento

    como tambm sua forma ritual; no entanto afirma que nem por isso a lngua vulgar deixa de

    revelar uma situao geolingstica nova que aparece no momento da diviso do Imprio de

    10 Em todos os livros que pesquisamos, a data oficial dos Juramentos de Estrasburgo o dia 14 de fevereiro do ano de 842, ou seja, a data correspondente no calendrio atual ao 16 dia das calendas de maro do calendrio romano, aquele adotado por Nithardo. 11 Manuscrito latino n 9768 do cadastro da Biblioteca Nacional da Frana. 12 Arquivos latinos n 14663 do cadastro da Biblioteca Nacional da Frana.

  • Carlos Magno. Um bloco romano e um bloco germnico tomaram conscincia coletiva de

    suas diferenas. Esse sinal de relativa heterogeneidade cultural estava prestes a transformar-se

    em clivagem poltica. Les Serments de Strasbourg sont le symptme d'une fracture

    gopolitique et golinguistique dans l'Europe du IXe sicle13 (idem).

    Esse fato histrico chegou at os tempos atuais graas ao historiador Nithardo, outro

    neto de Carlos Magno. Sua obra Histoire des fils de Louis le Pieux14 foi toda escrita em latim,

    salvo o trecho dos Juramentos de Estrasburgo, que foi transcrito nas lnguas em que foram

    pronunciados, ou seja, lngua romana e lngua alem. O documento um texto jurdico de

    apenas algumas linhas, que no somente tem importncia para a histria da lngua francesa,

    visto que contm numerosos indcios da evoluo da lngua, como tambm possui grande

    valor histrico-poltico para a Frana, j que estabeleceu a primeira unidade do pas como

    nao.

    Michel Zink comenta no seu livro Littrature franaise du Moyen ge (1992, p.26),

    que os Juramentos de Estrasburgo no pertencem de forma alguma literatura, mas nem por

    isso deixam de merecer ateno: non seulement parce quils constituent le premier monument de la langue franaise, mais encore parce quils invitent rflchir sur leur nature de texte. Prter serment en langue vulgaire est une chose. Reproduire ce serment sous la forme dun texte en langue vulgaire lintrieur dun ouvrage caractre historico-politique, en latin bien entendu, comme le fait Nithard, en est une autre.15

    13 Os Juramentos de Estrasburgo so o sintoma de uma fratura geopoltica e geolingstica na Europa do sculo IX. 14Adotaremos a edio da coleo Les Classiques de l'Histoire de France au Moyen Age, Paris, Librairie ancienne Honor Champion, editor, 1926, pginas 101 109 (apud http://www.langue-fr.net/d/origines/serment-strasbourg). 15 No somente porque eles constituem o primeiro monumento da lngua francesa, mas tambm porque eles so um convite reflexo sobre sua prpria natureza como texto. Fazer juramento em lngua vulgar uma coisa. Reproduzir esse juramento sob a forma de um texto em lngua vulgar no interior de uma obra com carter histrico-poltico, em latim claro, como o fez Nitardo, outra coisa.

  • Figura 4.

    Fac-smile do manuscrito dos Juramentos de Estrasburgo do final do sculo IX

    da Biblioteca National da Frana.

    (TRITTER, 1999, capa).

    Segundo Houaiss (2001, p.1693) o elemento latino de composio jur-, originalmente,

    deve ter tido sentido de frmula religiosa, da o emprego do plural jur, o que diz a

    frmula da justia. Js orre, js jrre significa pronunciar a frmula sacra que engaja. O

    verbo jurar deriva do latim jur que quer dizer: pronunciar a frmula ritual dos juramentos.

    Fazer um juramento , por conseguinte, assumir um compromisso solene e sagrado. Essa

    promessa ou afirmao pronunciada geralmente em pblico e pode ter carter pessoal ou

    recproco.

    O ato de jurar tem como condio sine qua non a boa-f. O carter sagrado do

    juramento est bem explcito no termo francs que designa juramento, ou seja, serment que

    vem do latim sacramentum, de sacrare, tornar sagrado. O primeiro registro escrito desse

    vocbulo na lngua francesa data justamente de 842, ano dos Juramentos de Estrasburgo

    (LAROUSSE, 1993 p. 1727).

    Na Teogonia (HESODO, 1944, p. 60-1, v. 775-808) encontramos a explicao

    mitolgica da origem do grande juramento dos deuses. Para honrar e recompensar Estige,

  • filha mais velha de Oceano e Ttis, pelo auxlio que esta lhe prestou, Zeus a transformou no

    hrkos, o grande juramento dos deuses. Quando qualquer um dos imortais queria se unir

    atravs de um juramento solene, Zeus enviava a mensageira ris para trazer num jarro uma

    poro da gua do Estige, que corria fria de um alto e abrupto rochedo. A gua era o prprio

    hrkos dos deuses e possua potncia divina carregada de malefcios para aqueles que no

    cumpriam o juramento. O perjrio era uma falta muito grave que era punida terrivelmente

    pelos deuses. Benveniste (1985, p. 176) comenta que o castigo pelo perjrio no era um

    assunto humano. Segundo ele, nenhum cdigo indo-europeu antigo prev sanes para o

    perjrio. O perjrio era um delito contra os deuses, logo, supunha-se que o castigo viesse

    deles. O ato de se comprometer com um juramento era sempre se expor de antemo

    vigana divina, visto que se implora aos deuses que vejam ou ouam, que estejam, em

    todo caso, presentes ao ato de comprometimento (BENVENISTE, 1985, p. 176).

