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1 SEXTA FEIRA, 13 Os últimos dias do Governo João Goulart Abelardo Jurema L IVRO PUBLICADO EM 1964 PELAS E DIÇÕES O C RUZEIRO, DIRIGIDA POR HUMBERTO SALES . CAPA DA EDIÇÃO ORIGINAL : E RALDO DE ALMEIDA R EPRODUÇÃO DO TEXTO INTEGRAL DA OBRA AUTORIZADA PELOS HERDEIROS DO AUTOR.

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SEXTA FEIRA, 13 Os últimos dias do Governo João Goulart

Abelardo Jurema

LIVRO PUBLICADO EM 1964 PELAS EDIÇÕES O CRUZEIRO, DIRIGIDA POR HUMBERTO

SALES.

CAPA DA EDIÇÃO ORIGINAL: ERALDO DE ALMEIDA

REPRODUÇÃO DO TEXTO INTEGRAL DA OBRA AUTORIZADA PELOS HERDEIROS DO

AUTOR.

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"0s chefes políticos devem evitar que faleça a Estratégia Militar, devido a decisões

imponderadas...

O comandante militar, porém, deve exigir que as tendências e desígnios da política

não sejam incompatíveis com os meios necessários à guerra...

Todos os elementos que interessam à guerra, tais como, o potencial nacional, as

alianças e as características do povo e do Governo, são de natureza política...

Se a política for ampla e poderosa, a guerra também o será...

Se a guerra deve corresponder inteiramente à intenção da política e se esta deve

adaptar-se aos meios para fazer a guerra, a direção política e militar deve ser

centralizada em uma só pessoa...”

Prefácio do livro “Decisões Fatais”, assinado pelos Tenentes-Coronéis J. R.

Miranda Carvalho e Américo Raposo Filho.

A Vaninha, minha mulher, compreensiva em toda a minha vida pública e de grande

bravura, na adversidade;

aos meus filhos e amigos, por me terem assistido nas horas incertas e acreditado

em mim;

aos meus auxiliares diretos do M. da Justiça, pela colaboração dedicada que me

prestaram, durante meses de luta árdua e ingrata;

ao jovem João Carlos Pessoa de Oliveira e ao Senador Ruy Carneiro, um do

futuro e outro do presente, amigos inexcedíveis de todas as horas, dedico este livro que

é, apenas, um depoimento tão verdadeiro quanto a memória me ajudou, distante do

Brasil.

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INDICE

I – Predestinação Histórica, p. 4

II – Missão a Cumprir, p. 7

III – Primeiros Passos no Ministério, p. 11

IV – Esvaziamento do Poder Civil, p. 15

V – Presença do Ministério, p. 19

VI – Na Direção do Povo, p. 24

VII – Jango & JK, p. 28

VIII – Jango x Brizola, p. 34

IX – Jango e Carvalho Pinto, p. 41

X – Jango e o Parlamento, p. 48

XI – A Revolução dos Sargentos, p. 54

XII – Estado de Sítio, p. 62

XIII – Sexta-Feira, 13, p. 70

XIV – Começo do Fim, p. 76

XV – Entreato, p. 84

XVI – Ato Final, p. 90

XVII – A Prisão, p. 105

XVIII – O Asilo, p. 112

XIX – Diálogos, p. 117

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I - Predestinação Histórica

NA BATALHA do Riacho das Pedras, em Itabaiana, Paraíba, entre forças

confederadas (Confederação do Equador) e tropas portuguesas, foi preso José de Brito

Menezes, português de nascimento e brasileiro de formação e de vivência afetiva com

os homens e a terra do Brasil.

Muitos meses de tortura, na Ilha das Cobras (Rio), acabaram por, transformar o

português José de Brito Menezes no brasileiro José Geminiano Jurema, com as devidas

alterações de cartório. Rompera com Portugal de modo definitivo, utilizando-se, como

sobrenome, da madeira nativa – Jurema – que dá em qualquer pé de serra do Nordeste,

branca ou preta.

Seu filho, Geminiano Jurema, dedicou-se à agricultura, nas margens do Paraíba, no

município do Pilar, fixando-se no distrito da Galhofa, num casarão vermelho que a

cheia de 1924 acabou de vez com a sua ruína. Do velho Geminiano Jurema, José Lins

do Rego diz, nas páginas de Menino de Engenho, que o velho Zé Paulino, olhando pelas

janelas do trem da GREAT WESTERN, ao responder a Carlinhos que lhe perguntava de

quem era aquele sobradão da Galhofa, informava: "Do velho Geminiano,velho danado,

com cinqüenta anos roubou moça para casar e deu dois bacharéis ao Pilar".

Estes bacharéis eram Geminiano Jurema Filho e José Geminiano Jurema. Um,

político na Paraíba até 1922, advogado o resto da vida em Recife, e o outro, magistrado,

toda uma existência no Ceará, onde ainda vive cercado de filhos e netos, como

desembargador aposentado.

Do advogado Geminiano Jurema Filho sabe-se que viveu toda sua vida paraibana

como político de oposição, contrário ao governo e à influência de Epitácio Pessoa. Já no

Recife,em 1929, por instâncias de um velho amigo de família, Desembargador Heráclio

Cavalcanti,antigo chefe político oposicionista, acedeu em reingressar na política,

apoiando, pela primeira vez, um governo – o de Washington Luiz – e uma candidatura

oficial – a de Júlio Prestes enquanto no seu Estado se situava em oposição ao Presidente

João Pessoa.

Com a vitória da Revolução de 1930, a sua casa, em Recife, foi metralhada e

saqueada, foragindo-se o advogado Geminiano Jurema Filho, com toda a sua família –

mulher e três filhos –, em casa de amigos. Contou ainda com a proteção de Frei Mathias

Teves, num convento em Olinda e dali saiu para Portugal onde passou oito meses de

exílio.

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Eram seus companheiros de escritório de advocacia, em Recife, Agamemnon

Magalhães,Arthur de Sousa Marinho e Arthur Moura, todos três da Aliança Liberal,

todos três revolucionários, todos três amigos fraternos de Geminiano.Jurema Filho.

Pagara, Geminiano Jurema Filho, o crime de ter atendido aos apelos do amigo e

antigo chefe político que o iniciara na vida pública. Seguira sua vocação oposicionista,

inspirado nos princípios de lealdade a uma velha amizade.

Regressando de Portugal, retirou-se definitivamente da política e retomou a

advocacia, de cuja profissão viveu, sem favores oficiais, sem empregos e sem fortuna.

Em 1944, morre em João Pessoa, quando a Marselhesa era ouvida em todo o

Mundo, anunciando a libertação de Paris pelas tropas aliadas.

Em 1964, seguindo essa predestinação política e até histórica, um dos três filhos de

Geminiano Jurema Filho (Abelardo, Aderbal e Aguinaldo), deputado pela Paraíba, ao

deixar o Palácio das Laranjeiras nos últimos instantes do Governo do Sr. João Goulart,

no dia 1º de Abril (quarta-feira), e ao encaminhar-se para Brasília, a fim de reassumir

seu mandato de deputado federal, após ter exercido, por 9 meses, o cargo de Ministro da

Justiça, recebe voz de prisão, no Aeroporto Militar Santos Dumont, de um coronel do

Exército, comandante de uma patrulha. Esteve sob as ordens do General Jurandir

Bizarria Mamede, comandante da Escola de Estado-Maior do Exército até a madrugada

de 2, quinta-feira, quando se recolheu à casa de um amigo. Daí para a Embaixada do

Peru, no dia 5-4-64 (domingo), de onde viajou a Lima, para repetir, 33 anos depois, a

peregrinação do velho Geminiano, expiando as mesmas culpas e os mesmos

pecados.Lealdade a quem servia, prestação efetiva de serviços a quem devia prestar,

assistência efetiva e afetiva até o fim dos acontecimentos, ainda que a adversidade

houvesse batido à porta do Governo legalmente constituído.

Daí para a frente, a História vai contar, mas daqui para trás, conto eu, o que vi, o

que soube e o que deduzi dos fatos que se desenrolaram com rapidez e até surpresa para

os próprios vitoriosos.

* * *

Este livro será um depoimento tanto quanto possível isento, sóbrio e frio na análise

dos homens e das coisas que assinalaram mais uma página agitada da história do nosso

País. Cabe aqui, entretanto, uma observação: foi ele escrito, parte na Embaixada do

Peru, parte em Lima, sem que pudesse, o autor, recorrer a qualquer nota, livro, consulta

ou mesmo dicionário.

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Foi escrito, em suma, ao correr do teclado, sem tempo para uma revisão cuidadosa, com

a ajuda, exclusiva, da memória.

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II - Missão a Cumprir

EM PRINCÍPIOS de janeiro de 1963, ainda convalescente em casa, recém-saído do

Hospital dos Servidores do Estado, fui convocado pelo Presidente João Goulart para

uma audiência especial no Palácio das Laranjeiras.

Lá também se achava, para igual finalidade,o Deputado Renato Archer, do

Maranhão. Foi impossível evitar que transpirasse a notícia, que se ampliou logo na

crônica política de toda a imprensa, da nossa própria participação no Ministério que se

ia organizar.

Estava em vigência o primeiro Ministério Presidencialista. Amaury Kruel,

Reynaldo Carvalho e Suzano ocupavam as Pastas da Guerra, Aeronáutica e Marinha.

Saúde, Agricultura, Minas, Fazenda, Educação, Exterior, Indústria e Comércio,

Trabalho e Viação tinham, como seus titulares, Paulo Pinheiro Chagas, Renato Costa

Lima, Eliézer Batista, San Tiago Dantas, Teotônio Monteiro de Barros, Antônio

Balbino, Almino Afonso e Hélio de Almeida. Na Justiça, achava-se João Mangabeira.

Quando o Presidente João Goulart regressou do exterior para assumir a Presidência da

República, logo após a renúncia do Sr. Jânio Quadros, no primeiro contacto que tive

com o novo Chefe do Governo, ouvi dele palavras simpáticas à minha atuação de

deputado e a sua estranheza por não figurar meu nome na relação de nomes pessedistas

para a escolha dos integrantes do primeiro Ministério Parlamentarista. Expliquei-lhe

que, no novo sistema de governo, representantes de Estados pequenos não teriam vez,

pois falavam mais alto as grandes bancadas e a Paraíba tinha apenas treze representantes

na Câmara dos Deputados, tendo o PSD cinco, a UDN seis e o PTB dois.

Desde quando era Vice-Presidente da República, ao tempo do Presidente Juscelino

Kubitschek de Oliveira, o Sr. João Goulart se revelava meu amigo e me prendia com

suas atenções e confianças, incumbindo-me de missões políticas que dirimissem os

conflitos e os choques entre PSD e PTB, na Câmara. Estava eu no comando da maioria

parlamentar, que era integrada de esquerdistas e direitistas, centristas, pessedistas e

petebistas ortodoxos.

Eis aí os primeiros vínculos que me prenderam ao Sr. João Goulart e que,

possivelmente, me conduziram, posteriormente, ao Ministério da Justiça. Entre janeiro e

junho, quando se deu a minha investidura no Ministério, fui chamado várias vezes para

conversar com o Presidente da República. Fugia, de propósito, da convivência

presidencial, para não parecer que estava a cobrar uma promessa ministerial. Afastando-

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me do centro dos acontecimentos, viajando várias vezes ao meu Estado, a Paraíba,

entrei em recesso no noticiário da imprensa e na crônica política. Durante todo este

tempo, esquivei-me dos conciliábulos políticos. Obviamente teria que assim proceder,

mas a presença do Professor João Mangabeira no Ministério da Justiça ainda mais me

estimulava para assim agir. Não era postulante de Ministério e sempre compreendi,

como político de Estado pequeno, que as posições poderiam surgir por força de uma

conjuntura e nunca como reivindicação, a exemplo do que faziam as representações dos

grandes Estados.

Ante os comentários que surgiam, até mesmo dos meus mais íntimos amigos, eu

costumava responder que o Sr. João Goulart não era um citadino e sim um fazendeiro.

O citadino via os problemas surgirem uns por cima dos outros, exigindo soluções

urgentes e até apressadas, enquanto que o fazendeiro olhava o tempo como o seu grande

aliado. O homem do campo escolhia o terreno, preparava-o, semeava-o, aguardava a

chuva e a época da colheita.

Afinal, numa tarde – aí pelas 15 horas do dia 15 de junho de 1963 – no Aeroporto

Santos Dumont, quando já era chamado para o embarque, minha mulher e meus filhos

traziam-me a notícia de uma edição extra do Repórter Esso: eu havia sido nomeado

Ministro da Justiça. Já estavam nomeados Jair Dantas Ribeiro, para a Guerra, Anísio

Botelho, para a Aeronáutica, e Sílvio Motta, para a Marinha.

Cheguei a Brasília discretamente e me deixei ficar, com o jornalista Nadir Pereira

(Estado de São Paulo), no apartamento do Deputado Esmerino Arruda, que tinha sido

meu companheiro de viagem do Rio a Brasília.

Já passavam das 22 horas quando me chamaram da Granja do Torto, residência

presidencial. Utilizei-me da caminhonete do Nadir e logo estava em conversa com o

Presidente João Goulart. Salientou-me ele que o meu ato já estava na Imprensa Nacional

e, de todos os Ministros nomeados, eu era o único cujo ato já havia sido encaminhado à

publicação, antes mesmo do convite formal. Disse-me que já há muito estava com o

meu nome escolhido e que, em nenhuma das "démarches" para a formação do novo

Ministério, havia sido afastada a idéia já assentada desde há alguns meses.

Deu-me o Sr. João Goulart carta branca para agir no Ministério, explicando que

queria se dedicar à administração e precisava de minha ação em todos os setores onde

houvesse que dialogar, sem preconceitos nem prevenções. Dialogar com as esquerdas,

com as direitas, com o centro e com os partidos políticos e até mesmo com a UDN.

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Dialogar com os sindicatos, com os estudantes, com as classes patronais, com os

militares, com a imprensa, com todas as forças vivas do País.

Senti no Presidente da República o desejo amplo de conciliação e da formação de

um campo propício às reformas que viriam a ser as linhas mestras do seu Governo, já

que quase dois anos se passaram com a predominância do campo político sobre o campo

administrativo. Compreendi ainda que o Presidente estava, naquela altura, convencido

de que, através de uma atuação marcante do Executivo, as grandes desconfianças se

desfariam e as reformas viriam como conseqüência da execução de um audacioso plano

de Governo, nos setores da Agricultura, das Minas e Energia, da Educação, da Saúde e

da Viação (rodovias sobretudo).

Só num ponto não transigiria o Presidente e não queria diálogo – com o

Governador da Guanabara. Achava a sua posição irreversível para a democracia e para a

convivência federativa, ao mesmo tempo que o considerava um conspirador contra as

instituições e a sua própria presença à frente do Governo da República.

Entregara-me, o Presidente João Goulart, o Ministério da Justiça para exercê-lo

com amplos poderes e confiança, participando ativa e intensamente das decisões do

Governo onde quer que se fizesse necessária a presença da autoridade no campo

jurídico, constitucional, social e da segurança nacional.

Ao Ministério faltavam, entretanto, os instrumentos de trabalho para obra de tal

envergadura. Desaparelhado totalmente, até ali o Ministério da Justiça era apenas o

setor do Governo que ultimava os processos de naturalização e indultos. Sem demérito

para os meus antecessores - juristas da melhor qualidade e das mais amplas ressonâncias

nas letras jurídicas do País – o Ministério da Justiça deixara quase de existir nos

Conselhos da República. A Fazenda e o Exterior eram as Pastas de maior projeção em

todos os círculos e através das manchetes da imprensa. Até a Pasta do Trabalho, que

tanta projeção havia alcançado com Agamemnon Magalhães, passou a ser o saco de

pancadas de empregadores e empregados, perdendo a importância que lhe tinha dado a

Previdência Social que, com o sistema colegiado instituído pela Lei Orgânica da

Previdência Social, desligara-se, quase por completo, da órbita administrativa do

Ministério do

Trabalho.

Assumira, evidentemente, um marechalato sem armas nem tropas!

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III - Primeiros Passos no Ministério

PESSEDISTA há mais de vinte anos; compromissado, na minha terra, com bases

rurais e urbanas (vinte mil votos em todos os municípios paraibanos, da Capital ao mais

longínquo, Cajàzeiras, no sertão); estritamente ligado por laços de amizade e longa

convivência de 24 anos ao chefe do meu partido no Estado, Senador Ruy Carneiro;

vinculado aos destinos políticos do Senador Juscelino Kubitschek, a quem servira como

líder do Governo, na Câmara, mas de quem também me aproximam não apenas

compromissos de ordem política mas sobretudo deveres pela oportunidade que me

ofereceu para transpor os limites da província para ação larga no plano nacional; tudo

isto me fez constituir um corpo de auxiliares, no Ministério, tanto quanto possível

homogêneo em relação à minha posição político-partidária.

Levaram-me estes fatores para objetivos definidos, como seja m, os de evitar, por

todos os meios, que se aprofundassem as divergências entre o PSD e o PTB e, ao

mesmo tempo, a preocupação de manter um clima de compreensão e de estima entre o

Presidente João Goulart e o Senador Juscelino Kubitschek. Sabia que tanto nos quadros

do PSD como nos do PTB, como ainda fora deles, inúmeros eram os interessados na

ruptura destes tradicionais laços políticos. As origens comuns do PSD e PTB –

VARGAS – indicavam roteiros comuns para a sobrevivência de ambos, assim como

adversários comuns tornavam muito clara a necessidade da manutenção e do

fortalecimento desta união.

Teria que servir ao Presidente João Goulart sem me afastar destas coordenadas,

assim como, acima de tudo isto, estavam os compromissos para com a minha Pátria à

qual sempre prestei serviços com entusiasmo e espírito público, desde prefeito em

minha terra natal, Itabaiana (Paraíba), até Ministro de Estado. Trinta anos de serviço

público nas posições mais diferentes, municipais, estaduais e federais, não somente me

davam experiência e senso para encarar as responsabilidades que havia a enfrentar em

tão alto posto da administração pública, como me revestiam de coragem e disposição

para assumi-las em toda a sua plenitude.

Durante os dois mandatos de deputado federal que a Paraíba me conferira, em 1959

e em 1962, jamais pertencera a grupos, alas, frentes e blocos, porque sempre entendi

que os compromissos com o meu partido poderiam entrar em choque com quaisquer

outros assumidos com este ou aquele agrupamento de deputados. O meu êxito na

liderança do Governo, ao tempo de Kubitschek, por mais modesto que tenha sido,

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assentava-se no trânsito livre que tinha, inclusive nas áreas de oposição e de

independentes, sem outros impedimentos senão os da própria e árdua função de líder do

Governo. Plínio Salgado, Arnaldo Cerdeira, Adauto Cardoso, Fernando Santana,

Bocayuva Cunha, Meneses Côrtes, Almino Afonso, João Mendes, Neiva Moreira,

Clodomir Millet, Abraão Moura, José Maria Alkmim, Ulysses Guimarães, Lamartine

Távora, Souto Maior, Adail Barreto, Armando Correia, Etelvino Lins, Pereira da Silva,

Tarso Dutra, Ortiz Monteiro, João Agripino, Tenório Cavalcanti, Gustavo Capanema,

Aurélio Viana, Artur Virgílio, Pedro Aleixo, Paulo Sarazate, Oliveira Britto, Clémens

Sampaio, Manoel Novais, Leite Neto, Padre Medeiros Neto, Padre Arruda Câmara,

Último de Carvalho, Ernâni Sátiro, Tancredo Neves, Pinheiro Chagas, San Tiago

Dantas,Abel Rafael, Mário Gomes, Marechal Mendes de Morais, Joaquim Ramos etc.,

todos parlamentares de influência na Câmara dos Deputados e representantes das mais

diferentes correntes e tendências político-ideológicas que dividiam e subdividiam o

plenário daquela Casa do Congresso, todos, enquanto estive no exercício da liderança

do Governo, comigo se entenderam, comigo trataram, comigo combinaram, comigo

discutiram, comigo acordaram, sempre que os interesses nacionais estavam em pauta.

Entendimentos de cavalheiros, entendimentos de patriotas, entendimentos

parlamentares.

Liderava 226 parlamentares do PSD, PTB, PSP, PST, PRT, PTN etc. Acima das

divergências e dos conflitos ideológicos, estavam os planos desenvolvimentistas do

Governo Kubitschek. Acima de tudo estava a Nação.

Esta mesma preocupação e compenetração da missão, que me era confiada,

fizeram-me organizar um corpo de auxiliares de posição centrista e de vinculações e

simpatias ao meu partido e à minha posição política.

Para chefe do meu gabinete, inicialmente, levei o advogado Fernando Paulo

Carrilho Milanez, ex-deputado estadual na Assembléia Legislativa da Paraíba, ex-líder

da maioria no governo José Américo, ex-Secretário da Fazenda na Paraíba, ex-

procurador geral do IAPB e ex-presidente do IAPFESP já na vigência da Lei Orgânica

da Previdência Social. Era ainda Fernando Milanez vice-presidente do Partido Social

Democrático na Paraíba. Seu substituto foi o Professor Merval de Almeida Jurema,

professor universitário em Pernambuco e ex-Secretário de Educação do governo

Cordeiro de Farias, em Pernambuco.

