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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
ATAME PÓS-GRADUAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSOADMINISTRATIVO
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS E INTERRUPÇÃO PORINADIMPLÊNCIA
GUSTAVO SCATOLINO SILVA
Brasília-DF2007
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
ATAME PÓS-GRADUAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSOADMINISTRATIVO
GUSTAVO SCATOLINO SILVA
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS E INTERRUPÇÃO PORINADIMPLÊNCIA
Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Latu Sensu como requisito paraconclusão do curso de Pós-Gradução em DireitoAdministrativo e Processo Administrativo.
Brasília-DF2007
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7
1. OS SERVIÇOS PÚBLICOS.................................................................................... 9
1.1 Conceito de serviço público ................................................................................ 10
1.2 Dos princípios que regem os serviços públicos................................................ 11
1.3 Classificação dos serviços públicos................................................................... 13
1.4 Concessão de serviço público............................................................................ 13
2. OS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS E SUA IMPORTÂNCIA SOCIAL . 15
2.1 O serviço público essencial ................................................................................ 15
2.2 A importância dos serviços públicos essenciais para o ser humano ............. 16
2.3 O fornecimento de água e energia elétrica como um direito fundamental ............... 17
3. A RELAÇÃO CONTRATUAL ENTRE O ESTADO E OS USUÁRIOS DE SERVIÇOSPÚBLICOS................................................................................................................... 22
3.1 O contrato de fornecimento de serviços públicos............................................. 22
3.2 A relação de trato sucessivo entre o usuário e o Poder Público (prestador deserviços)...................................................................................................................... 23
3.3 Aplicabilidade do CDC aos contratos de fornecimento de serviço público.... 24
4. A INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO E A SUSPENSÃO DO SERVIÇOPÚBLICO ESSENCIAL ............................................................................................. 26
4.1 Exceptio non adimplenti contractus e o não pagamento da tarifa .................. 26
4.1.1 Da cobrança de consumação mínima............................................................ 27
4.1.2 Da impossibilidade de utilização da exceptio non adimplenti contractus naprestação de serviços públicos essenciais.............................................................. 29
4.2 Outras formas de punir os usuários inadimplentes.......................................... 31
4.3 O direito do usuário inadimplente a uma cota mínima de serviços essenciais ........ 32
5. A SUSPENSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL E SUA VIOLAÇÃOAO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ..................................................... 34
5.1 A qualificação do CDC como lei especial.......................................................... 34
5.2 O consumidor como sujeito de um direito fundamental................................... 37
5.3 A antinomia jurídica entre a lei do consumidor e a lei de concessões deserviços públicos ........................................................................................................ 39
5.3.1 Os critérios para solução de antinomias ........................................................ 39
5.3.2 A solução de antinomias nas relações de consumo ..................................... 40
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5.3.3 A prevalência do CDC em face da lei de concessões.................................. 42
5.4 A prestação de serviços públicos essenciais ao consumidor inadimplente .. 44
6. A SUSPENSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL E SUA VIOLAÇÃO ÀCONSTITUIÇÃO ........................................................................................................ 47
6.1 Conceito e significado de dignidade humana ................................................... 47
6.2 A dignidade humana e sua consagração constitucional.................................. 49
6.3 Aplicabilidade e eficácia do princípio da dignidade humana........................... 50
6.4 A importância dos serviços essenciais na concretização da dignidadehumana ....................................................................................................................... 53
6.4.1 Os serviços essenciais como pressuposto da dignidade humana .............. 53
6.4.2 O direito ao mínimo existencial para viver com dignidade ........................... 55
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 60BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 62
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RESUMO
Os serviços essenciais são indispensáveis à sobrevivência humana, porisso, o ser humano não pode ser privado desses serviços por causa de merainadimplência. Neste estudo serão abordados a finalidade dos serviços públicos,com destaque na importância destes para que se possa viver com dignidade. Seráfalado também sobre os principais aspectos da relação contratual entre o prestadorde serviços (poder público ou as concessionárias) e os usuários, especialmente, seo prejuízo causado pela inadimplência do usuário justifica a suspensão do serviço.Concluir-se-á este estudo com a impossibilidade de suspensão dos serviçosessenciais à luz do CDC e em face do princípio constitucional da dignidade dapessoa humana (art. 1º, III da CF/88).O objetivo desta monografia é demonstrar queé ilegal a suspensão do fornecimento de serviços públicos essenciais (água, energiaelétrica e telefonia) em virtude da inadimplência do usuário.
Palavras-Chave: serviços, poder público, concessionárias, ilegalidade.
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ABSTRACT
The essential services are essential for human survival, therefore, the human beingcan not be deprived of these services because of sheer bad. In this study will beaddressed the purpose of public services, with emphasis on the importance of theseso that you can live with dignity. It will also spoken on the main aspects of thecontractual relationship between the service provider (public power or the dealers)and users, especially if the injury caused by the default of the user justify thesuspension of the service. Finish will be the study with the impossibility of suspensionof essential services in the light of the CDC and in the face of the constitutionalprinciple of human dignity (Article 1 st, III of CF/88). The purpose of this paper is todemonstrate that it is the suspension of the illegal delivery of key public services(water, electricity and telephone) because of the default of the user.
Keywords: services, public power, dealers, illegal.
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INTRODUÇÃO
O objetivo desta monografia a ilegalidade da interrupção do fornecimento de
serviços públicos essenciais (água, energia elétrica e telefonia) em virtude de
inadimplência do usuário. O assunto se mostra relevante porque os prestadores de
serviços públicos (poder público ou seus delegados) têm recorrido ao “corte” do
fornecimento dos serviços como forma de punir o usuário inadimplente.
A interrupção do fornecimento de serviços públicos essenciais por causa da
inadimplência do usuário é uma questão muito controvertida na doutrina e na
jurisprudência. Aqueles que são favoráveis1 à suspensão do serviço, sustentam que
o inadimplemento do usuário causa prejuízos ao prestador de serviços, e este não é
obrigado a prestar o serviço gratuitamente. Por outro lado, aqueles que são
contrários2 à suspensão, alegam que os serviços públicos essenciais são
indispensáveis à sobrevivência humana. Por isso, não admitem que o cidadão seja
privado de um serviço que é essencial a sua vida, por causa de mera inadimplência.
A Lei nº 8.987/95, que trata da concessão e permissão de serviços públicos,
permite a interrupção do fornecimento de serviço público por inadimplência dousuário. Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor determina que os
serviços públicos essenciais devem ser prestados de forma contínua.
Apesar de existir lei prevendo a possibilidade de interrupção de
fornecimento de serviço público por inadimplência, o presente trabalho irá
demonstrar que a inadimplência do usuário não justifica a interrupção de um serviço
essencial à vida, à saúde, à segurança, à dignidade e ao bem-estar das pessoas. A
aplicação da lei deve ser feita com base nos valores e princípios constitucionais. Por
isso, com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e no
1 Cf. nesse sentido Newton de Lucca in Direito do Consumidor: aspectos práticos: perguntas erespostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 165-166; José Geraldo Brito Filomeno e ZelmoDenari in GRINOVER, Ada Pellegrini e outros, ob. cit., p. 90-91 e 1952 Cf. nesse sentido Marçal Justen Filho in Concessão de serviços públicos: Comentários à Lei nº8.987, de 13 de fevereiro de 1995 e à Lei nº 9.704 de 7 de julho de 1995. São Paulo: Dialética, 1997,p. 130-131; Dinorá Adelaide Musetti in O serviço público e a constituição brasileira de 1998. SãoPaulo: Malheiros, 2003, p. 264-275; Hely Lopes Meirelles in Direito administrativo brasileiro. 25 ed.São Paulo: Malheiros, 2000, p. 309.
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princípio da continuidade previsto no CDC, não é possível suspender serviços que
são essenciais e necessários à sobrevivência humana.
O presente trabalho foi estruturado em seis capítulos. Nos dois primeiros
capítulos, serão abordados o conceito e a finalidade dos serviços públicos,destacando a importância dos serviços essenciais para que as pessoas possam
viver com dignidade. Posteriormente, serão analisados os principais aspectos da
relação contratual entre o prestador de serviços (poder público ou as
concessionárias) e os usuários, especialmente, se o prejuízo causado pela
inadimplência do usuário justifica a suspensão do serviço. Por fim, nos dois últimos
capítulos, será demonstrado a impossibilidade de suspensão dos serviços
essenciais à luz do CDC e em face do princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III da CF/88).
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1. OS SERVIÇOS PÚBLICOS
O serviço público existe para satisfazer as necessidades da coletividade. A
história tem demonstrado que os serviços públicos, geralmente, são frutos dedemandas sociais que exigem grandes investimentos financeiros ou da necessidade
de proteção da ordem social. Por isso, o Estado destaca determina atividade e
passa a prestá-la com a finalidade de oferecer o serviço de forma mais justa e
igualitária a todos os cidadãos. 3
O Estado em nome do interesse coletivo institui certas atividades em forma
de serviço público. A instituição de um serviço público é "uma atividade destacada
da sociedade, sendo lhe tecido um laço jurídico especial, vinculando essa atividade
e o poder público ao interesse coletivo”.4 Assim, o serviço público tem como nota
caracterizadora: o atendimento de uma necessidade coletiva. Por isso, deve-se
precisar o serviço público como sendo um serviço destinado à coletividade e não
como serviço voltado ao Estado.
A concepção de serviço público pode ser dividida em dois aspectos:
material e formal. No aspecto material, o serviço público se caracteriza como sendo
uma atividade de prestação de utilidade ou comodidade material fruível diretamente
pelos administrados. O Estado assume como próprias, por se tratarem de atividadesnecessárias ao interesse social. Já o aspecto formal, diz respeito ao regime jurídico
a que se submete o serviço. As atividades consideradas como serviço público são
regidas, necessariamente, por princípios e regras de caráter público.5 Os
doutrinadores consideram este o aspecto nuclear do serviço público.
A Constituição Federal estabelece, em seu art. 175, que "incumbe ao Poder
Público a prestação de serviços públicos, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão". Entretanto, quando o poder público concede, permite ou autoriza os
particulares prestarem determinado serviço público, não há descaracterização dessa
atividade, pois a empresa privada que presta serviço público se equipara em termos
3 DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos: as ações do estado na produção econômica.São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 61.4 Idem, p. 61.5 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 163.
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de responsabilidade à Administração Pública. A titularidade do serviço continua
pertencendo ao Estado, apenas a execução do serviço é delegada ao particular.6
Portanto, serviço público é a atividade de prestação de serviços, exercida
pelo poder público ou por seus delegados (concessão ou permissão), para atenderàs necessidades mais imediatas da população, por exemplo, fornecimento de água
tratada, energia elétrica, transporte urbano, etc.7
1.1 Conceito de serviço público
O termo "serviço público" tem gerado muita controvérsia doutrinária quanto
a sua definição, isso tem ocorrido em virtude da dimensão que se dá ao termo.
Aqueles que adotam o sentido amplo consideram serviço público qualquer atividade
exercida pelo Estado. Os que adotam o sentido restrito, consideram serviço público
somente a atividade de prestação de serviços feito pelo Estado.
O ilustre doutrinador Hely Lopes Meirelles apresenta um conceito de serviço
público latu sensu. Para ele, o serviço público é “todo aquele prestado pela
Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para
satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simplesconveniências do Estado.”8
Convém destacar, que o referido doutrinador considera as atividades típicas
do Estado como sendo serviços públicos propriamente ditos, nas suas palavras:
"Serviços públicos propriamente ditos, são os que a Administração presta
diretamente à comunidade, por reconhecer sua essencialidade e necessidade para a
sobrevivência do grupo social e do próprio Estado.” Por isso mesmo, tais serviços
são considerados privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração
deve prestá-los sem delegação a terceiros, mesmo porque geralmente exige atos deimpério e medidas compulsórias em relação aos administrados. Exemplos desses
serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os de preservação da saúde
6 BASTOS, Celso Ribeiro, ob. cit., p. 164.7 MADAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.382.8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.306.
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11
pública.9 Por outro lado, os administrativistas modernos têm adotado o termo serviço
público no sentido restrito. A ilustre Odete Madauar leciona que: “serviço público, no
sentido técnico, é a atividade prestacional, em que o poder público propicia um
serviço necessário à vida coletiva, por exemplo: fornecimento de água, energia
elétrica, transporte urbano.”10 No mesmo sentido é o posicionamento do mestre
Celso Bastos. Ele não considera as atividades típicas de Estado como sendo serviço
público, adotando o conceito de serviço público stricto sensu , nas suas palavras: "De
fato, pode-se constatar que algumas atividades entendidas como serviços públicos
envolvem o exercício de prerrogativas tão próprias do Poder Público que seria
mesmo impensável considerar a sua prestação por particulares. No nosso entender,
no entanto, as atividades assim insuscetíveis de prestação por particulares, por
poderem comprometer a própria soberania e a supremacia do Estado, nem serviçospúblicos devem ser consideradas, pois estas, algumas vezes, são na verdade
atributos de outro Poder do Estado como é o caso da justiça, que alguns autores
têm por serviço público."11 (grifo do autor) Nota-se, que o termo "serviço público" às
vezes é empregado em sentido muito amplo, abrangendo qualquer atividade da
Administração Pública, englobando, inclusive, as atividades típicas dos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, ensejando a controvérsia doutrinária.