    Outro exemplo do valor sagrado do juramento e do poder que o jurar possua na cultura

    grega est na Ilada de Homero. No canto III feito um juramento e no canto IV esse

    juramento quebrado. A quebra do juramento traz uma condenao morte para todos

    aqueles que violaram o pacto sacrossanto. Canto 3 :Anncio do juramento feito por Heitor: Ora, guerreiros Troianos, grevados Acaios, vos digo / o que vos manda propor Alexandre, fautor desta guerra:/ Pede que todos os homens Aqueus e Troianos deponham / as belas armas na terra, nutriz de infinitos guerreiros, /para que possa no meio do campo lutar com o discpulo / de Ares, o heri Menelau, por Helena e suas riquezas. / O que provar que mais forte, vencendo o adversrio na luta, / leve consigo os tesouros e a casa conduza consorte. / Com juramento firmemos ns outros a paz duradoura. (HOMERO, 2005, p.106, v. 86-94)

    Canto 4: Idomeneu diz a Agammnone: Filho de Atreu, Agammnone, fiel companheiro hei de ser-te, / tal como sempre me viste e de acordo com o meu juramento. / Trata, porm, de espertar os demais combatentes Aquivos, / para que logo comece a batalha, uma vez que as sagradas / juras os Teucros violaram. A Morte a eles todos espera, / por terem sido os primeiros a os pactos violar sacrossantos. (HOMERO, 2005, p.125, v. 266-71)

    O carter sacro no ato de jurar permaneceu no sculo IX e pode ser constatado atravs

    dos Juramentos de Estrasburgo de 842. Fazer um juramento significava prometer a Deus. Ao

    transcrever os Juramentos nas lnguas em que foram pronunciados, Nithardo reproduziu ipsis

    verbis as promessas feitas pelos netos de Carlos Magno. A escolha do historiador pela

    manuteno das lnguas originais dos Juramentos dentro do seu livro todo em latim teria

    como possveis explicaes: primeiro, as lnguas faladas eram as lnguas vulgares e, para

    serem compreendidos, os Juramentos tiveram que ser ditos em lngua romana e tedesca;

    segundo, o desejo de o autor manter-se fiel aos acontecimentos.

  • Para melhor entender a situao histrica em que foram proclamados os Juramentos de

    Estrasburgo, retornaremos ao ano de 814, ano em que Carlos Magno faleceu depois de coroar

    seu nico filho varo sobrevivente, Ludovicus Pius ou Lus I, o Piedoso. Segundo Hagge

    (1996, p.13) Lus I j teria resolvido a sua sucesso desde 817, 23 anos antes da sua morte.

    Ele teria legado aos seus filhos Lotrio, Pepino e Lus II, do seu primeiro casamento com

    Ermengarda, o governo de um reino dividido. Pepino e Lus II seriam subordinados a Lotrio,

    que seria o imperador depois da morte do progenitor. Porm, esse projeto de sucesso no foi

    realizado porque, em 838, Pepino faleceu antes mesmo do seu pai. Lus I ficara vivo em 818,

    e contrara segundas npcias em 819 com Judite da Baviera. Desse segundo matrimnio

    nasceu Carlos, o Calvo. Assim sendo, em 840, quando da morte de Lus I, o Piedoso, cada

    um de seus filhos vivos lutou pela conquista do Imprio Carolngio (Vide figura 5).

    Famlia de Carlos Magno

    Figura 5.

    rvore genealgica da famlia de Carlos Magno.

    Depois de muitas discrdias, Carlos, o Calvo, e Lus II, o Germnico, filhos de Lus I, o

    Piedoso, decidiram se juntar para selar aliana contra Lotrio, o irmo mais velho. Eles

    assinaram um tratado em latim como de costume e, em seguida, fizeram um juramento. Os

    Juramentos de Estrasburgo foram pronunciados em proto-francs e em lngua tedesca pelos

    dois monarcas. Cada um jurou na lngua do outro, ou seja, Carlos, o Calvo, em lngua alem e

    Pepino o Moo (715 - 768)

    Carlos Magno (744 - 814)

    Carlomano (751 - 771)

    Carlos (772 - 811)

    Pepino (773 - 810)

    Lus o Piedoso (778 - 840)

    Casa-se em 794 com Ermengarda (+ 818)

    Casa-se 819 com Judite da Baviera

    Lotrio I (795 - 855)

    Lus II o Germnico (808 - 876)

    Pepino (+ 838)

    Carlos o Calvo (823 - 877)

  • Lus, o Germnico, em lngua romana, a fim de que todos compreendessem. J os soldados

    juraram fidelidade nas suas prprias lnguas. Como comenta Hagge (1996, p. 16), a fronteira

    lingstica entre uma zona ocidental de lngua romana e uma zona oriental de lngua

    germnica j havia sido fixada entre os sculos IV e VI, momento da romanizao dos francos

    ocidentais. A nica unidade lingstica entre essas duas partes do antigo imprio de Carlos

    Magno era feita pelo latim, mas tratava-se, contudo, de um cdigo escrito adotado pela Igreja

    e pela administrao, e no de uma lngua falada pelo povo.

    Os Juramentos de Estrasburgo so, em resumo, o pacto em que Carlos, o Calvo, Lus II,

    o Germnico e seus respectivos soldados, juraram ajuda e fidelidade mtuas contra Lotrio.

    Foi atravs dos Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842 que Carlos, o

    Calvo, e Lus, o Germnico, pressionaram Lotrio e conseguiram a diviso do Imprio. A

    querela entre os trs irmos s foi realmente resolvida um ano mais tarde, em 843, com o

    Tratado de Verdun que dividiu o Imprio em trs partes, como se pode ver na figura 6. Carlos,

    o Calvo, ficou com a Frncia ocidental; Lus, o Germnico, com a Frncia oriental; e Lotrio,

    que detinha o ttulo de Imperador, com o centro da Itlia indo at a Frsia. Na realidade, o

    Imprio deixado por Luis I, o Piedoso, j estava de uma certa maneira esfacelado, pois faltava

    aos povos que o compunham, trs elementos essenciais para a unificao; interesse, cultura e

    lngua comuns.

    Figura 6.

    A diviso do Imprio Carolngio depois do Tratado de Verdun.

    (GRIMAL, 1960, p.14).

  • O territrio que constituiria a Frana atual alcanou uma verdadeira unidade com o

    Tratado de Verdun, visto que, at ento, s tinha sido dividido em pequenos reinos gauleses

    ou ento tinha feito parte do Imprio romano, do Imprio franco e do Imprio germnico.

    Pode-se afirmar, ento, que os Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842

    so, sem sombra de dvidas, considerados um monumento, o primeiro, da lngua francesa. A

    grande importncia do documento confirmada pelo enorme interesse e a vasta bibliografia

    que tem suscitado desde muito tempo. Seria tarefa herclea citar todos os estudos j

    realizados sobre o tema. No entanto, no se pode deixar de lembrar a tese de Tabachovitz

    tude sur la langue de la version franaise des Serments de Strasbourg (TABACHOVITZ,

    1936), os artigos de Castellani, Le problme des Serments de Strasbourg (CASTELLANI,

    1956), de Hilty Les Serments de Strasbourg (Hilty, 1973), de Deloffre A propos des serments

    de Strasbourg de 842: les origines de l'ordre des mots du franais (Deloffre,1980), de

    Droixhe Les Serments de Strasbourg et les dbuts de l'histoire du franais (Droixhe,1987), o

    livro de Balibar Linstitution du franais. Essai sur le colinguisme des Carolingiens la

    Republique (Balibar, 1985), e o livro de Cerquiglini La naissance du franais

    (Cerquiglini,1991). 16

    16 Embora no tenhamos tido acesso s obras citadas, elas so referendadas em Wagner (1995, p. 6), conforme consta nas referncias.

