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#23 ½ EDIÇÃO ESPECIAL PARA A FLIP 2016

serrote #23½

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Edição especial gratuita distribuída durante a FLIP 2016.

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#23 ½ EDIÇÃO ESPECIAL PARA A FLIP 2016

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#23 ½ EDIÇÃO ESPECIAL PARA A FLIP 2016

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instituto moreira salles Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador

Diretoria executiva João Moreira Salles Presidente Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente

Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves diretores executiVos

serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro.

Esta serrote #23 ½ só circula, gratuitamente, na FliP 2016. coMissÃo editorial Alice Sant’Anna, Daniel Trench, Eucanaã Ferraz,

Flávio Pinheiro, Gustavo Marchetti, Heloisa Espada, Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr.

editor Paulo Roberto Pires diretor de arte Daniel Trench coordenaÇÃo editorial Alice Sant’Anna e Flávio Cintra do Amaral

assistente de arte Gustavo Marchetti ProduÇÃo grÁFica Acássia Correia PreParaÇÃo e reVisÃo de textos Livia Deorsola,

Livia Lima e Marília Garcia checageM José Genulino Moura Ribeiro, Luciana Sanches e Regina Pereira

© Instituto Moreira Salles Av. Paulista, 2439/6º andar São Paulo sP Brasil 01311-300 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497

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As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação

da serrote não serão devolvidos.

© Alice Sant’Anna; “Art or Industrie?” autorizado por Patricia Power, sucessora dos direitos de Alain Renoir pelas obras de Jean Renoir.

agradeciMentos Elizama Almeida, Flavio Lenz, Manoela Purcell Daudt D’Oliveira e Patricia Power.

caPa Veridiana Scarpelli

PÁgina de rosto Ana Cristina Cesar em viagem ao Chile, 1983. Foto de Waldo Cesar. Acervo Ana Cristina Cesar/iMs.

assinaturas 11.3971.4372 ou [email protected] www.revistaserrote.com.br

#23 ½ julho 2016

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Alice Sant’Anna

Caderno de Ana Cristina Cesar mostra os bastidores da criação de A teus pés, uma complexa operação de citações e apropriações de música e poesia

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Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias.Ana Cristina Cesar, Luvas de pelica

Por pouco, o único livro de poesia que Ana Cristina Cesar lançou pra valer não teve outro título. “Branco e blue”, “Instantâneo blue”, “Bem objetivo” e “Lá fora” estão entre as ideias anotadas a caneta num caderno preto. A poeta ra-surou quase todas, uma a uma, e riscou um enorme X de cima a baixo. A teus pés, título que vingaria, não era sequer uma possibi lidade. No verso da capa, caneta azul e letra apressada, espécie de canteiro de obras que hoje faz parte de seu acervo, desde 1999 sob a guarda do Instituto Moreira Salles, ela cunhou: Meios de transporte.

Tudo leva a crer que esse caderno de capa dura, pautado, tipo escolar, era uma tentativa de organizar o volume que seria lançado em 1982, pela Brasiliense, na coleção Cantadas Literárias. Dos 43 poemas de A teus pés, apenas os nove que fecham o livro não apareciam nos rascunhos – embora dois deles, “Samba-

-canção” e “Travelling”, estivessem anexados em folhas avulsas, datilografadas. Ana estava escrevendo, avaliando, montando. Alguns poemas saíram em

livro exatamente como aparecem no caderno. Outros foram mexidos, reescri-tos. Muitos foram descartados e reunidos postumamente, em 1985, em Inéditos e dispersos, organizado por Armando Freitas Filho. E uma porção de entra-das – ideias, anotações, textos abandonados – permanece inédita. Há também indicações sobre a ordem de poemas, hesitações sobre a grafia de uma palavra estrangeira e uma profusão de pontos de interrogação, “nãos” e “sins”.

Mas por que esse título, Meios de transporte?

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“Não há Fragata igual a um livro”Em Crítica e tradução (1999) – volume póstumo também organizado por Armando Freitas Filho, que reúne Literatura não é documento, Escritos no Rio e Escritos da Inglaterra, além de alguma poesia traduzida –, Ana traduz um poema de Emily Dickinson. Identificados na obra da autora como “1263”, os versos relacionam poesia e viagem:

Não há Fragata igual a um livro, que daquiNos distancieNem Corcel que galope mais que um VersoDe poesia –Não custa Pedágio ao pobreEssa Travessia –Frugal é o Carro que nos levaNesta Via.

No comentário que se segue à tradução, Ana chama a atenção para as quatro metáforas que evocam, de modo bastante conciso, os “poderes da literatura”:

“reading is like travelling”. Seja a fragata, o corcel a galope, os pés na travessia ou o carro, as quatro imagens do poema de Emily Dickinson se concentram na locomoção, na ideia de se distanciar de um ponto original. “Ler é como viajar”: importa menos aonde se chega, e mais o percurso. “Felicidade”, Ana escreve no penúltimo poema de A teus pés, “se chama meios de transporte”.

O deslocamento é marca frequente na poética de Ana. São mapas de navega-ção, pontes, colinas, aeroportos, esquinas, degraus, navios, aviões, raptos, túneis, passageiros, pilotos, ambulâncias. “Concorde. Bonde do desejo. Espaçonave”,

“três barcos colados imóveis no meio do grande rio”, um amigo que vive em táxis, “atravanco na contramão”, “carro em fogo pelos ares”, “side-car anfíbio”. Corrida pelo museu, barcas, “luzes de automóveis”, trilhos do trem, “subidas” para Petrópolis, “helicóptero sobrevoando”, “motorista de perícia desvairada”, traslados, passaportes, “escrevendo no automóvel”, dirigindo em círculos.