Para subchefe de gabinete, convidei o advogado Janson Guedes Cavalcanti, ex-

prefeito de Cabedelo (Paraíba), vereador por muitos anos da Câmara Municipal de João

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Pessoa (Paraíba),advogado de ofício da Justiça Militar da Paraíba e militante do PSD,

na Paraíba, por muitos anos.

Para Diretor do Departamento de Interior e Justiça, minha escolha recaiu no

advogado José Pires de Sá, de tradicional família sertaneja paraibana, ex-deputado

estadual da Paraíba, procurador do DNER e advogado militante no fórum do Rio de

Janeiro.

Na Direção do Departamento de Administração, coloquei o agrônomo Petronilo

Santa Cruz de Oliveira, ex-Secretário da Agricultura no governo Cordeiro de Farias, em

Pernambuco, ex-deputado e membro da Comissão de Finanças da Câmara dos

Deputados, professor universitário, em Pernambuco, e pessedista com a melhor fé de

ofício.

Para a direção do SAM, depois de haver convidado dois padres – Monsenhor

Manoel Vieira, vigário e grande educador em Patos, Paraíba, e Cônego João Belchior –

que não aceitaram, por motivos particulares, fui, por fim, buscar Severino Bandeira Lins

da sua banca de advogado modesto, no Rio de Janeiro, a quem entreguei o Serviço e em

muito boa hora, como os seus sucessores terão que atestar. Apolítico, profissional da

advocacia, mas ligado ao PSD por seus laços de amizade ao Senador Ruy Carneiro.

Na Chefia de Policia estava o Cel. José Avelar, vindo do comando da guarnição de

São Borja para aquele posto. Como assessores militares, por indicação dos respectivos

Ministros, serviam, no meu gabinete, Comandante Artur Benigno Machado, Ten. Cel.

Cromwell Medeiros, Major Walter Humberto Monte (Aeronáutica), Capitão Lucena

(Exército), Capitão José Lira (da Polícia da Paraíba e deputado da Assembléia

Legislativa do Estado), Ten. Cel. Nilton Dias Moreira (falecido) e Ten. Koening (da

Polícia Militar da Guanabara).

Na Consultoria Jurídica, Dr. Anôr Buttle Maciel (efetivo com mais de vinte anos de

serviço), antigo advogado gaúcho e de fé de ofício das melhores.

Na Procuradoria-Geral, cargo que já vinha exercendo há algum tempo, conservava-

se o Dr. Cândido de Oliveira Neto, ex-Ministro da Justiça.

Na Procuradoria da Justiça do Distrito Federal, coloquei o Dr. Átila Sayol de Sá

Peixoto, dos seus quadros e figura conhecida nos meios forenses e criminalísticos da

antiga capital da República, com folha de serviços das melhores.

Secretários, assessores de imprensa e oficiais de gabinete foram funções exercidas

por moços que vieram da Paraíba, ou por outros indicados por deputados de Minas, de

São Paulo, amigos de Brasília etc. Todo um grupo de jovens da melhor categoria,

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estudantes uns, recém formados outros, de vinculações pessedistas e de família de

tradição.

Pelos Estados, todas as indicações para o preenchimento de cargos e funções do

Ministério da Justiça eram feitas pelo presidente do PSD, Amaral Peixoto, ou por

deputados pessedistas das correspondentes representações na Câmara Federal.

Não havia interferência, nem de outros partidos, nem de outras arregimentações

políticas, nem tampouco do Presidente da República, que nunca se negou a assinar os

meus atos e nunca interferiu para o preenchimento desse ou daquele cargos fosse feito

com gente sua ou do seu partido ou mesmo dos seus círculos familiares.

No Ministério da Justiça –– posto chave da política —, não há notícia de

“comunistas” ou “comunizantes” em qualquer função.

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IV - Esvaziamento do Poder Civil

QUANDO da mudança da Capital para Brasília, nas imperfeições de um trabalho

apressado, o Poder Civil se esvaziou totalmente. A mudança absorvera todas as atenções

não só do Governo como do povo. Por muito tempo, Brasília passou a ser o assunto

nacional e internacional. Contaminou tudo e todos. O próprio Presidente Juscelino

Kubitschek, como era natural, ficou prisioneiro de sua glória e de sua popularidade, que

chegara ao máximo em todos os inquéritos. Por toda parte, Norte, Sul, Centro, Nordeste,

Centro-Oeste, Oeste, de outra coisa não se falava e outro personagem não surgia na

exaltação pública senão JK.

Até a campanha sucessória passou para segundo plano. A candidatura Lott sofreu o

desgaste desta situação, vítima até de abandono involuntário. Surgira, já a esta altura, o

movimento JK-65, absorvendo atenções gerais. JK, no consenso popular simplista, iria

passar cinco anos de férias. Voltaria, sem dúvida. E, por isto mesmo, ninguém se

preocupava muito com o seu sucessor. E o engenho e arte da demagogia janista tomou

conta de uma área vazia. O Sr.Jânio Quadros veio com seis milhões de votos para a

Presidência da República, votado por todo mundo, até por juscelinistas dos mais

exaltados. Só os pessedistas e petebistas ortodoxos e nacionalistas acompanharam Lott

até ao sacrifício. Quem não tinha maiores compromissos políticos, ou se deixou ficar

indiferente ao pleito, comparecendo na hora para votar em quem bem quis, ou tomou

posição ostensiva ao lado do janismo.

Empossado o novo Presidente, passada a fase emocional de Brasília, retomada a

administração pública ao leito normal, logo saiu à vista que o Estado da Guanabara

passara a liderar este País. Centro do maior agrupamento de tropa federal, maior centro

universitário, melhor imprensa, melhor serviço de radiodifusão e televisão, sede das

confederações patronais e de empregadores, maior porto marítimo, uma das maiores

concentrações urbanas, tradição de comando na vida política e militar do País, o Estado

da Guanabara, sem deixar de ser de todo a Capital de fato da República, continuou

sendo o cenário das competições político-partidárias mais acirradas, com profundos

reflexos na opinião pública brasileira. Enquanto isso, o Presidente da República se

confinava nas dimensões do Planalto Central, sem meios próprios para uma atuação

diversificada que atingisse com a mesma intensidade todos os horizontes nacionais.

O Presidente João Goulart sempre me dizia – "Seu Jurema, se me deixo ficar em

Brasília, esvaziam-me inteiramente no Rio, o que significa o esvaziamento em todo o

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País, e, se me deixo ficar no Rio para refazer o tempo perdido, acusam-me de estar

esvaziando Brasília".

Durante toda a velha e a nova República, a Chefia de Polícia sempre foi um dos

mais altos postos da administração federal, tanto assim era que, apesar de subordinada

administrativamente ao Ministério da Justiça, o seu preenchimento era feito diretamente

pelo Presidente da República e o seu titular despachava com o Chefe do Governo. Além

do mais, dispunha o Governo Federal, através do Ministério da Justiça, de toda

administração da Guanabara, especialmente de uma poderosa Polícia Militar, de um

magnífico Corpo de Bombeiros e de uma imensa Polícia Civil que se compunha de

milhares de guardas civis, detetives, polícias especiais, inspetores de trânsito etc.

O poder de nomear do Presidente da República, com a Guanabara na sua órbita,

atingia limites que seduziam muitos, engrossando as suas fileiras e as suas forças

políticas.

O esvaziamento do Poder Civil foi de tal natureza que esse exemplo do que ocorreu

como antigo Ministro da Justiça Kubitschek, Deputado Armando Falcão, diz bem da

situação.

Era o Deputado Armando Falcão um dos Ministros mais fortes da República.

Dispunha do Departamento Federal de Segurança Pública, com sede no Rio, como um

dos melhores centros de informação e de vigilância. Com uma Polícia Militar

disciplinada e bem armada, participava dos conciliábulos militares como um

comandante de exército. Afanado JK com as suas metas, toda a coordenação de

segurança e de política passou para as mãos de Armando Falcão, que reuniu em seu

gabinete, no Ministério da Justiça, os líderes do Senado e da Câmara, os Ministros

Militares e os comandantes de tropa. Era, realmente, um todo poderoso.

Pois bem, alguns dias após a inauguração de Brasília, um grande incêndio,

verificado na cidade-livre, chamou a atenção das autoridades governamentais.

Imediatamente o Ministro Armando Falcão compareceu ao local, como fazia no Rio

quando, sob seu comando, se achava também o Corpo de Bombeiros, talvez até

esquecido de que estivesse fora da velha Capital e ainda sob a sensação do domínio

absoluto que usufruía. Foi logo entrando na área interditada, no que foi barrado por um

simplório guarda da Polícia Distrital da nova Capital, recrutado entre os milhares de

candangos que construíram Brasília. O ajudante-de-ordens, Cel. Nílton Moreira,

adiantou-se gravemente e declarou para o guarda: – "Abra passagem que é o Ministro

da Justiça, Deputado Armando Falcão". A resposta foi arrasadora: – "Só tenho ordens

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para deixar passar o Cel. Israel Pinheiro (o construtor de Brasília) e os fotógrafos. Mais

ninguém entra, seu moço".

O todo-poderoso Ministro da Justiça da velha Capital era assim barrado por um

candango mal vestido de policial. Ninguém em Brasília conhecia outra autoridade – Cel.

Israel Pinheiro e Juscelino Kubitschek!

Creio que daí começou o desencanto do Deputado Armando Falcão pelo Poder

Político, porque logo mais abandonava o palco dos acontecimentos por um cartório, já

olhando para a Guanabara...

Daí para cá, mais se acentuando foi o esvaziamento do Poder Civil, enquanto o

governo da Guanabara crescia de importância. Desarmado totalmente, o Governo

Federal não possuía elementos para acompanhar nada do que se passasse nos Estados,

nem tinha condições para exercer a sua autoridade em nenhuma parte deste País, a não

ser na nova e pequena Brasília.

Qualquer atividade contrária ao regime ou ao próprio Governo só poderia chegar ao

seu conhecimento ou pela boa vontade de governadores ou pela 2a Secção do Exército.

Os governadores não só se achavam também desaparelhados (com exceção do governo

da Guanabara que havia recebido, de mão beijada, toda a Polícia Especializada

Marítima, Terrestre e Aérea) como representavam, em sua maioria, interesses políticos

não muito afins com o Governo da República. A 2ª Secção do Exército era muito

especifica e quase se deixava ficar na fiscalização das atividades dos comunistas e da

segurança interna e externa do País, alheia, obviamente, às questões da política ou do

esquema situacionista. Isso, sem falar nas suas dissensões internas, que transformavam

alguns setores de comando em pólos negativos do dispositivo de segurança

governamental.

Jânio Quadros, que se assentava na Presidência da República com uma força

enorme, representada por mais de seis milhões de votos, abalando a Nação inteira com

bilhetes que marcavam a sua presença em todos os setores, estremeceu todo, no seu

poder e na sua força polític a, ao aparecimento, na televisão do Rio, do Governador

Carlos Lacerda, denunciando-o de atividades contrárias à democracia. Abalou-se todo

nas suas bases morais, políticas e até militares e logo, em 24 horas, renunciava ao

Poder.

Qualquer outro governador poderia ter feito igual denúncia sem maiores

conseqüências. Até mesmo de grandes Estados como São Paulo, Minas e Rio Grande do

Sul, e os resultados seriam neutralizados, logo, por uma contra-ofensiva governamental.

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Denúncia feita, no Rio, por um governador do Rio, difundida por uma grande imprensa,

por um grande serviço de rádio e televisão. denúncia feita ele têm centro ainda capital

de fato da República, trouxe e teria que trazer conseqüências fatais, pois a Grande Tropa

a ser manuseada pelo Governo, em sua defesa, lá estava com os seus generais sem

maiores vinculações pessoais, políticas e nem mesmo administrativas com os altos

poderes da República.

E quando um governador da Guanabara é um Carlos Lacerda, maiores são os

percalços à segurança do Presidente da República que entre na sua alça de mira.

Multiplicando recursos de divulgação com engenho e com astúcia, com inteligência e

incrível capacidade de simulação, o Sr. Carlos Lacerda, assentado no Palácio da

Guanabara, é sempre uma ameaça permanente à tranqüilidade nacional e, sobretudo, à

segurança dos Presidentes de República.

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V - Presença do Ministério

ENTRE as mil dificuldades a enfrentar, com o fim de reajustar o Ministério, ou, pelo

menos, para pô-lo a funcionar, figurava a liberação de verbas. 72% foi o corte total das

verbas do Ministério, no orçamento de 1963. Ficaram apenas 28% para a sua

manutenção. E, note-se, o Ministério da Justiça é um órgão de custeio e nunca de

investimento. Suas despesas eram fixas, permanentes, irremovíveis, como as de uma

casa da classe média, com tudo medido e contado.

A Agência Nacional – necessária obviamente para fazer chegar a toda parte as

atividades do Governo – era a mais atingida pelo plano chamado de contenção. O SAM

(Serviço de Assistência a Menores) vinha sofrendo na carne das próprias crianças

internadas e na dos bolsistas.

Nos Estados, da existência do Ministério sabia -se, apenas, por intermédio de uma

delegacia do SAM. Assim mesmo, poucas pessoas nas capitais dos Estados sabiam que

existia um serviço deste. Aliás, em verdade, ele não existia propriamente. Havia um

delegado e nas delegacias menores dispunha o seu titular de um auxiliar, ou de um

dentista e um médico. E era só.

Para informar-se, para atualizar-se, para estar presente em todas as unidades da

Federação, de nenhum instrumento dispunha, efetivamente, o Ministério.

Para exemplo, basta citar que, logo nos primeiros dias de minha assunção ao

Ministério da Justiça, ocorreu, em Porto Alegre, o incidente que, aos primeiros

momentos, foi divulgado como um atentado organizado contra o Governador Carlos

Lacerda e que, posteriormente, se verificou não havia sido mais que um charivari

comum numa multidão integrada por diferentes correntes de opinião. Para inteirar-me

dos acontecimentos, após recorrer até aos centros informativos do Ministério da Guerra,

que, por sinal,de nada sabiam, tive que bater às portas de um udenista – porém meu

amigo pessoal – Senador José Cândido Ferraz, o qual, como um bom amador da

eletrônica, dispunha de aparelhagens poderosas pelas quais pude acompanhar os fatos

com maior clareza, podendo divulgá-los, então,com maior exatidão.

A Constituição Federal, no seu artigo 5º, quando diz que "Compete à União", inclui

o item VII que é textual – "superintender, em todo o território nacional, os serviços de

polícia marítima, aérea e de fronteiras".

Nem a União superintendia, nem delegava poderes a quem de direito. Omitia-se, e

os serviços eram feitos pelos Estados como quisessem ou pudessem. Pode-se bem

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imaginar a eficiência destes serviços em unidades carentes de recursos como o Piauí,

por exemplo, ou os Territórios. Entrava-se e saía-se do território brasileiro livremente,

sem nenhum controle ou ciência de qualquer órgão federal. Na Guanabara, por

condições especiais, só um controle realmente existia por parte do Estado, era a

fiscalização dos viajantes da chamada "Cortina de Ferro".

A fiel aplicação das leis, que é objetivo essencial do Governo através de seus

Ministérios e especialmente o da Justiça, era letra constitucional morta, pois não havia

como pudesse o Governo Federal fazer sentir a sua presença nos Estados da União.

As leis, por exemplo, de combate à carestia,à usura, à exploração da bolsa do povo,

permaneciam inócuas folhas de papel nos arquivos. As medidas que o Governo Federal

tomasse ou pretendesse tomar, com relação à sua própria segurança e prestígio nos

Estados, caíam no vazio.Onde havia um governador amigo, algo poderia ser feito, ainda

assim dentro da precariedade dos recursos locais. Nos Estados governados por

adversários, a autoridade do Governo Federal era solapada quando não chacoteada e

ridicularizada.

Toda a estrutura jurídico-social do País havia sido elaborada na pressuposição da

vitória integral de um partido no plano federal e no estadual. Ninguém pôde conceber,

embora num passado não muito remoto, que o Presidente da República poderia vir a ter

governadores de Estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Guanabara e Minas

Gerais, de partidos adversos e até inimigos pessoais. Tanto é assim que,

constitucionalmente, nada é possível fazer contra um governador que conspira contra o

Governo Federal, até o momento em que ele saia às ruas de armas na mão. Antes disso,

tudo o que houver ou se passar com um governador, só à Assembléia Legislativa de

cada Estado cabe processar, punir ou absolver.

Evidentemente, ninguém deseja que se anule a autonomia estadual, mas deve falar

alto o interesse nacional na defesa do Governo Federal que, nos moldes atuais, tem o

seu raio de ação praticamente limitado aos Palácios das Laranjeiras, do Planalto,

Alvorada e Torto. Hoje, estas condições foram favoráveis aos vitoriosos do dia, mas

amanhã poderão lhes ser adversas. O que se deve pretender em nome de interesses mais

legítimos, mais altos e impessoais, é a preservação da unidade nacional, o prestígio do

Poder Central e o fortalecimento da Federação.

Dentro das limitações legais, utilizando as faculdades constitucionais concedidas ao

Executivo e inspirado nas necessidades nacionais, logo procurei fazer sentir, nos

Estados, a presença do Ministério do Interior e Justiça. Transformei as Delegacias do

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SAM em Delegacias do Ministério, criando secções, entre elas aquelas que cuidariam da

segurança nacional e das informações.

Com igual sentido, foi criado o CODEP – Comissariado de Defesa da Economia

Popular – que os adversários do Governo procuraram confundir com os comissariados

do povo no regime soviético. Foram eles, no entanto, criados especificamente para

defender, em todos os Estados, a começar pela Guanabara, a economia popular.

Chamaram-no logo de Comissariado do Povo porque, de imediato, sentiu a população a

sua existência nos mercados, nos botecos, nas feiras, nos empórios e até na Rua Acre.

As expedições dos agentes da SUNAB devidamente assistidas por policiais do

CODEP (para cada fiscal, três policiais) passaram a ser recebidas triunfalmente pelas

populações suburbanas. Caxias, Nova Iguaçu, Volta Redonda e outras cidades

fluminenses também receberam os agentes federais com consagradoras manifestações.

Milhares de telegramas chegavam de todos os pontos do País, solicitando que se

estendesse, até as regiões mais longínquas, esta fiscalização contra a exploração do

bolsa do povo.

A prisão, na Ilha das Flores, dos inimigos da bolsa do povo servia como

demonstração de que desta vez era para valer era para valer a defesa da economia

popular.

Não se procurava, artificialmente, a baixa de preços. Vigiava-se a margem de lucros.

CLD era a fórmula. Custo, lucro e despesa. Não se obrigava a venda de produtos

essenciais por preços abaixo do seu custo, mas evitava-se desde o pagamento por fora,

pelos que compravam em atacado para revenda em varejo, até às remarcações absurdas

sem qualquer outra motivação senão a ganância e a exploração.

Quarenta e oito horas após a assinatura do novo salário mínimo, já as lavanderias

remarcavam seus preços de Cr$ 400,00, para a lavagem de um terno, para Cr$ 700,00 e

Cr$ 800,00.

Do êxito da campanha do CODEP e da SUNAB, falarão melhor as donas-de-casa,

mesmo aquelas mais temperamentalmente vinculadas ao lacerdismo... Óleos, arroz,

feijão, comidas de lata, farinha, açúcar etc. não tiveram alta astronômica e inúmeros

foram os mercadinhos, supermercados, armazéns etc., que foram forçados a vender mais

baixo do que anteriormente.

Já começava a se formar uma consciência popular de autodefesa. Milhares de

telefonemas chegavam diariamente à SUNAB e ao CODEP. As buscas de exploradores

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já contavam com a colaboração da população. O povo acompanhava os comandos e

indicava os exploradores.

A Caixa Econômica Federal já havia posto à disposição da campanha suas agências

nos bairros, para a instalação de postos de recebimento de reclamações.

A campanha começava a se estender pelo País. Comandos aéreos estavam para ser

formados, como também comandos marítimos, com a colaboração da Aeronáutica e da

Marinha.

A "Revolução" surpreendeu uma expedição de comandos da SUNAB e do CODEP

em São Paulo. Já atuavam há dois dias, com o melhor êxito e a maior repercussão

popular, quando os acontecimentos militares forçaram o seu regresso à base, na

Guanabara.

Pelo decreto que criara o CODEP, subcomissariados seriam instalados nas capitais

dos Estados e a ação repressora aos exploradores da economia popular iria fazer-se

sentir em larga escala e com a colaboração dos governantes estaduais que melhor

compreendessem o problema.

A criação da Divisão de Policia Marítima, Aérea e Terrestre, subordinada ao

Departamento Federal de Segurança Pública, cuja instalação foi iniciada no Estado da

Guanabara e, em seguida, por São Paulo, iria levar, de fato e de direito, a presença do

Governo Federal a todas as unidades da Federação, numa área da maior importância

para a defesa e segurança do País.