  • 2 Estudo filolgico

    Pro Deo amur et pro Christian poblo et nostro

    comun saluament...

    Manuscrito de Nitardo

    Embora nosso princial objetivo nesta seo seja a anlise filolgica do Juramento, no

    nos restringiremos somente a esse aspecto. Para comear, mostraremos um pouco da evoluo

    da lngua, dividindo sua histria em quatro momentos17: lngua romana ou proto-francs,

    francs antigo, francs mdio e francs contemporneo. Em seguida, veremos trs verses

    integrais do Juramento, depois observaremos o trecho da obra de Nithardo no qual est o

    documento e, para terminar, realizaremos o estudo filolgico do texto.

    2.1 Etapas da lngua francesa

    No restam dvidas de que a histria da lngua francesa comea oficialmente com o

    texto romnico dos Juramentos de Estrasburgo. Atravs desse documento, o francs nasceu

    para e pela expresso escrita. Desde o sculo IX, at os dias atuais, a lngua de Victor Hugo,

    como qualquer lngua em uso, no parou de se modificar.

    A primeira etapa da lngua francesa comeou no sculo IX, quando era denominada

    lngua romana. Nessa poca, a lngua falada j era bastante diferente do latim. Ao analisar

    alguns textos do perodo, como por exemplo, o texto dos Juramentos de Estrasburgo de 842, a

    Cantilena de Santa Eullia de 880 e o Sermo sobre Jonas redigido entre 938 e 952, Tritter

    (1999, p. 16-7) observa algumas claras diferenas entre o latim e a lngua de ento. Segundo o

    autor, do ponto de vista lexical, quase no houve mudanas, as palavras eram bem latinas.

    Quanto fontica, as vogais finais praticamente no mais existiam. No havia nenhuma

    17 Para fazer o corte histrico das etapas da lngua francesa, tomamos com parmetro a diviso realizada por Grevisse (1993, p. 11-4), acrescentando-lhe, contudo, um corte entre o sculo IX (lngua romana) e o sculo XI (francs antigo). Para isto, nos fundamentamos na diviso histrica adotada no site oficial da Universidade Laval do Canad, seo: Histoire de la langue franaise (http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/francophonie/perioderomanestrasbourg.htm).

  • diferena entre fradra e fradre por exemplo. A declinao latina clssica sofrera

    transformaes e fora reduzida a apenas dois casos: o caso sujeito, para o sujeito e o atributo,

    continuando assim o nominativo latino, e o caso regime, para todos os complementos,

    continuando como o acusativo latino. O pronome indefinido om j estava em formao.

    Quanto sintaxe, a ordem cannica francesa contempornea sujeito/verbo/complemento j

    era bastante adotada, embora ainda fosse possvel encontrar o verbo no final da frase como no

    latim clssico. Em algumas circunstncias, o complemento era colocado no incio da frase. Os

    determinantes possessivos, por sua vez, estavam sempre esquerda do substantivo. Segundo

    Grvisse (1993, p. 11), os verbos apresentavam, freqentemente, radicais variveis.

    A segunda etapa do francs, ou francs antigo, iniciou-se aproximadamente no sculo

    XI e foi at a metade do sculo XIV. Nesse momento no havia homogeneidade sobre a

    lngua falada no territrio francs; ao contrrio, havia um grande nmero de patos18.

    Costuma-se dividir o territrio em dois, quanto aos seus dialetos, como se pode ver na figura

    7. Ao Norte, os dialetos pertenciam langue dol e ao Sul, langue doc, assim chamadas

    devido maneira como se pronunciava a palavra oui. Havia tambm uma zona intermediria,

    chamada por Walter (1988, p. 52) de francoprovenal. Nessa regio que englobava Lyon,

    Genebra e Grenoble (vide figura 7), os traos da langue dol et da langue doc se

    misturavam. Segundo Tritter (1999, p. 19), as principais diferenas entre os dois grupos

    dialetais estavam na consoante germnica /h/ bem mais marcada no Norte e nos diversos

    tratamentos dados aos ditongos. Quanto s consoantes surdas intervoclicas, houve uma

    evoluo diferente entre o Norte e o Sul. Segundo Huchon (2002, p. 70) a langue doc, em

    relao ao latim, era bem mais conservadora do que a langue dol, visto que recebera pouca

    influncia germnica. Ademais, nos sculos XII, XIII e XIV, graas aos troubadours, a

    langue doc, tournou-se uma lngua literria de prestgio pois era usada em obras de grande

    valor lingstico.

    18 Pato: dialeto essencialmente oral que difere da lngua oficial e que empregado numa rea reduzida e bem determinada pela populao do lugar (HOUAISS, 2001, p. 2149).

  • Figura 7.

    As divises dialetais romnicas.

    (WALTER, 1988, p.53).

    A terceira etapa do francs, ou francs mdio, durou da metade do sculo XIV at o

    fim do sculo XVI. Segundo Grvisse (1993, p.12-3), o desaparecimento da declinao,

    precisamente do caso sujeito, o fenmeno mais caracterstico dessa poca. Esse fato estaria

    diretamente relacionado perda da mobilidade das palavras na frase. O lugar natural do

    sujeito , a partir desse momento, antes do verbo. A liberdade da ordem das palavras na frase

    deixou de existir, tornando a lngua mais rija. Os radicais variveis do francs antigo foram

    em sua grande maioria unificados, tanto nos nomes quanto nos verbos, nos possessivos e

    tambm nos numerais. O autor observa ainda outras transformaes lingsticas importantes,

    como, por exemplo, a obrigatoriedade do pronome pessoal, o uso do artigo, o aparecimento

    do artigo partitivo e o emudecimento do [] e das consoantes finais. A partir dessa poca,

    mais precisamente no ano de 1539, o rei Francisco I tornou a lngua francesa obrigatria nos

    atos administrativos e jurdicos, atravs da Ordenana de Villers-Cotterts. A ordenana

    determinava ainda que a justia eclesistica devia se limitar s causas puramente religiosas e

    obrigava os padres de todas as parquias a manter um registro de nascimentos, dando incio

    ao estado civil.