A posição doutrinária que adota o conceito de serviço público stricto sensu é
a mais adequada para conceituar os serviços prestados pelo poder público aos
cidadãos. A idéia de serviço público como sendo uma atividade prestacional é,
tecnicamente, mais adequada para definir a atividade estatal de prestação de
serviços à comunidade.
1.2 Dos princípios que regem os serviços públicos
A finalidade dos serviços públicos é favorecer a acessibilidade e pôr os
cidadãos em igualdade de condições de usufruto. Devido sua importância social, os
serviços públicos são regidos por determinados princípios, que devem ser
observados na sua execução, são eles: eficiência, segurança, adequação e
9 MEIRELLES, Hely Lopes, ob. cit., p. 307.10 MADAUAR, Odete, ob. cit., p. 382.11 BASTOS, Celso Ribeiro, ob. cit., p. 165.
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12
continuidade.12 Eficiência - envolve uma relação de custo-benefício, onde se
consideram as vantagens e as desvantagens das providências destinadas à redução
dos riscos. A atividade deve ser estruturada segundo as regras técnicas de modo a
proporcionar serviços com qualidade e segurança para satisfazer as necessidades
dos usuários. Assim, o serviço será de boa qualidade, seguro e a baixo custo.
Segurança - é o desenvolvimento da atividade sem pôr em risco a
integridade física dos usuários. Porém, não existe segurança em termos absolutos,
mas deve-se procurar minimizar todo e qualquer risco na prestação do serviço
público, ou seja, é a adoção das técnicas conhecidas e de todas as providências
possíveis para reduzir os riscos de dano.
Adequação - é a oferta do serviço, de boa qualidade, ao maior número
possível de usuários, atendendo todas as necessidades que motivaram a instituição
do serviço.
Não será adequado o serviço que não for apto a satisfazer, do ponto de
vista técnico, a necessidade que motivou a sua instituição. A Lei nº 8.987/95 (lei de
concessões) dispõe em seu art. 6º, §1º, que o serviço adequado é “aquele que
satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, atualidade,
generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.
Continuidade - se refere à ausência de interrupção, segundo a natureza daatividade desenvolvida e do interesse a ser atendido. Em termos práticos, trata-se
de regularidade na prestação da atividade. O princípio da continuidade é
imprescindível na prestação dos serviços essenciais. A continuidade dos serviços
essenciais significa que devem ser prestados de modo permanente, sem
interrupção, salvo ocorrência de caso fortuito ou força maior que determine sua
paralisação temporária.13
12 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a constituição brasileira de 1998. São Paulo:Malheiros, 2003, p. 260-298.13 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de serviços públicos: Comentários à Lei nº 8.987, de 13 defevereiro de 1995 e à Lei nº 9.704 de 7 de julho de 1995. São Paulo: Dialética, 1997, p. 127.
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1.3 Classificação dos serviços públicos
Os serviços públicos podem ter destinatários determináveis e
indetermináveis. Com base nisso, a doutrina divide os serviços públicos em doisgrandes grupos: 1) os serviços públicos uti universi (universal) - aqueles destinados
a generalidades das pessoas; e 2) os serviços públicos uti singuli (singular) -
aqueles destinados à satisfação individual de uma necessidade.
Os serviços públicos uti universi não são mensuráveis na sua utilização,
sendo mantidos por impostos. Trata-se de serviços que satisfazem
indiscriminadamente todos os cidadãos, por exemplo: iluminação pública,
saneamento, etc.
Já os serviços públicos uti sínguli são destinados a usuários determináveis,
de utilização individual e mensurável. São exemplos desses serviços: o fornecimento
de energia elétrica, água, telefone, transporte urbano. Trata-se de serviços cuja
prestação é especifica, mensurável e individual. O cidadão utiliza o serviço e em
contrapartida paga uma taxa ou tarifa (preço público) pela utilização do serviço.14
Os serviços públicos uti singuli são submetidos ao Código de Defesa do
Consumidor, pois trata-se de relação de consumo entre o Estado ou seus delegados
(fornecedor) e o usuário (consumidor).15
1.4 Concessão de serviço público
No ordenamento jurídico brasileiro, o serviço público específico e divisível,
que possa ser prestado ao usuário mediante pagamento de tarifa, é passível de
concessão ou permissão. Assim, o serviço público uti singuli pode ser prestado
diretamente pelo Poder Público ou indiretamente, mediante concessão, conforme
previsto no art. 175 da Carta Política de 1988.
A concessão é um contrato administrativo pelo qual a Administração Pública
delega a outrem a execução do serviço público, para que o execute em seu próprio
14 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dosTribunais, 2001, p. 188-189.15 Idem, p. 189.
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nome, por sua conta e risco, assegurando-lhe a remuneração mediante tarifa a ser
paga pelo usuário.16 A titularidade do serviço público contínua sendo do Estado,
apenas o exercício é transferido a terceiro. O concessionário irá executar o serviço,
nas condições fixadas pelo Poder Público, sob a garantia contratual de um equilíbrio
econômico e financeiro, cobrado, por meio de tarifa. A concessão de serviços
públicos é regulamentada pela Lei nº 8.987/95.17
As empresas concessionárias que prestam serviço público, geralmente, são
fiscalizadas pelas "Agências Reguladoras" (espécie de autarquia). Essas agências
foram criadas com a finalidade de fiscalizar e normatizar a prestação dos serviços
públicos concedidos, bem como harmonizar os interesses do Estado, das empresas
delegatárias e dos usuários dos serviços. A criação das agências para fiscalizar os
serviços é importante porque o Estado é o responsável pela prestação do serviçoconcedido, apenas o exercício da atividade é atribuído à concessionária.
As características básicas da concessão de serviços públicos são:
manutenção da titularidade pelo Poder Público, transferência da execução,
remuneração por tarifa como preço público; previsão de direitos do usuário e
responsabilidade objetiva do concessionário.18
16 BASTOS. Celso Ribeiro, ob. cit., p. 142.17 LISBOA, Roberto Senise, ob. cit., p. 190-192.18 idem.
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2. OS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS E SUA IMPORTÂNCIA SOCIAL
2.1 O serviço público essencial
Muito se discute na doutrina e jurisprudência sobre que tipo de serviço
público pode ser considerado essencial. Até porque, todo serviço público carrega em
si um traço de essencialidade. Sobre a natureza dos serviços públicos essenciais
versa o ilustre mestre Zelmo Denari que:
É sempre muito complicado investigar a natureza do serviço público, paratentar surpreender, neste ou naquele, o traço da sua essencialidade. Com
efeito, cotejados, em seus aspectos multifários, os serviços decomunicação telefônica, de fornecimento de energia elétrica, água, coletade esgoto ou de lixo domiciliar, todos passam por uma gradação deessencialidade, que se exacerba justamente quando estão em causa osserviços públicos difusos (uti universi ) relativos à segurança, saúde eeducação.19
Apesar de todos os serviços públicos possuírem um traço de
essencialidade, não se pode negar, que uns são mais importantes do que outros.
Assim, aqueles que são mais relevantes e indispensáveis para a coletividade são
considerados essenciais, pois são revestidos do caráter de urgência e precisam ser
fornecidos de forma contínua.
Os doutrinadores têm recorrido a chamada "Lei de Greve" (Lei nº 7.783/89)
para definir quais são os serviços que podem ser considerados essenciais, haja vista
que esta lei não versa apenas sobre a interrupção de serviço essencial em caso de
greve, pois, em sua ementa, está esculpido que serão definidas as atividades
essenciais. Desse modo, tal norma, serve, do ponto de vista hermenêutico, para
determinar quais são os serviços essenciais.
A referida lei, em seu art. 10, estabelece como serviços essenciais, osseguintes:
Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energiaelétrica, gás e combustíveis;II - assistência médica e hospitalar;III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
19 Cf. Zelmo Denari in GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código de defesa do consumidor:comentado pelos autores do anteprojeto. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 194.
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IV - funerários;V - transporte coletivo;VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;VII - telecomunicações;VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos emateriais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;X - controle de tráfego aéreo;XI - compensação bancária." (grifo do autor)
Os serviços listados são essenciais porque servem para suprir as
necessidades básicas dos indivíduos. O art. 11 da referida “lei de greve” dispõe que
“as necessidades inadiáveis da comunidade são aquelas, que não atendidas,
coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da
população”. Assim, o fornecimento de água, energia elétrica e telefonia estão
incluídos no rol dos serviços ou atividades essenciais (art. 10, incisos I e VII),
certamente, porque são atividades que atendem às necessidades inadiáveis da
população.
Assim, os serviços públicos essenciais são as atividades indispensáveis à
sobrevivência humana, cuja prestação à comunidade é feita pelo Poder Público.
Nota-se, que em alguns casos, tais serviços são de utilização obrigatória, por
exemplo, ligação ao sistema de água encanada, a rede pública de esgoto, etc. Isso
ocorre em virtude do interesse estatal pela saúde pública, por isso, o serviço setorna de uso obrigatório, forçado.20
2.2 A importância dos serviços públicos essenciais para o ser humano
O ser humano para viver necessita de certas condições materiais mínimas,
tais como: alimentação, moradia, vestuário, etc. Parte dessas necessidades
imediatas são satisfeitas por meio da fruição dos serviços públicos essenciais, emespecial, o fornecimento de água, energia elétrica e telefonia. Atualmente, esses
serviços são indispensáveis ao ser humano.
Água - Trata-se de um bem vital à espécie humana. A água é um bem
indispensável à sobrevivência. O direito de acesso à água é indissociável do direito
20 JUSTEN FILHO, Marçal, ob. cit., p. 128-130.
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à vida, haja vista que "a água é um bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida" (art. 225 da CF/88).Trata-se de necessidade básica do ser
humano, sem a qual compromete-se a sua dignidade, enquanto merecedor de uma
existência com saúde, higiene e boa qualidade de vida.
Energia elétrica - Na sociedade moderna é impossível exigir, de uma
família, a substituição da luz elétrica por velas, que abra mão de refrigerador,
televisão ou qualquer outra comodidade moderna que atualmente alcança o grau de
primeira necessidade.
A mercadoria eletricidade tornou-se indispensável para toda a
coletividade.21 A energia elétrica transformou-se, na atualidade, em um bem
essencial à população, deixando o homem moderno à mercê de tal fonte de energia.
Telefonia - A criação da telefonia encurtou as distâncias e proporcionou
maior rapidez na troca de informações. As novas tecnologias implantadas na área
de telecomunicações cresceram e incorporaram-se aos costumes e às tarefas
humanas a ponto de torná-las essenciais à segurança e ao bem-estar social.22
Atualmente, a telefonia é essencial à vida urbana, tendo em vista que se requisita
socorro (polícia, bombeiros, médico), transmite-se dados e informações, faz-se
transações comerciais, etc. O serviço de telefonia faz parte do rol dos serviços
essenciais, sob o gênero, telecomunicações (art. 10, VII da Lei nº 7.783/89).Portanto, o fornecimento de água, energia elétrica e telefonia são
considerados serviços essenciais porque são indispensáveis à sobrevivência, à
saúde, à segurança e ao bem-estar das pessoas, preenchendo, assim, os requisitos
necessários para serem qualificados como atividades essenciais indispensáveis à
vida.
2.3 O fornecimento de água e energia elétrica como um direito fundamental
Os serviços públicos essenciais foram criados para atender as
necessidades indispensáveis à sobrevivência humana. Devido sua importância
21 DERANI, Cristiane, op. cit., p. 78.22 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, ob. cit., p. 168-169.
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social, os serviços essenciais devem ser prestados à comunidade de forma
adequada, eficiente e contínua.
Desse modo, é crível concluir, que os serviços públicos essenciais, em
especial, o fornecimento de água e energia elétrica contribuem para que todostenham uma vida digna, permitindo a existência do ser humano com saúde e boa
qualidade de vida. Assim, tornam-se imprescindíveis e fundamentais a todos os
cidadãos como um direito ao mínimo existencial (conjunto de condições materiais
mínimas necessárias à subsistência).23
Em face disso, o direito à água e à energia elétrica podem ser considerados
como um direito fundamental decorrente de uma interpretação sistêmica, inferida
dos princípios e do regime adotado pela Constituição, pois a norma constitucional
em seu art. 5º, § 2º estabelece que: “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”.
Os direitos fundamentais são posições jurídicas concernentes aos
indivíduos, que “do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram por seu
conteúdo e importância integradas ao texto constitucional (fundamentalidade
material) e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos(fundamentalidade formal)”.24 Sendo assim, são direitos fundamentais exatamente
porque constituem prerrogativas sem as quais o ser humano não sobrevive ou não
se realiza. Na prática, os direitos fundamentais individuais visam reconhecer
autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos
diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado.25
Entretanto, para que determinado direito, que não esteja contemplado no
catálogo dos direitos fundamentais (Título II da CF/88), possa ter o status de direito
fundamental é preciso preencher, no mínimo, dois requisitos: 1) viabilizar a
concretização de algum princípio fundamental da República; e 2) ser equiparado em
termos de relevância e conteúdo aos direitos fundamentais expressos no Título II da
23 TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar,2001, p. 266.24 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2003, p. 8525 Idem p. 51-52.