A regulamentação, que já se estudava, do Departamento Federal de Segurança

Pública – até que novo órgão fosse criado por lei, segundo mensagem do Executivo já

no Senado Federal - iria restaurar aquele órgão na plenitude de suas atribuições, que

foram erroneamente julgadas peremptas com a transferência da Capital para Brasília.

A absorção, pelo Governo Federal, dos chamados optantes, isto é, a transferência

do pessoal civil e militar dos quadros do Estado da Guanabara para a União – retorno

assegurado por lei, restaurador da situação funcional anterior de servidores federais e

não estaduais – iria, sem dúvida, fornecer instrumentos à presença do Governo Federal

nas unidades federadas, no âmbito estrito da lei e da Constituição.

Não era um plano subversivo nem tinha, em seu bojo, outros objetivos que não os

do fortalecimento do Poder Civil da União. Era a restauração da situação que se

esfacelara com a mudança da Capital para Brasília, transferência necessária, mas com

conseqüências que já se estavam fazendo sentir na fraqueza do Poder Central que, ao se

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vestir de pompas com a nova capital, perdeu, na realidade, toda a sua capacidade de

ação, de vigilância e até de sobrevivência.

Tudo era feito dentro da lei, às claras, numa ação racional e metódica, sem

vexames e até mesmo com moderação, criticada aqui e ali pelos próprios beneficiários

das providências. O Governo Federal fugia das pressões sem se deixar dominar pela

pressa, tão sabidamente inimiga da perfeição.

A União se reintegrava nos seus direitos e se armava dos instrumentos devidos para o

exercício, em toda a sua plenitude, de suas faculdades e obrigações constitucionais.

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VI - Na Direção do Povo

DURANTE todo o Governo João Goulart, a tônica predominante foi a reforma agrária.

O tema tomou conta de todos os conselhos do Governo. Até quem não entendia nada e

muito menos de reforma agrária passou a discutir, nos corredores dos palácios

presidenciais, sobre reformas de base e, principalmente, a agrária.

Era, assim, uma maneira de se ficar prestigiado perante o Presidente... Parara a

administração com a campanha presidencialista e agora, após o plebiscito, a mesma

estagnação com relação aos problemas em pauta das necessidades brasileiras. Não havia

tempo para outra coisa – reforma agrária.

Visitei o Nordeste várias vezes. Agitadores, injustiças, desatualização, despreparo,

politiquice, demagogia e até idealismo se misturavam num "melting pot" que já se

estava tornando explosivo.

Evidentemente, impossível seria continuar a vida de um engenho nos dias de hoje

como se ainda se vivesse nos primeiros dias de colônia. Esse negócio de o trabalhador

rural trabalhar dois ou três dias de graça para os proprietários, no sistema do "cambão",

com um salário mínimo que ultrapassava os setecentos cruzeiros por dia, esse

negocinho bom para o patrão não poderia subsistir. Aquele outro, de um cortador de

cana ganhar Cr$ 25,00 por carga, também não podia mais durar. Na usina, já o

trabalhador fazia de Cr$ 763,00 para cima e o cortador de cana, para atingir este salário,

teria que começar a trabalhar às 5 horas da manhã. Daí, para ir até o direito de voto do

analfabeto, que custaria duras penas, é verdade, mas que, fora de dúvida,teria que vir em

benefício da tranqüilidade nos campos.

Dar sentido à reforma agrária, tomar terra de quem tinha para distribuir a quem não

tinha, assombrar pequenos e médios proprietários (que passavam a se aliar aos

latifundiários), agitar sem medidas prontas para amenização dos choques, sindicalizar

trabalhadores rurais sem preparação psicológica e dentro desse clima de guerra sem

quartel, numa radicalização que já estava regando a terra com sangue de inocentes e

culpados, tudo isso estava errado e era frontalmente contrário à própria pregação do

Presidente pela reforma agrária.

Não seria o milagre da reforma agrária que resolveria todos os problemas

brasileiros em equação. Aqueles problemas mais instantes não poderiam agüentar

soluções de longo prazo. O custo de vida estava devorando tudo e acabaria por engolir

toda a liderança popular do Governo. Os preços, em ascensão mirabolante, davam-nos a

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impressão de absoluta ausência do Governo nas feiras, nos mercados, no comércio em

geral.

A grita vinha de nossas próprias casas e a inconformação partia de nós mesmos,

auxiliares do Governo, com salários que já não davam nem mesmo para a manutenção

do lar, quanto mais para as pompas e honrarias dos cargos.

As aperturas domésticas estavam incomodando mais a República do que toda a

pregação reformista.

Tudo isso teve a sua comprovação no comício de "Sexta-feira, 13" (idos de março)

– a grande praça do Ministério da Guerra, absolutamente lotada de povo, quase veio a

baixo, quando o Presidente João Goulart falou na ação do CODEP e da SUNAB, na

defesa da economia popular, na prisão dos exploradores, nos propósitos de o Governo

dar batidas de Olaria à Rua Acre e no tabelamento dos aluguéis de casa.

O próprio Presidente me afirmou que o comício só havia alcançado êxito

extraordinário, não só em comparecimento maciço como em entusiasmo e calor

popular, graças à presença fiscalizadora do Governo no comércio de gêneros

alimentícios.

No dia seguinte ao comício, manhã de sábado, mal pude tomar café porque o Presidente

já me chamava ao Palácio das Laranjeiras. Queria ele assinar imediatamente o decreto

de tabelamento de aluguéis, pois sentira, é expressão textual, que . a anunciação de que

já estava pronto o tabelamento de aluguéis havia arrancado muito maior entusiasmo ,

delírio mesmo, do que os temas de reforma, inclusive a agrária.Salientou, ainda, o

Presidente que sentira estar o povo vivendo o imediato – custo de vida. Seria nesse

campo que iria empregar toda a sua ação administrativa. Incentivou-me a continuar com

a fiscalização da SUNAB e do CODEP e estende-la por todo o País. Pediu-me para

regulamentar logo o decreto do tabelamento e organizar comandos de fiscalização por

todas as grandes cidades. Encareceu-me "botar a cabeça no travesseiro para outras

medidas, como aquelas, que surgirem"... Contou até uma anedota que já estava pelos

corredores do Palácio das Laranjeiras. Ante o êxito do decreto do tabelamento de

aluguéis (não se falava em outra coisa no Rio, São Paulo, Recife e outras grandes

cidades), Juscelino havia dito para o seu fiel Cel. Afonso: "Engraçado esse Jurema, no

tempo em que era meu líder nunca me trouxe decretinhos assim tão do agrado

popular..."

Além do decreto de tabelamento de aluguéis, outras providências nesse campo

iriam surgir. Começariam pelo tabelamento de materiais de construção e se seguiriam

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pela criação do fundo nacional da habitação e, possivelmente, pela criação do Ministério

da Habitação. Teriam que ser drenadas todas as disponibilidades governamentais do

campo imobiliário. O tabelamento de aluguéis era uma medida a curto prazo, para

atender ao premente, à exploração de aluguéis de apartamentos de quarto e sala por

mais de cem mil cruzeiros. O bom mesmo viria depois.

Os acontecimentos revolucionários me surpreenderam com a minuta, na minha

pasta de despacho, do anteprojeto de decreto que requisitava serviços habitacionais, na

forma da Lei Delegada nº4, de 26 de outubro de 1962, a chamada Lei de Defesa da

Economia Popular.

Neste decreto, considerava-se o grande número de despejos que se verifica nas

grandes cidades; considerava-se a grita que eclode de todos os grandes centros contra a

avalanche dos despejos que já era uma forma de burla da lei do inquilinato;

considerava-se que o vulto dessas ações decorria das vendas motivadas pela insatisfação

dos proprietários com os aluguéis congelados; considerava-se que o Código Civil, no

artigo 1 204, dispõe que, durante a locação, o senhorio não pode mudar o destino do

prédio alugado; considerava-se que a Constituição Federal, pelo artigo 147, condiciona

o uso da propriedade ao bem estar social; considerava-se que a habitação era um serviço

essencial e ainda considerava-se que a lei facultava ao Executivo Federal a intervenção

no domínio econômico para assegurar serviços essenciais ao uso do povo. Pelo artigo

primeiro, ficavam requisitados todos os prédios que estivessem sendo objeto de ações

de despejo, em qualquer comarca do território nacional. Estavam, evidentemente,

excluídos os prédios objeto de ações de despejo por falta de pagamento de aluguéis. Os

prédios requisitados continuariam na posse dos seus atuais inquilinos, que teriam de

cumprir para com os proprietários as obrigações de lei, decorrentes da locação.

Essa é que é, realmente, a direção do povo para um Governo. O povo que sofre, que tem

sede e fome, que se desajusta nos seus salários,que é carente de tudo, o povo não pode

participar de debates de temário. Não pode esperar nem mesmo as soluções de longo

prazo. Sua angústia, suas aflições exigem soluções a curto prazo, que façam o povo

sentir, na carne, os efeitos da medida, como está sofrendo, na carne, os efeitos da

elevação do custo de vida.

O decreto da SUPRA foi a espada de Dâmocles sobre os partidos, políticos e

proprietários por muitos meses. Havia até quem dissesse que, no dia seguinte à sua

assinatura, as invasões de terras mergulhariam o Brasil no caos.

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Já esse decreto começava a sofrer os efeitos de decomposição, porque o povo não

viu, não sentiu e não experimentou nem sequer um sopro rarefator de sua situação, com

a sua assinatura. Logo mais os camponeses iriam também sentir que, pelo decreto, não

veio nada, não surgiu nada, não melhorou nada.

Se o decreto objetivasse áreas de açudes públicos, que estão entregues a meia dúzia

que usufrui benfeitorias de milhões e até de trilhões de cruzeiros, através de anos, teria

sido exeqüível e de repercussão direta na opinião pública.

Amplo como estava, sem as prioridades, sem as especificidades, sem

racionalização de programas e métodos, cairia no vazio, o que não aconteceu pela

intervenção revolucionária do Presidente Mazzilli...

Os decretos que criavam os sapatos populares, os tecidos populares e os que

fixavam preços de remédio nos rótulos, como ainda aquele que disciplinou o uso dos

livros escolares, todas estas medidas tiveram maior repercussão, na opinião pública,

favorável ao Governo do que toda a polêmica no sentido das reformas de base e da

substituição das velhas e arcaicas estruturas.

Uma reunião de marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos só e só para

reclamações de ordem disciplinar e regulamentar, sem qualquer direção para o povo, no

seu sentido amplo, não ajuntaria nada ao Governo. Um comando do CODEP e da

SUNAB, na Penha ou em Rocha, traria resultados positivos, inclusive para a própria

família do marinheiro, que deve residir nos bairros que estavam sendo assistidos e

defendidos.

Os sargentos que se achavam no Automóvel Club, na antevéspera dos

acontecimentos revolucionários, seriam mobilizados com maior anelo, ao sentirem os

efeitos dessas medidas em direção ao povo, sem discursos e sem flâmulas.

Militar é povo e também paga casa, compra no mercado, utiliza transporte, diverte-

se e adoece, como também tem filhos na escola, calçando e vestindo.

Esse era, realmente, o caminho. Nunca os atalhos conduziram o viajante a bom

termo. Há sempre os atropelos da improvisação da caminhada.

O Presidente João Goulart esteve no rumo desses caminhos por várias vezes. A

responsabilidade maior de suas distorções cabe, fora de dúvida, aos incríveis teóricos do

seu Governo. Ao academicismo. Ao teoricismo. Aos construtores de idéias, mas

distantes de uma realidade social. Aos arquitetos das lutas, mas longe das suas

motivações. Aos buriladores de pensamento, mas mal arrematadores da bola ao gol.

Deve-se, sem dúvida, aos maus conselheiros.

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VII - Jango & JK

NÃO é fácil a manutenção de equilíbrio social, afetivo e político, entre sucessor e

sucedido, como não é comum um estado de boas relações entre o Presidente e o Vice,

como entre o Governador e o Vice e o Prefeito e o Vice.

Grandes, extensas e profundas crises já foram provocadas, alimentadas e

desenvolvidas, na base destes pressupostos. E, agora, em nosso País, mais do que nunca,

os vices, de todas as categorias, estão com o entusiasmo incontrolado à vista das

cassações que se sucederam...

Mesmo assim, frente a uma tradição não muito honrosa para a democracia, as

relações entre o Presidente Juscelino Kubitschek e o seu Vice João Goulart, durante

todo o período governamental de 1956 a 1961, desenvolveram-se normalmente. Houve

tropeços, houve ranhuras, houve mal-entendidos, tudo, porém, facilmente corrigido e

neutralizado pelas lideranças partidárias e parlamentares. As áreas do PSD e do PTB,

sobretudo nos municípios, atritaram-se

muito e, a cada eleição, aumentavam as incompatibilidades, que se refletiam nos

altos escalões do Governo.

Honra se faça a ambos, JK e Jango, pois um ajudou o outro, ajudando-se, ambos,

mutuamente, de modo tal que as dissensões não se revestiram de gravidade para a

aliança dos dois partidos. Na Câmara e no Senado, as bancadas pessedistas e petebistas,

durante o quinqüenio juscelinista, compuseram-se bem em todas as oportunidades e,

talvez, tenha sido Juscelino Kubitschek o último Presidente a contar com tão maciço

apoio parlamentar e com vitórias tão esmagadoras no Congresso.

Os compromissos de campanha foram mantidos com a vitória eleitoral e

assegurados por todo o período governamental. Para que se tenha uma idéia de como o

pacto entre os dois líderes funcionou, basta dizer que, na Paraíba, apesar de exercer a

Liderança do Governo na Câmara, nunca obtive para os meus amigos qualquer posição

na chamada área petebista, Ministérios do Trabalho e da Agricultura!

Em Minas Gerais, terra de JK e onde os amigos e correligionários, obviamente, são

mais exigentes, o esquema funcionou, rigorosamente, dentro dos compromissos

preestabelecidos.

Creio mesmo que, no campo social, deve o ex-Presidente Juscelino Kubitschek ao

Sr. João Goulart boa parte da tranqüilidade do seu Governo, como a solução rápida das

greves que eclodiram e que foram sempre de pequena monta. O mesmo não aconteceu

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ao Governo do Sr. João Goulart, pois, como Presidente da República, não dispunha de

um presidente do PTB parafalar,grosso aos seus correligionários. Era ele próprio quem

teria que resolver todas as pendências,desgastando-se ora na área dos empregadores, ora

na dos trabalhadores. Dificilmente o Presidente da República e o presidente do Partido

Trabalhista Brasileiro poderiam ter coexistência pacífica e proveitosa, na mesma

pessoa... Ao que reivindicava o máximo, teria que se sobrepor o que concederia o

possível; ao que reprimia em nome da Lei e da Ordem, chocava-se o que liderava as

massas em nome da melhoria de vida; ao que dialogava com empregadores e

empregados, conflitava-se o que já era parcial por força de sua função de presidente de

uma agremiação trabalhista; ao que pedia SIM, podia surgir o que teria que dizer NÃO.

Evidentemente, faltou ao Presidente João Goulart um Jango à frente do

trabalhismo, como aconteceu no Governo Kubitschek.

A derrota da candidatura do Marechal Lott e a eleição, para Vice, do Sr. João

Goulart, foram as sementeiras da desunião entre os dois partidos de origens comuns.

Dois complexos, o do êxito e o do fracasso, passaram a fazer mal ao PTB e ao PSD. O

primeiro, sentindo-se com o direito de conquista, que lhe indicava uma liderança

natural, e o segundo, carpindo a derrota,com determinação e com esperança de retomar

a dianteira, na próxima sucessão.

A fase Jânio Quadros serviu de anteparo a choques mais violentos, pois é lugar-comum

que a adversidade une... Mesmo assim, já se observava, no campo da política externa e

na área social, forte desequilíbrio, que já apontava dissensões profundas entre

trabalhistas e pessedistas. As tendências esquerdistas predominantes no PTB

começavam a se chocar, mais seriamente, com o centrismo do PSD. Se, no Governo

Kubitschek, o PTB se acomodava com a satisfação de reivindicações mínimas, no

Governo João Goulart passou a desejar que as posições se invertessem, procurando

forçar o PSD a aceitar o mínimo de concessões político-ideológicas.

Esta situação se agravou no Parlamentarismo, quando o PSD e a UDN muito se

namoraram, na convivência de Gabinete, de modo a se refletir, com maior intensidade,

na área parlamentar. A criação da Ação Democrática Parlamentar em contraposição à

Frente Parlamentar Nacionalista ainda mais aumentou essas diferenças, pois, na

primeira, figuravam, em maior número, pessedistas e udenistas, enquanto a segunda

aglutinava mais petebistas e alguns deputados dos pequenos partidos e muito poucos do

PSD. Aliás, estas duas frentes parlamentares em muito concorreram para a balbúrdia

que se instalou no Congresso, principalmente na Câmara,durante todo o Governo

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Goulart. Quase que os partidos desapareceram e as lideranças, de Governo e de

Oposição, passaram a ter existência apenas nominal, atuando, em todos os

sentidos,tanto a Frente Parlamentar Nacionalista como a Ação Democrática

Parlamentar. A mensagem do Estado de Sítio mostrou o quadro, em toda a sua

dimensão. Uniram-se as duas frentes, no combate à proposição, impossibilitando uma

tomada de posição dos dois grandes partidos, a UDN e o PSD, e mesmo da liderança do

PTB.

Ora, era natural que, na cúpula governamental, se refletisse tudo isso. O PSD,

apesar dos três Ministros que possuía no Governo e das posições federais que desfrutava

nos Estados, passou a omitir-se em várias decisões fundamentais ao Presidente, da

mesma forma que, nos arraiais janguistas, começou a sofrer toda a sorte de restrições.

Ninguém tinha condições de convencer os líderes mais atuantes do PTB da

impossibilidade de vencerem sozinhos uma campanha presidencial, tanto como era,

igualmente, impossível convencê-los de que o PSD jamais aceitaria qualquer

composição na base de uma vice-presidência, pois o candidato do partido já estava à

vista, desde 1961.

Arraes e Brizola sofriam o delírio das multidões..., distanciando-se da realidade

brasileira e se julgando até mais fortes do que o próprio Jango. Numa superestimação de

força e de prestígio populares, estes dois líderes conduziam boa parte do PTB para uma

jogada exclusivista e já consideravam JK inteiramente superado.

As dificuldades do Presidente cresciam a cada mês, no campo político, com reflexos

intensos na própria administração e, especialmente, no programa reformista que

considerava prioritário.

Sem contar com o apoio franco e aberto do PSD que se mostrava cada vez mais

arredio, por força das incompatibilidades criadas pelas lideranças esquerdistas do PTB,

o Sr. João Goulart, apesar de muito mais atento à realidade política, passava, em muitas

oportunidades, a distanciar-se do seu amigo e companheiro do passado, Senador

Juscelino Kubitschek. Muitas vezes discorri com ele a respeito de JK e, sempre que

podia, promovia encontros entre os dois, dos quais resultados sempre surgiam,

desnorteando os ortodoxos petebistas ou impressionando a frente oposicionista.

A velha tecla divisionista era batida em todas as horas, mas estes encontros, se

resultados mais concretos não apresentavam com relação à consolidação da candidatura

Kubitschek, pelo menos protelavam uma ruptura que seria fatal à sobrevivência dos dois

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partidos, que Vargas criara com o seu gênio político, antecipando-se ao

desenvolvimento industrial brasileiro.

Apesar do meu juscelinismo conhecido e nunca discutido nas esferas

governamentais, nunca senti da parte do Presidente qualquer mal-estar pela minha

posição. A quota de trabalho e de lutas e sacrifícios, que dava ao Governo, revestia-me

de autoridade para falar e agir, no sentido da inquebrantabilidade de uma união que

julgava decisiva para uma sucessãopresidencial vitoriosa. É evidente que, no fundo, o

Presidente.João Goulart desejaria um candidato petebista para seu sucessor. Tinha

mágoas do PSD e de vários dos seus líderes maiores. Cobrava de Juscelino Kubitschek

o mesmo apoio que emprestara ao seu Governo, mostrava-se reticente nas

manifestações sobre a sua candidatura em 1965 e não escondia, aos seus íntimos, as

dificuldades, julgadas até insuperáveis, para levar o PTB, integral,para a campanha de

JK.

Sabia, entretanto, o Presidente que não se improvisava, em poucos meses, um líder

para vencer Carlos Lacerda ou mesmo Adhemar de Barros. JK já era um líder feito, de

uma popularidade indiscutida e muito ligado a vários lideres e parlamentares petebistas,

além de ter revelado, no Governo, ser um escravo dos compromissos contraídos na

campanha.

Bem compreendia que não podia o Presidente, de logo, manifestar-se oficialmente

pela candidatura de JK. Transformar-se-ia num simples cabo eleitoral e os seus palácios

se esvaziariam, enquanto represariam, de gente, as residências de JK, em Brasília e na

Guanabara.

Dizem testemunhas do passado que o Presidente Vargas afirmava sempre ao seu

Ministro Tancredo Neves: – "Tu és o único Ministro que me dá alegria, pois nunca

falaste em sucessão presidencial... "

Se a indecisão do Presidente muito contribuía para a confusão do quadro

sucessório, as dificuldades a vencer não poderiam ser subestimadas.