  • A ltima etapa a do francs contemporneo19. A fundao da Academia Francesa em

    1635 por Richelieu pode ser considerada como um dos marcos fundadores desse perodo. Em

    1694, foi publicada a primeira edio do dicionrio da Academia Francesa, precedida, porm,

    pela publicao do dicionrio de Richelet, de 1680, e do dicionrio de Furetire, de 1690.

    Essas publicaes deram origem aos primeiros dicionrios monolnges do francs

    (HUCHON, 2002, p.186). Nesse momento havia uma preocupao quanto s normas para o

    bom uso da lngua. A Gramtica de Port-Royal foi o reflexo do desejo de codificao do

    francs. Nessa fase, a fontica e a morfologia no sofreram muitas mudanas, com exceo do

    som [wa] como nos vocbulos roi, moi e a substituio do -l molhado pelo yod e do -r

    enrolado pelo -r uvular.

    O sculo XVIII foi um sculo de grande enriquecimento vocabular devido ao

    desenvolvimento das cincias e da influncia dos pases anglo-saxes. Ademais, as

    modificaes institucionais provocadas pela Revoluo Francesa trouxeram tambm um

    enriquecimento lexical para as instituies. A declarao dos Direitos do Homem (sc. XVIII)

    foi redigida em francs, lngua da liberdade, da igualdade e da fraternidade (HAGGE,

    1996, p. 79). A lngua francesa deixou de ser a expresso do pensamento clssico do sculo

    XVII e passou a ser a lngua da liberdade no sculo XVIII.

    No entanto, importante sublinhar que nem todos falavam essa lngua; as camadas

    populares falavam pato. Somente no sculo XIX ela se tornou lngua da maioria, graas ao

    ensino do francs nas escolas. Esse sculo marcado pelo desenvolvimento da lingstica e

    pelo aparecimento de grandes dicionrios como o Littr e o Larousse.

    Houve tambm o surgimento de uma proposta de mudana ortogrfica da lngua que

    no foi aceita (HUCHON, 2002, p.226). No sculo XX, a lngua francesa realmente a lngua

    materna da maioria dos franceses e continua em plena transformao. Segundo Huchon

    (idem, p. 259) alguns tempos verbais estariam em regresso, como por exemplo, o passado

    simples e o imperfeito do subjuntivo, enquanto que o presente do subjuntivo no pra de ter

    seu uso ampliado, no texto escrito. Quanto lngua oral atual, ela possui algumas

    caractersticas particulares como a ausncia da negao ne e o uso do on no lugar do nous.

    Aps esse breve histrico, veremos a seguir trs verses integrais dos Juramentos.

    Primeiro teremos o texto original em lngua romana ou proto-francs, pois ele o ponto

    originrio da lngua francesa, alm de ser o nosso objeto de pesquisa. Em seguida,

    19 Apesar de termos encontrado vrias subdivises da lngua francesa entre os sculos XVII e XXI, adotaremos (como j foi dito anteriormente) o corte histrico realizado por Grvisse (1993, p.11-4), ou seja, o autor considera o francs contemporneo a partir do sculo XVII.

  • mostraremos o texto em francs contemporneo porque atravs dele poderemos refazer o

    caminho evolutivo da lngua romana do sculo IX. E, para terminar, acreditamos ser

    importante vislumbrar uma verso do texto em portugus, uma vez que nosso trabalho

    escrito na lngua de Cames.

    Do texto original, lngua romana, transcrevemos o juramento do rei: Pro deo amur et pro christian poblo et nostro commun saluament d'ist di in auant, in quant Deus sauir et podir me dunat, si saluarai eo cist meon fradre Karlo, et in aiudha et in cadhuna cosa, si cum om per dreit son frada saluar dift; in o quid il mi altresi fazet; et ab Ludher nul plaid nunquam prindrai qui; meon uol cist meon fradre Karle in damno sit.(WAGNER, 1995, p. 10)

    Aseguir,domesmodocumento,ojuramentodossoldados:

    Si Lodhuuigs sagrament, que son fradre Karlo iurat conseruat, et Karlus, meos sendra, de suo part non l'ostanit, si io returnar non l'int pois, ne io ne neuls cui eo returnar int pois, in nulla aiudha contra Lodhuuuig nun li iu er.(WAGNER,idem)

    Respectivamente,transcrevemososmesmos juramentosemfrancscontemporneo

    e,logodepoisemportugus(VASCONCELOS,s.d.210213).

    Pour l'amour de Dieu et pour peuple chrtien et notre commun20 salut de ce jour en avant, autant que Dieu m'en donne lintelligence et le pouvoir, je soutiendrai mon frre Charles ici prsent, par mon aide et en chaque chose, ainsi quon doit par droit soutenir son frre, tout autant quil fera de mme pour moi (ou ento pourvu quil fasse tout autant pour moi), et je ne prendrai jamais avec Lothaire aucun arrangement, qui de mon gr, soit au dtriment de mon frre Charles, ici prsent. Si Louis tient le serment quil jure son frre Charles, et si Charles mon seigneur de son ct le viole au cas o je ne len pourrais dtourner ni moi ni personne que jen puisse dtourner je ne lui serai daucun secours contre Louis. Por amor de Deus e pelo povo cristo e nossa comum salvao, deste dia em diante, enquanto Deus me der saber e poder, assim salvarei eu este meu irmo Carlos(aqui presente) em sua ajuda e em todas as coisas assim como por direito a seu irmo ajudar deve e no que ele me faa outro tanto e com Lotrio nunca em pleito algum entrarei que segundo a minha vontade, seja em prejuzo deste meu irmo Carlos. Se Lus cumpre o juramento que jura a seu irmo Carlos e se Carlos, meu senhor da sua parte quebra o seu, se eu desviar non o posso disso, nem eu, nem ningum que eu ende possa deter, no lhe serei eu de nenhuma ajuda contra Lus.21

    A visualizao do texto integral do Juramento nas verses romnica, francesa e

    portuguesa nos permite no somente confirmar a estreita proximidade dessas lnguas, mas

    tambm constatar que alguns termos da lngua romana so bem mais prximos do portugus

    atual do que do francs contemporneo. Observemos os exemplos di e dia, cadhuna cosa e 20 No livro de Carolina Michaelis de Vasconcelos (s.d. p.211) esta palavra est grafada com um s m, ou seja, comum, acreditamos que houve um erro da editora e colocamos, em nossa traduo do texto, a grafia correta. 21 As tradues em portugus e em francs so de Vasconcelos (s.d. 211-13). No livro s vezes h duas ou trs possibilidades de traduo para uma mesma palavra. Optamos por no transcrever aquelas que estavam entre parnteses.