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Constituição.26 A exigência do duplo fundamento é necessária para evitar a
banalização dos direitos fundamentais. Assim, para ser considerado um direito
fundamental é preciso haver uma íntima ligação aos princípios fundamentais e poder
ser equiparado, em termos de importância e conteúdo, aos direitos fundamentais
expressos na Constituição.
Destarte, os dois serviços públicos essenciais (água e energia elétrica)
podem ter status de direito fundamental decorrente do princípio da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III c/c § 2º, art. 5º da CF/88). Este princípio atrai para si
todos os direitos fundamentais, porém, o grau de vinculação é variável, existem
direitos que explicitam, em primeiro grau, da idéia de dignidade e outros que destes
são decorrentes.27 Daí porque, os direitos e garantias fundamentais constituem
garantias específicas da dignidade da pessoa humana da qual são - em certosentido- mero desdobramentos.28
Nesse diapasão, o direito à água pode ser considerado um direito
fundamental porque corresponde às exigências mais elementares da dignidade
humana (viver com saúde, higiene e boa qualidade de vida), sendo pressuposto
desta, pois a água é condição essencial para se viver (equiparação ao direito à
vida). “A água é a seiva de nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de
todo ser vegetal, animal ou humano.”29 Assim, o direito à água preenche os dois
requisitos necessários para ser considerado direito fundamental, pois pode ser
equiparado a um direito fundamental previsto no catálogo (direito à vida) e serve
para concretizar o princípio da dignidade humana.
Já o direito à energia elétrica pode ser considerado um direito fundamental
decorrente do princípio da dignidade humana, na medida em que se tornou
indispensável à vida moderna, sendo incorporado aos costumes e tarefas humanas
a ponto de torná-la essencial ao bem-estar social, concretizando, assim, a diretriz
prevista no art. 3º da Constituição Federal.
26 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2003, p. 98-99.27 Idem, p. 120.28 Ibidem, p. 118.29 Ref. ao art. 2°, da Declaração Universal dos Direito da Água, ABES & SABESP. "Valor da Águapara a Saúde e Nosso Direito à Água" in: Trabalhos da Semana Interamericana da Água 2002.Disponível em http://www.abes-sp.org.br/semana_interamericana/valor_agua_direito_ agua Acessoem: 03 fev 2004.
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Assim, o direito à energia elétrica pode ser equiparado aos direitos sociais
(direitos fundamentais previstos no art. 6º da CF/88), haja vista que tais direitos têm
a finalidade precípua dar condições efetivas para que os cidadãos possam participar
do bem-estar social. “Os direitos de segunda dimensão podem ser considerados
uma densificação do princípio da justiça social.”30 Não se pode olvidar, que a maioria
dos produtos e serviços (luz elétrica, refrigerador, televisão, ferro de passar roupas,
etc) que são criados para dar maior comodidade a vida, dependem da eletricidade,
portanto, a energia elétrica contribui, efetivamente, para o bem-estar social das
pessoas. Atualmente:
é completamente irreal, exigir de uma família, a substituição da luz elétricapor velas, que abra mão de refrigerador, televisão ou qualquer outracomodidade moderna que atualmente alcança o grau de primeiranecessidade.31
Com efeito, os serviços públicos essenciais (água e energia elétrica)
preenchem os requisitos de um direito fundamental porque contribuem diretamente
para a concretização do direito à vida, à liberdade, à saúde, à segurança e à
igualdade, bem como viabilizam a existência da vida com dignidade.
Por fim, convém destacar, a posição da ilustre Cristiane Derani, no sentido
de considerar o acesso aos serviços essenciais como um direito fundamental, nas
suas palavras: “Favorecendo ao acesso a bens e serviços de base, como o
transporte, o correio, o telefone, a eletricidade; as redes de serviço público
preenchem uma função social. O acesso a esses serviços aparece como um direito
fundamental. (...) O acesso aos serviços públicos é indispensável pra assegurar a
cada cidadão a realização efetiva de seus direitos, em termos de mobilidade,
informação ou inserção social.”32 (grifo do autor)
Portanto, o direito à água e à energia elétrica podem ser considerados como
um direito fundamental, por força do disposto no § 2º, art. 5º da Constituição e em
atenção ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, haja vista que talprincípio "além de constituir valor unificador de todos os direitos fundamentais, que,
na verdade, são uma concretização daquele princípio, também cumpre função
30 SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit., p. 53.31 DERANI, Cristiane, op. cit., p. 78.32 Idem. p. 68-69.
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legitimadora do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou
previstos em tratados internacionais."33
33 SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit., p. 102.
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3. A RELAÇÃO CONTRATUAL ENTRE O ESTADO E OS USUÁRIOS DESERVIÇOS PÚBLICOS
3.1 O contrato de fornecimento de serviços públicos
O fornecimento de serviços públicos uti singuli (água, energia elétrica e
telefonia) à população é feita por meio de contrato de adesão entre o cidadão e o
Estado. Na prestação de tais serviços, há uma relação contratual entre o cidadão
(usuário) e o poder público (diretamente ou indiretamente). O cidadão solicita o
serviço e em contrapartida paga uma tarifa por aquilo que consumiu.
O contrato de adesão é um contrato-padrão oferecido ao público emformulário impresso, no qual o contratado adere sem discutir as cláusulas. A ilustre
doutrinadora Cláudia Lima Marques conceitua contrato de adesão como sendo
aquele "cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro
economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur , isto é, sem que o outro
parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do
contrato escrito."34
O Código de Defesa do Consumidor em seu art. 54, caput, define contrato
de adesão nos seguintes termos, in verbis :
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cuja cláusulas tenham sido aprovadaspela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelofornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutirou modificar substancialmente seu conteúdo.
Esse tipo de contrato é cada vez mais utilizado no mundo contemporâneo
em virtude da multiplicidade de usuários para compra de produtos ou utilização de
serviços oferecidos pelo mesmo fornecedor. O prestador de serviços não irá discutiras cláusulas contratuais com cada usuário, por isso, opta-se pela utilização de um
contrato padrão (contrato de adesão) para disciplinar a relação contratual.
34 MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime dasrelações contratuais. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 58.
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3.2 A relação de trato sucessivo entre o usuário e o Poder Público (prestadorde serviços)
No mundo contemporâneo, os contratos de adesão podem ser considerados
contratos cativos, pois são relações contratuais que utilizam os métodos de
contratação de massa, criando relações jurídicas complexas de longa duração,
envolvendo uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma
característica determinante: a posição de "catividade" do consumidor na relação
contratual.35
A posição de “catividade” do consumidor existe porque nos contratos de
massa, a prestação do serviço se protrai no tempo, com vínculo contratual de
execução longa e contínua. Os principais exemplos de contratos cativos de longaduração são: contratos de conta corrente, cartão de crédito, plano de saúde,
fornecimento de energia elétrica, água encanada e telefonia.
O fornecimento de água, energia elétrica e telefonia se incluem entre os
chamados contratos cativos porque são serviços essenciais à vida e, na maioria das
vezes, são fornecidos sob a forma de monopólio, o que torna o usuário dependente
do serviço e do prestador de serviços. A prestação desses serviços envolve
obrigações de longo prazo, constituindo uma relação de trato sucessivo que torna o
usuário cativo, pois o dever de prestar o serviço se renova automaticamente e o
vínculo contratual se mantém tornando a relação contratual perene, de prazo
indeterminado. 36
Além disso, quando o usuário solicita um serviço público essencial, ele na
realidade adere, mas não propriamente como numa relação contratual normal, pois
sua ligação não se deve a uma escolha de mercado em que exerce sua opção de
atar-se ou não à relação de consumo. Sua adesão é imposta pela necessidade da
qual não pode prescindir, temos uma relação contratual ao mesmo tempo de adesãoe de necessidade.37 “É discutível até se falar em relação contratual, posto que não
se vislumbram os elementos do contrato, há na verdade um pacto de fornecimento
de valores de uso.”38 O usuário não escolhe o bem pela relação existente entre
35 MARQUES, Cláudia Lima, Op. cit, p. 79.36 Idem, p. 87.37 DERANI, Cristiane, ob. cit., p. 75.38 Idem.
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oferta e preço, mas sim em função de uma necessidade essencial para sua
existência social, o uso independe do preço, da oferta e da escassez de mercado,
nesse caso a relação de consumo é regida pela necessidade, possuindo escopo de
obrigatoriedade.39
Cabe salientar, ainda, que a utilização de determinados serviços essenciais,
em alguns casos, é de utilização obrigatória (sistema de água encanada, rede
pública de esgoto, etc). Essa obrigatoriedade serve para acentuar o caráter de
catividade dos contratos de fornecimento de serviços públicos essenciais.
3.3 Aplicabilidade do CDC aos contratos de fornecimento de serviço público
A relação contratual entre o prestador de serviços públicos (Poder Público
ou seus delegados) e os usuários pode ser disciplinada pelo Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº 8.078/90) quando o fornecimento de serviço público uti singuli for
caracterizado como uma relação de consumo (presença de fornecedor e consumidor
final). A lei consumerista ao definir o conceito de fornecedor, nele incluiu as pessoas
jurídicas de direito público. O art. 3º da referida lei dispõe que, in verbis :
Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, quedesenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção,transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização deprodutos ou prestação de serviços.
§ 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, decrédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de carátertrabalhista.(grifo do autor)
Nessa esteira, os contratos de fornecimento de serviço público podem sersubmetidos ao Código de Defesa do Consumidor, em virtude do disposto no art. 3º
da lei consumerista.
Além disso, em vários artigos subseqüentes, há referência expressa a
submissão dos serviços públicos ao Código do Consumidor. O art. 4º, VII, indica que
39 DERANI, Cristiane, ob. cit., p.77
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a Administração Pública deve buscar a melhoria dos serviços públicos. E logo em
seguida, o art. 6º, X, por sua vez, declara como direito básico do consumidor: a
adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. E o art. 22, estabelece
que:
os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, sãoobrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aosessenciais, contínuos.
Assim, quando alguém solicita a prestação de serviço público, temos uma
relação contratual de prestação de serviços que poderá ser submetida às regras do
CDC, se for caracterizada como uma relação de consumo.
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4. A INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO E A SUSPENSÃO DO SERVIÇO PÚBLICOESSENCIAL
4.1 Exceptio non adimplenti contractus e o não pagamento da tarifa
A Lei nº 8.987/95, que trata das concessões e permissões de serviços
públicos, prevê a possibilidade de suspensão do serviço público como forma de
punição ao devedor inadimplente, assim dispõe seu art. 6º, in verbis :
Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviçoadequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nestalei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
[...]§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupçãoem situação de emergência ou após prévio aviso, quando:I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações;eII - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse dacoletividade." (grifo do autor)
Nessa medida, a suspensão do serviço público possui roupagem da
exceção do contrato não cumprido previsto no Código Civil, funcionado como uma
defesa do credor (Estado-fornecedor) em face de usuário inadimplente. Noscontratos bilaterais, onde existam obrigações, simultaneamente, recíprocas e
interdependentes é possível ao credor utilizar a exceptio non adimplenti contractus .40
Contudo, é preciso analisar a plausibilidade desse instituto do direito privado
aplicado ao direito público, principalmente, quando se trata de prestação de serviço
público essencial feito pelo Estado aos cidadãos.
Nos contratos bilaterais é lícito ao credor utilizar a exceptio non adimplenti
contractus em face de devedor inadimplente. Trata-se de uma defesa do credor,
porém, só deve ser utilizada em último caso, isto é, quando houver grave prejuízo
para o credor. Assim, precisa haver “uma grande desproporção entre a prestação
descumprida e a prestação a ser cumprida.”41
40 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. 3 ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2001, p.120.41 Idem p. 120.
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Sendo assim, o Poder Público ou seus delegados (concessionárias), não
podem utilizar a exceção do contrato não cumprido porque, prima facie , não há
grave desproporção entre a mera inadimplência do usuário e os prejuízos do
prestador de serviços públicos, a ponto de levá-lo a tomar a medida extrema de
suspender o serviço. Além disso, o princípio da continuidade do serviço público
essencial, exclui, como regra, a excepio inadimpleti contractus.42
A inadimplência de alguns usuários não tem o condão de causar graves
prejuízos ao prestador de serviços (o Poder Público ou as concessionárias), pois
este, geralmente, possui milhões de usuários. Ademais, o prestador de serviços
públicos essenciais possui o privilégio de cobrar consumação mínima, ou seja, a
cobrança de um valor mínimo mensal, independente da utilização ou não do serviço
pelo usuário. Portanto, os recursos financeiros advindos da cobrança deconsumação mínima servem para compensar os prejuízos causados por eventuais
inadimplências dos usuários.
4.1.1 Da cobrança de consumação mínima
A cobrança de consumação mínima (água e energia elétrica) ou assinatura
básica (telefone) é, na realidade, uma "taxa" imposta aos usuários pela simples
disponibilidade do serviço, pois como é consabido, o preço público (tarifa) a ser pago
pelo usuário de serviço público uti singuli só comporta aquilo que efetivamente foi
utilizado.