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“Um tea for two total”Por falar em “luzes de automóveis”, o poema sem título que começa com

“é muito claro/ amor/ bateu/ para ficar” ganhou, em Meios de transporte, três versões na mesma página, em tinta preta. Chegou à forma final em tinta azul. O início é o mesmo em todos os rascunhos. O que muda nesse canteiro de obras, roubando a imagem do poema, é o desfecho: os versos empilhados da metade para o fim, a partir de “no teu peito”, trocaram de ordem até che-gar à versão estabelecida em A teus pés. Ficou assim:

é muito claro amorbateu para ficarnesta varanda descobertaa anoitecer sobre a cidadeem construçãosobre a pequena constriçãono teu peitoangústia de felicidadeluzes de automóveisriscando o tempocanteiros de obrasem repousorecuo súbito da trama

Não é por acaso que o poema abre com uma alusão a “Love Is Here to Stay”, canção de 1938 de George e Ira Gershwin. Ao longo do livro e do caderno, há outras pistas do quanto o chamado american songbook, repertório de can-ções populares americanas apropriadas pelo jazz, é uma referência constante. No poema em prosa “Este livro”, a palavra “jazz” está escrita com todas as letras. É um “tea for two total”, ela diz, assim como na canção de Vincent Youmans e Irving Caesar, de 1925: um retrato da família completa que o casal vai formar – “a boy for you/ and a girl for me” – com bolos que sairão do forno logo de manhã cedo, sem telefonemas ou visitas para interromper. Uma pro-messa de felicidade, que aparecia assim em Meios de transporte:

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Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.

E cante comigo: “Dream a while… Happiness… And I guess…”So far. Tão longe. Por enquanto o “you know damn well, well, well…”E cante.Puro açúcar branco e blue.

Apesar de o poema estar marcado como pronto no caderno, assinalado com um “ok”, a versão publicada em A teus pés tem duas linhas cortadas. Ana eliminou a men-ção a “I Can’t Give You Anything but My Love”, canção de 1928 de Dorothy Fields e Jimmy McHugh, gravada por meio mundo, de Billie Holiday a Louis Armstrong. Na letra, romântica até não poder mais, um homem dedicado assegura que, embora não tenha dinheiro para comprar pulseiras de diamantes, o amor é garantido. A felici-dade, de novo, é promessa. “Este livro” ficou mais curto em A teus pés:

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.

E cante.Puro açúcar branco e blue.

Há ainda, em Meios de transporte, duas entradas que começam com o mesmo verso: “Canta blues com ela:”. Nenhuma das duas foi publicada em livro. A primeira faz referência direta à letra de “Old Fashioned”, de Alberta Hunter:

Canta blues com ela:Yes, I’ve got that old-fashioned love in my heart.Oh oh changes can tear it apart

’cause I’ve got that old old fashioned love in my heart

A segunda, lá pro fim do caderno, na página 32, brinca com “A Good Man Is Hard to Find”, de Eddie Green, gravada por Frank Sinatra em 1951. Se a canção original, homônima ao livro de Flannery O’Connor, diz que é difícil encontrar um homem bom, porque você sempre acaba com “the other kind”, Ana Cristina responde com a letra de “Handy Man”, canção de 1959 de Jimmy Jones e Otis Blackwell:

Canta blues com ela:Whoever said a good man was hard to findPositively absolutely sure was blind

‘Cause I’ve just found the best man that ever wasAnd here are a few things he does

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O jazz está presente também na última página do livro, na lista de nomes de amigos e autores com quem Ana dialoga, de quem rouba versos. Espécie de agradecimento ou pista para as várias chaves de leitura, o “Índice onomástico” em Meios de transporte é uma das marcas que evidenciam o rascunho de A teus pés. Assim como aconteceu com os poemas, essa lista também passou por mudanças consideráveis.

Para o livro, a poeta cortou os nomes de Emily Brontë, Lewis Carroll, T.S. Eliot, Italo Svevo e do crítico José Guilherme Merquior. Cortou também, vol-tando a falar em música, os de Keith Jarrett, Fats Waller e da própria Alberta Hunter. Já o nome de Billie Holiday foi mantido.

Algumas menções que não estavam no “Índice onomástico” original apare-cem no livro. O último nome, Walt Whitman – merecedor de um apaixonado elogio na resenha “O rosto, o corpo, a voz”, publicada pelo Jornal do Brasil em abril de 1983 –, embora rasurado com uma interrogação ao lado, no caderno, voltou à página em A teus pés. E Ana acrescentou ainda menções às amigas Grazyna Drabik e Katia Muricy e a James Joyce e Cecília Meireles.

“Certas vozes claras”Em Meios de transporte, a lista é acompanhada por uma espécie de explicação:

“Certas vozes claras/ objetos obscuros voando”. E, ainda, no verso da quarta capa, outra anotação: “Certas fontes”. É possível que, nos bastidores, o índice tivesse o objetivo de deixar a lista mais compreensível para o leitor – ou talvez servisse apenas como organização interna para a própria Ana. Em A teus pés, não ficou nenhum esclarecimento sobre as fontes. Abaixo da lista, na última página do livro, está escrito “Dedicatória” e, na linha inferior, “E este é para o Armando”. Já em Meios de transporte, a dedicatória está na primeira página, junto com os possíveis títulos, e uma seta aponta para baixo: “Armando Freitas Filho”.

O índice, como se vê, é um dispositivo, uma entrada para o livro. Tem a fun-ção dos créditos finais de um filme, passando na tela preta. Manuel Bandeira, que não podia deixar de constar na lista, é uma das referências explícitas de Ana pela simplicidade, o ar estudadamente espontâneo e o gosto pelo material bruto cotidiano, à primeira vista desimportante.

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De “Variações sérias em forma de soneto”, parte de Estrela da tarde (1960), a poeta saca o segundo verso da primeira estrofe – “Vejo mares tranqui-los, que repousam,/ Atrás dos olhos das meninas sérias./ Alto e longe elas olham, mas não ousam/ Olhar a quem as olha, e ficam sérias” – para intitular dois poemas. “Em que pensais, meninas, se repousam/ Os meus olhos nos vossos?”, pergunta Bandeira. E se as “Variações” terminam com a seguinte estrofe: “Mas poderei dizer-vos que eles ousam?/ Ou vão, por injunções muito mais sérias,/ Lustrar pecados que jamais repousam?”, o poema de Ana, em contrapartida, diz assim:

Atrás dos olhos das meninas sérias

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,por injunções muito mais sérias, lustrar pecadosque jamais repousam?

Em Atrás dos olhos pardos – Uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, Maria Lucia de Barros Camargo se refere à escrita de Ana como “palimpséstica”, cheia de “vampiragens”. Neste poema em especial, Ana desconstrói o decassílabo e a rima da última estrofe do poema de Bandeira para chegar ao texto corrido, na fronteira entre a poesia e a prosa. Além de desmanchar a estrutura dos versos, Maria Lucia chama a atenção para uma mudança pequena, mas estrutural, de apenas uma letra: se “eles”, no poema de Bandeira, seriam os “meus olhos”, no poema de Ana, “eles” viram “elas”. Elas, as meninas sérias.