  • cada uma coisa. No entanto, no abordaremos esse aspecto comparativo entre o portugus e a

    lngua romana do sculo IX neste trabalho porque nosso objetivo se limita ao estudo da

    evoluo da lngua romana at o francs contemporneo.

    2.2 A assemblia de Estrasburgo

    Situar e compreender o ambiente histrico-lingstico no qual os Juramentos foram

    pronunciados de suma importncia. Por essa razo reproduziremos abaixo o trecho da obra

    de Nithardo onde esto os Juramentos. Ao lado da verso original latina22 h uma verso em

    portugus. Conforme j exposto na nota de rodap nmero 2, pgina 9, as tradues do latim

    para o portugus foram realizadas pelo Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior; nos extratos

    seguintes, em particular, quando se tratar das tradues do trecho dos Juramentos

    propriamente ditos, estes foram extrados de Vasconcelos (s.d., p.211-13).

    Verso original Verso em portugus

    Ergo XVI kal marcii Lodhuvicus et

    Karolus in civitate que olim Argentaria

    vocabatur, nunc autem Strazburg vulgo

    dicitur, convenerunt et sacramenta que

    subter notata sunt, Lodhovicus romana,

    Karolus vero teudisca lingua, juraverunt.

    Ac sic, ante sacramentum, circumfusam

    plebem alter teudisca, alter romana lingua,

    alloquuti sunt. Lodhuvicus autem, quia

    major natu, prior exorsus sic coepit :

    Ento, no 16 dia das calendas de maro, Lus

    e Carlos se reuniram na cidade que outrora se

    chamava Argentaria, mas que hoje

    comumente chamada de Estrasburgo, e

    fizeram, Lus em lngua romana e Carlos em

    lngua tedesca, os juramentos que so

    narrados abaixo. Mas antes de fazer

    juramento, eles discursaram um em lngua

    tedesca, outro em lngua romana, para o povo

    ao redor. Lus, porque era o mais velho, usou

    primeiro da palavra nesses termos:

    Quotiens Lodharius me et hunc fratrem

    meum, post obitum patris nostri,

    insectando usque ad internecionem delere

    conatus sit nostis. Cum autem nec

    Vs sabeis quantas vezes Lotrio se esforou

    para aniquilar, depois da morte de nosso pai,

    a mim e a meu irmo aqui presente, at o

    extermnio. J que nem o parentesco nem o

    22 Com o objetivo de distinguir melhor as duas verses, o texto original ser grafado em negrito.

  • fraternitas nec christianitas nec quodlibet

    ingenium, salva justicia, ut pax inter nos

    esset, adjuvare posset, tandem coacti rem

    ad juditium omnipotentis Dei detulimus, ut

    suo nutu quid cuique deberetur contenti

    essemus. In quo nos, sicut nostis, per

    misericordiam Dei victores extitimus, is

    autem victus una cum suis quo valuit

    secessit. Hinc vero, fraterno amore correpti

    nec non et super populum christianum

    conpassi, persequi atque delere illos

    noluimus, sed hactenus, sicut et antea, ut

    saltem deinde cuique sua justicia cederetur

    mandavimus.

    sentimento cristo nem qualquer que seja o

    engenho que houvesse poderia ajudar a

    manter a paz entre ns, respeitando a justia,

    enfim forados pela necessidade, nos

    entregamos ao julgamento de Deus

    onipotente, de modo a que ficssemos felizes

    com o que fosse devido a cada um com seu

    consentimento. Nisso, como sabeis, pela

    misericrdia de Deus fomos vitoriosos, e ele,

    vencido de uma vez, retirou-se com os seus,

    para o lugar onde prevalecem.

    Mas em seguida, tomados pelo amor fraternal

    e para que no sofrssemos alm do povo

    cristo, ns no quisemos persegui-lo e

    aniquil-los, mas at aqui, como tambm

    antes, mandamos dizer que ao menos depois

    disso a cada um fosse cedida sua justia.

    At ille post haec non contentus judicio

    divino, sed hostili manu iterum et me et

    hunc fratrem meum persequi non cessat,

    insuper et populum nostrum incendiis,

    rapinis cedibusque devastat. Quamobrem

    nunc, necessitate coacti, convenimus et,

    quoniam vos de nostra stabili fide ac firma

    fraternitate dubitare credimus, hoc

    sacramentum inter nos in conspectu vestro

    jurare decrevimus.

    Mas ele, depois disso, no contente com o

    juzo divino, no cessa de perseguir com

    hostilidade tanto a mim quanto a este meu

    irmo, aqui. Alm disso, tambm devasta

    nosso povo com incndios, pilhagens e

    massacres. Por isso, agora, obrigados pela

    necessidade, nos reunimos e, j que

    acreditamos que vs duvidais de nossa

    estvel fidelidade e firme fraternidade,

    decidimos fazer este juramento entre ns,

    vossa vista.

  • Non qualibet iniqua cupiditate illecti hoc

    agimus, sed ut certiores, si Deus nobis

    vestro adjutorio quietem dederit, de

    communi profectu simus. Si autem, quod

    absit, sacramentum quod fratri meo

    juravero violare praesumpsero, a

    subditione mea necnon et a juramento

    quod mihi jurastis unumquemque vestrum

    absolvo.

    No fazemos isto, enlaados a alguma inqua

    cupidez, mas para que, se Deus, com vosso

    auxlio nos der tranqilidade, tenhamos

    proveito em comum. Mas se que seja

    afastado eu primeiro ousar violar o

    juramento que fiz a meu irmo, libero

    qualquer um de vs de compromisso comigo

    e tambm de juramento que tiverdes feito a

    mim.

    Cumque Karolus haec eadem verba

    romana lingua perorasset, Lodhuvicus,

    quoniam maior natu erat, prior haec

    deinde se servaturum testatus est :

    E quando Carlos repetiu as mesmas

    declaraes em lngua romana, Lus, como o

    mais velho, foi o primeiro que prometeu

    cumprir o que se segue :

    Pro Deo amur et pro christian poblo et

    nostro commun salvament, d'ist di in

    avant, in quant Deus savir et podir me

    dunat, si salvarai eo cist meon fadre Karlo

    et in aiudha et in cadhuna cosa, si cum om

    per dreit son fadra salvar dift, in o quid il

    mi altresi fazet et ab Ludher nul plaid

    nunquam prindrai, qui, meon vol, cist

    meon fadre Karle in damno sit.