A taxa é o tributo cobrado de alguém que utiliza um serviço público ou
quando há uma atuação específica do poder público (poder de polícia). O Estado irá
impor a cobrança de taxas de serviço (de fruição compulsória) ainda que o particular
não o deseje receber, o dever de pagar ocorre em função da mera disponibilidadedo serviço (art. 145, II da CF/88). Já a tarifa (ou preço público) é a contraprestação
paga pelo usuário em virtude da utilização efetiva do serviço público. A obrigação de
pagar a tarifa é sempre contraída pela efetiva utilização do serviço.43
42 JUSTEN FILHO, Marçal, ob. cit., p. 127.43 GROTTI. Dinorá Adelaide Musetti, ob. cit., p 226-229.
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Nesse diapasão, verifica-se que as tarifas remuneratórias distinguem-se das
taxas porque não são compulsórias, mas cobradas somente dos usuários pela
efetiva utilização do serviço, ao passo que as taxas são devidas pelo contribuinte
desde que o serviço, de utilização obrigatória, esteja à sua disposição.44
O marco divisor entre taxa e tarifa é o que assenta na obrigatoriedade da
primeira e na facultatividade da segunda. Contudo, a obrigatoriedade por si só, não
é o que caracteriza o serviço como sendo regido por taxa, pois além de ser
obrigatório, é preciso que se trate de prestação de serviço essencial que objetive
prioritariamente o interesse coletivo.45
Ora, a cobrança de consumação mínima é compulsória e incide sobre
prestação de serviço essencial de interesse coletivo. Portanto, a cobrança de
consumação mínima que o poder público ou seus delegados (concessionárias)
impõem aos usuários de serviços públicos essenciais (água, energia elétrica e
telefonia) se aproxima mais do conceito de taxa do que de tarifa.
Portanto, verifica-se que os prestadores de serviços públicos utilizam a
mescla de taxa e tarifa na cobrança dos serviços essenciais apenas para se
beneficiarem dos dois regimes, sem arcar com nenhum ônus. O ilustre mestre Sacha
Calmon narra um caso ocorrido em Belo Horizonte, demonstrando que as
concessionárias só querem o bônus dos dois regimes, in verbis : “caso interessantesurgiu quando dois edifícios em Belo Horizonte instalaram poços artesianos e
requereram da concessionária o desligamento da rede pública, ao argumento de que
não mais lhes interessava o contrato de fornecimento, donde o pedido de rescisão.
A concessionária, inobstante o regime contratual que presidia o fornecimento,
alegou que continuaria a cobrar a “tarifa básica mínima” da região, dada a
compulsoriedade do serviço (neste caso o argumento só seria possível se o regime
de fornecimento fosse de direito público, de taxa portanto).”
Este caso, demonstra, que as concessionárias só querem se beneficiar da
cobrança da “tarifa mínima”, que, na verdade é uma taxa. O que diferencia a taxa do
preço público é o regime a que está submetido o instituto, vale dizer, sua essência, o
nome que se dá, se taxa ou tarifa, pouco importa. “Certa feita Aliomar Baleeiro,
44 MEIRELLES, Hely Lopes, ob.cit., p. 309.45 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, ob. cit., p. 233.
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quando ministro da Suprema Corte, averbou, com felicidade, que 'preço compulsório'
é taxa e 'taxa facultativa' é preço.”46
Portanto, com a cobrança de consumação mínima, independente do nome
que se dê a isso, se taxa ou tarifa mínima, verifica-se que o prestador de serviçospúblicos essenciais pode compensar os eventuais prejuízos advindos da
inadimplência de alguns usuários. E além disso, as concessionárias já embutem nos
preços de seus serviços, os possíveis prejuízos advindos de possíveis
inadimplências de seus usuários. Por isso, a inadimplência de alguns usuários não
tem o condão de causar prejuízos graves ao prestador de serviços a ponto de
justificar a exceção do contrato não cumprido.
4.1.2 Da impossibilidade de utilização da exceptio non adimplenti contractus
na prestação de serviços públicos essenciais
A relação contratual entre o Poder Público ou seus delegados e o usuário
de serviços públicos está submetida ao regime de direito público. Por isso, não se
aplica a exceção do contrato não cumprido previsto no direito privado. A relevância
do serviço público impede que a concessionária possa interromper a prestação do
serviço em virtude da inadimplência, sob a alegação de redução ou ausência de
lucro.
Em situação inversa, ou seja, quando o particular presta serviços ao Estado,
aquele não pode utilizar a exceptio non adimplenti contractus contra este. "A
exceção de contrato não cumprido, usualmente invocada nos ajustes de direito
privado, não se aplica, em princípio, aos contratos administrativos, quando a falta é
da Administração”47. Nos contratos de direito público, o contratado não pode usar
desta faculdade contra a Administração. O princípio maior - a continuidade doserviço público - impede que o particular paralise a execução do contrato diante da
omissão ou atraso da Administração no cumprimento das prestações. Em tais
46 Apud COÊLHO, Sacha Calmon Navarro Sacha, ob. cit., p. 415.47 BASTOS, Celso Ribeiro, ob. cit., p. 138.
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contratos essa exceção é substituída pela subseqüente indenização dos prejuízos
suportados pelo particular.48
Ora, mutatis mutandis, os argumentos utilizados pelo Estado para se opor a
excepio non adimplenti contractus , podem ser aplicados aos usuários de serviçopúblico essencial em função do interesse público, pois a interrupção do fornecimento
de serviço essencial por inadimplência do usuário jamais será de interesse público.
Quando o serviço é de fruição obrigatória pelos particulares, a suspensão da sua
prestação não é comportada, porque representa sacrifício do interesse da própria
coletividade, que deve ser preservado.
Nesses casos, o serviço não é prestado no exclusivo interesse do usuário,
mas também no da sociedade, como meio idôneo para atingir o bem-estar social de
todos.49
Além disso, com a interrupção do fornecimento de serviços essenciais, o
indivíduo será privado de bens indispensáveis a sua vida, isso certamente, levará a
degradação do ser humano. Sendo assim, não há prevalência do interesse público
(coletivo) sobre o interesse privado (individual) porque o indivíduo não pode abrir
mão de sua própria dignidade em favor da coletividade, tal sacrifício é inaceitável.50
Ademais, a interrupção do fornecimento de água tratada, de energia elétrica
e de telefonia, raramente, afeta o indivíduo isoladamente, mas sim uma família,sendo assim, não há interesse da coletividade em ver uma família - instituição que
merece especial proteção do Estado (art. 226, CF/88) - ser privada de serviços
essenciais e indispensáveis à vida, à saúde, à segurança e ao bem-estar social.
Portanto, a prestação de serviço essencial é sempre feita no interesse da
coletividade, por isso é inadmissível a suspensão do serviço por causa de mera
inadimplência do usuário. Não resta dúvida, que as concessionárias têm direito a
buscar o equilíbrio econômico-financeiro, de modo a tornar suas atividades
economicamente viáveis, porém os usuários necessitam dos serviços para poder
sobreviver. Sendo assim, o direito de crédito do fornecedor (direito patrimonial) é um
bem de menor importância se comparado com o direito do usuário de ter acesso aos
serviços essenciais e necessários a sua subsistência (direito à vida, à saúde).
48 BASTOS, Celso Ribeiro, ob. cit., p. 138.49 GROTTI. Dinorá Adelaide Musetti, ob. cit., p. 264.50 SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit., p. 111.
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4.2 Outras formas de punir os usuários inadimplentes
O inadimplemento de uma obrigação é fato reprovável pelo Direito, mas a
cobrança do crédito deve ser feita pelos meios legais. O poder público ou seusdelegados (concessionárias) tem direito ao crédito em função da prestação do
serviço público, contudo, utilizar a suspensão do serviço essencial como forma de
compelir o usuário ao pagamento da tarifa extrapola os limites da legalidade. "Não
há de se prestigiar a atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando
exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções,
do que o devedor”51, disse o Ministro José Delgado, ao votar contra o corte de
energia elétrica por inadimplência.
Na cobrança de dívidas, o credor não deve agir abusivamente. “O ato
abusivo se refere a uma "qualificação da conduta" do titular do direito subjetivo. O
dever de não abusar é atuar segundo os valores sociais, a boa-fé, os bons costumes
e a finalidade econômica e social.”52 Por isso, os prestadores de serviços públicos
devem utilizar os meios legais para receber seu crédito, podendo, inclusive, incluir o
nome do devedor inadimplente nos bancos de dados do SERASA, SPC e cobrar
judicialmente a dívida.
O credor deve procurar receber seu crédito de maneira menos gravosa parao devedor. O art. 620 do CPC prescreve que "quando por vários meios o credor
puder promover a execução, o juiz mandará que o faça pelo modo menos gravoso
para o devedor". Ora, a suspensão do serviço essencial é, sem dúvida, a forma mais
gravosa para cobrar a dívida do usuário.
Não se pode olvidar, que a dinâmica social tem impulsionado no sentido que
os institutos jurídicos sejam analisados sob a perspectiva da solidariedade
constitucional.53 Por isso, deve-se buscar o equilíbrio entre os direitos e os encargos
do fornecedor e do usuário. Em relação às tarifas, significa dizer que o prestador de
serviços irá fixar seus preços com objetivo de lucro, mas não será seu fim principal.
Embora seja legítima a pretensão do lucro, esta não deve se sobrepor ao dever de
51 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 1ª Turma. RESP nº 442814/RS. Relator: José Delgado.Brasília, DF, 3 set 2002. DJ de 11.11.2002, p. 161.52 CARPENA, Heloísa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.70.53 Idem.
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prestação do serviço público com eficiência e continuidade ao usuário que precisa
de tal serviço para sobreviver.
Nesse diapasão, verifica-se que os contratos convergem para atender os
valores e princípios insculpidos no texto constitucional, pois devem atender ao bem-estar social, contribuindo para que todos possam ter uma vida digna. Daí porque
deve ser observada a finalidade social dos serviços que estão sendo prestados, para
que não haja abuso na cobrança da dívida.
4.3 O direito do usuário inadimplente a uma cota mínima de serviçosessenciais
Os serviços públicos essenciais foram criados para atender as
necessidades mais imediatas dos cidadãos. Sendo assim, existe uma quantidade
mínima de serviços sobre a qual o cidadão não pode dispor, pois é necessária a sua
sobrevivência. Por isso, os usuários de serviços públicos essenciais, ainda que
inadimplentes, não podem ser punidos com a suspensão total dos serviços, pois há
uma fração desses serviços que eles não podem dispor.
O direito dos usuários inadimplentes a uma quantidade mínima de serviços
essenciais (água, energia elétrica e telefonia) decorre da necessidade desses
serviços para sobrevivência humana, bem como em virtude do pagamento de
consumação mínima. O pagamento da consumação mínima, pela simples
disponibilidade do serviço, enseja, em favor dos usuários inadimplentes, que lhes
sejam fornecidos uma quantidade mínima de serviços essenciais enquanto
estiverem inadimplentes, trata-se de uma compensação pelo pagamento da “tarifa
mínima”.
Ora, se os prestadores de serviços têm a prerrogativa de cobrarconsumação mínima, pela simples disponibilidade do serviço, é crível concluir, que a
prestação do serviço está sendo regida, parcialmente, por taxa, sendo assim, não
cabe a suspensão por inadimplência. A lição do mestre Hely Lopes Meirelles é clara,
in verbis : “se a Administração o considera essencial, impondo-o coercitivamente ao
usuário (como é a ligação domiciliar à rede de esgoto e água e limpeza urbana), não
pode suprimi-lo por falta de pagamento (...). Ocorre, ainda, que, se o serviço é
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obrigatório, sua remuneração é por taxa (tributo), e não por tarifa (preço), e a falta de
pagamento de tributo não autoriza outras sanções além de sua cobrança executiva
com os gravames legais (correção monetária, multa, juros, despesas judiciais)”.54(grifo do autor)
Portanto, o usuário inadimplente tem o direito de receber uma quantidade
mínima de serviços essenciais que implicam na garantia da vida, da saúde, da
segurança e da dignidade do ser humano, direitos esses protegidos
constitucionalmente.
O direito a cota mínima de serviços essenciais é necessária para que as
pessoas possam viver com dignidade. No caso dos serviços de água e energia
elétrica, seria uma cota mensal suficiente para suprir as necessidades básicas,
quanto aos serviços de telefonia, seria uma cota de pulsos mensais para poder fazer
ligações emergenciais (polícia, bombeiros, etc).
54 MEIRELLES, Hely Lopes, ob. cit., p.309.
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5. A SUSPENSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL E SUA VIOLAÇÃO AOCÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Neste capítulo será analisada a ilegalidade da suspensão do fornecimentode serviços essenciais aos consumidores em virtude do principio da continuidade,
previsto no CDC. A lei consumerista dispõe em seu art. 22, que “os órgãos públicos,
por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra
forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”
Todavia, a questão da continuidade dos serviços públicos essenciais tem
gerado muita controvérsia doutrinária e jurisprudencial em virtude da antinomia entre
o CDC e a Lei de concessões de serviços públicos. A lei consumerista estabelece
que os serviços essenciais devem ser prestados de forma contínua. Por outro lado,
a Lei nº 8.987/95, que trata do regime de concessão e permissão da prestação de
serviços públicos, dispõe que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a
sua interrupção em face de inadimplemento do usuário (art. 6º, § 3º, inciso II).
Para solucionar o conflito entre o CDC e a lei de concessões é necessário
estabelecer qual o campo de aplicação e finalidade das referidas leis no
ordenamento jurídico, haja vista que ambas as normas são especiais e pertencem àmesma hierarquia (são leis ordinárias).