Toda a sua política, aparentemente contrária ao PSD mineiro, objetivava evitar que

a UDN nacional pudesse contar com líderes estaduais, como Magalhães Pinto, em todas

as jogadas contra o Governo. A utilização que fazia das amizades, que desfrutava de

outros líderes udenistas estaduais, fazia parte do seu esquema político de enfraquecer o

candidato natural da UDN à Presidência da República, uma peça constante em todas as

suas preocupações e planos políticos.

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A nós pessedistas, especialistas em UDN, parecia-nos errada a política do

Presidente. Nós sabíamos, por experiência de acordos estaduais feitos e ainda por

alianças nacionais, como no Governo Dutra, que a UDN, na sua auto-suficiência de

todos os valores morais e éticos da Nação, em todas as oportunidades de relações com o

PSD, parecia nos fazer uma concessão, descendo do alto da torre de marfim, para perder

alguns minutos com uma plebe ignara... Os exemplos, estavam ali. Os udenistas

participavam do Governo, eram Governo, viviam governamentalmente, tinham todo o

facies de Governo, mas não se julgavam compromissados com o Governo. Na hora das

decisões políticas, estariam todos de fora, combatendo o Governo e o condenando às

(para as?) gerações vindouras...

Vi e senti muitas das suas decepções nesse terreno!

À vista dos clichês, que se espalham por toda a imprensa, o Presidente João

Goulart, hoje, no exílio, há de estar em busca do tempo perdido...

Mas, como evitar que decisões fatais alterem o curso da História?! Nenhum dos

grandes homens pôde evitá-las e destinos de civilizações inteiras foram modificados.

São os erros humanos que os têm salvo, muitas vezes, como os têm agravado, num

determinismo que até parece simples rotina.

JK e Jango tiveram a sua vez na História do Brasil, e a presença de ambos só se

prolongaria, quanto mais duradoura fosse a união entre ambos. As querelas dos seus

amigos e correligionários nenhuma significação poderia ter, face à grandeza de suas

destinações.

Todo o Governo Jango foi uma tremenda luta entre o ser e o não ser. Entre esta

alternativa, surgiram forças alimentadas pelas suas dissensões, pelas incompreensões e

por um estado de espírito a que não fogem nem os povos mais desenvolvidos.

Assisto, aqui no Peru, a uma união esdrúxula e até inconcebível, no campo político,

entre o General Odria e o líder aprista Haya de La Torre, inimigos irreconciliáveis num

passado de 30 anos! No Brasil, procurou-se desfazer uma união de 30 anos,

paradoxalmente, para a perda do Poder! Não chegou ela a se desfazer, apesar da ação

constante das suas forças negativas, mas os efeitos se precipitaram aos primeiros sinais

de seu enfraquecimento e os dois líderes autênticos e historicamente vinculados estão,

hoje, proscritos.

Não sei de mal maior à democracia brasileira, cujo povo perdeu o direito de opção,

através de um processo que se distancia das suas tradições, dos seus costumes, da sua

índole e mesmo da sua formação imperial e republicana.

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O tempo, o grande cicatrizante, poderá obrar o milagre de uma reconstituição, purgados

os fatores negativos e exaltados e compreendidos todos os elementos constitutivos de

sua força construtora, do seu ideal político e da própria grandeza do País

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VIII - Jango x Brizola

SEMPRE constituiu assunto de controvérsia, tanto nos meios governistas como

oposicionistas, a ligação Jango – Brizola. Até que ponto era a influencia de um sobre o

outro e, principalmente, do último sobre o primeiro. Se as divergências e até mesmo as

incompatibilidades aparentes eram verdadeiras ou um mero jogo político para confundir

os adversários. E, ainda, se Jango chegaria a nomear Brizola para Ministro de Estado e,

em particular, Ministro da Fazenda.

Poucos dias após ter assumido o Ministério da Justiça, quando proclamei que havia

de ser um homem do diálogo, antes mesmo de qualquer insinuação do Presidente,

iniciei-o, visitando o ex-Governador Leonel Brizola, em seu apartamento em Brasília.

Estava ele, lá, cercado pelas figuras de projeção da Frente Parlamentar Nacionalista.

Fui recebido educadamente, mas com sobriedade e mesmo reservas. Salientei, de

início, que, dirigindo a Pasta política do Governo, não poderia ignorar a presença

política do ex-governador gaúcho, como líder nacional que havia merecido perto de

trezentos mil votos do povo carioca e que desfrutava, evidentemente, de larga influência

em várias camadas sociais do País. Uma corrente de opinião estava sob sua liderança,

era incontestável, e era meu propósito dialogar com todas as correntes políticas, com

todos os partidos, com todas as classes e com todos os grupos econômicos. Procuraria

ser um anteparo às arremetidas contra o Governo, deixando-o com tempo para trabalhar

no campo administrativo. Responderia a todas as indagações, discutiria todos os

assuntos em pauta e controvertidos, responderia a todas as críticas e estaria presente em

toda parte onde se fizesse necessária a presença política do Governo. Dispunha-me a

levar ao Presidente todas as questões em debate, com isenção e procurando, tanto

quanto possível, espelhar ao Chefe da Nação a realidade, sem artifícios nem

preocupações de agradar.

Num tom místico, com olhares indefinidos e fisionomia carregada, o Sr. Leonel

Brizola discorreu sobre a vida brasileira, investindo contra a espoliação que o capital

estrangeiro praticava entre nós e fazendo críticas duras a auxiliares recentemente

empossados no novo quadro ministerial. Estava especialmente irritado com a escolha do

Sr. Carvalho Pinto para Ministro da Fazenda, argumentando que, com homens assim

conciliatórios e mesmo vinculados às forças reacionárias, impossível seria ao Presidente

João Goulart realizar o programa de emancipação econômica do Brasil.

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Foi mais além na análise e na crítica, pregando uma política radical do Presidente

contra a influência norte-americana, os grupos econômicos ligados ao capital

estrangeiro e toda a imprensa submetida a esses interesses, no que destacava os

"Associados".

Procurei explicar, sem veleidade de convencer um espírito já determinado,

temperamental e arrebatado, que a posição de um Presidente era muito diferente da dele,

líder popular. Não havia sido eleito por uma facção apenas. Tinha compromissos com

uma frente política ampla, na qual se achava o PSD. O tom conciliatório, que imprimia

ao seu Governo, era fruto da imposição de uma realidade social e política, como

também econômica. Não poderia, o Presidente, deixar-se levar pelo sectarismo de uma

corrente, nem tampouco teria condições para governar democraticamente sem contar

com o apoio de uma frente parlamentar heterogênea. Mostrei o exemplo de Juscelino

Kubitschek, que contara com todos os meios para uma administração polimorfa e

agigantada nas suas realizações, transigindo aqui e ali, mas se mantendo à altura dos

anseios nacionais. Citei, ainda, o caso da luta do ex-Presidente com o Fundo Monetário

Internacional e indiquei que, durante todo o seu Governo, havia contado com o apoio de

esquerdas e de direitas, citando as testemunhas ali presentes que assistiram ao apoio que

Plínio Salgado emprestava ao Governo com a mesma disposição da Frente Parlamentar

Nacionalista, por exemplo.

Deixei a residência do Deputado Leonel Brizola convencido das dificuldades que

teria de enfrentar e das maiores ainda que o próprio Presidente João Goulart teria que

vencer, numa área tão delicada como a da família.

Em várias ocasiões, tive que voltar ao ex-governador gaúcho, sempre muito bem

recebido e, em alguns momentos, até atendido. Entre ele e Jango, muitas vezes, a corda

chegou a espichar até quebrar. Não é fácil o trato, no Governo, com deputados de

trezentos mil votos. Estão sempre dominados por uma preocupação – não sair das

manchetes para não decepcionar a massa. Em vez de liderarem opiniões, são, quase

sempre, liderados pelo povo. Não há argumentos para convencê-los, quando têm, à sua

frente, microfones e montões de cartas e telegramas. Deixam-se conduzir por

conselheiros que mais são pontos magnéticos dos milhares de eleitores do que mesmo

assessores serenos e ponderados. Não ouvem outra voz senão a das multidões açuladas

por eles próprios. É o retorno impressionante. Agitam para não perderem a liderança e

se influenciam pelos efeitos que eles próprios despertaram no povo. Agitam e se agitam,

nos fluxos e refluxos das suas apresentações ao público e, cada vez, vão mais longe, na

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insofrida ânsia de não serem ultrapassados por outros líderes que estão sempre, como

nos programas de calouros, aguardando vez.

Enquanto a sua mãe era viva, D. Vicentina, pareceu-me que os choques do

Presidente com o seu cunhado eram contidos, amenizados e mesmo anulados, não só

pela ação catalisadora da mãe e sogra como porque, a sua casa no Leblon, como ponto

afetivo convergente, reunia-os após as pelejas. Com o seu desaparecimento, os mal-

entendidos começaram a durar mais tempo. Nem sempre um General Assis Brasil

conseguia reaproximá-los rapidamente, e a separação começava a parecer definitiva. Só

novos acontecimentos, novas crises, novas dificuldades os reunia outra vez.

Quando do episódio do Estado de Sítio, os dois estavam muito distantes um do

outro. As provocações do Governador da Guanabara os uniram, de novo. Na última

crise que precedeu à Deposição, o quadro entre os dois era de aspecto definitivo, com

um Ministério da Fazenda a separá-los.

A diferença era que o Presidente nunca extravasava os seus sentimentos, as suas

mágoas,as suas indisposições e os seus ressentimentos. De outro modo agia o seu

cunhado. Entrava duro na crítica e, com isso, criava muito mal-estar entre amigos de

ambos.

Certa vez, chamado pelo telefone, de Brasília, pelo Presidente, recebi

recomendações expressas para fechar a Rádio Mayrink Veiga, naquela noite, se o

Deputado Leonel Brizola, como se anunciava, fosse romper espetacularmente com o seu

cunhado, entre crítica contundente e pessoal.

Compreendi a delicadeza do assunto e fui, na companhia do Almirante Aragão, ao

Leblon. O Deputado Brizola estava magoadíssimo com o Presidente, dizendo que se

achava na rua, em luta contra inimigos poderosos, e o seu cunhado estava na janela,

assistindo ao espetáculo. Referia-se à luta contra os "Associados" e se queixava de que

o Ministério da Fazenda e o Banco do Brasil alimentavam aquela cadeia jornalística e

radiofônica e ele era o alvo central de uma campanha demolidora e cruel. Dizia-me que

não teria condições para falar ao povo se escondesse que o Presidente protegia os

inimigos do povo.

Afinal, depois de mais de uma hora, saí dali convencido de que não tinha

conseguido grande coisa, mas, pelo menos, o rompimento não se revestiria de insultos

pessoais ao Presidente. Estava, entretanto, determinado a fechar a Rádio Mayrink

Veiga, em pleno programa, se acontecesse o pior. Fui jantar na residência do Deputado

Bocayuva Cunha, de cuja mesa me levantei inúmeras vezes para atender telefonemas e

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para falar com a Mayrink, cujo diretor, jornalista Maia Neto, foi cientificado da minha

decisão e dos meus apelos.

A ação tinha tido êxito. O ex-governador gaúcho falara em tom de mágoa e

veemente nas críticas, mas poupara a pessoa do Presidente.

Ainda de outra feita, o Presidente João Goulart voltou a determinar o fechamento

da Rádio Mayrink Veiga, em face de programas que julgava inconvenientes, com o seu

cunhado abrindo palestras que se seguiam de outras, de parlamentares da Frente

Nacionalista. Condicionava ao meu arbítrio, entretanto, a medida, num tom reticencioso

que me convencia do contrário...

Novos contactos tive com o Deputado Leonel Brizola e com os diretores da Rádio.

Quando o Cel. Adhemar Scaffa assumiu a Presidência do Conselho de

Telecomunicações, todas as mediações para conter a emissora passaram a ser feitas por

ele.

Sabia que o seu fechamento iria provocar crise séria, não apenas no campo político,

como, sobretudo, no terreno doméstico.

Não ignorava a profunda amizade que ligava o Presidente à sua irmã, a esposa do

Deputado Leonel Brizola. Precisava poupá-lo de maiores dissabores, delicadas

conseqüências das divergências que se sucediam entre um e outro. Era o ônus pesado

que pagava o Presidente por ter um cunhado líder nacional e sacudido, sem dúvida, por

complexos de frustração muito comuns nas famílias tradicionais que projetam mais de

um homem público.

Em oportunidades ocasionais, após despachos longos, seguidos de conversas informais,

pude sentir o drama do Presidente. No meio dessas desavenças, dizia-me que dava, no

fundo, razão ao Deputado Brizola que “era um proscrito enquanto ele, Jango, fosse

Presidente, pois não podia aspirar nem à Governança da Guanabara, nem à Presidência

da República e, mesmo, a um Ministério".

Não esquecia, ainda, o Presidente, a ação do Deputado Leonel Brizola em favor de

sua investidura na chefia do Governo, quando da crise da renúncia de Jânio Quadros.

Também não esquecia o destino que o podia jogar em outras surpresas desagradáveis,

quando, então, obviamente, o seu cunhado estaria a seu lado.

Não era fácil ao Presidente governar com um Brizola a tiracolo, mas lhe era muito

difícil libertar-se dele, numa conjuntura que, todos os dias, apresentava novos

contornos, novas dificuldades e novos imponderáveis. Além dos laços afetivos, o ex-

governador dispunha de uma faixa parlamentar muito atuante e que lhe criaria muitos

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embaraços, de par com o jogo político do PSD, conveniente e sábio, e de uma UDN

frenética e ortodoxa nas suas indisposições eintransigências para com a pessoa do

Presidente.

Quando a última crise surgiu, o Presidente estava empenhado numa dura batalha.

Despachava emissários para o Rio Grande do Sul, onde os seus amigos estavam sendo

alijados do PTB, pela ação direta do Deputado Brizola. O Sr. João Caruso não poupou o

Presidente nem mesmo pela imprensa.

Mesmo assim, o Presidente ainda não se dispusera a proceder a uma derrubada dos

correligionários do Deputado Brizola das posições federais que ocupavam no Rio

Grande!

O sentimentalismo atrapalhava os seus passos e a insegurança dos seus apoios

políticos o impedia de atitudes mais incisivas. Preocupava-se em ver arrebatada, do seu

comando, a liderança sindical e mesmo popular, como se impressionava bastante com a

hibridez de muitos dos seus amigos, entre ele e Brizola.

Por mais de uma vez me dizia, rindo, que falasse ao Almirante Aragão para não se

influenciar muito com o Brizola, não esquecendo que a sua promoção e o posto-chave

que ocupava eram resultantes da sua confiança e da sua amizade!

A cada entendimento que sabia ter existido entre o Deputado Brizola e generais

amigos do Governo, promovia sempre reuniões em Jacarepaguá, como que para

desfazer qualquer influência estranha à sua orientação... Era uma vigília permanente na

defesa de sua posição de comando.

Através do Ministro Egídio Michaelsen, fez discretas gestões para que o ex-

governador viajasse ao exterior, procurando uma folga para melhor se arregimentar e

adotar medidas que pudessem eficazmente refazer sua influência na área do centro,

cujas desconfianças aumentavam a cada pronunciamento do cunhado.

No "affaire" Brizola x Calmon, se bem que efetivamente se inclinasse pelo

primeiro, como Presidente sabia bem as conseqüências, para o seu Governo, que

adviriam com uma cadeia de jornais e rádios em oposição, dando guarida a todos os

destemperos dos seus inimigos rancorosos e tradicionais. A mim, dizia sempre que não

podia esquecer que o velho Assis Chateaubriand sempre abrira os seus jornais, revistas,

rádios e TVs para a mais ampla cobertura às suas campanhas. O seu reconhecimento ao

"Velho Capitão" já havia tomado corpo em muitas ocasiões e uma delas com o meu

testemunho. Para a eleição do jornalista Assis Chateaubriand ao Senado da República,

pela Paraíba, todas as facilidades foram concedidas, inclusive a instalação do SAPS, no

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meu Estado. O Presidente sempre conferia ao imperador dos "Associados" todas as

honras e deferências.

Ainda hoje, João Calmon guarda rancores do Presidente por não ter desmentido as

afirmações do Deputado Leonel Brizola que, num programa de televisão, declarou ter o

Sr. João Goulart lhe dito que "o Deputado João Calmon era um picareta e vigarista".

O Presidente me contou o episódio que se passara na intimidade do lar do ex-

governador, quando este, muito amargurado com os insultos que estava recebendo e

revelando a sua disposição de ir até o desforço pessoal, ouviu do seu cunhado que

"devia se voltar para as suas campanhas reformistas, motivação de sua eleição à

Câmara, deixando de mão picaretas e vigaristas". Não personalizara, o Presidente, nem

se dirigira a A ou a B. Generalizara, procurando conter o cunhado e despertar nele

novos rumos de ação que o afastassem de uma área a que estava ligado desde o Governo

de Getúlio Vargas.

Sei que o Presidente tinha vários amigos nos "Associados". Era amigo de Murilo

Marroquim, de Pinto Nazário, de Edmundo Monteiro, de Benedito Coutinho e muito

grato ao Leão Gondim. A este último, vendo páginas de O Cruzeirocom reportagens

sobre a sua família, não escondia a sua satisfação, em meio às referências mais

elogiosas. A um Nehemias Gueiros, por exemplo, tinha admiração e respeito,

considerando-o correto e dos melhores conselheiros do velho Chateaubriand, na "via-

crúcis" de sua enfermidade.

Esta discrição não impediu, entretanto, que o Presidente continuasse alvo do

"bombardeio" dos "Associados" e o levou à mesma situação de alvo de Panfleto jornal

do Deputado Leonel Brizola, que dedicava 80% de sua matéria às críticas ao Governo.

Um dia, o Presidente, com umexemplar de Panfleto. me dizia: – "Pois é, seu Jurema, o

Brizola em vez de se atirar contra nossos inimigos comuns, contra a Oposição e os

nossos adversários pessoais, dispersa o seu tempo, as suas tintas, o seu papel e os seus

adjetivos comigo. Logo comigo!"

Os incidentes de Natal (R.G. do Norte), com o General Andrade Muricy, e os da

Guanabara, com o General Amaury Kruel, muito preocuparam o Presidente. San Tiago

Dantas e Antônio Balbino, os seus dois mais íntimos Ministros, também não eram

poupados, aumentando as aperturas de Jango.

Tudo isso provocava efeitos diversos, tanto na área do Governo como na da

Oposição. Tanto em uma como na outra, ninguém acreditava na veracidade desses

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desentendimentos, achando quase todos que tudo não passavam de cenas previamente

arquitetadas.

Na verdade, eles existiram e foram muitos. Se a posição radical do Deputado

Leonel Brizola ampliou a frente de combate ao Presidente, dentro de casa o efeito era

outro, mas igualmente.danoso, pois dividia as bases de sustentação política do Sr. João

Goulart, enfraquecendo-as e criando embaraços irremovíveis no Partido Social

Democrático.

Creio até que a animosidade do ex-governador gaúcho contra o ex-Presidente

Juscelino Kubitschek era uma das fontes inspiradoras dessas atitudes provocadoras de

desagregação dos esquemas políticos do Presidente. Reforçadas eram, sem dúvida, pelo

sentido competitivo. A sucessão presidencial de 1965, mesmo com as dificuldades

constitucionais, não saía da cabeça do Deputado Leonel Brizola...

Os bastidores do Palácio ferviam. A indecisão do Presidente se refletia nos quadros

dos seus amigos e companheiros de situação. Ninguém sabia, ao certo, como. pisar

neste terreno familiar.

A inteligência e a acuidade política de San Tiago Dantas, a sua vivência com

ambos, a sua independência intelectual e o seu senso da realidade brasileira não

conseguiram ultrapassar as dificuldades que se apresentavam para manter unida uma

frente de governo que seria invencível pela sua irradiação e consistência no País. Todas

as suas tentativas sofreram o processo corrosivo de casos, fatos e coisas irremovíveis.

As esquerdas, sem liderança una e única, não lhe davam apoio total. As

desconfianças do centro mais se acentuavam. No PSD, o entusiasmo pelo Governo mais

se esvaecia. No pr óprio PTB, o choque de alas o enfraquecia. Nos partidos menores, aos

poucos se desgarravam elementos que eram preciosos para as combinações políticas.

Esse era o quadro, para o qual contribuíam a imaturidade do Deputado Leonel

Brizola e a indecisão do Presidente João Goulart.

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IX - Jango e Carvalho Pinto

NÃO eram boas, realmente, as condições do Governo, na última reformulação do

seu Ministério. A presença de Carvalho Pinto foi muito bem rebuscada. A sua vida

pública, o seu conceito, a sua formação política e a sua significação paulista revestiam o

seu nome de uma autoridade da qual estava carente o Governo.