A vampiragem – ou homenagem, bem entendido – se estende a Francisco Alvim, também presente no “Índice onomástico”. Ana escreve:

Sem você bem que sou lago, montanha.Penso num homem chamado Herberto.Me deito a fumar debaixo da janela.Respiro com vertigem. Rolo no colchão.E sem bravata, coração, aumento o preço.

Em Meios de transporte, o poema ia se chamar “Sem você”. Em A teus pés, ficou sem título. Lago, montanha, no primeiro verso do poema de Ana, é o título do livro que Chico Alvim lançou em 1981 – um ano antes de o livro de Ana ser publicado, portanto. Há mais uma referência a Chico Alvim, em “Conversa de senhoras”. Na primeira versão, em Meios de transporte, escrita com tinta azul na página direita, Ana introduz o poema com “Hommage a Alvim Chico”.

“Alvim” está rasurado. E a poeta anota ao lado, no alto: “Pós-marginal 81”. Um X corta a página de cima a baixo. A versão acabada aparece com Pilot preto, na página esquerda, sem a menção.

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Conversa de senhoras

Não preciso nem casarTiro dele tudo o que precisoNão saio mais daquiDuvido muitoEsse assunto de mulher já terminouO gato comeu e regalou-seEle dança que nem um realejoEscritor não existe maisMas também não precisa virar deusTem alguém na casaVocê acha que ele aguenta?Sr. ternura está batendoEu não estava nem aíConchavando: eu faço a tréplicaArmadilha: louca pra saberEla é esquisitaTambém você mente demaisEle está me patrulhandoPara quem você vendeu seu tempo?Não sei dizer: fiquei com o gaucheNão tem a menor lógicaMas e o trampo?Ele está bonzinhoAcho que é mentiraNão começa

Embora essas pegadas não apareçam em A teus pés, o tom de “Conversa de senhoras” é claramente influenciado pela dicção de Chico Alvim, identificado com o grupo da chamada poesia marginal. Embora não roube nenhum verso específico do autor de Passatempo, o poema de Ana segue a mesma linha temá-tica de “Sonata”. A matéria dos dois – casar ou não casar – tem uma atmosfera muito parecida: fragmentos de conversa, tom coloquial fortemente demar-cado. O interlocutor não é definido com clareza, e o narrador parece apenas observar e reproduzir o diálogo alheio, sem intervir. Eis o poema de Chico Alvim em Lago, montanha:

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Sonata

Prefiro ficar sozinha, obrigadaNão quero casarPor que visitar-me em vocêse sou euque compareço a meu fim?

Ana tomou para si a arte da conversa, seja nos poemas, nas cartas, nos diá-rios íntimos, no tom de segredo ao pé do ouvido. A intenção aqui é embara-lhar ficção e confissão, interpelando diretamente “você”, o leitor. A conversa é múltipla: em muitas camadas, a poeta dialoga com outros autores, como parte do seu processo intertextual, que reúne frases lidas, falas entreouvidas ou, por que não, inventadas.

A colagem de vozes, portanto, vai além do literário, das referências diretas ou cifradas. O diálogo se estabelece também com um interlocutor anônimo, com quem o remetente parece ter uma cumplicidade prévia. Um correspon-dente de longa data. Como se o leitor fosse seu voyeur, espiando pela fecha-dura um naco de intimidade alheia, sem conseguir compreender o todo, talvez porque lhe falte uma informação anterior fundamental para juntar as peças do quebra-cabeça. Mas isso é intimidade ou é fingimento?

Em Territórios dispersos – A poética de Ana Cristina Cesar, Annita Costa Malufe constata que “essa intimidade só é apropriada pelo escritor enquanto uma espécie de material bruto, inicial, sobre o qual será necessário trabalhar, empregando o que ela chama de ‘olhar estetizante’”. O sentimento inicial até nasce de “obsessões pessoais”, de experiências vividas pela poeta, mas o resultado – mistura de invenção com biografia – é outra coisa. O poema não é registro da realidade, não é cópia fiel das suas vivências: a matéria-prima é transformada, trabalhada, até, aí sim, virar literatura. “A poesia é uma mentira, mora”, escreveu Ana, aos 16 anos.

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“Vitrine da exposição póstuma”O título do livro é um suplício, uma provocação. Quase exibicionismo. O volume lançado pela editora Brasiliense reúne, além de A teus pés, três publicações de Ana produzidas de maneira independente, com tiragem pequena: Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980).

Em todos os livros reunidos, Ana dramatiza, atua. “Não fui totalmente sincera”, escreve. A tal da correspondência completa é composta de uma carta só. O des-tinatário é “My dear”, e quem assina a carta é Júlia. O conteúdo é feito de muitos enigmas que o leitor, incauto, não consegue decifrar. Há ainda uma troça na publi-cação original – um livro miúdo, grampeado, assinado por “ana cristina c.”, em caixa baixa, com a imagem de um avião decolando: está indicada como sendo a “2ª edição”. É para deixar louco o pesquisador que resolver sair à procura da primeira.

As luvas de pelica, também em prosa, são pura performance. “Não consigo contar a história completa”, lamenta. Impresso na Inglaterra, o livro traz na capa o manequim de uma mulher sorrindo, de olhos fechados, ao lado de um frasco de perfume. Aqui, ela é “ana cristina c”, sem ponto. A caixa baixa se mantém no título, a teus pés, mas agora o nome da poeta vem “ana cristina cesar”, assim como ela assinou a primeira publicação, Cenas de abril.

De fato, é delicado fazer a “vitrine da exposição póstuma”. Dissecar os livros, os poemas descartados, as muitas versões de um mesmo texto, a grafia corrida, as ideias inacabadas, a frase que flutua sozinha na página. Uma delas, “Até segunda ordem não me risque nada”, solta na folha e inédita em livro, escrita com caneta azul, virou o título da análise de Flora Süssekind sobre os cadernos e rascunhos de Ana. Flora des-taca o processo poético, a troca de versos, os títulos possíveis: “Há, por exemplo, um

‘Como se tornar imperceptível?’ que quase dá nome a vários textos e acaba deixado de lado”. E continua: esse processo “acaba estabelecendo mais conversações entre um poema e outro do que sua leitura isolada a princípio sugere”.