Todavia, há certa controvérsia doutrinária, se a lei consumerista é especial
ou geral? Em face disso, antes de analisar o conflito das normas em questão, é
necessário fazer um estudo mais aprofundado sobre a qualificação do Código de
Defesa do Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro.
5.1 A qualificação do CDC como lei especial
Alguns doutrinadores consideram que o CDC possui ao mesmo tempo
qualidade de lei especial e geral, possuindo as duas características, mas no que
tange aos direitos (subjetivos) dos consumidores nas relações de consumo, há
unanimidade quanto à especialização.
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A ilustre Cláudia Lima Marques considera que o CDC é lei especial e geral.
Segundo essa doutrinadora, a lei consumerista é especial na sua face subjetiva, pois
só impõe regras para as relações contratuais e extracontratuais envolvendo
pessoas, que define como consumidores e fornecedores. De outro lado é lei geral,
em grande parte de sua face material, pois trata de várias relações jurídicas
envolvendo consumidores e fornecedores, não tratando de nenhuma espécie de
contrato em especial, mas impondo novos princípios e regras nas relações de
consumo.55
No mesmo sentido de que o CDC é lei geral e especial, é o entendimento de
Nelson Nery Júnior, nas suas palavras: "O Código de Defesa do Consumidor é
considerado um microssistema, como lei especial sobre relações de consumo e lei
geral, principiológica, à qual todas as demais leis especiais setorizadas das relaçõesde consumo, presentes e futuras, estão subordinadas."56 (grifo do autor)
Verifica-se, pelo posicionamento dos doutrinadores mencionados,
especialmente o segundo, que o CDC é a lei especial para as relações de consumo,
portanto apesar de haver uma “parte geral” de cunho principiológico, isso não retira
a qualificação da lei consumerista como sendo lei especial. “A grande novidade que
o CDC outorgou à sociedade brasileira, é estar voltado exclusivamente para o
consumidor, criando uma política nacional de defesa a um dos pólos da relação de
consumo.”57
Entretanto, conforme leciona Cláudia Lima Marques, os critérios para
determinar se uma lei é especial ou geral apresenta aspectos casuísticos.58 Além
disso, a referida doutrinadora reconhece que a especialização é uma característica
tanto material quanto subjetiva, pois cada vez mais se introduz no sistema do direito,
leis destinadas a proteção de grupos sociais, como é caso do CDC.59
Não se pode olvidar, que o dinamismo e os interesses contraditórios
presentes na atual sociedade de massa desencadearam o aparecimento de um
grande número de leis esparsas, leis especiais, em um fenômeno que os alemães
55 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit. p. 533.56 Cf. Nelson Nery Júnior in GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código de defesa do consumidor:comentado pelos autores do anteprojeto. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 444.57 SILVEIRA, Reynaldo Andrade da. Práticas mercantis no direito do consumidor. Curitiba: Juruá,1999, p. 32.58 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit., p. 533.59 Idem.
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denominaram de "Estilhaçamento" do direito (Zersplitterung).60 Além disso, os
direitos fundamentais propagados, em especial, depois do estabelecimento das
diretrizes da Comunidade Européia de 1973 e 1975, passaram a ser consagrados
em todo o mundo. Com isso, criaram-se várias legislações especificas para tratar do
assunto através de regulamentos ou normas.61
Ora, para que determinada lei seja considerada especial é necessário que
possua em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral, e mais
alguns de natureza subjetiva e objetiva, denominados especializantes. Trata-se, na
realidade, de um plus que visa a beneficiar determinados grupos ou situações que o
legislador visa proteger, dando tratamento diferenciado, por exemplo, a um grupo
mais fraco que seria prejudicado ou não conseguiria fazer vale seu direito ante as
normas genéricas.62
É cediço que o Código de Defesa do Consumidor surgiu atendendo a um
comando constitucional, estabelecendo um sistema de proteção a determinados
indivíduos no mercado de consumo.63 Portanto, a lei consumerista não pode ser
considerada geral, pois sua finalidade precípua não é regular as relações de
consumo, mas sim proteger o consumidor nas relação de consumo. Por isso, a
especialização da lei consumerista ocorre em virtude de ter sido criada para
regulamentar o direito fundamental do consumidor previsto na Constituição Federal
(art. 5º, XXXII). Além disso, o CDC não cuida de nenhum contrato específico, mas
tão somente, da proteção e defesa do consumidor em qualquer relação de
consumo.64
O mestre Rizzatto Nunes lecionando sobre o sistema do CDC, demonstra
com muita sapiência que o CDC é uma lei especial no que tange à relação de
consumo, nas suas palavras: "(...) a partir de 11 de março de 1991, com a entrada
em vigor da lei consumerista, não se cogita mais em pensar as relações de consumo
(as existentes entre fornecedores e consumidores) como reguladas por outra lei".65
60 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit., p. 512.61 MANDELBAUM, Renata. Contratos de adesão e contratos de consumo, São Paulo: Revista dosTribunais, 1996, p. 181.62 DINIZ, Maria Helena. Conflitos de normas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 33.63 MARTINS, Plínio Lacerda. Revista de Informação Legislativa, v.37, n.145, 2000, p. 141.64 KHOURI, Paulo Roque A. Contratos e responsabilidade civil no cdc. Brasília: Brasília Jurídica,2002, p. 35.65 NUNES, Luís Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. (direito material)art. 1º a 54. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 71.
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Portanto, sempre que houver uma relação de consumo, o CDC é a lei
própria, específica e exclusiva; pois foi estabelecida em razão da competência
atribuída pela Constituição Federal (art. 5º, XXXII), como um direito fundamental dos
indivíduos enquanto consumidores, estabelecendo a Política Nacional de Relações
de Consumo (art. 4º, CDC). consolidando num só diploma legal.66
Sendo assim, nas relações contratuais e extracontratuais, se for
caracterizada uma relação de consumo com a presença de fornecedor e consumidor
final, esta relação será disciplinada pela lei consumerista. O CDC foi criado
especificamente para proteger determinados sujeitos (consumidores) nas relações
de consumo, atendendo a um mandamento constitucional (art. 5º, XXXII da CF/88).
O mestre Reynaldo Andrade da Silveira assevera que: “Como lei especial
que é, o CDC derroga o Código Civil e outros diplomas legais que integram o
chamado Direito Comum, no que concerne à espécie de negócios jurídicos
denominada de relações de consumo. Em decorrência disso, o Código Civil, bem
como o Comercial e a legislação mercantil que o complementa, no âmbito do direito
privado, restaram com função residual.”67
Portanto, conclui-se que os conflitos advindos das relações de consumo
devem ser resolvidos exclusivamente à luz do CDC e a legislação correlata será
aplicada subsidiariamente.
5.2 O consumidor como sujeito de um direito fundamental
A defesa do consumidor é um direito fundamental previsto no art. 5º, inciso
XXXII, da Constituição Federal de 1988, e trata-se, também, de um princípio da
ordem econômica (art. 170, V). Ora, como o direito do consumidor está elencado
entre os direitos fundamentais da Constituição, pode-se inferir que qualquer normainfraconstitucional que ofender os direitos consagrados pelo Código do Consumidor
estará ferindo a Constituição.68
66 MARTINS, Plínio Lacerda, ob. cit., p 140-141.67 SILVEIRA, Reynaldo Andrade da, ob. cit., p. 30.68 MARTINS, Plínio Lacerda, ob. cit., p. 141.
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O mestre Arruda Alvim nos ensina que, in verbis : "Garantia constitucional
desta magnitude, possui, no mínimo, como efeito imediato e emergente, irradiado da
sua condição de princípio geral da atividade econômica do país, conforme erigido
em nossa Carta Magna, o condão de inquinar de inconstitucionalidade qualquer
norma que possa consistir em óbice à defesa desta figura fundamental das relações
de consumo, que é o consumidor"69.
Sendo assim, o CDC pode ser considerado a “Constituição" dos
consumidores por causa de seu status constitucional. Por isso, “o intérprete e
aplicador da lei, em especial do CDC, devem ter em conta esta valoração
constitucional e sua hierarquia implícita: para as pessoas físicas, o direito do
consumidor é um direito fundamental.”70
A defesa do consumidor é um direito essencial a ser protegido no mercado
de consumo, pois, geralmente, sua relação contratual é com empresas que
concentram grande poder econômico. Esse direito fundamental exatamente porque
o consumidor busca no mercado, na qualidade de não profissional, de destinatário
final mesmo de tudo que o mercado produz, a satisfação de suas necessidades
essenciais de alimentação, saúde, educação, segurança, lazer etc.71 Por isso, a
defesa do consumidor foi elencado como princípio limitador da atividade econômica
(art. 170, V, da CF/88).
Portanto, a proteção do consumidor nas relações de consumo ocorre em
face de sua posição mais vulnerável no mercado de consumo. Daí porque, o Código
do Consumidor foi criado para estabelecer as normas de proteção e defesa do
consumidor, de ordem pública e interesse social, com o objetivo de proteger seus
interesses nas relações de consumo, bem como o respeito à sua dignidade, saúde e
segurança.72
69 ALVIM. Arruda e outros. Código do consumidor comentado. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,1995, p. 15.70 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit., p. 306.71 KHOURI, Paulo Roque A. A Proteção do Consumidor Residente no Brasil nos ContratosInternacionais. (Relatório de Mestrado da disciplina Direito Internacional Privado). Apresentado naFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, set 2003, p. 17-18.72 MARTINS, Plínio Lacerda, ob. cit., p. 141-142.
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5.3 A antinomia jurídica entre a lei do consumidor e a lei de concessões de
serviços públicos
5.3.1 Os critérios para solução de antinomias
A solução de antinomias no ordenamento jurídico tem sido feito, geralmente,
através dos critérios clássicos de solução de conflitos normativos, são eles: o
cronológico, o hierárquico e o da especialidade. Pelo critério cronológico, há
prevalência da norma posterior sobre a anterior. No critério da hierarquia, a norma
de hierarquia superior deve prevalecer sobre a de hierarquia inferior. Pelo critério da
especialidade, há prevalência da norma especial em detrimento da norma geral.73
Todavia, apesar dos critérios clássicos resolverem a maioria dos conflitos de
normas, tais critérios não são absolutos, pois, apesar de serem calcados em
princípios jurídico-positivos, pressupostos implicitamente pelo legislador, se
aproximam muito de presunções.74 Sendo assim, nem todos os conflitos normativos
podem ser solucionados pelos critérios da cronologia, da hierarquia ou da
especialidade, principalmente, se as normas em conflito possuírem princípios,
valores, finalidade e campo de atuação distintos.
Por isso, deve-se buscar uma solução que atenda aos princípios maiores
albergados pelo ordenamento jurídico - tais como: a liberdade, a dignidade e a
igualdade - buscando uma interpretação de acordo com a constituição. Assim, a
interpretação deve ser feita de maneira a escoimar as contradições, procurando a
solução em consonância com as decisões básicas da Constituição.75
Sendo assim, diante de um conflito normativo, o intérprete deve procurar
compatibilizar as normas contraditórias, procurando uma aplicação conjunta e
integradora das normas. É o princípio da unidade do sistema jurídico, conformeleciona Maria Helena Diniz, in verbis : "Se houver um conflito normativo, ter-se-á um
estado incorreto do sistema que deverá ser solucionado, ante o princípio da
resolução das contradições lógicas das asserções sobre as normas feitas pelo
73 DINIZ, Maria Helena, ob. cit., p. 34-40.74 Idem, p. 33.75 FREITAS. Juarez. A interpretação sistêmica do direito. 3 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002,p. 128
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jurista ao elaborar um sistema. Para tanto, o jurista deverá utilizar-se de uma
interpretação corretiva, apontando critério para reconhecer e solucionar as
antinomias."76
A regra no direito brasileiro é o da conservação das leis. A Lei de Introduçãoao Código Civil em seu art. 2º, §2º dispõem que "a lei nova que estabeleça
disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a
lei anterior". Por isso, havendo conflito de normas, a interpretação deve ser
sistêmica, visando a conservação das normas, esse é o objetivo do ordenamento
jurídico pátrio.77
5.3.2 A solução de antinomias nas relações de consumo
Uma antinomia jurídica pode ser resolvida pela interpretação (se a
antinomia for aparente), pelo estudo do campo de aplicação (subsunção específica)
ou utilizando-se os critérios tradicionais de solução de antinomias (antinomia real).78
Conforme exposto anteriormente, nem sempre os conflitos de normas
podem ser solucionados pelos critérios clássicos de solução de antinomias
(cronológico, hierarquia e especialidade), principalmente, quando se trata deantinomia entre normas jurídicas que são especiais e de mesma hierarquia como é o
caso do CDC e da leis esparsas que regulamentam as mais diversas relações
contratuais.
Sendo assim, a solução para os conflitos entre o CDC e as leis ordinárias
deve ser feita através de uma interpretação sistêmica. Deve-se buscar a aplicação
da norma que melhor atende os valores e princípios consagrados no texto
constitucional, isso, certamente, levará a uma hierarquia de valores, até porque,
“qualquer interpretação invariavelmente hierarquiza em todos os tempos esistemas."79 Por isso, nas relações de consumo, haverá prevalência da lei
consumerista em face de outra lei ordinária.