    Por amor de Deus e pelo povo cristo e

    nossa comum salvao, deste dia em diante,

    enquanto Deus me der saber e poder, assim

    salvarei eu este meu irmo Carlos (aqui

    presente) em sua ajuda e em todas as coisas

    assim como por direito a seu irmo ajudar

    deve e no que ele me faa outro tanto e com

    Lotrio nunca em pleito algum entrarei que,

    segundo a minha vontade, seja em prejuzo

    deste meu irmo Carlos.

  • Quod cum Ludhovicus explesset, Karolus

    teudisca ligua si hec eadem verba testatus

    est:

    Como Lus terminou, Carlos repetiu o mesmo

    juramento em lngua alem23:

    In Godes minna ind in thes christianes

    folches ind unser bedhero gehaltnissi, fon

    thesemo dage frammordes, so fram so mir

    Got geuuizci indi mahd furgibit, so haldih

    thesan minan bruodher, soss man mit

    rehtu sinan bruher scal, in thiu thaz er mig

    so sama duo, indi mit Ludheren in

    nohheiniu thing ne gegango, the, minan

    uuillon, imo ce scadhen uuerdhen.

    Por amor de Deus e pela salvao do povo

    cristo e nossa salvao a todos dois, a partir

    deste dia em diante, enquanto Deus me der

    saber e poder, eu socorrerei este meu irmo,

    como se deve segundo a eqidade socorrer a

    seu irmo, com a condio que ele faa o

    mesmo para mim, e eu no entrarei em

    nenhum acordo com Lotrio que de minha

    vontade possa lhe ser prejudicial.

    Sacramentum autem quod utrorumque

    populus, quique propria lingua, testatus

    est, romana lingua sic se habet:

    E o juramento que o povo de um e de outro

    prestou, cada um em sua prpria lngua, em

    lngua romana assim se mantm:

    Si Lodhuuigs sagrament que son fradre

    Karlo iurat conservat et Karlus, meos

    sendra, de suo part non l'ostanit, si io

    returnar non l'int pois, ne io ne neuls cui eo

    returnar int pois, in nulla aiudha contra

    Se Lus cumpre o juramento que jura a seu

    irmo Carlos e se Carlos, meu senhor da sua

    parte quebra o seu, se eu no o posso desviar

    disso, nem eu, nem ningum que eu disso

    possa desviar, no lhe serei eu de nenhuma

    23 A traduo do trecho em alemo foi feita por ns atravs da traduo francesa de Ph. Lauer, bibliotecrio do departamento dos manuscritos da Biblioteca Nacional da Frana que se encontra no livro "Nithard - Histoire des fils de Louis le Pieux" publicado sob a direo de Louis Halphen na coleo "Les Classiques de l'Histoire de France au Moyen Age", Paris, Librairie ancienne Honor Champion, 1926.

  • Lodhuuuig nun li iu er. ajuda contra Lus.

    Teudisca autem lingua: E em lngua alem:

    Oba Karl then eid then er sinemo

    bruodher Ludhuuuige gesuor geleistit, indi

    Ludhuuuig, min herro, then er imo gesuor

    forbrihchit, ob ih inan es iruuenden ne

    mag, noh ih noh thero nohhein, then ih es

    iruuenden mag, uuidhar Karle imo ce

    follusti ne uuirdhit.

    Se Carlos cumpre o juramento que ele fez

    para seu irmo Lus e se Lus, meu senhor,

    rompe aquele aquele que jurou, se eu no

    posso dissuad-lo, nem eu nem nenhum

    daqueles que eu poderia dissuadir, ns no

    lhe daremos nenhuma ajuda contra Carlos.

    Quibus peractis Lodhuwicus Renotenus

    per Spiram et Karolus juxta Wasagum per

    Wizzunburg Warmatiam iter direxit

    Terminado, isso, Lus se dirigiu ao longo do

    Reno, por Spire, e Calos aos Voges, por

    Wissembourg, a Warmatia.

    Atravs do original de Nithardo acima reproduzido, pode-se perceber com facilidade o

    ambiente solene no qual foram pronunciados os Juramentos. Destarte, no 16 dia das calendas

    do ms de maro24 de 842, os dois filhos de Lus, o Piedoso, Carlos, o Calvo e Lus, o

    Germnico, se encontraram em Estrasburgo para acabar com as dissidncias existentes entre

    eles e Lotrio. Segundo Wagner (1995, p. 5), Carlos e Lus, antes de assumirem o

    compromisso de paz e ajuda mtua naquele encontro, teriam realizado 13 entrevistas

    anlogas. Certamente as lnguas utilizadas para a comunicao durante as assemblias foram a

    romana e a tedesca. Os dois reis devem ter explicado aos seus sditos, atravs de uma

    adnuntiatio, os motivos pelos quais estariam sendo levados a selar aliana contra Lotrio,

    imperador e irmo mais velho.

    24 Estamos adotando aqui a data do manuscrito que segue o calendrio romano.

  • Quanto estrutura dos Juramentos, trata-se na realidade de um texto em dois tempos e

    quatro movimentos, melhor dizendo, so compostos, por quatro partes: os dois textos em

    lngua romana (o juramento de Lus ao seu irmo e a resposta dos soldados deste) e os dois

    textos em alemo (o juramento de Carlos por sua vez, ao seu irmo e a resposta dos soldados

    deste). Assim sendo, os dois irmos se manifestaram cada um na lngua do outro, enquanto

    que os soldados falaram espontaneamente nas suas prprias lnguas.

    Segundo Wagner (1995, p. 5), o texto francs dos Juramentos possui um marcante

    carter jurdico. Essa caracterstica teria como origem a chancelaria carolngia e esta, por sua

    vez, seria fortemente influenciada por uma forma de escrita administrativa. Apesar de todo o

    estilo formal e pouco natural do Juramento, h hipteses quanto sua procedncia lingstica.