“Como se tornar imperceptível?” é título de dois poemas curtinhos em Meios de transporte, que seguem inéditos. O primeiro: “Tietagem que só eu conheço./ Dou de ombros”. E o segundo: “Mas vê se não repara no meu/ blacking out”. Ana arrisca um “Como se tornar” no alto do poema em prosa que ficou sem título em A teus pés: “A história está completa: wide sargasso sea, azul azul que não me espanta, e canta como uma sereia de papel”. Por último, “Como se tornar imper-ceptível?” quase cunhou o poema que começa com “Jururu não sei pedir”, publi-cado sem título em Inéditos e dispersos. Ou seja, a frase planou sobre quatro textos, mas acabou fora da versão final.

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“Insisto mais?”O poema que inicia com “A história está completa” chama a atenção para mais duas pistas, além do título suprimido: a menção ao romance de Jean Rhys, Wide Sargasso Sea, de 1966 (publicado no Brasil como Vasto mar de sargaços), e o gênero estampado na capa de A teus pés, “prosa/poesia”. A constituição híbrida da escrita de Ana, que às vezes assume a forma de prosa poética, fica ainda mais evidente quando se observa a diferença entre a quebra de versos em Meios de transporte e no livro, dificultando a fixação de texto. Talvez porque a poeta seguisse o tamanho da página do caderno, a largura da linha pautada? Ao publicar os poemas em livro, os cortes sofreram uma transformação radical.

No caderno, “A história está completa” aparece assim, com dois versos:

A história está completa: wide sargasso sea, azul azul que não me espanta, e canta como uma sereia de papel.

E no livro, com três versos, a quebra é na repetição da palavra “azul”:

A história está completa: wide sargasso sea, azul azul que não me espanta, e canta como uma sereia de papel.

Outro exemplo de alteração de corte é o poema “Noite carioca”, que por pouco não se chamou “Inverno europeu” (título de outro poema, na mesma página). Ei-lo, em Meios de transporte:

Noite carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.

E no livro, também com quatro versos e o mesmo título, mas com outra diagramação:

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Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiros nocontrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.

Em Meios de transporte, há uma frase, também sozinha na página, com Pilot preto, letras grandes: “Insisto mais?”. Seria um recado para a própria Ana, para insistir em uma ideia, ou é a tal da conversa entre os poemas sobre a qual Flora comenta? O longo poema que abre A teus pés, sem título, começa com “Trilha sonora ao fundo” e termina com os versos “Agora é a sua vez./ Do you believe in love…?/ Então está./ Não insisto mais.”.

“É para você que escrevo”Na folha de rosto de Meios de transporte, uma citação de Roland Barthes paira no alto: “(me dirijo a alguém, que vocês não sabem, mas que está lá na extre-midade das minhas máximas) R.B., Fragmentos”. Seria uma possível epígrafe para o futuro livro? Impossível saber se Ana queria usar ou não a citação de Barthes, mas a noção de destinatário, isso é certo, é um dos principais fios condutores de sua poesia. Alguém a quem ela se dirige, na extremidade das suas máximas.

O destinatário é um dos temas de “Literatura de mulheres no Brasil”, curso ministrado por Beatriz Resende em 1983 na Faculdade da Cidade que teve Ana como convidada. Na conversa com a turma, cuja transcrição foi incluída em Crí-tica e tradução, Ana procura desmontar a ideia de revelação e ocultamento, de disfarce, tendo sempre em mente a vontade de mobilizar o outro, com intimi-dade fingida. “A literatura é muito pensada”, ela diz. “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou.”

O receptor suscita outras questões no longo poema “Fogo do final”, em que Ana escreve:

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É para você que escrevo, hipócrita.Para você – sou eu que te seguro os ombros e grito verdades nos ouvidos, no último momento.Me jogo aos teus pés inteiramente grata.

Nesses trechos do último poema de A teus pés, de onde parece sair o título do livro, a primeira coisa que salta aos olhos é a vampiragem de Baudelaire. O poema “Ao leitor”, que abre As flores do mal, termina com o verso “Hipó-crita leitor, meu igual, meu irmão!”. Aqui, Ana convoca seu interlocutor fisica-mente, se joga a seus pés. A teus pés, aos pés de quem? Marcos Siscar, no ensaio dedicado a ela na coleção Ciranda da Poesia, diz que Ana é avessa à “tirania do segredo”. E arremata: “Sinceridade não existe, no sentido da continuidade entre o que se sente/pensa e o que se diz”.

Se a tirania do segredo é uma marca dos poemas prontos, publicados, essa característica ganha outra camada quando se olha de perto o caderno preto. Ali, na fronteira entre o que se sente/pensa e o que se diz, estão os bastidores, a vontade de ordenar os poemas, de escandir alguns deles, as instáveis quebras de verso, a caligrafia ora concentrada, ora apressada, o descarte de versos, a oficina, a interlocução incessante, as perguntas sem resposta: “Insisto mais?”.

Ainda no curso de Beatriz Resende, a poeta explica que A teus pés sugere “devoção religiosa”, mas implica também “certa humilhação”. E comenta que a capa, desenhada por Waltercio Caldas, por ser sóbria, seca, sem ilustração – que, pode-se imaginar, correria o risco de ser uma mulher jogada aos pés de um homem –, dribla essa primeira impressão. Em uma frase, Ana resume não só a capa, mas toda sua poética: “Não é isso que você está pensando”.

Alice Sant’Anna (1988) é editora-assistente da serrote. Poeta, é autora de Rabo de baleia (Cosac Naify, 2013) e Pé do ouvido (Companhia das Letras, 2016).

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Veridiana Scarpelli

Na memória afetiva do diretor, o estatuto do cinema fica evidente pela história de amor que nasce num bordel às vésperas da Primeira Guerra Mundial

Arte ou indústria?Jean Renoir

O cinema é uma arte ou uma indústria? Já me fizeram muitas vezes essa pergunta. Ela vai além do âmbito da arte – ou da indústria – do cinema. Permitam-me responder por meio de uma historieta verídica – não faço mais que mudar os no-mes e os lugares –, que poderá aqui fazer as vezes de parábola.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, eu era suboficial num regimento de dragões da cavalaria. Meus camaradas e eu frequentávamos assiduamente a casa de tolerância da cida-dezinha. Éramos atraídos para o local por uma pensionista de nome Marie-Louise.