76 DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 32-33.77 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit., p. 516.78 Idem. p. 518.79 FREITAS. Juarez, ob. cit., p. 116.
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A prevalência do CDC ocorre em função de sua especialidade para as
relações de consumo e por ser hierarquicamente superior - não do ponto de vista
clássico, pois trata-se de lei ordinária - mas sim, em virtude de os consumidores
serem tutelados por um direito fundamental. “A origem constitucional do CDC
hierarquiza esta lei, a qual materializa direito fundamental (apenas) das pessoas
físicas e conduz necessariamente o aplicador da lei a interpretação cuidada desta lei
especial tutelar.”80
Portanto, uma vez caracterizada a relação de consumo, é inescusável a
aplicação da lei consumerista. Em matéria de sua competência específica nenhuma
outra lei pode se sobrepor ou subsistir, podendo apenas coexistir naquilo que não for
incompatível. Nesse sentido, convém destacar, trechos do voto do eminente ministro
Costa Leite ao decidir sobre a responsabilidade do transportador aéreo,demonstrando a prevalência do CDC em face de lei especial (Código Brasileiro de
Aeronáutica), nas suas palavras:
Em verdade, uma vez editada lei específica, em atenção à Constituição(Art. 5º, XXXII), destinada a tutelar os direitos do consumidor, e mostrando-se irrecusável o reconhecimento da existência de relação de consumo, naespécie, suas disposições devem prevalecer.81
Cabe frisar, que as normas presentes nas leis especiais continuam sendo
válidas para regular todos os outros contratos civis ou comerciais a que se destinam;
porém quando se tratar de contrato de consumo, sua aplicação é afastada naquilo
que incompatível com o espírito protetor do CDC.82
O CDC é uma lei que visa proteger o consumidor nas relações de consumo,
dando eficácia plena a um direito fundamental (art. 5º, XXXII), por isso, não cuidou
de nenhum contrato específico. Nesse sentido, vale destacar a lição do mestre
Antonio Herman, in verbis : "O Código de Defesa do Consumidor pertence àquela
categoria de leis denominadas ‘horizontais’, cujo campo de aplicação invade, por
assim dizer, todas as disciplinas jurídicas (..) São normas que têm por função, nãoregrar uma determinada matéria, mas proteger sujeitos particulares, mesmo que
estejam eles igualmente abrigados sob outros regimes jurídicos"83
80 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit., p. 306-307.81 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 3ª Turma. RESP nº 169000/RJ. Relator: Costa Leite.Brasília, DF, 4 abr 2000. DJ de 14.8.2000, p. 164.82 MARQUES, Cláudia Lima, ob. cit., p. 543-544.83 Apud MARTINS, Plínio Lacerda, op. cit., p. 144.
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Sendo assim, não se pode alegar que determinado contrato firmado entre
fornecedor e consumidor é regulado por uma lei específica e conseqüentemente,
não há como aplicar o CDC, tal assertiva só é valida se a relação contratual não for
caracterizada como relação de consumo. É preciso não olvidar, que a maioria das
relações contratuais possuem regulação especifica, tais como: a compra e venda, a
prestação de serviços, o mútuo, a permuta, o depósito etc. Portanto, o fato da
relação contratual ser regulamentada por lei especial é irrelevante, pois há
prevalência do CDC na tutela dos direitos dos consumidores.
Nas relações de consumo, havendo conflito entre a norma do consumidor e
outra lei ordinária, haverá prevalência da lei do consumidor. Até porque, a lei
ordinária que regulamenta o contrato de consumo pode apenas ampliar ou conceder
outros direitos ao consumidor, mas jamais poderá reduzir os direitos previstos na leiconsumerista (art. 7º, CDC).
O CDC foi criado para tutelar os direitos dos consumidores em qualquer
relação de consumo, por isso, afasta qualquer outra lei ordinária (posterior ou
anterior ao CDC) que entrar em conflito com a norma consumerista.84 Sendo assim,
onde houver relação
de consumo não se pode impedir que o sistema protetivo do CDC seja
acionado, pois implica negar vigência a um direito fundamental.
5.3.3 A prevalência do CDC em face da lei de concessões
Conforme exposto anteriormente, nem sempre os conflitos de normas
podem ser solucionados pelos critérios clássicos de solução de antinomias
(cronologia, hierarquia e especialidade), principalmente, quando se trata de
antinomia entre normas jurídicas que são especiais e de mesma hierarquia como é ocaso do CDC e da lei de concessões. Daí porque, apesar do CDC ser anterior a lei
de concessões, não é possível a utilização do critério cronológico: lex posteriori
revoga legis a priori .
84 KHOURI, Paulo Roque A. ob. cit., p. 37.
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O conflito entre o CDC e lei de concessões no que tange a continuidade ou
não do serviço essencial (antinomia entre os art. 6º, §3º, II da lei de concessões e o
art. 22 do CDC), deve ser solucionado buscando-se os princípio e valores que
fundamentam cada norma. Destarte, pode-se constatar, que o conflito normativo
entre as duas normas, reflete, de certo modo, o conflito entre os princípios
constitucionais da livre iniciativa e da propriedade privada versus a proteção do
consumidor.
A suspensão do fornecimento do serviço público é praticada pela
concessionária como forma de proteção de sua propriedade privada, que é garantida
pela Constituição, que, por sua vez, também, prevê a defesa do consumidor como
um direito fundamental. Além disso, a propriedade privada e a defesa do consumidor
são princípios da ordem econômica (art. 170, II e V, CF/88). "A antinomia aqui éaparente e desejada pelo próprio Constituinte, da tese e antítese nascerá a síntese:
a interpretação do ordenamento jurídico conforme a Constituição,"85 assevera a
ilustre Cláudia Lima Marques discorrendo sobre a tensão entre os princípios opostos
que fundamentam a ordem econômica.
Sendo assim, o intérprete deverá buscar nos princípios e valores
constitucionais a solução para o conflito de normas, pois a Constituição é o guia
máximo do sistema, fornecendo valores e linhas de razoabilidade para alcançar a
interpretação ideal. Nesse sentido, o intérprete deve recorrer a lógica, aos valores e
a finalidade do próprio sistema e escolher a norma mais justa.86
A melhor exegese, para solucionar o conflito entre a lei do consumidor e a
lei de concessões, será no sentido de harmonizar os princípios constitucionais
aparentemente contraditórios buscando uma "interpretação conforme a constituição".
Não resta dúvida que ambas as leis tem origem em princípios constitucionais.
Porém, o interesse patrimonial é um direito disponível e o direito do consumidor é de
função social, de ordem pública e indisponível. A origem constitucional do CDC, cujafinalidade precípua é a proteção do consumidor, atuando como um limitador da
ordem econômica (art. 170, V), assegura-lhe uma nova superioridade hierárquica e
pode ser de grande utilidade na solução dos conflitos envolvendo outras normas do
sistema legal. Portanto, existe, sem dúvida, uma nítida prevalência das prerrogativas
85 MARQUES, Cláudia Lima, ob.cit., p. 514.86 Idem, p. 545-546.
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do consumidor (direito público) em detrimento dos interesses econômicos (direito
privado).
Além disso, a lei do consumidor é norma de direito público prevalecendo em
relação à norma de direito privado. A superioridade hierárquica para normas deordem pública ocorre porque essas normas positivam os valores básicos da
sociedade e tendem a prevalecer sob as outras normas de direito privado, que são
em sua maioria, disponíveis e de interesse individual.
Nesse diapasão, haverá incidência do CDC quando se tratar de
fornecimento de serviço essencial para o usuário que seja consumidor final, haja
vista que a norma consumerista é específica para as relações de consumo. A lei do
consumidor é norma especial, não podendo ser revogada por norma posterior que
regula a concessão e permissão do serviço público, e não o direito do
usuário/consumidor.87 Por isso, nenhuma lei ordinária - mesmo sendo especial e
posterior ao CDC - não têm o condão de derrogar direitos do consumidor, pois o
CDC é norma que cuida da proteção do consumidor em qualquer relação de
consumo.
Portanto, o fornecimento de serviço público essencial, deve ser prestado de
forma contínua, conforme previsto no art. 22 do CDC, desde que fornecimento do
serviço essencial seja dirigido a usuário que seja um consumidor final. Acontinuidade do serviço essencial pode ser interrompida pela inadimplência do
usuário, conforme previsto na lei de concessões, somente quando este não for
consumidor final, pois, nessa hipótese, não haverá relação de consumo, mas sim
relação contratual entre a concessionária e o usuário.
5.4 A prestação de serviços públicos essenciais ao consumidor inadimplente
O direito do consumidor ao fornecimento de serviços públicos essenciais
decorre do princípio da continuidade, previsto na lei consumerista (art. 22 do CDC).
Apesar, desse princípio não ser absoluto, somente é admissível a interrupção do
87 MARTINS, Plínio Lacerda, ob. cit. p. 141.
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fornecimento de serviços essenciais para reparos técnicos e em caso fortuito ou de
força maior.
Nesse sentido, a claríssima lição de Mário Aguiar Moura, in verbis : "A
continuidade dos serviços essenciais significa que devem ser eles prestados demodo permanente sem interrupção, salvo ocorrência de caso fortuito ou força maior
que determine sua paralisação passageira. A hipótese é a de o particular já estar
recebendo o serviço. Não pode a pessoa jurídica criar descontinuidade. Serviços
essenciais são todos os que se tornam indispensáveis para a conservação ,
preservação da vida, saúde, higiene, educação e trabalho das pessoas. Na época
moderna , exemplificativamente, se tornaram essenciais, nas condições de já
estarem sendo prestados, o transporte, água, esgoto, fornecimento de eletricidade
com estabilidade, linha telefônica, limpeza urbana, etc."88 (grifo do autor)
Assim, a interrupção do serviço essencial em função da inadimplência do
consumidor, descaracteriza o princípio da continuidade, levando-se em
consideração que a continuidade do serviço essencial ocorre não apenas no
interesse do consumidor, mas também, no interesse da coletividade, assumindo o
caráter de continuidade absoluta.
Nesse sentido é a lição do mestre Celso Bastos, in verbis :
O serviço público deve ser prestado de maneira continua, o que significadizer que não é passível de interrupção. Isto ocorre pela própriaimportância de que o serviço público se reveste, o que implica ser colocadoà disposição do usuário com qualidade e regularidade, assim como comeficiência e oportunidade. Essa continuidade afigura-se em alguns casosde maneira absoluta, quer dizer, sem qualquer abrandamento, como ocorrecom serviços que atendem necessidades permanentes, como é o caso defornecimento de água, gás, eletricidade.89 (grifo autor)
Sendo assim, os serviços essenciais de água, energia elétrica e telefonia
são necessários à sobrevivência humana e devem ser prestados de forma contínua,
não cabendo sua interrupção para coagir o consumidor inadimplente a quitar odébito. É inadmissível a suspensão de serviços essenciais cuja prestação se faz no
interesse público e é essencial à dignidade da pessoa humana. O serviço público
essencial é feito para proporcionar o desenvolvimento social, a melhoria da
88 Apud MARTINS, Plinio Lacerda, p. 143.89 BASTOS, Celso Ribeiro, ob. cit., p . 169.
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qualidade de vida e a erradicação da pobreza que são os objetivos fundamentais da
sociedade brasileira (art. 3º, CF/88).
Deste modo, não resta dúvida, que o objetivo da norma consumerista, ao
estabelecer, expressamente, a obrigatoriedade dos órgãos públicos de prestarem osserviços essenciais de forma contínua, é proporcionar o mínimo de condições
materiais para que todos tenham uma vida digna. Numa interpretação sistêmica,
pode-se concluir, que a suspensão de serviços essenciais por causa de mera
inadimplência, fere o princípio da continuidade.
Portanto, o consumidor, ainda que inadimplente, tem direito de receber uma
quantidade mínima de serviços essenciais (água, energia elétrica e telefonia)
indispensáveis à vida, à saúde, à segurança e à dignidade humana.
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6. A SUSPENSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL E SUA VIOLAÇÃO ÀCONSTITUIÇÃO
O presente capítulo tem como objetivo demonstrar que não é possível asuspensão de serviço público essencial em face do princípio da dignidade da pessoa
humana, previsto na Constituição como um dos fundamentos da República (art. 1º,
III, CF/88). O respeito à dignidade humana é condição fundamental para construção
de uma sociedade justa e solidária. Daí porque, o legislador Constituinte se
preocupou em assegurar que os fins econômicos devam conduzir a uma vida digna,
ao estabelecer que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social." (art. 170, caput, CF/88)
Sendo assim, a atividade estatal de prestação de serviços públicos deve ser
pautada no sentido de concretizar o princípio da dignidade humana. Por isso, o
fornecimento de serviços indispensáveis à vida, como é o caso, da água e energia
elétrica, devem ser prestados de prestado de forma contínua, sob pena de degradar
a dignidade humana. Cabe ressaltar, oportunamente, que a suspensão de serviços
de telefonia, não tem o condão de ferir, em tese, a dignidade humana, exceto, em
algum caso especifico.
Destarte, a suspensão dos serviços de água e energia elétrica (direitos
fundamentais) viola o principio da dignidade humana, pois são serviços
indispensáveis e necessários à vida, sendo, portanto, indisponíveis. Por isso, a
inadimplência do usuário, não pode ser punida com a interrupção de serviços
indispensáveis a usa vida, principalmente, quando é o Estado quem fornece esses
serviços.