Tendo, em São Paulo, um Adhemar de Barros do outro lado, além da UDN

paulista, minoritária, sem dúvida, mas atuante e de muito efeito nas hostes

oposicionistas nacionais (haja vista a pessoa do Deputado Herbert Levy, seu

presidente), o Governo precisava de um nome daquela categoria. Ainda representava

ele, nas ambições que se sabia ter, com relação à sucessão presidencial de 1965, uma

pedra de alto valor no xadrez político, pois se constituía em uma ameaça potencial às

aspirações de Magalhães Pinto,de Juscelino Kubitschek e do próprio Adhemar de

Barros, além de checar, em cheio, a candidatura do Sr. Carlos Lacerda, naquilo que

poderia exprimir, no seu campo ético, de moralismo demagógico.

A saída de San Tiago Dantas da Pasta da Fazenda perdera, assim, em muito, pelo

menos naquilo que poderia representar como oportunidade para o redobramento das

críticas radicais ao Governo. As classes produtoras não teriam como se afligir e

ninguém poderia negar ao Governo o acerto da escolha, sob todos os sentidos.

Tanto é assim que a Oposição começou a investir contra o Professor Carlos Alberto

de Carvalho Pinto, pelo fato de ter aceito participar de um Governo "tão

comprometido"... Daí, passou logo às investidas no setor da intriga, num divisionismo

que, apesar de estarem, o Presidente e o Professor, prevenidos, começou a surtir efeito,

de logo. E ainda mais atingiam os seus objetivos essas críticas, quando, nos círculos

políticos governistas, várias correntes, entre elas a nacionalista, não tinham a menor

simpatia pelo estadista paulista.

Ouvi do ex-Governador Brizola críticas acerbas ao Presidente, pela sua escolha.

Dizia-me,em tom veemente, que "a opinião pública jamais compreenderia as intenções

de um Governo Nacionalista que era integrado por homens comprometidos com os mais

poderosos grupos econômicos do País, como Carvalho Pinto..." Ia ainda mais longe, na

paixão de um combate que mais tarde se revelava pessoal, com a sua aspiração à mesma

Pasta, confirmada pelo próprio deputado gaúcho.

Toda a Frente Parlamentar Nacionalista fazia restrições se bem que, alguns meses

seguintes, passasse a uma moderação quase de apoio tácito. O Professor Carvalho Pinto,

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com a sua fidalguia, com a sua paciência e com o aprumo em que pautava a sua atuação

no Ministério da Fazenda, granjeou logo boa corrente favorável no Parlamento.

Era, entretanto, o Professor, um ingênuo nos meandros da política e muito

desinformado dos seus bastidores. Não possuía a malícia necessária para enfrentar os

enredos de todos os Governos, nem a sagacidade necessária para driblar os seus

competidores, que também os há em todos os Governos, açulados pelo reformismo do

Presidente, que já, em tão pouco tempo, organizara o quinto Ministério.

Além do mais, entre o Presidente e o seu Ministro, não havia a menor intimidade.

Tratavam-se cerimoniosamente e, em muitas oportunidades, aquele, para fazer chegar o

seu pensamento ao Professor Carvalho Pinto, utilizava-se de mim ou de Darcy Ribeiro.

Força é confessar o prestígio que desfrutava o Professor Carvalho Pinto nos

primeiros meses de sua gestão. Nas reuniões ministeriais, do Presidente ao Chefe da

Casa Militar, todos o tratavam como Governador, Professor, com o maior

acatamento e respeito. Todos consideravam o Professor como a figura marcante do

Ministério e isto, paradoxalmente, ia ampliando as distâncias entre ele e Jango, porque

as intrigas e o combate de bastidores só são destroçados frente a uma amizade

consolidada e que inspira confiança integral.

Lembro-me que, nas grandiosas manifestações prestadas ao Presidente pelo povo

de Pernambuco, quando ali fora com todo o seu Ministério, o Professor Carvalho Pinto

não apenas era muito aplaudido, como requestado, freqüentemente, pelo Chefe do

Governo para estar ao seu lado.

Os governadores de Estado, por sua vez, não largavam o Ministro da Fazenda, nas

suas peregrinações entre o Presidente e este.

Os Ministros Militares dispensavam ao Professor iguais deferências, sentindo todos

que o lugar de San Tiago Dantas havia sido ocupado e preenchido totalmente.

Não bastavam, entretanto, essas manifestações de apoio e prestígio. A duração

delas é muito efêmera nos quadros da política. Se a humildade é necessária à

consolidação de uma posição,ação e integração são, por outro lado, requisitos essenciais

ao seu fortalecimento.

Em meio ao combate mantido pelo ex-Governador Brizola, nos últimos dias do

Governo, aumentado em face das perspectivas de nova alteração nos quadros

ministeriais e da possibilidade anunciada de o seu nome ser o preferido do Presidente

para substituir o Professor Carvalho Pinto, começaram a surgir os "casos". Removidos

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os primeiros, sempre deixam mossas que agravam os últimos, até se transformarem no

último mesmo.

Sempre advertia o Professor Carvalho Pinto, dizendo-lhe que éramos 15 Ministros,

num País de 75 milhões de habitantes, por isso era natural a chusma de candidatos aos

nossos postos... Era preciso ser Ministro até o último dia!

Certa vez lhe disse, até em tom irreverente ao plano a que sempre obedeciam as

nossas palestras muito cordiais, que precisava ser mais agressivo com os seus

adversários e mesmo competidores.

Contava-me, muito contrariado, que o Deputado César Prieto, muito falado naquela

altura para ser Ministro da Fazenda ou mesmo da "Arrecadação", chegara até a lhe

telefonar, solicitando uma sala no Palácio da Fazenda para a instalação do Ministério

Extraordinário para os Assuntos de Fiscalização e Arrecadação. Tratara, a ele Ministro,

em tom de amigo fraterno e afirmara que havia sido convidado e que só aceitaria a

missão que "era da mais alta responsabilidade" se contasse com todo o seu apoio... Pela

leviandade revelada, cheguei a dizer ao Professor Carvalho Pinto que, a quem me

pedisse sala para instalar Ministério dentro do meu, mandaria procurar na casa de...

Acrescentei que os nossos cargos, em comissão, indicavam a sua natureza temporária,

mas que deviam ser exercidos com toda a força e na plenitude das suas prerrogativas.

Acrescentei que nunca havia indagado do Presidente se ia alterar, em parte ou no todo, o

Ministério, mas que os possíveis candidatos a ele, que aguardassem com paciência, pois

eu seria Ministro até o último momento.

Repeti a cena para o Presidente, certa vez, e ele disparou na risada, dizendo-me que

o Professor devia ter respondido assim mesmo... Nessa oportunidade, contou-me que

havia ficado constrangido quando, um grupo numeroso de deputados do PTB, lhe havia

entregue um memorial de solicitação para a nomeação do Deputado César Prieto como

Ministro Extraordinário para Assuntos da Arrecadação. Acrescentou que o interessado

estava presente, pelo que havia respondido que, efetivamente, seria com o maior prazer

que receberia o seu conterrâneo, parlamentar e correligionário, mas que precisava,

primeiro, fazer as devidas consultas ao Ministro da Fazenda. Afirmou-me que fora a

única saída que tivera, pois não quis desgostar um amigo e companheiro.

Mais tarde, já na gestão Ney Galvão, recrudescendo o movimento do PTB com o

fim claro de incompatibilizar o Ministro e fazê-lo demitir-se, contou-me o Presidente

que o parlamentar gaúcho havia lhe levado o decreto já lavrado em papel oficial da

Presidência e, em termos tais, que o Ministro da Fazenda passaria a ser um simples

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guardião do Palácio da Fazenda... Acrescentou-me o Presidente, em tom definitivo, que

jamais nomearia candidato tão renitente para Ministro de Estado.

Continuando o Professor Carvalho Pinto sem a habilidade política necessária a um

cargo eminentemente político como o de Ministro de Estado, as coisas foram piorando.

Já o Presidente, depois do terceiro pedido de demissão, removidos todos por

interferências minha e de Darcy Ribeiro e por esclarecimentos do próprio Chefe do

Governo, dizia-me que já não suportava mais despachar com o seu Ministro da Fazenda.

Numa das ocasiões mais duras desses pedidos de exoneração, mostrando-lhe como

o Presidente não tinha o desejo de afastá-lo da Pasta, no caso da rumorosa entrevista

concedida à revista Manchete contei-lhe a piada que o Deputado Doutel de Andrade,

líder do PTB, construíra com a sua fabulosa imaginação. Doutel fora despachar com o

Presidente, em meio à atoarda provocada pela entrevista. O Presidente, com a maior

intimidade, que tinha com o seu antigo secretário particular e seu amigo de verdade,

perguntou-lhe: – "Leste a tal entrevista deManchete? Resposta de Doutel: – "Não,

Janguinho, e tu, leste?"...

Um dos aborrecimentos maiores do Presidente e que, sem dúvida, mais concorreu

para aumentar a sua indisposição para com o Professor, foi o provocado pelas

postulações dos governadores, para ajudas financeiras aos Estados. Estados realmente

carentes, de receitas comprometidas com as despesas, atingidos duramente pela

inflação, permaneceriam numa estagnação que os levaria até ao caos social se não

contassem com os auxílios federais. Nas minhas viagens aos Estados, em contacto com

os governadores, secretários de Estado e correligionários e amigos, pude sentir, em cada

um, ressentimentos profundos com relação ao Presidente. Das reuniões freqüentes com

o Chefe do Governo, nada de positivo havia surgido. Os planos apresentados

continuavam nas gavetas do Ministério da Fazenda. O tratamento de Jango era um, e o

do Ministro da Fazenda, outro inteiramente oposto. Davam entrevistas, logo após as

audiências especiais com o Presidente, anunciavam o atendimento das suas

reivindicações, trombeteavam apoio e assistência do Governo Federal e... nada do

Ministro da Fazenda, que permanecia cada vez mais trancado, com os cofres do

Ministério ainda mais hermeticamente fechados.

Um dos que mais estavam irritados com o Governo Federal era o Governador

Magalhães Pinto que, por intermédio do seu secretário, Deputado Monteiro de Castro

fez sentir a mim, no Ministério da Justiça que "à insensibilidade do Ministro Carvalho

Pinto, Minas havia recorrido em vão e, com isso, ia marchando para o completo caos,

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devendo mais de 15 bilhões de cruzeiros e com um funcionalismo atrasado uns 8

meses". Fiz "démarches" junto ao Professor, devidamente autorizado pelo Presidente e o

máximo conseguido foi o envio, até aquele Estado, de dois observadores, um do

Ministério e outro do Banco do Brasil.

Mais tarde, depois do malogro do Estado de Sítio, o Governador Magalhães Pinto

atribuía a mim o fracasso das negociações com o Ministério da Fazenda, atribuindo-me

ação contrária às pretensões do Estado de Minas, como vingança pela sua posição

desfavorável à proposição do Governo. São as injustiças que marcam a vida pública.

Ossos do ofício...

Não sabia o governador mineiro que o Professor Carvalho Pinto me afirmara que o

que o Governador Magalhães Pinto desejava não era nada mais nada menos do que um

Shangri-La para Minas, pagando todas as suas dividas, pondo-se em dia, aumentando os

depósitos em seus bancos e aparecendo como candidato ideal para “salvar a República"

...

Também incomodava o Presidente o fato de jamais ter o Professor Carvalho Pinto

se manifestado em defesa do seu Governo, apesar das constantes amabilidades do

Presidente ao seu Ministro da Fazenda, sempre um dos raros citados em seus discursos.

Sentia, o Presidente, que o Professor, ao que parece, desejava apresentar-se à

oposição e à própria Nação como um fiscal do seu Governo e que se nada de mais grave

acontecia era porque ele, Carvalho Pinto, não deixava. Presumia, o Presidente, que o seu

Ministro da Fazenda estava apenas aproveitando o cargo para revestir a sua candidatura

a Presidente da República, em termos que pudesse ser apoiada pela UDN, evitando

tanto quanto possível vinculações muito estreitas com a própria ação política do Sr. João

Goulart.

Acreditava eu, entretanto, que o Professor Carvalho Pinto, político de outra estirpe

e de formas, métodos e práticas do "amenismo político" (criação do ex-Deputado

Andrade Lima Filho, de Pernambuco), não era homem para a polêmica e nem tampouco

um político partidário. Não pertencia nem ao PSD, nem ao PTB.

Dediquei muito do meu tempo a evitar que as coisas se agravassem entre o

Presidente e o seu Ministro da Fazenda. Nunca acreditei que o Presidente nomeasse o

ex-Governador Brizola para Ministro da Fazenda. A boataria desenfreada não merecia

do Presidente um desmentido formal, mas fazia parte do seu jogo para manter a Frente

Nacionalista e os seus líderes em constante expectativa de maiores agrados, a fim de

que as dificuldades não aumentassem, tanto na área parlamentar como na sindical.

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Tanto assim é que, quando recebeu, o Presidente, a carta do último pedido de

demissão do Professor Carvalho Pinto, testemunhei dois fatos incontestáveis. Já havia

transmitido ao Presidente as informações confidenciais, que me chegavam de São

Paulo, pela manhã, que o seu Ministro da Fazenda iria demitir-se, irrevogavelmente.

Ante as indagações do Presidente, disse-lhe que atribuía a responsabilidade à boataria

sobre a nomeação do ex-Governador Brizola e às anunciadas mudanças ministeriais.

Pediu-me sugestões para evitar que o pedido fosse concretizado. Posteriormente,

mandou Darey Ribeiro ao Palácio da Fazenda para dar todas as explicações ao Professor

Carvalho Pinto, mas este já concedia entrevista coletiva.

Quando Darey Ribeiro trouxe a carta do Professor Carvalho Pinto, presentes

apenas,numa das dependências privadas do Palácio das Laranjeiras, eu, Valdir Pires,

Consultor Geral da República, e o próprio Darey, o Presidente João Goulart, sem ter

lido ainda a carta, pediu ao seu Chefe da Casa Civil para ligar para o Dr. Brito Pereira,

diretor da Imprensa Nacional. Foi recomendando, pausadamente: "Mande publicar um

ato, concedendo exoneração ao Professor Carlos Alberto de Carvalho Pinto. Publicação

imediata. Mande publicar outro, nomeando...(houve suspense e todos pensaram,

contaminados pela boataria, que fosse Brizola) Ney Galvão para Ministro da Fazenda".

Darey Ribeiro ainda perguntou se era interino, como o Ministro do Comércio, para

responder pelo Ministério da Fazenda". A resposta foi taxativa e peremptória:"Não,

definitivo".

O Dr. Ney Galvão se achava em casa, absolutamente alheio, e o primeiro telefonema

que recebeu anunciando o fato foi o de "Pedrinho" (Pedro de Castro) que, à minha saída

da sala, perguntou-me a quem o "patrão" havia nomeado para Ministro da Fazenda.

O próprio Professor Carvalho Pinto se surpreendeu, pois o seu secretário, Dr. Hélio

Bicudo, em conversa telefônica comigo, ao ter notícia da nomeação do Dr. Ney Galvão,

fez igual pergunta à do Darey Ribeiro, se era interinamente.

Para amaciar o ex-governador gaúcho, foi chamado o Deputado Lamartine Távora,

PTB de Pernambuco, que ouviu muitas horas de argumentação.

Dias depois, regressando de Brasília, após ter tido vários contactos com deputados

nacionalistas e brizolistas, disse ao Presidente que o ambiente era muito hostil ao Dr.

Ney Galvão, mesmo nas suas hostes mais afeiçoadas e, principalmente, da parte do

Deputado Leonel Brizola que fazia as mais sérias restrições ao nome do novo titular da

Fazenda.

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Tranqüilo, o Presidente me. dizia que, na sua investidura na Presidência, ainda em

Porto Alegre, solicitara do seu cunhado um nome para compor o Ministério, pois queria

retribuir, com demonstrações inequívocas, o papel e a ação corajosos que tivera na

campanha da legalidade. O Governador Brizola, na época, havia lhe dito: "Não tenho

nomes. Leva o Dr. Ney Galvão para o Banco do Brasil. É um grande brasileiro,teu

amigo e meu".

A demissão do Professor Carvalho Pinto que, em outras oportunidades era sempre

interpretada como desintegração do Governo, na hora em que foi concedida, coincidira

com a carta que o Presidente recebera do Presidente dos Estados Unidos, pela qual a

grande Nação abria créditos de confiança ao Brasil e ao seu Governo.

As perspectivas de êxito no processo de reescalonamento, que se desenvolvia em

Paris, enchiam o Presidente de otimismo.

A nau do Estado havia atravessado todas as procelas e navegava de velas pandas, a

porto seguro, mesmo sem um homem como Carvalho Pinto, cuja participação no

Ministério, de início, era uma espécie de aval para a oposição e para a própria Nação.

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X - Jango e o Parlamento

JÁ é popular o refrão que diz que, na democracia, cada povo tem o Governo que

merece. Impossível e mesmo ilógico é exigir-se, de um povo cheio de deficiências de

formação étnica e histórica e de caráter diversificado ecologicamente, virtudes integrais

nos seus quadros direcionais. Se há a verdade democrática e se aceitamos como

verdadeiro o pronunciamento das urnas, o que se espelha no Parlamento, nas

Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, no Judiciário e no Executivo, não pode

se distanciar em nada da fisionomia política e popular do País.

Exigir-se uma Câmara de Deputados como se fora uma Congregação Mariana, tão

pura como o manto da Virgem, é querer a distorção de uma realidade que não pode ser

refletida a não ser na exatidão de todas as suas cores, contornos e "nuances". Seria

querer o direito puro numa sociedade que, sem ter atingido o seu nível- teto, ainda

requer a força como elemento coadjuvante do direito.

O nosso Parlamento, sem ser uma Casa de Orates, é um mosaico, entretanto, de

todos os defeitos, tendências e grandezas de uma nação que ainda luta, quatrocentos

anos após sua descoberta, pelo ajustamento de suas fronteiras econômicas com as

fronteiras políticas que a audácia dos bandeirantes ampliaram para muito além das

nossas imediatas possibilidades materiais.

Em todas as organizações sérias deste País, como a Igreja, as Forças Armadas e as

Classes Produtoras, há diretivas, normas, regulamentos e dogmas que expõem os seus

infratores às sanções espirituais e temporais. Há rigor e disciplina nos seus códigos para

a defesa da intangibilidade de princípios. Mesmo assim, não se consegue evitar que

incidentes quebrem a sua unidade moral, espiritual, disciplinar e até ética, não

contaminando nem maculando, sem dúvida,quaisquer desses incidentes, as suas

estruturas e os seus desígnios.

Como esperar que um Parlamento, constituído pela manifestação popular tão ao

sabor da instabilidade emocional e dos estados de espírito e degradação de

cultura e de educação, surja sempre perfeito, intangível às fraquezas humanas?!

Daí por que todos os governantes, que menosprezaram o Parlamento, encontraram

sempre percalços em seus caminhos, quando não se perderam completamente nos rumos

que se traçaram. Desprezando o Parlamento, o Sr. Jânio Quadros, esquecendo o

exemplo de Café Filho, viu a sua renúncia se efetivar sem reações em qualquer parte do

Pais, esvaindo-se, totalmente,os seus seis milhões de eleitores que a aceitaram sem

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maiores complicações para a ordem pública. Era, apesar de todos os defeitos de

métodos e processos a que obedece a sua formação, a integração do Parlamento com o

povo, de modo a refletir-se, numa reciprocidade sincronizada, a posição e a

determinação de cada um.

Com o Presidente João Goulart, reproduzia-se o mesmo fenômeno político. À

medida que decorria o seu Governo, abria-se uma distância entre ele e o Parlamento. Os

pecados eram recíprocos. Nem o Parlamento queria atender aos reclamos reformistas da

hora social, nem o Presidente queria compreender que uma Assembléia só decide

soberanamente, quando amadurecidos ficam os problemas em equação. Isso porque

sofre ela, como todos os organismos vivos de uma sociedade, as formas de pressão mais

variadas, mais sutis, mais fortes e até mais inconseqüentes.

Iniciado o seu Governo no regime parlamentarista, os choques foram inevitáveis.

Disputavam, Parlamento e Presidente, o mando. O Presidencialismo estava já no gosto

do povo e este se acostumara, nos 65 anos de Império e nos

40 de República, ainda mais com a presença, por mais de 20 anos, de Getúlio

Vargas no seu convívio direto, a ouvir um só Chefe. O patriarcalismo da sociedade

brasileira dera consistência ao Presidencialismo.

Esses choques se desenvolveram até a nova alteração constitucional, com a

restauração do Presidencialismo. Na Câmara, sobretudo, ficaram ranhuras. Ainda mais,

da convivência parlamentarista, a UDN e o PSD se vincularam muito, distanciando-se

ambos do PTB. Com o Jango novamente Presidente, em toda a plenitude constitucional,

as relações do Executivo com o Congresso sofreram novos impactos.

A liderança Tancredo Neves, apesar da inteligência e da habilidade política do seu

titular, atuava com muita discrição, sentindo-se que faltava entusiasmo e mesmo

confiança nas suas bases de sustentação no Plenário.