Eu acabara de sair da escola e ainda acreditava em classifi-cações. Quer dizer, eu dividia o mundo e a vida que o anima em pequenos círculos e quadrados, dentro dos quais dispu-nha os seres e as coisas, os sentimentos e as per cepções. Os bons eram perfeitamente bons, bem arrumados em sua

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moldurinha. Os maus preenchiam uma outra moldurinha. O branco era branco, e o preto era preto. Um comerciante era um comerciante, e um artista era um artista. Não me passava pela cabeça que o sapateiro pudesse ser um gênio musical ou que o poeta soubesse investir na Bolsa com sucesso. Eu ainda não havia digerido a lição que todo cavalariano recebe gratui-tamente, a saber, de que não existem cavalos perfeitamente brancos, como tampouco há cavalos idealmente pretos. Os soldados da infantaria diziam: “Este cavalo é branco e aquele é preto”. Mas nós, dragões, dizíamos: “Este cavalo é cinza-

-claro e aquele ali é baio-escuro”. A pelagem do primeiro cer-tamente continha fios mais escuros, e bastava passar a mão à contrapelo para que o segundo revelasse seus pelos brancos. Na natureza, o absoluto não existe. Só nos melodramas as pes-soas são completamente boas ou completamente más, com-pletamente realistas ou completamente sonhadoras, glutonas ou ascetas, fiéis ou desleais, bonitas ou feias. A natureza é mais sutil que o melhor dos melodramas. É por isso que a maioria dos grandes autores inspirou-se nela e desconfiou da própria imaginação. Mas, aos 20 anos, somos insensíveis à esplêndida variedade da criação. É só com os primeiros ataques de reuma-tismo que nos damos conta de que o único autor de imagina-ção infinita é Deus.

Voltemos a Marie-Louise. Descrevê-la não é tão simples quanto poderia parecer. Mas o diabo bem sabe como é fácil classificar as moças dessa profissão no interior de uma moldu-rinha. Os motivos que guiam essas vidas costumam ser infan-tis: a preguiça, a promessa de dinheiro sem grande esforço e, por vezes, um desejo ingênuo de luz e ruído. Gostam da bijute-ria vistosa, da maquiagem desaforada, do traje espalhafatoso. Marie-Louise não era preguiçosa. Não parava de tricotar, cerzir, fazer vestidos para as amigas. Não gostava de barulho. Quando um cliente reclamava do piano mecânico, ela suspirava de alí-vio e corria para desligar o instrumento, “que me acaba com o ouvido”. No interior do estabelecimento, ela se apresentava ao cliente trajando o penhoar transparente que constituía o uniforme sumário das sacerdotisas daquele templo dedicado a Vênus. Mas quando saía de folga, seu vestidinho escuro, de

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um gosto perfeito, fazia pensar numa filha de comerciantes abastados do lu-gar. Quando, no exercício de suas funções, um cliente manifestava um gosto pela farra, ela soltava as amarras. Nessas ocasiões, era uma verdadeira bacante. Não ouso evocar suas invenções, ao mesmo tempo lúbricas e pândegas, sem-pre inesperadas e sublinhadas por um vocabulário que fazia corar até o dono da casa. Na cidade, seu linguajar era o de uma boa aluna de um bom convento para moças de boa família. O contraste entre a hetaira obsequiosa, feliz de em-prestar seu corpo a todas as fantasias dos clientes, e a moça modesta que, aos domingos, saía da missa de olhos baixos, erguendo-os apenas para dar a tradi-cional moedinha a um pobre, era inimaginável.

Toda a guarnição conhecia Marie-Louise. Os meros cavalarianos, os suboficiais, até mesmo alguns dos senhores oficiais tinham podido apreciar a exce lência de seus serviços. Dela, todos diziam, com uma nuance de admiração na voz: “Marie-

-Louise é uma puta soberba!”. Mas alguém sempre retificava: “Perdoe-me, mas Marie-Louise é uma artista!”. E não havia quem não concordasse.

O cliente mais assíduo de Marie-Louise era um dos meus camaradas, Menard, filho de um comerciante de ferragens do lugar. Ele se alistara no regimento local para não ficar longe da família durante o serviço militar. Dividia-se entre os pais, com quem jantava várias vezes por semana, e Marie-Louise, que ele visitava nas outras noites. Éramos suboficiais no mesmo esquadrão e volta e meia estávamos juntos, sobretudo na cantina, onde não deixávamos de nos sacrificar ao rito sagrado do aperitivo.

Certo dia, não pude esconder que desaprovava a maneira como ele tratara Marie-Louise na noite anterior, exigindo dela os gestos mais ignóbeis, e isso diante de vários suboficiais – entre os quais este vosso servidor. Menard ficou estupefato diante da minha observação: “Mas ela é puta”, respondeu ele, “é o trabalho dela”. E insistiu, dizendo que ela fazia tudo aquilo sem nem pensar, que ela seria a primeira a ficar pasma com a minha atitude incompreensível.

“Você pode satisfazer certas necessidades com uma moça pública”, observei eu, “sem ter de humilhá-la”. “Mas ela não se sente humilhada”, retorquiu Menard, “simplesmente porque ser humilhada faz parte de seus deveres de ofício”. E se lançou numa longa explicação, comparando as casas de tolerância àquelas barracas de parque de diversões em que se pode quebrar quanta louça se quiser pelo preço de um bilhete. “O pobre sujeito que passa a vida prestando atenção para não trincar a louça, temendo que a patroa faça uma cena, encon-tra nesse massacre a revanche de tanto medo acumulado. É uma válvula de escape. Sem ela, o sujeito ficaria louco ou mataria a mulher. É a mesma coisa conosco. O tenente nos trata feito lixo e nós trememos na base ao menor olho

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torto do chefe de esquadrão. É humilhante passar o tempo todo buscando a aprovação de um senhor que se acha no direito de acabar com a nossa vida só porque tem uns galões a mais. No bordel, é a hora da revanche. É a nossa vez de humilhar. É a tal válvula de escape!” O raciocínio tinha lá seu valor. A sequên cia era mais digna de precaução. “Veja bem”, continuou Menard, “há dois tipos de mulher, as moças decentes e as putas. Com as primeiras, você se casa, elas dão filhos e cuidam da casa. São mais que nossas companheiras, são nossas sócias. O lugar delas é a família. As alegrias da carne competem às especialistas da galanteria. Estas sim entendem do assunto, porque passam a vida estudando. Esta é uma época de especialistas, e, numa sociedade bem organizada, não se deve misturar os panos de prato aos guardanapos.”