6.1 Conceito e significado de dignidade humana
Definir o conceito e a amplitude do que seja dignidade da pessoa humana
não é tarefa fácil, pois sempre há influência do momento histórico vivido. Houve
tempo, em que não se falava em dignidade humana dos escravos ou mesmo dos
trabalhadores explorados durante a Revolução Industrial.
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A palavra dignidade vem do latim dignitas que significa honra, virtude ou
consideração. Daí se entender que dignidade é uma qualidade moral inata. “Então, a
dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência"90. Esta
concepção de dignidade da pessoa humana encarnada como a idéia de um direito
natural a todos os seres humanos foi fruto do pensamento jusnaturalista do século
XVI e XVIII.91
Para Kant, a dignidade possui valor infinitamente acima de qualquer outro
valor, ao afirmar que "no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando qualquer uma coisa tem preço, pode pôr-se qualquer outra como
equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, portanto, não
permite equivalente, então tem ela dignidade."92
É justamente a concepção kantiana de pessoa humana como um fim
(sujeito) e não meio (objeto) é que constitui a base da conceituação atual de
dignidade da pessoa humana. Essa concepção influenciou substancialmente os
filósofos e os juristas, e se consolidou nos ordenamentos jurídicos, pressupondo que
o homem, em virtude de sua condição humana, é titular de direitos reconhecidos ao
mesmo tempo por seus semelhantes e pelo Estado.93
Considera-se, ainda, que a dignidade é algo intrínseco ao ser humano, pois
não basta viver, a vida só tem sentido se for com dignidade. O art. 1º da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos estabelece que "todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em
relação uma às outras com espírito de fraternidade".94
O Ilustre mestre Ingo Sarlet, sabiamente conceituou a dignidade da pessoa
humana, como sendo, in verbis : "a qualidade intrínseca e distinta de cada ser
humano que o faz merecedor do respeito e consideração por parte do estado e da
comunidade, implicando, neste sentido um complexo de direitos e deveres
90 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrinae jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49.91 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituiçãofederal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 32.92 Apud in SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit., p. 33-35.93 Idem, p. 34-35.94 ALVARENGA, Lúcia Barros Freitas de. Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza.Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p. 136.
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fundamentais que assegurem a pessoa defesa contra ato degradante e desumano,
como garantir condições de existências mínimas para uma vida saudável.95
Nesse diapasão, a dignidade da pessoa humana não se trata de mero
conceito abstrato, ainda que existam algumas dificuldades em dimensionar econcretizar seu conteúdo, é sem dúvida, um valor indispensável e insubstituível, pois
mesmo aqueles que cometem atos indignos e infames, merecem ter sua dignidade
respeitada.96
Por fim, na análise do conceito de dignidade deve-se evitar o relativismo,
pois a dignidade ficaria atrelada ao momento histórico, ficando sua aplicabilidade a
mercê da conjuntura, o que não é verdade, pois trata-se de princípio fundamental
para a existência do Estado Democrático de Direito. A dignidade humana significa a
superioridade do ser humano sobre todas as demais coisas que o cercam; é colocar
a pessoa humana como protagonista da vida social.
6.2 A dignidade humana e sua consagração constitucional
A dignidade da pessoa humana é fruto da evolução humana. Seu substrato
essencial é fundado no repúdio às atrocidades cometidas pelo homem quemarcaram a civilização em todos os tempos. Todas as sociedades modernas trazem
como fundamento de um Estado Democrático de Direito o respeito à dignidade.
A Constituição alemã do pós-guerra, em seu artigo de abertura dispõe que:
"A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é dever de
todo o poder público”97 A Constituição da Espanha em seu art. 10, prescreve que "a
dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre
desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos do semelhante
constituem o fundamento da ordem política e da paz social". Vale a penatranscrever, também, o art. 1º da Constituição da República Portuguesa que
prescreve o seguinte: "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade
95 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituiçãofederal de 1988. São Paulo: Livraria do Advogado, 2001, p. 6096 Idem, p. 40-41.97 Art. 1º da Constituição Federal da Alemanhã, primeira parte: O teor do texto original é o seguinte:"Art. 1º (Schutz der Menschenwürde). (1) Die Würde des Menschen ist unantastbar.
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da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária."98
A Constituição brasileira de 1988, trilhando este caminho, estabeleceu o
princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República(art. 1º, III). A importância da dignidade humana é tanta, que o legislador
Constituinte, fez questão de colocar, expressamente, o princípio da dignidade da
pessoa humana em outras disposições constitucionais, na ordem econômica (art.
170, caput), no direito de família (art. 226, § 7º).
Além disso, vamos encontrar desdobramentos do princípio enfocado nos
arts. 5º e 6º do texto constitucional, pois ninguém pode ter existência digna sem
liberdade, segurança, educação, saúde, moradia. Portanto, a dignidade humana
constitui o eixo axiológico em torno da qual deve ser construída a hermenêutica
concretizadora da Lei Fundamental brasileira.
6.3 Aplicabilidade e eficácia do princípio da dignidade humana
Feitas essas considerações, realçando o caráter essencial do princípio da
dignidade da pessoa humana como elemento integrador dos direitos fundamentais enorteador do respeito às condições mínimas necessárias à sobrevivência humana.
Convém analisar sua aplicabilidade na vida social, especialmente, no que tange à
diretriz prevista no art. 1º, inciso III e no art. 170, caput, da Carta Política de 1988,
pois são consideradas normas programáticas, que indicam a realização de fins
sociais, assegurando uma vida digna a todos.
A doutrina brasileira traz inúmeras classificações quanto à eficácia e
aplicabilidade das normas constitucionais, uma das mais utilizada é a do mestre
José Afonso da Silva, sua clássica divisão tricotômica sobre a eficácia eaplicabilidade das normas constitucionais, é a seguinte:
a) Normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata;b) Normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata,mas passíveis de restrição;
98 SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit. p. 40-41, 100 SILVA. José Afonso da. Aplicabilidade das normasconstitucionais. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 82.
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c) Normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida. (quecompreendem as normas definidoras de princípio institutivo e asdefinidoras de princípio programático), em geral dependentes de integraçãoinfraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos. 99
De acordo com essa formulação, as normas de eficácia plena são as quereceberam do legislador Constituinte normatividade suficiente a sua incidência
imediata e independem de providência normativa ulterior para sua aplicação. As
normas de eficácia contida são as que receberam igualmente normatividade
suficiente para reger os interesses pertinentes, prevendo, porém, os meios
normativos que lhe reduzam a eficácia e aplicabilidade. E as de eficácia limitada são
as que não receberam do Constituinte normatividade suficiente para sua aplicação,
necessitando na maioria das vezes, de regulamentação legislativa para adquirir
eficácia.100
Além disso, outro problema para a concretização das normasprogramáticas e a chamada "reserva do possível", vale dizer, a efetividade fica
subordinada às condições financeiras do poder público.101
As normas constitucionais de eficácia limitada são consideradas normas
programáticas porque são meras disposições que indicam os fins sociais a serem
atingidos pelo Estado, através da melhoria das condições econômicas, socais e
políticas da população, com vistas à concretização e cumprimento dos objetivos
fundamentais previstos na Constituição. Em alguns casos, o próprio legislador
constituinte já esboça no texto constitucional os meios para atingir a finalidade de
uma norma programática, como é o caso da educação e saúde. 102
Porém, na atualidade, não há mais que se falar em normas constitucionais
sem poder de eficácia, pois sendo diretriz do Estado, sua aplicação ocorre por meio
da interpretação. O mestre Luís Roberto Barroso assevera que:
a visão crítica que muitos autores mantêm em relação às normasprogramáticas é, por certo, influenciada pelo que elas representavam antesda ruptura com a doutrina clássica, em que figuravam como enunciadospolíticos, meras exortações morais, destituídas de eficácia jurídica.Modernamente, a elas é reconhecido valor jurídico idêntico ao dosrestantes preceitos da Constituição, como cláusulas vinculativas,
99 SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit. p. 40-41, 100 SILVA. José Afonso da. Aplicabilidade das normasconstitucionais. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 82.100 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites epossibilidades da constituição brasileira. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 91.101 MORO, Sérgio Fernando. Desenvolvimento e efetividade judicial das normas constitucionais. SãoPaulo: Max Limonad, 2001, p. 98.102 SILVA. José Afonso da. ob. cit., p. 82
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contribuindo para o sistema através dos princípios, dos fins e dos valoresque incorporam."103
É preciso salientar, que apesar das normas programáticas não constituírem
um direito subjetivo clássico, em sua versão positiva, ou seja, não prescrevem uma
conduta exigível (possibilidade de exigir uma determinada prestação). Por isso, não
existe, tecnicamente, um dever jurídico que compreenda um direito subjetivo. Mas,
indiretamente, como efeito, as normas programáticas ou princípios programáticos
são capazes de invalidar atos contrários aos seus ditames.104 Portanto, a
possibilidade de exigir uma abstenção, faz com que uma norma programática possa
adquirir eficácia. "Nesse sentido, é possível dizer-se que existe um dever de
abstenção, ao qual corresponde um direito subjetivo de exigi-la."105
Portanto, verifica-se que os princípios não são meros conceitos abstratos ounormas programáticas sem aplicação prática. A aplicação e eficácia das normas
programáticas (ou princípios programáticos) sempre poderão ser exigidas dos
poderes públicos e da sociedade, seja pela ação no sentido de concretizá-lo ou pela
omissão (não praticar atos que violem a norma).
Além disso, os princípios constitucionais orientam o interprete na aplicação
da lei. Assim, a concretização de uma norma programática pode ocorrer em função
da interpretação. “Hoje, não se pode fazer uma aplicação da legislação
infraconstitucional sem passar pelos princípios constitucionais, dentre os quais
sobressai o da dignidade da pessoa humana.”106
Portanto, o princípio da dignidade humana, enquanto princípio-programático
pode adquirir eficácia jurídica por meio da interpretação. Discorrendo sobre a
importância do princípio da dignidade da pessoa humana, o mestre José Afonso
Silva assevera que "se é um fundamento da República, é porque constitui valor
supremo, portanto não é mero princípio da ordem jurídica, mas também da ordem
política, social econômica, cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque estána base de toda a vida nacional.”107
103 BARROSO, Luís Roberto, ob. cit., p. 120.104 Idem, p. 121.105 Ibidem.106 Cf. nesse sentido, o voto (vencido) do Min. Luiz Fux, contrário à suspensão de energia elétrica porcausa de inadimplência do usuário. in SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 1ª Turma. RESP nº363943/MG. Relator: Humberto Gomes de Barros. Brasília, DF, 10 dez 2003. DJ. 01.03.2004.107 ALVARENGA, Lúcia Barros Freitas de. ob. cit., p. 137.
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A maior dimensão que se dá ao princípio da dignidade da pessoa humana
ocorre me virtude de sua importância para o ser humano. Então, seria a dignidade
humana mais importante do que o direito à vida? Respondendo a essa questão, o
mestre Rizatto Nunes assevera que o enfoque a ser analisado não deve ser o
biológico, pois é cediço que a vida vem antes da dignidade, porém a vida, para ser
vivida, precisa ser digna.108
Em suma, a dignidade da pessoa humana é um princípio de importância
ímpar, pois repercute sobre todo o ordenamento jurídico. É um mandamento nuclear
do sistema, que irradia efeitos sobre as outras normas e princípios, haja vista que é
o fundamento da República (art. 1º, III) e a finalidade da ordem econômica (art. 170,
caput), portanto, a tutela de direitos pressupõe o respeito à dignidade humana.
6.4 A importância dos serviços essenciais na concretização da dignidade
humana
6.4.1 Os serviços essenciais como pressuposto da dignidade humana
Conforme já exposto em linhas pretéritas, o princípio da dignidade humanaapresenta-se no ordenamento jurídico brasileiro como norma que engloba noções
valorativas e principiológicas. O sentido de tal princípio é assegurar o direito à
integridade física, à vida, à saúde, bem como as condições materiais mínimas para a
sobrevivência humana.
Por isso, somente haverá dignidade da pessoa humana se forem
concedidas condições mínimas de vida. O ilustre mestre Ingo Sarlet assevera que:
“onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano,
onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas,
onde não houver limitação de poder, e os direitos fundamentais minimamente
108 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana:doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49
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assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e o indivíduo
não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças.”109 (grifo do autor)
Sendo assim, as condições materiais mínimas são absolutamente
necessárias e essenciais para a existência da vida humana.110
Trata-se deprerrogativas essenciais e inalienáveis do ser humano (direito ao mínimo
existencial).
Nesse diapasão, os serviços públicos essenciais - fornecimento de água e
energia elétrica - se incluem, entre as condições materiais mínimas necessárias à
sobrevivência. A água é um bem vital indispensável à sobrevivência de qualquer ser
humano. A energia elétrica é, na atualidade, um bem indispensável porque é
impossível sobreviver com dignidade sem os benefícios que esta forma de energia
proporciona à vida.
Ora, como os serviços públicos essenciais são necessários à sobrevivência
humana e o respeito às condições materiais mínimas (mínimo existencial) são
pressupostos da dignidade humana, verifica-se que há uma correlação direta entre a
dignidade humana e os serviços essenciais, pois estes estão incluídos dentro do
chamado mínimo existencial.