Um líder de Governo, sem o apoio da bancada mineira do PSD, a mais numerosa,

não se poderia jogar, livremente, no Plenário. Oliveira Britto, por iguais motivos,

também, anteriormente, era apenas líder no nome. Os mineiros pessedistas continuavam

desconfiados com o Presidente que vivia de namoros com o Governador Magalhães

Pinto. Por outro lado, o PTB, arrastado pelo Deputado Brizola, apesar das moderações

de Bocayuva Cunha e depois de Doutel de Andrade, mantinha-se arredio à aliança com

o PSD.

Todas as tentativas do Presidente, no sentido de conseguir maioria para a

aprovação da reforma agrária, tinham entrado em compasso de espera. As conversas se

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prolongavam indefinidamente e nunca se chegava a uma conclusão satisfatória. Sentia-

se que a batalha de Plenário e de bastidores era mais entre a Frente Parlamentar

Nacionalista e a Ação Democrática Parlamentar do que mesmo entre Governo e

Oposição.

Mais uma vez a indecisão do Presidente era fator desagregador para a composição

das suas forças políticas.

Houve momentos em que o PSD aceitou determinada fórmula para a aprovação da

reforma agrária. Entre o radicalismo de Brizola e a moderação do PSD, o Presidente ora

se inclinava por um dispositivo do anteprojeto, ora se mostrava indiferente, ora

suspendia as conversações.

Nesse clima, medrou a ação dos conservadores e reacionários que não aceitavam

qualquer reforma da Constituição. Cada dia, ia-se tornando mais difícil a aprovação de

algo que implicasse na alteração do texto constitucional.

Irritava-se o Presidente com a situação no Congresso e o campo para as intrigas e o

trabalho divisionista foi aberto amplamente.

Passou o Presidente a espaçar as suas audiências com parlamentares, recebendo

uma minoria deles. Recebia só aqueles mais ligados e pelos quais tinha maior confiança

e amizade. Os líderes se enfraqueciam de modo a não terem força para conduzir

qualquer projeto de interesse do Governo. Enfraquecia-se o Governo, enfraquecia-se o

Congresso, enfraquecia-se o Regime.

No fim do exercício de 1963, pouco o Presidente Ranieri Mazzilli teve a

apresentar. O noticiário da imprensa apontava a pasmaceira geral contaminando todas as

hostes governistas e só dava conta de ataques ao Presidente, ataques sem resposta. Os

Ministros de Estado ficavam em pior situação, inteiramente expostos ao combate

veemente e até aos insultos, sem qualquer cobertura, ainda mesmo que fossem das mais

injustas as acusações e as críticas.

Várias tentativas foram feitas para melhorar as relações do Executivo e Legislativo,

mas as correntes janguistas e não janguistas na própria frente política governista já

atingiam a exacerbação. O Presidente, apesar da sua imensa capacidade de ouvir, da sua

paciência mesmo até com os mais ferrenhos adversários, não sentia o problema e

parecia mais confiante na opinião pública, nos aplausos populares por onde passava e no

seu esquema militar do que nas composições políticas.

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Havia momentos em que o Presidente se afigurava, até mesmo aos seus mais

íntimos, como uma verdadeira esfinge. Ninguém podia saber o que queria, o que

desejava, o que planejava.

Vi e senti a inquietação de Tancredo Neves. Acompanhei as incertezas de

Bocayuva Cunha e percebi toda a tortura de Doutel de Andrade, na busca de uma

interpretação do pensamento e da vontade do Presidente.

Quando da votação do Estado de Sítio, tive, por várias vezes, que telefonar para o

então líder do PTB, Bocayuva Cunha, orientando-o, pois sentira que, em determinados

momentos, estava ele se inclinando para decisões que não eram mais aquelas que

interessariam o Presidente. Soube que, alertado por companheiros, numa reunião em

Brasília, sobre uma nota que divulgara, retirando o apoio do PTB à mensagem do

Estado de Sítio, confessara que havia sentido que o Presidente, realmente, desejava que

a mesma não fosse aprovada. Já naquela altura, o Presidente mudara e jogava todos os

trunfos na aprovação. Guardou ressentimentos do seu líder e creio que mais tarde, por

estes motivos, a sorte de Bocayuva Cunha na liderança havia sido lançada, perdendo

para Doutel de Andrade. Os Ministros Wilson Fadul, Oliveira Britto e Expedito

Machado, que haviam sido mandados a Brasília para ajudarem no bom êxito da

tramitação da mensagem, mal haviam iniciado as suas atuações e já eram surpreendidos

com notícias, logo depois confirmadas, de que o Governo iria retirar a referida

proposição.

Estes episódios e outros que se sucederam vertiginosamente dão uma idéia da

insegurança do Governo, no tocante a determinadas situações, como indicam um sem-

número de conselheiros que faziam do situacionismo uma verdadeira Torre de Babel.

Compreende-se que a função de governar não é tarefa fácil, nos tempos de hoje,

nem na América do Sul, nem em qualquer parte do Mundo. Nos países

subdesenvolvidos, então, a tarefa é gigantesca. A pressão das necessidades aumenta sem

limites, exigindo, de cada um que mantém parcela de poder, sacrifícios e lutas duras e

árduas.

Há que se exigir, entretanto, uma linha de ação que seja um denominador comum,

tangenciando todas as correntes que componham o Governo, de forma que não haja

predomínio de facções nem de grupos. Nem as forças centristas do Governo, sozinhas,

poderiam resolver nada em definitivo no Congresso, nem tampouco as forças

esquerdistas, que eram minoria apesar de muito atuantes. Havia que compô-las, com

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determinação e autoridade, no sentido do bem público e da segurança do próprio

regime.

Assistia-se, no Plenário, a cenas que davam bem uma idéia da confusão

generalizada. Um orador pessedista era mais aparteado favoravelmente por udenistas da

primeira linha do que pelos seus companheiros de bancada que se deixavam ficar

quedos e mudos, ainda mesmo que fosse para ficar a favor. Um orador petebista sofria

mais ataques, nos apartes, de aliados seus do PSD do que dos seus adversários da UDN

que passaram a assistir, de camarote, à desintegração do famoso bloco majoritário.

Da bancada pessedista mineira, por exemplo, surgiam mais críticas acérrimas ao

Governo do que de qualquer outro bloco oposicionista, tudo sob as vistas perplexas do

líder do Governo que, além de ser pessedista, era mineiro.

Por várias vezes, falei ao Presidente sobre o quadro parlamentar e, por várias vezes,

resolvia ele agir, convidando líderes e parlamentares do PSD e do PTB para almoços e

jantares no Palácio da Alvorada. As conversas se desenrolavam no tom mais cordial e o

Presidente ficava eufórico, julgando ter debelado as querelas. Acontece que, no dia

seguinte, na tramitação de problemas dos parlamentares pela Casa Civil e pelos

Ministérios, forças ocultas impediam as suas soluções e os desgostos afloravam

aumentados.

Entre muitos dos auxiliares do Governo, mais por inexperiência, predominava o

campo da amizade ou das ligações culturais e ideológicas sobre, mesmo, os interesses

políticos e do próprio Governo.

Vários foram os Estados atingidos por essa incompreensão e de cujas bancadas

parlamentares surgiram inúmeras vozes de protesto e de inconformação.

Inúmeros foram os governadores marcados por essa política afetiva, entregando-se

as posições federais, nos Estados, até a adversários e inimigos pessoais desses Chefes de

Estado.

Por diversas vezes, consegui neutralizar casos assim, mas faltava da Presidência da

República a ordem taxativa para não mais se reproduzirem.

Dessa maneira e de outras, iam correligionários do Presidente perdendo o

entusiasmo e cada vez a Câmara apresentava o aspecto de pelourinho do Governo, com

uma maioria omissa e já inquieta.

Faça-se um cotejo entre o Congresso de hoje e o Congresso de ontem. Na crise de

agosto, da renúncia do Sr. Jânio Quadros, o Congresso reagiu a todas as formas de

submissão e encontrou, com imaginação, a fórmula que uniu todos. Mais tarde, na

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seqüência de crises no sistema parlamentar, ainda o Congresso buscou, no plebiscito,a

solução amaciadora.

Na fase presidencialista do Governo de João Goulart, o Congresso não encontrou o

caminho e se deixou ficar na contemplação, quando uma ação efetiva teria levado o

Presidente para os seus braços, fortalecendo-se a democracia. Havia que se votar

alguma coisa, no tocante às reformas de base, do contrário, tanto o Executivo como o

Legislativo terminariam expostos ao descrédito, presas fáceis da subversão.

Aqui, no Peru, depois de meses de luta parlamentar, a Oposição, que é maioria,

votou afinal a reforma agrária, podada e até mesmo estiolada, mas o Governo,

compreendendo que o tema em aberto continuaria a expor e a enfraquecer não só a

Oposição mas o próprio Executivo, aceitou a Lei e já a está aplicando. no primeiro

passo para uma reforma de estrutura que conduza o país aos caminhos do fortalecimento

econômico. O Presidente Belaunde Terry disse à Nação que a Lei que recebera

representava apenas 25% do que havia solicitado ao Congresso, mas, mesmo assim, ia

pô-la em execução. O assunto saiu da arena e um fator de agitação desapareceu na terra

dos Incas.

A paixão foi mais forte do que o engenho e a arte que tanto brilho emprestam à

vida política brasileira e o resultado foi danoso à democracia.

Ferrero já dizia que a quebra da legitimidade provoca mais males do que todos os

males juntos os quais se queiram remediar.

No Congresso, ainda está a solução pacífica para os problemas do Brasil, desde que

os Presidentes de República com as suas forças se componham e com elas governem,

porque, apesar de tudo o que se diga, o Congresso é a única forma de se sentir o povo

no Governo!

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XI - A Revolução dos Sargentos

NA madrugada de 12 de setembro, com um "Avro", da FAB, pronto, no Aeroporto

Santos Dumont, 3ª Zona Aérea, para viajar ao Amapá, a fim de representar o Presidente

da República nas festas comemorativas do seu 20º aniversário de existência como

Território Federal, fui acordado pelo Brigadeiro Francisco Teixeira, comandante

daquela Zona Aérea. Na noite anterior, havíamos – minha mulher e três casais amigos e

mais minha filha e meu genro – participado de uma recepção promovida pelo casal

Epaminondas do Valle, por motivo do seu aniversário, de forma tal que dormira apenas

alguns minutos. Do outro lado do fone, o Brigadeiro Teixeira me dizia – 3 horas da

manhã – que havia anormalidade militar nas guarnições da Aeronáutica e da Marinha

em Brasília e que não podia precisar a sua extensão nem, tampouco, se o resto do País

estava em calma. Dei um pulo da cama e, já na porta, quando procurava um táxi,

chegava o meu carro oficial, com dois jornalistas Ariôsto Pinto, do "Correio da

Manhã"e um outro da "Última Hora" – e o Dr. Joffre Amado de Mello e Silva, meu

assessor técnico de gabinete e homem da minha melhor confiança. Não disse nada sobre

os acontecimentos e rumamos todos para a Base Aérea do Santos Dumont.

Ia imaginando o que, realmente, teria acontecido e procurava delinear as

providências que teria que tomar, pois o Presidente João Goulart devia estar em Pelotas,

aonde fora presidir inaugurações e receber homenagens em outras cidades gaúchas.

Sabia que de há muito havia descontentamento entre os sargentos das três armas, pois o

próprio General Jair Dantas Ribeiro me pedira, certa vez, para influir no adiamento do

julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do caso do mandato do Deputado Sargento

Garcia. Já haviam perdido os mandatos,antes, sargentos do Rio Grande do Sul e de São

Paulo. Dominava todas as guarnições, entre inferiores e praças, a idéia de conquistarem

o direito de votar e serem votados. Na Marinha e na Aeronáutica, conforme me haviam

informado os Ministros Sílvio Motta e Anísio Botelho, o ambiente também era de

insatisfação. Remoções de sargentos já tinham sido efetuadas pelos Ministros da

Guerra, tanto Amaury Kruel como Jair Dantas Ribeiro. Além do mais, era do meu

conhecimento que deputados apoiavam e estimulavam essas reivindicações. Na área

sindical, poroutro lado, o apoio era integral. O próprio Presidente, em discurso

pronunciado, já se havia manifestado favoravelmente ao direito de voto e de

elegibilidade dos sargentos. O que estava agitando, de imediato, toda a sargentada era a

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perspectiva de cassação do mandato do Deputado Sargento Garcia. Diziam até que os

sargentos afirmavam que esta decisão não aceitariam de forma alguma.

Ao entrar no portão da 3ª Zona Aérea, passei pelo primeiro susto, pois o Dr. Joffre,

sem saber de nada, olhando para a sentinela que se achava ao lado de um sargento,

todos embalados, dizia com a ênfase do Poder: – "Ministro da Justiça!". Não tinha eu

certeza se, naquela hora, também a revolta dos sargentos, que eclodira em Brasília, não

teria alcançado o Rio. Esperei a resposta que tanto poderia ser pacífica, com o gesto

normal de baixar a corrente para o carro entrar na área militar, como poderia ser de

guerra... Senti até o frio de um tiro ou a voz autoritária de uma ordem de prisão. Teria

que reagir, por honra do cargo. Um Ministro de Estado não poderia ser preso no começo

de uma revolta e por alguns rebelados. A autoridade não poderia ser desmoralizada.

Felizmente, a resposta foi pacífica e entramos. Alguns momentos depois,contava ao Dr.

Joffre minha agonia e apreensão de alguns minutos atrás e todos riram. Estavam eles

inocentes e só aos primeiros contactos com o Brigadeiro Teixeira tomaram, o Dr.

Joffre e os jornalistas, conhecimento de que não haveria mais viagem ao Amapá e

de que havia uma revolução a debelar. Do avião desceram todos os membros da

comitiva que me deveriam acompanhar ao Norte do País.

Convocados os meus assistentes militares, cada um ficou no seu posto de

observação. O Major Monte, no QG do Brigadeiro Teixeira; o Comandante Arthur

Benigno, no Ministério da Marinha; o Dr. Joffre, com o Cel. Nilton Moreira e a minha

secretária, Berenice Fernandes de Almeida, no Ministério da Justiça. Com o Cel.

Cromwell Medeiros e o Deputado Capitão José Lira, rumei para o Ministério da Guerra,

depois de participar de todos os contactos telefônicos do Brigadeiro Francisco Teixeira

que era vivo, rápido, eficaz e leal nas ordens de comando que expendia, por ordem do

Ministro Botelho, a todas as guarnições, inclusive às zonas aéreas em todo o País.

Naquela hora, 5 horas da manhã, já se tinha conhecimento de que a revolta estava

circunscrita a Brasília, que se achava quase totalmente ocupada pela sargentada da

Marinha e da Aeronáutica, embora permanecesse leal toda a guarnição do Exército.

Oficiais daquelas duas armas estavam presos pelos revoltosos e alguns civis, entre os

quais deputados, deviam também estar presos. Eram necessárias providências

preventivas em todas as bases navais e zonas aéreas, para impedir a propagação do

movimento.

Perto das seis da manhã, entrava eu no Ministério da Guerra. Estava no seu posto o

General Jair Dantas Ribeiro. Todo o seu Estado Maior a postos, também. Já haviam

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chegado tanques para reforço da guarnição do Ministério e numerosas ordens foram

dadas às guarnições para rigorosa prontidão e ordem de marcha para objetivos militares.

Sugeri ao Ministro da Guerra o patrulhamento de algumas áreas da cidade, inclusive os

Ministérios civis, assim como algumas repartições de importância. Havia greve bancária

e, através de alguns líderes sindicais, fiz chegar aos bancários a notícia do levante de

Brasília, sugerindo e aconselhando que a suspendessem imediatamente, para não

aumentar a confusão e evitar que as providências das autoridades militares pudessem se

estender até os sindicatos afim de prevenir desordens e agitações.

Pouco depois das sete horas, chegavam ao Ministério da Guerra os Ministros da

Marinha e da Aeronáutica. Todo o comando militar do Governo se achava reunido e

tomando providências sincronizadas. O General Jair era o comandante-chefe. Dava

ordens rigorosas para Brasília e para o resto do País. Seguro, pronto e incisivo, o

General Jair, pessoalmente pelo telefone e, posteriormente, pela radiofonia, determinava

ao Cel. André Fernandes, comandante de Brasília o General Fico achava-se também no

Rio Grande, acompanhando o Presidente da República – o cerco e a investida sobre as

posições dos rebeldes: Ministérios da Marinha, da Aeronáutica, aeroporto militar e civil,

acampamentos da Marinha e da Aeronáutica, Chefatura de Polícia, Sede da Empresa

Telefônica, Prefeitura e todos os demais pontos por eles dominados. Não esquecia de

nada, o General Jair. Vi, acompanhei e senti no titular da Guerra um comandante à

altura dos acontecimentos.

Já anteriormente, pouco depois de assumir o Ministério, com rápidas visitas a

Brasília, sentira o General Jair que a guarnição do Exército, ali estacionada, era

insuficiente, não apenas para preservação da ordem pública como para própria

segurança do Presidente da República. Fez seguir, então, para Brasília, contingentes de

pára-quedistas e carros blindados. Pediu-me para tranqüilizar e esclarecer o Supremo

Tribunal Federal e o Congresso, pois poderiam surgir explorações tendentes a

apresentar estes reforços como uma forma de pressão do Ministro da Guerra sobre a

Justiça e o Legislativo, em face do caso dos mandatos dos sargentos. Foi realmente essa

a salvação, na hora da revolta, pois,graças a esses contingentes, os Palácios da Alvorada

e de Despachos, a Granja do Torto, residência presidencial, o Ministério da Guerra e

todos os acampamentos do Exército puderam ser eficazmente defendidos e preservados.

A sufocação da revolução só pôde ser feita, naquele dia mesmo, graças à presença em

Brasília dessas tropas. O General tinha sido previdente e seguro, rápido e decisivo nas

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suas providências anteriores, fato que se ajustava às atitudes por ele tomadas durante

todo o dia da revolta dos sargentos.

Só por volta do meio-dia, foi possível o primeiro contacto com o Presidente João

Goulart. Já antes conseguira um contacto com o Prefeito de Pelotas, a quem pedi que

transmitisse ao Presidente todas as notícias e providências adotadas. Depois que o

General Jair falou com o Presidente, pelo telefone, falei eu. Notei que o Chefe do

Governo ficara surpreso em saber que o Sargento Prestes era o cabeça da amotinada.

Tinha ele confiança nesse sargento, pois, quando de sua investidura na Presidência da

República, fora o Sargento Prestes um dos mais atuantes na repressão da chamada

"operação mosquito", destinada a caçar o Sr. João Goulart no espaço, quando voasse, do

Rio Grande para Brasília, afim de assumir a Presidência da República.

Pediu-me o Presidente para distribuir notas à imprensa, às rádios e estações de TV,

esclarecendo que, de Porto Alegre, na.sede do comando do 3º Exército, estava em

contacto permanente com os Ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica, e que

chegaria ao Rio até o fim do dia. Tudo foi feito e as comunicações passaram a ser

divulgadas, com a assinatura do Ministro da Justiça e dos três Ministros Militares.

Durante todo o resto da tarde, a ação do Exército se fez sentir, em Brasília,

inflexivelmente. Um por um, caíram os focos rebeldes. As ordens do General Jair eram

terminantes e não admitiam parlamentações. Sentia-se bem o empenho do Ministro da

Guerra em terminar o movimento antes da chegada do Presidente. Preocupava-se ele,

ainda, em que ficasse extinto totalmente o movimento, com o justo receio de que se

propagasse pelo País, pois era bem conhecido o descontentamento que reinava na classe

dos sargentos, pelas razões, já tão públicas, que diziam respeito à sua representação

política.

Pela manhã e à tarde desse dia, o gabinete do Ministro da Guerra se encheu de

oficiais generais que iam hipotecar solidariedade ao seu titular. Sóbrio, sério, consciente

do seu papel de comandante-em-chefe do Exército, o General Jair Dantas Ribeiro

recebia a todos com discrição, sem extravasamentos de entusiasmo, ao mesmo tempo

em que não perdia o contacto com os seus auxiliares, informando-se, a cada momento,

da marcha das operações em Brasília e da situação em geral, nos Estados e Territórios.

Em dado momento, ouvi ordens severas, pelas quais o Ministro da Guerra

determinava que se bombardeasse o Ministério da Marinha, caso insistissem os

revoltosos em se manter de armas na mão. Estava o Ministério da Marinha cercado por

carros blindados. No Exército não havia surgido uma só indisciplina por parte dos

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inferiores. Era um só bloco de unidade, obedecendo a uma só voz de comando.

Os Ministros Anísio Botelho e Sílvio Motta, indignados com os seus contingentes de

Brasília que haviam aderido todos ao movimento, concordavam com todas as

providências do seu colega da Guerra. Do gabinete do Ministro da Guerra, os titulares

da Marinha e da Aeronáutica transmitiam ordens para os seus comandos no.resto do

País, revelando-se todos integrados com a ordem e a lei e preocupados, igualmente, em

sufocar rapidamente a rebeldia.

Muitos boatos surgiram através de telefonemas de Brasília, logo porém

desmentidos. As emissoras e estações de televisão passaram a ser logo controladas pelo

Cel. Scaffa, presidente do Conselho de Telecomunicações, que, obedecendo a instruções

minhas, fez sentir que só notas oficiais deveriam ser irradiadas a respeito dos

acontecimentos. Com exceção de algumas emissoras,de São Paulo, todo o setor de

telecomunicações colaborou com a restauração da ordem, sem difusão de notícias

sensacionalistas impróprias para a hora.