Isso foi poucas semanas antes da Primeira Guerra. A vida nas trincheiras viria reforçar minhas dúvidas quanto à excelência das teorias de Menard. Durante os longos períodos nos abrigos, eu ia descobrindo que os camponeses mais grosseiros eram de um refinamento ímpar, que os alemães não eram sempre inimigos e que alguns camaradas, vindos do mesmo mundo que eu, ostentando os mesmos diplomas, frequentando os mesmos bares em Paris, usando da mesma linguagem, me eram perfeitamente estrangeiros.

Finda a guerra, tive vontade de rever a cidadezinha dos meus tempos de guarnição. Era domingo. Cheguei justo a tempo da missa. À minha frente, a alguns bancos de distância, julguei reconhecer uma silhueta familiar. Tratei de pôr um nome naquela mulher, bonita, rija de carnes, bem-vestida e enchape-lada, com todos os ares de uma burguesa importante. Subitamente, reconheci seu vizinho de banco, um senhor muito correto e severo em seu terno de fla-nela escura: uma ligeira calvície acrescentava dignidade à sua figura. Mantinha o chapéu-coco preso sob um braço, bem à maneira como nós, dragões, pren-díamos nosso capacete de crina. Foi o que me pôs na pista. Não havia dúvida, era Menard. Na hora dos donativos, sua companheira deslizou-lhe uma moeda de 25 centavos na palma da mão. Com um mesmo gesto, os dois depositaram o óbolo na cestinha que lhes estendia uma jovem Filha de Maria. Um sin-cronismo assim só existe entre esposos. Mas quem, diabos, podia ser aquela mulher? Todos nós conhecemos o efeito de um olhar insistente. A suspeita de que eu a observava fez com que ela se voltasse. Era Marie-Louise, um pouco mais cheia, mas mais encantadora que nunca.

O jantar foi excelente. “Prove o patê”, dizia Menard, “foi minha mulher quem fez… Experimente a torta de amêndoas, é uma especialidade da minha mulher.” A casa fora redecorada, os móveis eram luxuosos, as árvores do jardim tinham sido podadas com esmero, e as aleias estavam bem rasteladas. Tudo ali respirava uma felicidade tranquila, próspera e ordeira. Depois do café, adivi-nhando nosso desejo de confidências, Marie-Louise deixou-nos discretamente a sós. Durante toda a refeição, eu não tirara os olhos dela. Mas agora não encon-trava as palavras para expressar minha admiração diante daquele prodígio no

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gênero burguesia de boa cepa. Ficamos em silêncio por um bom momento. Por vezes, uma recordação divertida dava contornos aos nossos pensamen-tos. Não precisávamos de palavras para nos comunicar. “Sabe do melhor?”, acabou por dizer Menard, balançando ligeiramente a cabeça. “Marie-Louise é uma mulher de negócios maravilhosa! Foi ela quem pôs ordem na loja de ferragens que os meus pais tinham deixado ao deus dará. Graças a ela, estou nadando em ouro.” Meu sorriso se pronunciou. A ocasião tinha lá sua graça.

“Lembra das nossas conversas sobre especialistas?”, provocou ele. Ríamos francamente quando Marie-Louise voltou, empurrando à frente os dois filhos, que tinham passado a manhã com os avós. A menina fez uma reverência gra-ciosa. O menino inclinou-se e só apertou minha mão quando eu lhe estendi a minha. Em seguida, a mãe desapareceu com eles nas profundezas da casa.

“Vou lhe confessar uma coisa”, declarou bruscamente Menard. Hesitou um pouco antes de continuar, servindo com respeito o conteúdo de uma garrafa empoeirada: “É uma aguardente de Charentes, 1893. Você me dirá que tal.” Ele hesitava ainda, os olhos fixos no licor dourado que fluía do gargalo da garrafa:

“Talvez você lembre dos… dos nossos encontros com Marie-Louise, antes da guerra?”. O desejo de confidências lutava contra a reserva do burguês pudico, constrangido por ter de abordar um assunto escabroso: “Lembra do que dizía-mos dela?”. E, sem esperar minha resposta, prosseguiu: “Dizíamos que era uma artista!”. Estendeu-me uma taça e pegou a outra. O perfume da aguar-dente preciosa invadiu delicadamente a minha boca, correu pelo palato, subiu pelas fossas nasais, chegou-me ao cérebro e logo às artérias, espalhando por todo o meu corpo e todo o meu espírito uma sensação de bem-estar: “É uma obra-prima”, comentei. Pousamos as taças numa mesinha, desfrutando dessa intimidade perfeita que proporcionam a boa mesa e a bebida de qualidade. De repente, Menard virou-se para mim, o rosto iluminado pela felicidade: “Pois bem, meu velho”, disse ele, pontuando a declaração com um tapinha na minha pança, “Marie-Louise não mudou. Quer dizer, continua sendo uma artista. A grande diferença é que agora eu sou o único cliente.”

Filho do pintor Pierre-Auguste Renoir, Jean Renoir (1894-1979) foi um dos cineastas mais importantes e influentes da primeira metade do século 20. A grande ilusão (1937) e A regra do jogo (1939) estão entre os melhores filmes de todos os tempos. Este texto foi publicado original-mente no Screen Producers Guild Journal (dezembro de 1963) e recolhido na revista Positif, n. 173 (setembro de 1975).Tradução de Samuel Titan Jr.

Veridiana Scarpelli (1978) é ilustradora, colaboradora da serrote, autora do infantil O sonho de Vitório (2012) e ilustrou A menina do mar (2014), de Sophia de Melo Breyner Andresen, ambos publicados pela Cosac Naify.