Sendo assim, o mínimo existencial deve ser respeitado, como meio de
garantir não somente a dignidade, mas a própria existência das pessoas. Oproblema do mínimo existencial confunde-se com a própria questão da pobreza,
sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do ser
humano. “A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem
retroceder aquém do mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os
indigentes podem ser privados.”111
Portanto, os direitos referentes às condições mínimas necessárias à
sobrevivência humana correspondem diretamente às exigências mais elementares
da dignidade da pessoa humana.112 Por isso, a concretização do princípio da
dignidade da pessoa humana pode ocorrer na base do “tudo ou nada”, funcionando
como uma barreira às ações que a violem ou restrinjam (eficácia negativa), ou como
109 SARLET, Ingo Wolfgang, ob. cit., p. 59.110 TORRES, Ricardo Lobo, ob. cit., p. 266.111 Idem p. 262.112 Ibidem.
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imperativo interpretativo (eficácia interpretativa) no sentido de que as normas e atos
devem ser interpretados sempre de maneira que se concretize a dignidade.113
Entretanto, no que tange ao mínimo existencial, o principio da dignidade
humana pode adquirir eficácia positiva porque as prestações que fazem parte domínimo existencial – sem a qual estará violado o núcleo da dignidade da pessoa
humana, compromisso fundamental do estado brasileiro – são oponíveis e exigíveis
dos poderes públicos constituídos (eficácia positiva). 114
Para melhor explicar como ocorre a eficácia positiva do princípio da
dignidade humana, quando se trata de prestações que fazem parte das condições
mínimas necessárias à sobrevivência, convém, trazer a lume, o exemplo, da ilustre
Ana Paula de Barcelos, sobre os dois círculos concêntricos. O circulo interior cuida
do mínimo existencial, sendo esta parte exigível (eficácia positiva), já o espaço entre
o círculo interno e o externo, cabe a deliberação política (eficácia negativa ou
interpretativa), pois está parte que está além do mínimo existencial permite a
realização da dignidade de acordo com os valores e o momento histórico.115
Transportando essa questão do mínimo de dignidade para o mínimo
existencial e especificamente para o direito dos usuários a uma quantidade mínima
de serviços essenciais, verificamos que o direito ao mínimo existencial possui
eficácia jurídica positiva. Sendo assim, o cidadão não terá direito à continuidade dosserviços essenciais de forma plena, mas apenas a uma parcela (cota mínima) dos
serviços, suficiente para suprir suas necessidades básicas.
6.4.2 O direito ao mínimo existencial para viver com dignidade
O Estado existe para proporcionar os meios e recursos para que as pessoas
tenham condições de ter uma vida digna. Por isso, não adianta adotar umordenamento jurídico avançado, se o personagem principal (ser humano) é deixado
a sua própria sorte. Ao estabelecer a dignidade humana como fundamento da
113 BARCELLOS. Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio dadignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 252.114 Idem, p. 273.115 Ibidem p. 252-253.
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República e como finalidade da ordem econômica, o objetivo da norma
constitucional é propiciar uma vida digna a todos os cidadãos.
A consagração da dignidade humana, na ordem econômica constitucional
(art. 170, caput, CF/88), assume a mais profunda relevância, visto abranger toda aatividade econômica estatal e privada.116 Assim, toda atividade econômica deve ser
no sentido de contribuir para o bem comum, de forma a proporcionar a todos, os
bens materiais indispensáveis à sobrevivência humana com dignidade.117
Ora, se o objetivo do Estado brasileiro é a erradicação da pobreza, da
marginalização e a redução das desigualdades sociais, com vistas a assegurar a
todos os brasileiros uma existência digna, devemos considerar que tanto a esfera
pública quanto a esfera privada, devem se empenhar na realização da política
pública maior que é dar aos cidadãos uma existência digna. Logo, o exercício de
qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado a esta promoção
expressará violação ao princípio contemplado no texto constitucional.118 A dignidade
da pessoa humana é incompatível com avaliações de natureza meramente
econômica, pois não é compatível com os ideais constitucionais promover avaliação
econômica da vida humana.
Por isso, se estiverem em jogo apenas interesses econômicos, a relação
custo-benefício pode ser vista, exclusivamente, por fatores econômicos. Mas,quando o risco envolver a dignidade do ser humano, os argumentos de custo
econômico devem ser ponderados em face do interesse social pela preservação da
dignidade humana. Assim, a consagração constitucional da dignidade da pessoa
humana obriga o Estado e a sociedade a garantirem ao cidadão um patamar mínimo
de recursos capaz de prover-lhe a subsistência.
A dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da República,
condiciona o Poder Público a efetivar políticas públicas que garantam uma
existência digna aos cidadãos. Sendo assim, toda ação estatal deve ser sempre no
sentido de concretizar a dignidade humana, seja através do assistencialismo ou
dando às condições necessárias (trabalho, salário) para que os cidadãos possam ter
uma vida digna. O tipo de ação que o Estado irá utilizar para proporcionar uma vida
116 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), 8 ed.São Paulo: Malheiros, 2003, p. 177.117 Idem, p. 177-178.118 Ibidem p. 177
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digna aos cidadãos é uma questão política e não jurídica. Portanto, é inadmissível,
que o Poder Público suspenda serviços essenciais à vida e à dignidade dos
cidadãos por causa de mera inadimplência. Até porque as prestações que fazem
parte do mínimo existencial são oponíveis e exigíveis dos poderes públicos
constituídos.119
Nesse diapasão, o direito ao mínimo existencial apresenta-se com eficácia
positiva decorrente do texto constitucional, em especial, do princípio da dignidade
humana. Por isso, a Constituição brasileira estabelece que certos serviços devem
ser fornecidos gratuitamente, tais como: o ensino fundamental e a saúde; bem como
estabelece que é dever do Estado dar assistência aos desamparados (art. 203, V,
CF/88).
Portanto, “o mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas
para a existência, corresponde a uma fração nuclear da dignidade da pessoa
humana, sobre a qual deve-se reconhecer eficácia jurídica positiva ou simétrica.”120
Por isso, o limite da “reserva do possível” não se aplica ao mínimo existencial. O
mestre Sérgio Fernando Moro assevera que:
Direitos a prestações materiais mínimas, por sua vinculação às liberdadese à democracia, devem ser desenvolvidos e efetivados pelos juízes mesmoquando ausente ou deficiente a legislação. O limite da reserva do possível
ainda existe, mas aqui há obrigatoriedade de o juiz tornar realidade odireito em questão.121
Por isso, os serviços públicos, de natureza essencial, indispensáveis à
sobrevivência e à dignidade humana, não podem ser suspensos como forma de
compelir o usuário inadimplente ao pagamento da dívida. Nesse sentido, cabe
transcrever a lição do mestre Marçal Justen Filho, nas suas palavras: “a suspensão
de serviços obrigatórios, cuja prestação se faz no interesse público e é essencial à
dignidade da pessoa humana”. Essa é a situação específica do fornecimento de
água tratada e de coleta de esgotos (...) Em suma, quando a Constituição Federalassegurou a dignidade da pessoa humana e reconheceu o direito de todos à
119 BARCELLOS. Ana Paula de, ob. cit. p. 273.120 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), 8 ed.São Paulo: Malheiros, 2003, p. 248.121 MORO, Sérgio Fernando, ob. cit., p. 111.
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seguridade, introduziu obstáculo invencível à suspensão de serviços públicos
essenciais. 122(grifo do autor)
Portanto, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental
por excelência, possui o inegável papel norteador das ações estatais, notadamenteno que tange a atuação do Estado em uma perspectiva social. Até porque a
finalidade principal do Estado é exatamente garantir um mínimo de dignidade aos
seus cidadãos. Por isso, não pode o Estado tomar a drástica medida de suspender o
serviço como forma de compelir o consumidor ao pagamento da tarifa, pois, “a
carência de recursos não autoriza a supressão da existência e da dignidade da
pessoa humana.”123
Apesar do princípio da dignidade humana ter uma dimensão comunitária
(social), na medida em que todos são iguais em dignidade, mesmo assim, não é
possível aceitar o sacrifício da dignidade pessoal do indivíduo em prol da
coletividade.124 Assim, quando estiver em jogo a dignidade humana, não há
prevalência do interesse público (coletivo) sobre o interesse privado (individual)
porque o cidadão não pode abrir mão de sua própria dignidade em favor da
coletividade, este sacrifício é inaceitável.
Além disso, verifica-se no ordenamento jurídico brasileiro, que as normas de
impenhorabilidade (especialmente as do art. 649, II, IV, VI, VII e X, do CPC), ou seja,impossibilidade de penhorar as provisões para manutenção da sobrevivência
humana, tais como: salários, instrumentos profissionais, pensões e imóvel rural até
um módulo, servem para ilustrar a grande preocupação dispensada ao princípio da
dignidade da pessoa humana, pois visa impedir que a atuação punitiva do Estado
não extrapole os limites das condições materiais mínimas necessárias para que o
cidadão possa viver com dignidade.
Com efeito, uma lei pode ser constitucional, como é o caso da Lei de
concessões (Lei nº 8.987/95), porém, a aplicação de um de seus dispositivos pode
ser inconstitucional. Ora, prima facie, a suspensão do serviço público por
inadimplemento do usuário não é inconstitucional, conforme previsto no art. 6º, §3º,
II da referida lei de concessões, haja vista que é um meio efetivo de defesa e de
122 JUSTEN FILHO, Marçal, ob. cit., p.131.123 Idem, p. 130.124 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2003, p 111.
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garantia do equilíbrio financeiro do prestador de serviços. No entanto, se esta
suspensão incidir sobre serviços essenciais à vida, estará atentando contra direitos
e garantias fundamentais, por isso, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade de
tal ato.
O princípio da dignidade humana visa a impedir a degradação do ser
humano, se for permitido que uma lei estabeleça regra que atinja de forma direta tal
princípio, certamente, estará sendo desvirtuado o espírito da Lei Maior, cuja
finalidade é que todos tenham uma vida digna. Nessa medida, não se pode admitir a
suspensão de serviço público essencial por mera inadimplência do usuário em
virtude de um mandamento constitucional.
Portando, o usuário de serviços públicos essenciais, ainda que
inadimplente, tem direito de receber uma quantidade mínima de serviços essenciais
a sua sobrevivência, em respeito ao direito à vida e ao princípio constitucional da
dignidade humana (art. 1º, III, CF/88).
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CONCLUSÃO
Os serviços públicos são atividades que a lei atribui ao Estado com a
finalidade de satisfazer as necessidades coletivas. Dentre esses serviços, existemaqueles que assumem maior relevância social, sendo considerados essenciais, pois
têm como finalidade principal atender as necessidades mais imediatas e
indispensáveis à sobrevivência humana. Por isso, os serviços essenciais devem ser
prestados de forma contínua, não cabendo sua interrupção como forma de compelir
o cidadão (usuário) a pagar possíveis débitos.
O Poder Público, enquanto prestador de serviços essenciais, não pode
utilizar a exceção do contrato não cumprido em desfavor de usuário inadimplente,
pois tal atitude extrapola os limites da razoabilidade e da proporcionabilidade. O
prejuízo sofrido pela inadimplência temporária de alguns usuários não justifica a
medida drástica da suspensão do serviço. Além disso, a finalidade do serviço
essencial não comporta tal atitude, pois a supressão desses serviços, traz
conseqüências nefastas aos cidadãos.
Os usuários de serviço público essencial, na qualidade de consumidor final,
têm o direito à prestação do serviço de forma contínua. Trata-se de um direito do
consumidor e dever do Estado ou agente delegado (concessionária) porque a normaconsumerista determina que os serviços essenciais devem ser prestado de forma
contínua, somente sendo admitida interrupção para reparos técnicos ou em caso
fortuito ou de força maior. Aplica-se a lei do consumidor, quando a relação contratual
entre o usuário e o prestador de serviços, for caracterizada como uma relação de
consumo (presença de fornecedor e consumidor final), nessa hipótese, haverá
prevalência da lei consumerista em face da lei de concessões.
Os serviços públicos essenciais, principalmente, água e energia elétrica,
são indispensáveis à sobrevivência humana. Esses serviços podem ser
considerados um direito fundamental do ser humano, sendo, inclusive, pressupostos
para a concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Assim, em respeito a este princípio constitucional, torna-se impossível à suspensão
do fornecimento de água e energia elétrica por causa de inadimplência do usuário,
pois, se isso fosse admito, haveria a degradação da dignidade humana.
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Atualmente, a interpretação das normas legais tem sido feitas com base nos
princípios constitucionais, que deixaram de ser meras normas programáticas,
especialmente o princípio da dignidade humana, que ganhou status de centro
irradiador de todo ordenamento jurídico. O princípio da dignidade humana serve de
fundamento para impedir a suspensão dos serviços indispensáveis à vida.
Portanto, apesar de existir lei prevendo, expressamente, a possibilidade de
interrupção do fornecimento de serviço público essencial (água, energia elétrica e
telefonia) por inadimplência, tal ato é inconstitucional em face do princípio
constitucional da dignidade humana e do direito fundamental dos consumidores de
terem serviços públicos essenciais prestados de forma adequada, eficiente e
contínua.
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