Já no fim da tarde, estava toda a situação dominada em Brasília e mais de mil

prisioneiros foram transportados para o Rio, sendo alojados em navios cedidos pela

Marinha, para este fim.

Várias lições foram extraídas dos acontecimentos pelos altos escalões do Exército.

Facilmente chegaram à conclusão de que, dificilmente, um movimento de sargentos

poderia levar a melhor, uma vez que faltava aos mesmos apuro técnico e tático para

dirigir operações de guerra. Não se podiam nivelar, sem dúvida, com oficiais

possuidores de cursos de aperfeiçoamento e de Estado Maior. Os sargentos haviam

tomado conta de quase toda a Capital da República e ficaram sem saber o que fazer.

Com a estação telefônica nas mãos, cortaram as suas ligações, ficando eles próprios

isolados uns dos outros, em pontos distantes da cidade. Com as emissoras de rádio em

seu poder, lacraram os microfones e nunca disseram ao povo por que estavam de armas

na mão. O Palácio do Planalto, com pequena guarnição, continuou nas mãos das tropas

legais. Nenhuma investida foi feita contra o Alvorada nem contra a Granja do Torto. O

Legislativo e o Judiciário permaneceram incólumes. Enfim, a revolução tinha, na

realidade, se revestido das características de um movimento sem direção, sem

consistência e, ao mesmo tempo, sem lideranças capazes. Alguns sargentos, intoxicados

pela preparação política e prevenidos contra a Justiça Eleitoral, que cometera o erro de

permitir registros de sargentos como candidatos para, posteriormente, cassar-lhes os

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mandatos, jogaram-se numa aventura que poderia ter tido conseqüências imprevisíveis,

não apenas para eles próprios como para todo o sistema democrático.

Na fase dos inquéritos, da apuração das responsabilidades e das punições, senti, em

contacto com os três Ministros Militares, a delicadeza do problema. A preocupação

predominante era a de que não se agravasse a situação. Notícias de insatisfação nas

bases aéreas e navais começaram a circular. Aqui e ali surgiam manifestações de

indisciplina, embora as autoridades agissem com serena energia e a mais viva

compreensão. Dizia-me sempre o General Jair que era preciso,.quanto antes, remover os

focos de inquietação, pois, não obstante a repressão ter sido feita rapidamente, cabia

agora ao Governo a adoção de medidas que neutralizassem as causas de agitação e de

desordem no meio inferior das três armas. Chegou a sugerir a aprovação, pelo

Congresso, de modificações do texto constitucional, pelas quais todo e qualquer militar,

fosse qual fosse o posto ou patente, candidato a qualquer cargo eletivo, devia ser

afastado da ativa. Assim, dizia -me ele, estariam equiparados soldados e generais aos

civis, podendo todos ser candidatos, desde que, a partir do registro, fossem afastados da

ativa.

Foi, o General Jair, sempre contra a anistia que já se esboçava em determinadas

áreas político-parlamentares, enquanto não se resolvesse o problema pelas suas raízes e

enquanto não fossem apuradas, devidamente, todas as responsabilidades. Os Ministros

da Marinha e da Aeronáutica concordavam inteiramente com o seu,colega da Guerra.

Para minimizar os efeitos da revolta na classe dos sargentos, habilmente, os

comandantes dos Inquéritos Policiais Militares foram concluindo suas investigações e

libertando aqueles que haviam apenas cumprido ordens. Soltaram em massa,

conservando presos os chefes. Dos mil detidos, ficaram apenas algumas dezenas. Muitas

baixas foram dadas a essa tropa rebelde e o chamado movimento dos sargentos, aos

poucos, se reduzia a uma ou outra manifestação logo reprimida. Sentia-se, entretanto,

que a grande maioria esperava que, pelo processo democrático, lhe fossem asseguradas

as garantias políticas e as faculdades reivindicadas de poder disputar mandatos eletivos.

Era evidente a interferência de políticos de vários partidos nesses contingentes das

Forças Armadas, mas claro estava que urgia uma providência de ordem legislativa, no

sentido de serem anulados os fatores que permitiam essas explorações.

Numa revolta de presos, numa Casa de Detenção, a primeira coisa a fazer é a

repressão, até violenta. Passada a refrega, faz-se necessária a investigação das causas.

Apuradas, cabe a sua anulação.

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Apesar de todo o sigilo natural, guardado pelas autoridades militares, várias

situações surgiram na área militar, requerendo não apenas ação repressiva, mas

prudência e muito tato. Sargentos da Aeronáutica, nas bases de Salvador e de Natal,

assim como, em menores proporções,em Belém, Recife e Porto Alegre, passavam da

insatisfação a atos de indisciplina e até de rebeldia. Os superiores, segundo informações

muito reservadas, estavam pernoitando em dependências isoladas dos alojamentos e

quartéis, todos armados de metralhadora. Na Marinha, a situação era a mesma,

inquietarão, intranqüilidade e desconfianças generalizadas entre inferiores e superiores.

Este quadro se agravava ainda mais com a sensível irradiação dessa insatisfação aos

quadros das Polícias Estaduais. Aliás, nas Polícias Estaduais o ambiente era ainda mais

propício, em face dos parcos salários que os seus membros recebiam, em Estados

pequenos como os do Norte e os do Centro e Oeste. Até rebeliões já tinham eclodido,

como as do Piauí e Rio Grande do Norte, cujos governadores contaram, de imediato,

com o apoio do Governo Federal, através da ação pronta e eficaz do Ministério da

Justiça e do Ministério da Guerra. Diga-se de passagem, mais uma vez o General Jair

agia com a prontidão e a perspicácia de um bom soldado. Tanto em Natal como em

Teresina, decorreram só poucas horas entre os telefonemas dos seus governadores ao

Ministro da Justiça e deste ao Ministro da Guerra, para as suas capitais serem

imediatamente ocupadas por tropas do Exército, regularizando-se a situação

rapidamente, com tranqüilidade para a população e com a restauração da autoridade dos

governantes.

Era inspirado nesses quadros que o Ministério da Justiça já designara um grupo de

trabalho para estudar normas legais para a assinatura de convênios entre a União e os

Estados, através dos quais seriam melhorados os vencimentos do pessoal das Polícias

Militares Estaduais, em bases justas e dignas para a própria função militar.

Tudo isso servia para uma análise verdadeira da realidade nacional e documentava

estudos e idéias no sentido da ação do Governo da União em favor dos Estados, vale

dizer, em benefício do País e da sua tranqüilidade e da preservação de suas instituições

democráticas.

Na noite do dia 13 de setembro, surpreendendo a todos, o Presidente João Goulart

chegava a Brasília, em vôo direto do Rio Grande do Sul. Desistira de viajar ao Rio.

Naturalmente para dar a impressão ao povo brasileiro de que, realmente, a ordem estava

restabelecida na Capital da República. Isto trouxe certa desconexão entre os

pronunciamentos do Presidente da República e os dos Ministros Militares e do Ministro

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da Justiça, com relação à revolução chamada "dos sargentos". A falta de contacto entre

eles, ainda no rescaldo dos acontecimentos do dia, ensejou uma situação não muito bem

recebida, quando o Presidente e o seu Chefe da Casa Civil se mostravam brandos com

os revoltosos e os Ministros Militares e o da Justiça se pronunciavam com energia e

severidade próprias de uma hora que poderia ser prenúncio de outros acontecimentos

desagradáveis.

Na realidade, entretanto, o Presidente da República apoiou todas as medidas

repressivas, os inquéritos e a apuração das responsabilidades, dando mão forte ao

General Jair Dantas Ribeiro nas providencias que achou de tomar, por todo o País, de

pleno acordo com os titulares da Marinha e da Aeronáutica, no sentido de prevenir

outros motins.

Esse episódio serve para ilustrar conclusões expostas nos últimos capítulos, quando

se evidencia que a ausência involuntária do General Jair Dantas Ribeiro foi, modus in

rebus, fator decisivo para o desenvolvimento e sucesso do movimento que depôs o Sr.

João Goulart, o qual, ao lado do seu Ministro da Guerra, costumava ser mais firme e

mais uniforme nas suas decisões.

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XII - Estado de Sítio

IA-SE reunir o Presidente com seus Ministros, no curso de uma greve dos

bancários que já se arrastava há mais de uma semana, incomodava todas as classes e

inquietava a Nação, quando o General Jair Dantas Ribeiro dá conhecimento a todos de

um reservado que o seu Serviço Secreto havia colhido. Era uma entrevista do

Governador Carlos Lacerda a um jornal norte-americano, altamente ofensiva às Forças

Armadas e ao Presidente. Visivelmente irritado, o Ministro da Guerra contou, de pronto,

com a solidariedade dos Ministros da Marinha e da Aeronáutica. Vários

pronunciamentos contundentes se seguiram àquela manifestação, considerada, por

todos, antipatriótica e, até mesmo, como um convite ao Governo dos Estados Unidos

para intervir em nossos assuntos internos. Solicitado o meu pronunciamento, sugeri que

os Ministros Militares ouvissem os seus comandos e, em seguida, voltassem à presença

do Presidente e dos demais Ministros, com a palavra das Forças Armadas sobre o

assunto, que eu reputava da maior gravidade para a própria segurança nacional. Fazia-se

necessário um esclarecimento à Nação, e este só poderia e só deveria ser dado pelos que

defendiam o regime, a paz e a integridade nacionais.

À tarde, em nova reunião, cada Ministro militar trouxe a sua nota. Cada qual mais

azeda e mais veemente, nas suas adjetivações e no seu repúdio à entrevista do

Governador da Guanabara. A do Ministro da Guerra, entretanto, foi a escolhida, pois

fora julgada não apenas mais serena e mais sóbria, como mais explícita e, no fundo,

com maior autoridade, obviamente, pelo que representava o seu titular em termos de

força militar.

Ainda me recordo que o Ministro da Marinha, Almirante Sílvio Motta, secundado

de logo pelo Presidente João Goulart, interpelou o Ministro da Guerra sobre quais

seriam as conseqüências, no caso de o Governador da Guanabara respondê-la. Insistiam

eles na tecla da desmoralização das Classes Armadas.

“Não teremos contemplação com inimigos da Pátria” – foi a resposta contundente

do Ministro Jair Dantas Ribeiro.

A nota, logo amplamente divulgada, teve a maior repercussão por toda a Nação.

Compreendendo a gravidade da situação, jornais simpáticos ao Governador da

Guanabara procuraram minimizar o fato, se bem que todos unanimemente, reprovassem

a atitude do Sr. Carlos Lacerda. A repulsa era geral e até as Classes Produtoras, muito

afins com o Governador, mostraram-se surpresas e contrariadas com atitudes lesivas aos

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interesses nacionais. Os banqueiros, que se mostravam irredutíveis com relação às

reivindicações dos bancários que se achavam em greve, logo, em reunião com o

Presidente João Goulart, acordaram no atendimento da maioria das solicitações dos

empregados e voltou, em seguida, à normalidade a rede bancária brasileira.

Atônito e perplexo com o seu próprio pronunciamento, o Governador da

Guanabara, a princípio, procurou desmentir a entrevista. Porta-vozes seus davam

explicações que não encontravam receptividade na opinião pública, em geral. Dentro da

UDN, poucos concordavam como Governador, naquela atitude julgada provocadora às

Classes Armadas.

Ao Presidente, e mais ainda aos Ministros Militares, faltou apoio caloroso e mesmo

assistência e solidariedade dos partidos que compunham a frente governista no

Parlamento. Já era a descapitalização que sofria o Presidente, na área política e

parlamentar e que, mais tarde, se fazia sentir mais claramente e por várias vezes.

Diziam sempre observadores argutos que, se tivesse sido o inverso, surgindo

pronunciamentos como aquele de qualquer autoridade do Governo, este estaria no chão,

em poucos momentos, pois a UDN saberia aproveitar a oportunidade para um

movimento que galvanizaria uma opinião militar e política capaz de derrubar qualquer

esquema militar. Isso, aliás, foi comprovado com a Revolução de Abril, quando outras

motivações apressaram a eclosão de uma revolução embrionária e que, pelos próprios

depoimentos de hoje, estava ainda muito longe de dispor de elementos para ação

conclusiva e vitoriosa.

Mais algumas vinte e quatro horas decorridas, naturalmente após consultas e

balanço de suas forças políticas e militares, o Sr. Lacerda voltava à carga contra o

Governo e, especialmente, contra os Ministros Militares, procurando até ridicularizar e

desmoralizar a autoridade de cada um, num deboche da maior provocação.

Reunidos novamente com o Presidente, os Ministros Militares procuravam um

meio de punir o Governador da Guanabara. Do enquadramento na Lei de Segurança à

Intervenção Federal no Estado, da prisão ao seu banimento do País. De tudo isto ao

Estado de Sítio foi um passo. Como Ministro da Justiça, solidário com o Governo e

consciente da responsabilidade da hora em que vivíamos, estudei, com assessores, todas

as formas e fórmulas com base na Lei e na Constituição. Fora do Estado de Sítio,

devidamente aprovado pelo Congresso, nenhuma outra teria conteúdo de legalidade.

Em meio à reunião, chegavam notícias de, encontros dos Governadores da

Guanabara e de S. Paulo, e, deste último, pronunciamentos igualmente graves, que iam

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ao ponto de afirmar dispor ele de homens e armas para ação revolucionária contra o

Governo da República. Logo compreenderam os Ministros Militares e todo o Governo

que os dois chefes estaduais estavam articulados para a derrubada do Presidente. Armas

de guerra haviam sido apreendidas e todas as informações concluíam por atividades

conspiratórias que tinham, por comando, os dois governadores, da Guanabara e de São

Paulo.

Antes que o rastilho tomasse conta de todo o País, o General Jair, com o apoio dos

Ministros da Aeronáutica e da Marinha, inclinou-se pela decretação do Estado de Sítio.

Fizeram os projetos de mensagens e destes foi feita depois Mensagem ao Congresso, já

na madrugada da sexta-feira.

Salientava sempre o General Jair Dantas Ribeiro que a Mensagem devia ser

aprovada em 24 horas. Ponderei todo o tempo ser isto impossível e salientava que num

fim de semana, era difícil e mesmo inexeqüível conseguir-se número para uma votação

tão importante e urgente. Além do mais, reconhecendo bem a Câmara dos Deputados,

dividida e subdividida por correntes e grupos políticos e, ainda mais, contaminada por

um sentimento de indiferença e desconfiança com relação ao Governo, não via como se

pudesse obter êxito na investida, não obstante a achasse oportuna e adequada. O Estado

de Sítio era o remédio que a própria democracia estabelecia para a cura de males como

aqueles que nos estavam afligindo.

Falou-se que, em outras oportunidades, o Congresso havia alterado até o regime em

menos de 24 horas... Respondia que era verdade mas que, naquela ocasião, os fatos

estavam na rua, a convulsão à vista e as tropas já se deslocando dos quartéis. O exemplo

citado era o da crise provocada pela renúncia do Sr. Jânio Quadros.

Para salvar uma situação de fato, acrescentava, o Congresso iria até o arranhão das

normas regimentais e da própria Constituição. Uma lei maior se alevanta. Acima da Lei,

a Ordem. Não há lei sem ordem e não se mantém a ordem sem a lei.

Na madrugada mesmo da sexta-feira de fins de setembro, o Presidente João Goulart

voava para Brasília, com a Mensagem ao Congresso. Iria movimentar líderes,

presidentes da Câmara e do Senado, todos, no objetivo único de ser aprovado o Estado

de Sítio em 24 horas. Deixara, na retaguarda, um dispositivo armado para a ocupação da

Guanabara imediatamente, seguindo-se ação contra o Governador de São Paulo, no caso

de manifestações de solidariedade ao seu colega da Guanabara se este resistisse ao

pedido de “Sítio”. Os dois inimigos do Governo e do regime estavam nas alças de mira

do Presidente e do esquema militar. Sem essas providências, o Congresso,

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evidentemente, não atenderia ao chamamento do Chefe da Nação e dos seus Ministros

Militares.

Nem uma coisa nem outra houve. Não houve ação militar nem na Guanabara, nem

articulações militares em São Paulo. O sábado amanheceu pacífico, como todos os dias.

Em resposta ao Presidente, que me telefonara de Brasília, disse-lhe que tudo estava tão

calmo como num dia de domingo... Não havia tanque na rua, nem prontidão nos

quartéis.

Custou-me entender o General Jair, nessa conjuntura. Tão precavido como era, tão

perspicaz, tão zeloso na adoção de providências combinadas, recolhera-se à sua

residência, normalmente, não deixando sequer de fazer o cabelo, o que acontecia

invariavelmente todos os sábados!

Era a presença do General Pery Bevilacqua, no comando do 2º Exército de São

Paulo, que o preocupava! Já há muito que queria alt erar aquele comando, sem

conseguir, entretanto, a anuência do Presidente, que se mostrava muito confiante

naquele comandante que tanto o havia ajudado na luta para assumir a Presidência da

República. Todos os comandos se achavam nas mãos de gente sua gente sua, menos o

do 2º Exército. O General Jair confiava mais no seu dispositivo militar- pessoal do que

nos amigos do Presidente que ainda tinham postos de comando.

Certa vez me disse que o Presidente era um homem bom e muito otimista com

relação a certos amigos generais. Ele, general, não era homem de desconfianças

generalizadas, mas só punha, em comando, aqueles que já tivesse testado. Além do

mais, o General Jair mantinha-se dentro da mística predominante em todo o Exército –

legalidade. Aguardou que o Congresso se movimentasse à vista dos pronunciamentos

irretorquíveis dos três Ministros Militares, cujas exposições acompanhavam a

Mensagem do Governo. Qualquer passo avançado poderia ser o estopim para o

descambar da ilegalidade!

Passadas 72 horas, já com todos os governadores contra, inclusive os de maior

compromisso com o Presidente, como os de Pernambuco e Minas Gerais, a atoarda

contra o pedido de Estado de Sítio começou a incomodar o Sr. João Goulart, que é um

homem da massa. Das cúpulas sindicais patronais às trabalhadoras, a voz era uma só, de

protesto contra a medida. Dos estudantes aos intelectuais, da imprensa ao rádio,

ninguém compreendera a situação e ninguém confiava na execução de medidas

excepcionais pelo Presidente. Mais tarde, o próprio Arraes me dizia que ficara contra o

pedido de Estado de Sítio porque, em seqüência ao que pudessem sofrer Carlos Lacerda

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e Adhemar de Barros, viria ele... Encontrei nos dias de tramitação da Mensagem no

Congresso, no Aeroporto Santos Dumont, em trânsito de Brasília para São Paulo, o ex-

Ministro Almino Afonso que, em poucas palavras, me dizia que o Presidente não

conseguiria driblar as esquerdas. Estava indo para articular as massas trabalhadoras

paulistas também contra a medida de exceção.

Estava o Presidente e todo o Governo entre fogos cruzados, da esquerda da direita,

das Classes Produtoras e dos trabalhadores e com o centro igualmente ardoroso, no

combate à providência inspirada pelos percalços da hora trepidante que vivia o País.

Não tardou a minha convocação e logo estava o Presidente a me recomendar a

retirada da Mensagem. Tivera um grande gesto, preferindo recuar para estar com o

povo.

Saiu todo mundo, deste episódio, muito descapitalizado. O Governo perdera

autoridade e até a confiança das massas. E, ao que parece, o recuo, longe de significar o

retraimento do Governo para revisão e fortalecimento de suas forças, despertou maior

entusiasmo nas forças conspiratórias que logo verificaram que o dispositivo militar do

Presidente era mais para a defensiva, para a sustentação legal, do que para a ofensiva.

De tudo, o que mais me impressionara foi a maneira como eram combinadas, no

Palácio das Laranjeiras, as coisas mais sérias e traçados os planos mais importantes! A

maioria das conversações, entre o Presidente e os seus Ministros, entre o Presidente e os

militares, entre o Presidente e os seus assessores, era realizada nas “terrasses” abertas do

Palácio, com um sem número de pessoas transitando por todas as suas dependências e,

muitas delas, poucos de nós as conhecíamos. Eu e Oliveira Britto ficávamos espantados

com a facilidade de acesso que havia no Palácio, numa hora das mais difíceis do por que

passava o Governo. Lembro-me que, da discussão da retirada da Mensagem do Estado

de Sítio, de repente, em torno de nós, estavam figuras completamente estranhas. Haviam

ingressado no Palácio com Darcyi Ribeiro que se retirara, deixando as ao nosso lado.

Certa vez o General Jair me dizia que o Presidente nada resolvera de concreto a

respeito do que se devia fazer no plano político militar, revelando nas entrelinhas muita

dúvida com relação ao futuro. Apesar de suas desconfianças, sempre acrescentava que o

Presidente não devia ter receios pois iria até o fim do seu Governo. Estribava-se na

legalidade, confiando nos seus homens de comando, que deviam ter igual posição com

relação à legalidade.