    S. dArco Avalle e A. Castellani (apud WAGNER idem, ibidem) vem nele marcas de um

    dialeto poitevino ou do norte da Aquitana. J Cerquiglini, na sua obra Le Roman de

    l'orthographe de 1996 (apud www.langue-fr.net/d/origines/serment-strasbourg), vislumbra a

    possibilidade de uma lngua transdialetal:

    Une rflexion sur la nature de la langue crite est perceptible dans ses effets ds les premiers textes. Elle conduit l'emploi dans ces textes d'une langue transdialectale, pour ne pas dire nationale. Comment expliquer qu'aprs un sicle d'enqutes et de propositions les plus diverses, la philologie n'ait pas dtermin en quel dialecte taient rdigs les Serments de Strasbourg (842) ? Il faut convenir que ce document diplomatique ne fut point prpar en lorrain, messin, picard, lyonnais ou poitevin, mais dans une langue transdialectale soigneusement labore : un franais crit, que l'on pourrait dire national, monument stable de la langue.25

    O pensamento de Cerquiglini nos faz refletir no somente sobre a forma da escrita do

    documento, trata-se de um documento diplomtico, mas sobretudo sobre sua origem. O fato

    de a lngua adotada ser pensada e cuidadosamente elaborada, dava-lhe, a essa lngua, um

    carter transdialetal. O autor afirma que se pode at falar numa lngua nacional, de carter

    estvel e que estaria acima de particularismos dialetais. Essa seria a razo pela qual a filologia

    no teria conseguido determinar, at os dias de hoje, em qual dialeto o documento foi

    redigido.

    25 Uma reflexo sobre a natureza da lngua escrita perceptvel a partir dos seus efeitos desde os primeiros textos. Ela conduz ao emprego nesses textos de uma lngua transdialectal, para no dizer nacional. Como explicar que depois de um sculo de pesquisas e propostas as mais diversas, a filologia no tenha determinado em qual dialeto foram redigidos os Juramentos de Estrasburgo (842)? preciso aceitar que esse documento diplomtico no foi preparado em loreno, messino, picardo, lions ou poitevino, mas numa lngua transdialetal cuidadosamente elaborada: um francs escrito, que poder-se-a dizer nacional, monumento estvel da lngua.

  • 2.3 Estudo dos vocbulos

    A anlise filolgica ser do texto original do sculo IX para o francs contemporneo.

    Realizaremos um estudo detalhado do texto pronunciado por Lus, o Germnico26, j que

    Carlos jurou em lngua alem. No que diz respeito ao texto pronunciado pelos soldados,

    analisaremos a sua totalidade e as expresses que merecerem destaque.

    Com o objetivo de realizar um exame evolutivo aprofundado, faremos um estudo

    diacrnico dos vocbulos da lngua romnica. Dessa maneira, poderemos tanto voltar ao latim

    clssico do sculo I, quanto ao latim popular do sculo VII ou passar pelo francs antigo do

    sculo XI ou ainda pelo francs mdio do sculo XV. Adotaremos para o estudo evolutivo,

    uma cor para designar cada lngua ou perodos diferentes de uma mesma lngua. Assim

    teremos:

    latim clssico (sc. I)

    latim popular (sc. VII)

    lngua romana (sc. IX)

    francs antigo (sc. XI)

    francs mdio (sc. XV)

    francs contemporneo

    2.3.1 O Juramento de Lus, o Germnico

    1) Pro deo amur > Pour l'amour de Dieu

    Per/Pro >Por > Pro > Por > Pour > Pour

    Dei > Deo> Deo > Dieu > Dieu > de Dieu

    amorem > amore > amur > amor > l'amour > l'amour

    A preposio pro (apesar de existir per) do latim clssico foi aqui adotada, embora

    houvesse a forma por do latim popular. A forma pour do francs contemporneo poderia ser

    uma variao do pro + por ou, mais provavelmente, ocorreu a queda da vibrante -r. A forma

    26 O estudo evolutivo detalhado dos vocbulos do Juramento foi realizado a partir das verses do latim clssico, do latim popular, da lngua romana, do francs antigo, do francs mdio e do francs contemporneo existentes no site da Universidade Laval. (http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/francophonie/perioderomanestrasbourg.htm)

  • contempornea est foneticamente mais prxima do latim popular do que da lngua romana

    escrita.

    Segundo Carolina Michalis de Vasconcelos (s.d., p. 211), Deo m grafia de Deu

    forma anterior de Dieu, no caso oblquo, perdendo -s. No francs contemporneo, observamos

    a presena da preposio de do genitivo (adjunto adnominal).

    O nominativo amur pede um artigo no francs contemporneo. Foneticamente no

    houve modificao no vocbulo, porm a grafia do u latino tornou-se ou.

    2) et pro christian poblo et nostro commun saluament > et pour le peuple chrtien et notre

    commun salut

    et > et > et > et > et > et

    christiani > chrestyano > christian > crestiien> chrestien > chrtien

    populi > poblo > poblo > poeple > peuple > peuple

    nostram > nostro > nostro > nostre > nostre > notre

    communem > comune > commun > comum> commun > commun

    salutem > salvamento > saluament > salvement> sauvement > salut

    A conjuno et no sofreu nenhuma modificao desde o latim at o francs

    contemporneo. A forma christian registrada no documento aproxima-se da forma do latim

    clssico christiani; no entanto, a forma chrtien contempornea tem mais proximidade com

    o latim popular. Poblo j a forma do latim popular vinda do latim clssico populi, de

    populus povo que passa a ser poeple no francs antigo e peuple no francs mdio e

    contemporneo. A consoante oclusiva sonora labial de poblo torna-se surda a partir do francs

    antigo. O pronome possessivo nostro o mesmo do latim popular. O fenmeno do

    desaparecimento do -s do meio dos vocbulos latinos bastante comum no francs

    contemporneo, ou seja, nostro > notre, assim como tambm comum a troca da vogal final

    o pelo e mudo. Commun no sofreu modificaes e saluament do latim clssico salutem -

    de saler perde a desinncia -ment evoluindo para salut.

    3) d'ist di in auant > de ce jour en avant,

    ab > de esto > d'ist > de cest > de cest > de ce

  • die > die > di > jorn > jour > jour

    hac > en avante > in auant > en avant > en avant > partir

    Dist da preposio latina de + pronome demonstrativo ist. A preposio permanece

    idntica no francs contemporneo j o pronome demonstrativo sofre transformaes

    considerveis, ist > ce. Di uma corruptela do vocbulo latino diem. Jour tem origem no

    latim clssico: diem > diurnum > jor(n) > jour. Embora no tenhamos registrado na evoluo

    da palavra a forma jur, no podemos deixar de cit-la. H vrios registros de jur em

    documentos do final do sculo XI como no verso 718 do poema pico, Cano de Rolando,

    Tresvait le jur, la noit est aseri(ANDRIEUX-REIX, 1997, p. 84).