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A filosofia do guarda-chuva

Robert Louis Stevenson

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O porte do guarda-chuva veio a indicar sobriedade, cuidado com o bem-estar do corpo, desprezo pela mera ornamentação exterior e, numa palavra, todas aquelas virtudes domésticas e sólidas implícitas no termo “respeitabilidade”

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É admirável pensar na mudança de direção de toda a nossa So-ciedade pelo fato de vivermos sob o signo de aquário – isto é, por nosso clima ser essencialmente chuvoso. Uma mera distinção ar-bitrária como as bengalas-espada1 de outrora talvez continuasse a ser símbolo de previdência e respeitabilidade, não tivessem as né-voas úmidas e as chuvas constantes de nossa ilha reforçado a in-clinação da Sociedade a um outro expoente dessas virtudes. Uma insígnia da Legião de Honra ou uma fileira de medalhas podem comprovar a coragem de uma pessoa; um título, sua linhagem; uma cátedra, seus estudos e conhecimento. Mas é o porte habitual do guarda-chuva que imprime o selo da Respeitabilidade. O guarda-

-chuva se tornou o índex de reconhecimento social.Robinson Crusoé nos oferece um exemplo tocante do

anseio por guarda-chuvas inerente ao espírito civilizado e educado. Aos mais superficiais, os dias de sol quente em Juan Fernández bastariam para explicar sua escolha caprichosa de tal artigo de luxo. Mas certamente alguém que por tantos anos trabalhou duro como marujo sob os trópicos teria suportado caçar bodes ou uma pacata caminhada de braços dados a um desnudo Sexta-Feira. Não, não foi isso: a memória de uma res-peitabilidade esvaecida cobrava-lhe uma manifestação, e o resultado foi – um guarda-chuva. Um náufrago devoto poderia ter improvisado um campanário e consolado suas manhãs de domingo com a imitação de sinos de igreja. Mas Crusoé estava mais para um moralista do que para um pietista, e seu guarda-

-chuva de folhas é um bom exemplo do espírito civilizado que luta por se expressar, mesmo sob circunstâncias adversas com as que jamais nos deparamos.

Também não é por menos que o guarda-chuva tenha se tor-nado o principal distintivo da civilização moderna – o Urim e Tumim2 da respeitabilidade. Seu simbolismo, prenhe de signifi-cados, ascendeu da maneira mais natural. Considerem, por um momento, quando o guarda-chuva chegou neste país, que tipo de homem o usaria e que classe aderiria a um bastão tão inútil, ainda que ornamental. O primeiro tipo, sem dúvida, seria o dos hipocondríacos, para se precaver de doenças, ou o dos austeros, para proteger suas indumentárias; o segundo, igualmente claro, incluiria o almofadinha, o tolo e o Bobalhão.3 Qualquer um fami-liarizado com o crescimento da Sociedade, e consciente de que, a partir de pequenas sementes, grandes revoluções são produzidas e novas condições de interação são criadas, verá nessa simples refle-xão o quanto o porte do guarda-chuva veio a indicar sobriedade,

1. As walking-swords ou sword canes eram bengalas que ocultavam uma espada de lâmina finíssima. Fabricadas artesanalmente, caríssimas, eram item obrigatório na etiqueta da classe alta britânica, sobretudo no século 19. [n. do e.]

2. Do hebraico, luzes e perfeições. Na Bíblia hebraica, esses termos estão associados com o hoshen, que corresponde tanto ao peitoral do sumo sacerdote quanto à prática da adivinhação. [n. do t.]

3. Em inglês, Bobadil, personagem da peça Every Man in His Humour (1598), de Ben Jonson. A partir de então, o nome do personagem passou a designar um tipo de fanfarrão arrogante. [n. do t.]

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cuidado excessivo com o bem-estar do corpo, desprezo pela mera ornamentação exterior e, numa palavra, todas aquelas virtudes domésticas e sólidas implícitas no termo respeitabilidade. Não que o custo do guarda-chuva tenha a ver com sua grande influência. O fato de possuí-lo, além de simbolizar (como já indicamos) a transição da morada agreste de Esaú à simplicidade das tendas de Jacó, implica certa provisão confortável de riquezas. Não é todo mundo que pode dispor do valor de 26 xelins para a aquisição de uma propriedade que, com grandes chances, será perdida ou lhe será roubada. Neste ponto, nossa convicção é tamanha que estamos quase inclinados a supor que todos os que possuem um guarda-chuva realmente em bom estado têm o Direito de Voto. Eles têm em seus vestíbulos um símbolo de boa educação, eles carregam debaixo do braço um indiscutível compromisso com o bem comum. Alguém que carrega consigo um guarda-chuva – essa complexa estrutura de barbas de baleia, seda e bastão que se tornou o próprio microcosmo da indústria moderna – só pode ser um homem de paz. Um bastão de meia coroa talvez pudesse ser usado contra a cabeça de um agressor por motivo de uma pro-vocação bastante moderada; mas uma seda de 26 xelins é uma propriedade valiosa demais para se aventurar no fragor de uma guerra.

Essas são apenas algumas poucas conjecturas de como o guarda-chuva (de modo geral) chegou à sua atual posição privilegiada. Mas o verdadeiro Filósofo do Guarda-

-chuva descobre situações ainda mais estranhas quando sai pelas ruas da cidade.Guarda-chuvas, como rostos, adquirem certa identidade com os indivíduos

que os carregam: são, na verdade, ainda mais capazes de lhes trair a confiança. Se um rosto já nos é dado pronto e todo poder que temos sobre ele se limita a um franzir de sobrancelhas, risadas e caretas nas primeiras três ou quatro décadas de nossas vidas, cada guarda-chuva é escolhido, entre muitos outros em uma loja abarrotada, como aquele mais adequado à índole do comprador. Cabe ao experiente Filósofo do Guarda-chuva um poder inquestionável de diagnóstico. Oh, vocês que balbuciam e caminham a passos lentos, que mudam de semblante – vocês que dissimulam tudo isso, quão pouco desconfiam ter deixado uma prova de suas fraquezas em nossa tribuna do guarda-chuva – e que mesmo agora, ao sacu-dir as dobras e ir ao encontro da neve espessa, permitem que decifremos em seu cabo de marfim os signos externos e visíveis de seus esnobismos, ou, no guingão exposto de sua capa, por entre o paletó ou o colete, nos deixam detectar a hipo-crisia oculta do “asno”! Mas, ai de mim!, mesmo o guarda-chuva não é um critério tão certeiro. A falsidade e a tolice da raça humana degradaram aquele símbolo gracioso ao extremo da desonestidade; e, enquanto alguns guarda-chuvas, por descuido na escolha, não são notavelmente característicos (pois o homem revela sua real natureza apenas naquilo que ama), outros, por motivos de prudência, foram escolhidos pela razão diretamente oposta à índole de seu dono. Um guarda-