    In (preposio/prevrbio) > en - em, para + auant, do latim popular abantiare, de

    abante forma reforada de ante em diante. Quanto a essa preposio in, Vasconcelos (s.d.

    p. 211), observa que no manuscrito est en com -e traado, e um ponto por baixo, o que

    significa a necessidade de o revisor raspar e alterar a letra errada. Ab hac die a forma do

    latim clssico para a expresso acima. O termo que se encontra no Juramento, d'ist, deriva

    provavelmente do latim popular de esto.

    4) in quant Deus sauir et podir me dunat > autant que Dieu m'en donne lintelligence27 et

    le pouvoir

    quantum > quanto > in quant > quan que > quan que > autant que

    Deus > Deos > Deus > Dieus > Dieu > Dieu

    scire > sabere > sauir > saveir > savoir > savoir

    Posse > podere > podir > podeir > pouvoir > le pouvoir,

    mihi > me > me > me > me > m'en

    dat > donat > dunat > donct > done > donne

    In quant do latim clssico, quantum locuo conjuntiva, serve de oposio e de

    coordenao causal com a frase anterior transforma-se em quan que no francs antigo e

    autant que no francs contemporneo. Deus (nominativo) perde o -s final por volta do sculo

    27 Embora na traduo o termo escolhido para sauir, tenha sido intelligence, preferimos ser o mais fiel possvel ao original no estudo evolutivo, ou seja, savoir.

  • XV. Quanto aos verbos sauir e podir, observemos o comentrio de Vasconcelos (idem p.

    211):

    Com relao aos infinitivos savir et podir, discutiu-se se ir seria grafia imperfeita por eir (o histrico saveir, podeir precedeu savoir, pouvoir, ou se realmente houve infinivos em ir, o que possvel, em vista da desordem verificada nos tempos pre- e proto-histricos entre os verbos em -re, -re, -ire, embora em todas as lnguas romnicas sapere e potere (em lugar de posse) pertenam segunda conjugao. Tenere, p. ex., deu tambm em fr. ant. tenir e tenoir.

    Voltando origem clssica, temos para o infinitivo savoir < sapre/sci saber, ter

    conhecimento e para o infinitivo pouvoir < possum/posse poder, ser capaz passando

    pelo latim popular, podere/potere, por analogia com a maior parte dos verbos a partir das

    formas com radical pot. Me tem como origem mihi do latim clssico (dativo) de go para

    mim. Donne do francs contemporneo est bem prximo do donat do latim popular.

    interessante notar a necessidade do pronome adverbial en apenas no francs contemporneo,

    apesar de ele ser derivado do latim inde (registro de 842) que significa de l, daquele lugar.

    (LAROUSSE, 1993, p.628). Segundo Wagner et Pinchon (1962, p. 183), os pronomes en e y

    so pronomes adverbiais, vocbulos de repetio que tm um valor duplo. Advrbios

    originalmente, servem tambm como pronome. Como advrbio, en exprime um lugar e

    representa um complemento circunstancial j expresso. Como pronome, pode substituir um

    termo dito anteriormente tendo a funo de um complemento outro que o circunstancial de

    lugar.

    5) si saluarai eo cist meon fradre Karlo > je soutiendrai28 mon frre Charles ici prsent

    seruabo > salvarayo > saluarai > salverai > sauverai > soutiendrai

    go> eo > eo > si j > si je > je

    Hunc > eccesto > cist > cest > cest > ce, cet

    meum > meon > meon > mien > mien > mon

    fratrem > fradre > fradre > fredre > frere > frre

    Carolum > Karlo > Karlo > Charlon > Charle > Charles

    28 Embora na traduo o verbo escolhido para saluarai tenha sido soutiendrai, no estudo evolutivo do vocbulo preferimos o termo sauverai.

  • Em saluarai, observamos a formao do futuro em francs, uma espcie de futuro

    composto diferente do futuro latino. Na realidade, tem-se a forma infinitivo + verbo avoir

    conjugado; assim, saluarai saluer ai; em francs contemporneo seria uma idia; prxima

    de jai sauver ento, se hei de salvar, de fazer algo, eu salvarei, eu farei.

    Ademais no verbo saluarai do infinitivo latino salutare salvar , observamos uma

    evoluo bem comum lngua francesa: o l consoante lateral anterior torna-se a vogal u,

    isto , sauver. Quanto ao demonstrativo do latim popular eccesto, evolui no sculo IX para a

    forma cist, que indica presena. Com o substantivo fradre, se voltarmos ao latim clssico

    frter, observamos a passagem da consoante surda anterior -t para a sonora -d e, em seguida,

    h a queda da consoante sonora d, provocando a abertura da vogal e, frre. Em Karlo h a

    evoluo do [k] para o [] de Charles. 6) et in aiudha et in cadhuna cosa > par mon aide et en chaque chose

    ope mea > en ayuda > in aiudha > en aiude > par mon aide > par mon aide

    quamcumque re > caduna causa > cadhuna cosa > chascune chose > chascune chose > et

    en chaque chose

    A palavra aiudha deriva do latim adjutare ajuda. Voltando para a origem clssica,

    observamos a queda da consoante oclusiva sonora anterior -d e na escrita h a troca do -j pelo

    i. Quanto expresso cadahuna cosa, no francs contemporneo chaque chose, observamos

    a mesma evoluo da consoante surda posterior [k] para []. A palavra tem origem na expresso do latim popular unum cata unum.

    7) si cum om per dreit son frada saluar dift > ainsi qu on doit par droit soutenir son frre

    ut quilibet > sic qomo > si cum > si come > si comme > comme

    homo > omo > om > on > on > on

    suum > son > son > son > son > son

    fratem > fradre > frada > fredre > frere > frre

    seruare > salvare > saluar > salver > sauver > soutenir

  • iure debet > per drecto ... devet > per dreit ... dift > par dreit ... deit> par droit > doit par

    droit

    Neste trecho, observamos a presena do vocbulo om. Vasconcelos (s.d., p. 211)

    comenta esse nominativo de homo, j no sentido on do francs contemporneo algum, as

    pessoas, ns. Esse termo na Idade Mdia era comum a todas as lnguas romnicas. Ela

    tambm tece comentrios em relao ao vocbulo dift que fora lido pelos primeiros editores

    como dist devido falta de clareza do manuscrito. O possessivo son no sofreu qualquer

    mudana desde o latim popular, permanecendo com a mesma grafia at hoje. O vocbulo

    dreit passa a ser droit no franc