-chuva mendaz é um sinal de grande degradação moral. A hipocrisia naturalmente encontra abrigo debaixo de uma seda. Assim, o jovem desregrado vai à casa de seus amigos religiosos armado do decente e respeitável guingão. Sobre os portadores

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desses guarda-chuvas inapropriados, não se poderia dizer que eles saem pelas ruas “com uma mentira na mão direita”?4

Os reis do Sião, como lemos, além de terem uma escala social gradual de guarda-chuvas (o que era bom), impediam a grande massa de seus súditos de possuir qualquer coisa, o que certa-mente era ruim. Sentiríamos pena desse legislador oriental se acreditássemos que ele não passava de um tolo – a ideia de uma aristocracia do guarda-chuva é filosófica demais para ter se origi-nado de um joão-ninguém – e, desse modo, temos nos esforçado excessivamente para encontrar o motivo dessa dura restrição. Achamos que fomos bem-sucedidos. Contudo, enquanto admi-ramos o princípio ao qual ele aspirava e reconhecemos cordial-mente no potentado siamês o único homem, antes de nós, que realmente tivera uma boa noção sobre o guarda-chuva, permi-tamo-nos mostrar como esse grande homem agira de maneira antifilosófica neste assunto particular. Seu objetivo, claramente, era impedir que qualquer pessoa sem valor portasse o símbolo sagrado das virtudes domésticas. Não podemos desculpá-lo por ter limitado essas virtudes ao círculo de sua corte. Devemos apenas nos lembrar que esse era o sentimento da época em que ele viveu. O liberalismo ainda não havia despertado o grito de guerra das classes trabalhadoras. Eis, no entanto, seu verdadeiro erro: tratava-se de uma regulamentação desnecessária.

Exceto em pouquíssimos casos em que a hipocrisia se une a um intelecto poderoso, os homens, que por natureza não são guarda-chuvianos, tentaram repetidas vezes sê-lo por meio da arte, mas fracassaram – torraram seus patrimônios na compra de um guarda-chuva após o outro; entretanto, os perderam sistema-ticamente, e, por fim, com espírito pesaroso e carteiras encolhi-das, abriram mão dessa luta vã e passaram a contar, no que res-tou de suas vidas, com o furto e o empréstimo. Esse é o fato mais notável que tivemos a oportunidade de observar; e, apesar disso, desafiamos o cândido leitor a colocá-lo em dúvida. Ora, como não pode haver nenhuma seleção moral em uma simples peça de acessório – pois não se pode supor que um guarda-chuva tenha a mesma afinidade recíproca com um sujeito específico do que um sujeito teria com um guarda-chuva específico –, nos demos o tra-balho de consultar um amigo cientista para saber se havia alguma possível explicação física para o fenômeno. Ele foi incapaz de nos fornecer uma teoria plausível, ou ao menos uma hipótese; mas extraímos de sua carta esta interessante passagem sobre as peculiaridades físicas do guarda-chuva: “Não menos importante,

4. Trecho de Exposition of the Old and New Testaments, de Matthew Henry (1662-1714), um dos estudos mais exaustivos, linha por linha, do Antigo e do Novo Testamento. O comentário em questão é sobre Isaías 44:20. [n. do. t.]

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e de longe a propriedade mais curiosa do guarda-chuva, é a energia que ele transmite ao agir sobre as camadas atmosféri-cas. Não há nenhum fato em meteorologia mais amplamente aceito – decerto é quase o único em que os meteorologistas concor-dam – do que o dessecamento do ar produzido pelo porte do guarda-

-chuva; ao passo que, se o deixarmos em casa, vapores de água serão produzidos abundantemente e, em pouco tempo, irão precipitar em forma de chuva. Nenhuma teoria”, continua meu amigo, “capaz de explicar essa lei hidrométrica jamais fora apre-sentada (até onde sei) por Herschel, Dove, Glaisher, Tait, Buchan ou qualquer outro autor; tampouco me proponho a resolver essa falha. Pretendo apenas lançar a conjectura de que, no fim das contas, acabe por pertencer à mesma classe de leis naturais que aquela segundo a qual uma fatia de torrada sempre cairá com a face da manteiga virada para baixo.”

Mas é chegada a hora de colocarmos um ponto final. Podería-mos discorrer ainda por páginas e páginas sobre o assunto, mas a falta de espaço nos constrange a deixar inacabadas essas poucas observações desconexas – essas contribuições magras sobre um assunto que infelizmente retrocedeu, e que, admitimos com pesar, fora melhor compreendido pelos reis do Sião em 1686 do que por todos os filósofos de hoje em dia. Se, entretanto, tivermos desper-tado algum interesse pelo simbolismo do guarda-chuva em uma mente racional – uma simpatia mais completa em um coração generoso para com esse tolo companheiro de suas caminhadas diá-rias – ou, em um espírito ganancioso, uma noção pura de respeita-bilidade forte o bastante para convencê-lo a abrir mão de 26 xelins, seremos dignos do bem deste mundo. Isso sem falar dos muitos trabalhadores comprometidos na manufatura desse objeto.55. Este artigo foi escrito com a

colaboração de James Walter Ferrier e, se reimpresso, essa informação deve constar, ainda que sua principal colaboração tenha sido a de se reclinar sobre a poltrona e dar gargalhadas. [n. do a.]

Robert Louis Stevenson (1850-1894) é um dos mais importantes escritores da literatura britânica do século 19. Nascido em Edimburgo, Escócia, Stevenson percorreu muitos países e, por fim, se estabeleceu em Samoa, ilha do Pacífico sul. É autor de mais de 30 livros, entre romances, antologias poéticas, relatos de viagens, coletâneas de contos e de ensaios – alguns deles vêm sendo traduzidos para o português há gerações, como O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que ficou mais conhecido no Brasil com o título O médico e o monstro; Sequestrado (Nova Alexandria); A ilha do tesouro (Ática); O clube do suicídio e outras histórias (Cosac Naify). Do autor, a serrote #3 publicou sua correspondência com Henry James. Inédito em português, “A filosofia do guarda-chuva” foi publicado origi-nalmente em 1871 na Edinburgh University Magazine.Tradução de Daniel Lago Monteiro

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