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Passada a crise do “Sítio”, os Ministros Militares formalizaram pedidos de

demissão para facilitar a ação do Presidente. Este os confirmou nas Pastas, afirmando-

me que aquela não era hora de dispensar a colaboração de amigos e auxiliares.

Entretanto, daí em diante, nova onda de mudança ministerial surgiu e, de semana

em semana, aumentava ou diminuía, à medida que o Presidente se mostrava mais

reticencioso a respeito. Poucos ou raros eram os Ministros que se sentiam seguros. Por

várias vezes, disse ao Presidente que o meu posto estava sem problema para uma

composição, ao que me respondia sempre que iria até o final do seu Governo.

Em muitas oportunidades, o Presidente me contava histórias de sua vida até

madrugada e sempre com muita cordialidade. Tratava-me fraternalmente, chegando até

a dizer que já não tinha irmãos e que como tal me considerava. Na intimidade, sem o

formalismo presidencial, o Presidente me revelava até tédio pelo cargo que exercia.

Afirmava que andava cansado, esgotado mesmo. Num desses momentos de depressão,

chegou a me dizer: – “Não sei, Seu Jurema, como o Juscelino ainda quer voltar para isto

aqui!...”

Ante a incompreensão das esquerdas e do centro, pela falta de apoio à sua

Mensagem de “Sítio”, mostrava-se amargurado, queixando-se das injustiças, das

incompreensões e até do que chamava da burrice de companheiros e amigos. O

Presidente, nesses momentos, se me revelava todo inteiro, humano e sensível, mas

igualmente surpreendido com todos os atropelos que marcavam a vida de um Chefe de

Estado. Em muitas ocasiões, sentia-se que havia perdido o encantamento pelo Poder.

Falava em licenciar-se para fazer uma viagem pela Europa e pela Ásia. Mostrava-se

desejoso de ausentar-se de tudo aquilo que começava a arranhar a sua alma.

Chego a pensar que a sua mocidade – 45anos – não estava em condições de

suportar o peso de tantas responsabilidades. Herdeiro de Getúlio Vargas, tendo vivido

intensamente da província à metrópole, procurava arcar com o fardo, mas se chocava

com grandes decepções e até mesmo com problemas superiores às suas resistências

espirituais. Homem sem problemas na sua vida de grande proprietário, tinha-os agora no

mais alto posto da República! Sempre me dizia que nunca havia atingido qualquer

posição na vida pública senão com muita luta e muito sacrifício. Muitas vezes me falou

sobre a incompreensão das classes favorecidas que o viam pelos ângulos da

desconfiança. Sempre me pareceu um homem que se agarrava ao apoiadas lideranças

sindicais, com receio de ficar sozinho, em face das incompreensões e mesmo hostilidade

com que era encarado pelo centro.

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Pensou, em muitas ocasiões, em modificar a sua política de governo e, quando

estava para iniciar ações nesse sentido, eis que uma assembléia de Associações

Comerciais de todo o Brasil o atingia em cheio, entre acusações veementes e até

calúnias!

Jamais imaginei que um Presidente de República tivesse vida tão atribulada!

Inúmeras vezes saí, em ponta de pés, do quarto do Presidente, deixando-o o estirado na

cama, de roupa, gravata e sapato, exausto, adormecido profundamente. Não raras eram

as vezes que adormecia no “Viscount” presidencial, entre Brasília Rio ou Rio – Brasília,

em meio a conversas com os seus auxiliares. Quantas vezes não o vi cochilando, de ar

cansado, no meio de audiências, daquelas que iam madrugada adentro.

Queixou-se, várias vezes, a mim de que tinha que resolver tudo, desde a conversa

com um ex-aviador da Varig cuja demissão provocara uma greve demorada na Aviação

Comercial até às audiências públicas com os mais necessitados, desde a solução de

problemas com governadores de Estado até às determinações à SUNAB para resolução

do problema do abastecimento do açúcar, desde a crise do petróleo à falta de trigo;

desde o reescalonamento de nossas dívidas externas até ao empréstimo de um modesto

servidor público pela Caixa Econômica; desde a falta de chuvas no Nordeste até aos

incêndios de cafezais no Paraná; desde a crise política à econômica; desde a frente

política parlamentar à composição da mesa da Assembléia do Rio de Janeiro; desde os

problemas da bBaixada fFluminense até às dívidas do Estado de Minas.

Tudo isso cada vez me fazia mais um escravo da administração e do Governo.

Passei a a dar assistência efetiva a todos os problemas que chegavam ao Presidente e

que provocavam a minha convocação. Não faltei a uma sequer,e nunca me omiti em

qualquer das situações que exigiam a ação e a presença do Governo.

Não me arreceava das críticas, das tempestades que desabavam sobre mim. No

cumprimento do dever, na colaboração a um Governo que confiava na minha lealdade e

na minha energia, não poupei sacrifícios, nem canseiras, nem noites indormidas.

Aos poucos, no dia a dia, fui conhecendo todas as virtudes e deficiências do

homem, do estadista, do político. Não podia abandonaá-lo na luta e esta nunca cessou

durante os nove meses que passei à frente do Ministério da Justiça.

A adversidade não me fez um arrependido. Ao contrário, no exílio, na mais madura

reflexão, convenço-me de que estava certo. Dei tudo o que podia dar de mim, da minha

inteligência e das minhas energias físicas. Sempre acreditei que a soma de todos estes

esforços trariam melhores serviços ao País, por cujo bem estar o Presidente realmente

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procurou zelar. Não tenho nenhuma dúvida a este respeito. Zelava, ainda que fosse sem

roteiros.

Na integralização da pessoa humana, entre os defeitos e as virtudes, o Presidente

apresentava boa diferença favorável, que nos prendia e nos indicava a necessidade que

ele tinha de ser ajudado. A sua cabeça era povoada de boas intenções e sempre as suas

recomendações, as suas ordens, as suas determinações buscavam o bem e nunca o mal.

Não guardava ódios nem rancôres, e aos inimigos mais ferrenhos pouco dispensava da

sua atenção.

Seu sonho era passar à História como o Grande Reformador e toda a sua inquietação era

ver o tempo passar sem nada de positivo poder apresentar.

Assisti-o dizer ao General Jair, na crise do “Sítio”, que se conseguisse introduzir

reformas nas velhas estruturas econômicas do País, assumiria o compromisso de

renunciar imediatamente ao Poder. O preço das reformas seria o seu afastamento da

Presidência.

Faltava-lhe, entretanto, capacidade de fixação em planos e métodos. Assim,

expunha-se às alternativas de conselheiros diversos, que motivavam transformações

súbitas do Governo, ao encarar problemas instantes ou ao resolver crises administrativas

ou políticas.

Há uma constante, porém, no temperamento do Presidente João Goulart. Nunca,

em tempo algum, faltou com o respeito ao povo. Jamais pensou em atuar contra o povo.

Em nenhum momento, aceitou conselhos que fossem contra os interesses populares.

Ficou uma fúria, quando soube que o General Pery, numa das agitações em São Paulo,

havia prendido líderes sindicais. Deu-me recomendações severas para falar ao General

Jair, a fim de que este determinasse a libertação dos operários, dizendo-me que não

queria que, em seu Governo. o Exército fosse

guarda pretoriana ou que os seus comandantes se transformassem em capitães-do-

mato.

Homem de grande coração, com uma formação política e sentimental de fazendeiro

e quase caudilho, não julgava amigos, mas os protegia; não os punia, mas os perdoava;

não os fiscalizava, mas neles confiava; não os selecionava, mas os aglutinava em torno

de si, sem joeirar o trigo. Enfim, era uma porta aberta às vicissitudes e aos percalços da

convivência humana.

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XIII - Sexta-Feira, 13

PASSADO o episódio do Estado de Sítio, parecia que o Presidente João Goulart

iria nortear o seu Governo mais para o predomínio do fato administrativo, sobrepondo-

se ao fato político que já consumira mais de metade do seu mandato. Seguiram-se

reuniões com os técnicos. Os Ministérios de Minas e Energia, Viação e Obras Públicas,

Educação, Saúde e Agricultura passaram a organizar planejamentos. Planos até

audaciosos, mas de reclamo de toda uma Nação em desenvolvimento. JK havia

sacudido o País de norte a sul com obras monumentais. Jânio Quadros foi apenas o

ético, consumindo todos os seus sete meses de Governo com inquéritos e bilhetinhos.

Em mais de um ano de governo parlamentarista, o Presidente não mareara nenhum tento

administrativo. Estava na estaca zero. Os conciliábulos políticos tomaram-lhe todo o

tempo. Não sobrava nada para despacho com os chefes de Serviço, nem para estudos

com os técnicos. Por toda a imprensa, comentaristas políticos, cronistas, observadores e

articulistas, via-se o fato político predominar totalmente.

A tônica do combate ao Presidente era a sua frouxidão administrativa. Procuravam

os oposicionistas impingir a idéia de que o Chefe da Nação era incapaz, primário,

preguiçoso e até analfabeto. Subestimavam uma figura de homem público que não era

nada daquilo. Inteligente, astuto, vivo, com imensa capacidade de audiência e outra

enorme de falar e de expor,o Sr. João Goulart pregou, realmente, sustos aos seus

inúmeros adversários. Sustos de verdade, com jogadas imprevisíveis, que pecavam

apenas pela sua falta de complementação, pela sua improvisação e falta de continuidade.

Sobretudo, pela sua imaturidade, pois o Presidente as lançava logo, sem que estivesse

armada ainda a alternativa para o êxito ou para o insucesso. Curioso no manuseio com

os políticos, com o fato político, com a própria administração, era ele lento,

demasiadamente demorado em qualquer solução definitiva! No jogo político, nas

cartadas, nos lances, era precipitado e jamais aguardava o amadurecimento da idéia!

Passou, de repente, o Sr. João Goulart, para estudos sérios da administração.

Lançou em pauta o aproveitamento das Sete Quedas do Iguaçu; planejou hidrelétricas

do extremo-norte ao sul; investiu no setor da agricultura, adquirindo numerosos tratores

e máquinas agrícolas; agitou o campo educacional com um programa intensivo de

alfabetização popular; traçou, na Viação, largo programa rodoviário que subia a

centenas de bilhões de cruzeiros; avançou sobre as refinarias particulares de petróleo;

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ampliou a assistência médica aos Estados, através de convênios pelo Ministério da

Saúde; abriu frentes

de luta contra a exploração e a carestia; abriu perspectivas para o magistério

primário, Polícia Militar e magistratura estaduais; convocou técnicos da melhor

categoria para o acerto das nossas dívidas externas, imprimindo novos rumos

econômicos e financeiros à nossa política externa.

Não saíam de sua cabeça, contudo, as reformas. Especialmente a agrária. A

princípio, pensava que, com um programa de obras tão arrojado, conseguiria uma

opinião pública embalada em torno das reformas, com reflexos intensos no Congresso

Nacional e debilitamento de toda a oposição.

Sem paciência para aguardar alguns efeitos da nova política de administração, o

Presidente começou a fazer pronunciamentos que provocavam não apenas a oposição,

mas assustavam seus próprios correligionários. As suas mensagens ao Congresso

Nacional, apesar de vazadas sem termos altos e respeitosos, colocando em pauta vários

problemas, sobressaltavam os partidos políticos. Mais ainda aumentava esse sobressalto

a versão que lhe davam vários intérpretes do plano político do Presidente. Dava-se

mesmo a impressão de luta aberta contra o Congresso. Pessoalmente, não. Nessas

ocasiões, o Presidente mantinha os melhores contactos parlamentares e a mim, apesar de

queixas dos líderes do PSD, sempre me fazia crer que, através de um grande movimento

pacífico de opinião, iria conseguir o apoio do Congresso para as suas metas reformistas.

Irritado com a iniciativa dos senadores, de prorrogação dos trabalhos parlamentares

nas férias natalinas, na presunção de um golpe do Governo contra as instituições

democráticas, o Presidente revelou todo esse estado de espírito, retirando-se de Brasília

para Petrópolis. Esvaziava-se Brasília não apenas dos seus Ministros e diretores de

Serviço, como dos próprios parlamentares.

Nesse clima e com essa tensão, o Presidente começou a planejar coisas. Primeiro

uma mensagem ousada ao Congresso, com todas as questões de reforma fixadas de

modo a despertar, nos parlamentares, a consciência da Hora Brasileira. Essa Mensagem

de início de sessão legislativa, em 1964, foi cuidadosamente preparada pelo “staff”

presidencial sem participação de qualquer dos Ministros, cuja colaboração foi a de

rotina, fornecendo elementos para a parte expositiva. O conteúdo político era segredo de

Estado. Só nas vésperas é que o Prof. Darcyi Ribeiro fez chegar exemplares, bem

encadernados, aos Ministros. Por muito tempo, a boataria campeou e se tinha a

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impressão de que coisa mais grave iria conter a Mensagem, lida, afinal, no Congresso,

sem maiores frissons.

Mas, para que o Congresso reabrisse suas portas para a nova sessão legislativa de

1964, num clima de tensão política, que o capacitasse a sentir uma opinião pública

definitivamente favorável às reformas, o Presidente programou um grande comício para

o Rio de Janeiro, ao qual se deviam seguir outros, em São Paulo, Minas, Pernambuco e

Porto Alegre. Queria o Presidente trazer para as ruas o povo em massa. Para isso, teve

que recorrer às esquerdas, minorias atuantes que sabem botar povo na rua. Do Estado de

Sítio para a frente, foi a primeira vez que o Presidente voltou a ter contactos com as

lideranças sindicais. Preparava-se um grande comício na Guanabara. Para dirigi-lo,

entretanto, na arregimentação e mobilização populares, voltou as vistas para José

Gomes Talarico e Gilberto Crockrat de Sá, antigos e leais amigos, que nada tinham com

o plano ideológico, mas se especializaram em atividades sindicais, a serviço

exclusivamente do Presidente.

O destino não podia fugir à sua ação e, nas marchas e contramarchas para a

marcação da data, muitas vezes fixada e várias desmarcada, foi assentada, afinal, para as

vésperas da instalação do Congresso. O prazo era curto, entre a idéia do comício e a sua

realização. Foi-se prorrogando, prorrogando, até que não havia outro jeito, sexta-feira,

pois o Congresso se instalava no sábado. E caiu ser 13, sexta-feira, justamente o dia de

o Presidente fazer a maior demonstração de prestígio e apoio popular que a história

política registraria. E essa sexta-feira, 13, já por si tão envolvida pela opinião pública

em mistérios e lendas, essa sexta-feira tão cuidadosamente evitada por milhões, essa

sexta-feira que desperta, até nos mais indiferentes, precauções e cuidados especiais,

passou a constituir a, pedra-de-toque da oposição no seu combate ao Governo. Criou-se,

em torno do comício, uma expectativa de crise, de golpe, de baderna, de amotinadas, de

quebra-quebra, de subversão geral no País. Na realidade, o desejo do Presidente era

demonstrar ao Governador da Guanabara que quem dispunha de povo era ele e, em

seqüência, marcar a presença do Presidente nas ruas de todo o País, até que a Nação

sentisse que o Congresso Nacional a ela se juntava, nos seus anseios reformistas. Era,

realmente, uma luta democrática, e as praças públicas são as grandes tribunas de onde as

vozes de uma nação sempre se alteiam aos seus homens públicos. Temê-las, receá-las,

impedi-las, fechá-las, seria a sufocação dos pulmões populares!

Todas as grandes conquistas do homem, os seus direitos e as suas liberdades,

partiram das praças públicas.

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A contrapropaganda, entretanto, se não conseguiu diminuir as proporções do

comício, criou um estado de espírito que se refletia, sem dúvida, mais intensamente, no

bloco militar antigovernista. A partir dessa sexta-feira, 13, a frente de oposição

galvanizou-se. A massa assustou, realmente, toda a reação como aumentou as

preocupações, seriamente, dos bem intencionados que achavam o País à beira da

comunização. Dessa sexta-feira para a frente, a luta teria que ser dura, áspera e muito

difícil. Faltou perspectiva ao Presidente, para compreender que qualquer falha, qualquer

deslize, qualquer gesto a mais ou a menos, que servisse de interpretação para o

transbordamento da gota no copo d'água, levaria tudo ao desastre total, tanto para o seu

Governo, como para as forças políticas que o sustentavam. Difícil é construir, mas fácil

é a tarefa de destruir.

Daquele dia em diante, a programação teria que se assentar na serenidade de uma

atuação vigilante, que não permitisse fossem os seus sucessos explorados nem

destorcidos por agitações ideológicas extremadas, capazes de dar a impressão de que as

esquerdas eram as donas da festa. A bandeira da reforma não poderia passar a outras

mãos e nem, tampouco, convinha deixá-la ser utilizada por lideranças dissociadas e até

rivais do Presidente.

Aquelas duzentas mil pessoas, que se comprimiam na praça pública, com o feijão

caro, com a carne cara, com o leite caro, com o arroz caro, com o pão caro, com tudo

caro, não iam agradecer nada, ainda, ao Presidente. Estavam ali confiantes de que as

coisas melhorassem com as reformas. Nem era, tampouco, uma multidão comunista

como a oposição quis fazer crer! Seria comunista demais numa praça pública, em um

País católico, onde as forças de esquerda, em eleições livres, jamais haviam conseguido

eleger bancadas numerosas. Aquela multidão acreditava em alguma coisa e o Governo

não poderia decepcioná-la. Aquelas legendas comunistas, que se liam entre inúmeros

cartazes, davam a presença dos seus adeptos, era verdade, mas o mar humano, que se

estendia de ponta a ponta do imenso logradouro que se abre entre a Estação da Central,

o Palácio da Guerra e a Praça da República, sufocaria todas as questões ideológicas e

esmagaria qualquer sectarismo político, porque ali estava por acreditar num Governo

que emanara do seu voto livre.

Lembro-me bem que, nessa noite, a convite do General Jair, que revelava cuidado

com a minha segurança pessoal, jantei com vários generais no Palácio da Guerra. Todos

eles estavam eufóricos e achando de grande beleza e significado democráticos o povo se

misturando, tranqüila e confiantemente, com os tanques e carros blindados, com a tropa

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maciçamente distribuída por toda a praça do comício. De cima, das varandas do Palácio

da Guerra, generais e inúmeros oficiais das três armas exultavam com o espetáculo

cívico. Uma mole humana, ordeira, pacífica, ao som de bandas de música, reunia-se na

praça, sob a proteção de um Exército que sempre foi das causas populares.

No ingresso à praça, momentos antes da chegada do Presidente, eu e os Ministros

Militares, sobretudo o General Jair, fomos todos delirantemente aclamados pelo povo.

Não fossem os cordões de isolamento dos PE do Exército, nenhum de nós chegaria

inteiro ao palanque. Um a um, fomos chamados à tribuna e as ovações populares eram

entusiásticas.

A participação dos Governadores Arraes, Seixas Dória e do Deputado Leonel

Brizola, ao invés de indicar a coloração vermelha do comício, mostrava que eles, como

líderes populares e com mandatos populares, apesar de todas as restrições ao Presidente

e de todas as mágoas e queixas, vieram de longe para não se perderem no conceito das

massas. Na realidade, ali, o grande denominador comum, que somava gregos e troianos,

era Jango! O seu nome era o alvo. O seu discurso, a voz de comando.

Dificilmente se podem controlar discursos de improviso e muito mais ainda de

líderes que não ouvem a ninguém e nem acham ninguém acima de suas cabeças.

Na verdade, em que pesem os destemperos de linguagem de vários e a

incontinência política de alguns, o espetáculo era essencialmente democrático e o seu

sentido indicava ao Presidente rumos de equilíbrio, de prudência e de bom senso. O

Governo tinha povo e o Governo tinha força armada. Tudo sincronizado, e não para a

seqüência de agitações estéreis e nunca para radicalizações que jamais foram bem

entendidas ou compreendidas pelo povo. O próprio Presidente me dizia, ainda

empolgado pelo acontecimento, que aquela massa frenética ali estava mais pelo

combate ao custo de vida, mais pelo tabelamento de aluguéis, mais pela prisão dos

exploradores da bolsa do povo, mais pela luta a seu favor em termos concretos e

objetivos do que pelas reformas de base, pela temática ideológica, pelos refrãos dos

pregadores nacionalistas de extrema esquerda. Aquela massa, me dizia Jango, ali estava,

porque confiava no seu Governo, para minorar o seu sofrimento e assegurar-lhe

condições mais dignas e mais humanas de existência.

E o que impressionou a todos foi a ausência de qualquer fato desprimoroso da

conduta popular. Nenhum incidente se verificou e a ordem foi absoluta.

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Contrariando todos os prognósticos, a massa se dissolveu ordeiramente, indo para a

casa distante, sem provocações e revelando disciplina e compreensão. Emprestara maior

significação, ainda, ao acontecimento.

Do fato, porém, outras interpretações abundaram. A direita se sentiu frustrada, e até

ameaçada, e a extrema esquerda se superestimou, esquecendo a força aglutinadora de

Jango, para se considerar já tão forte que talvez pudesse ultrapassar o Presidente. E o

acontecimento, ao invés de servir de base de sustentação ao Governo, serviu como tema

divisionista, enquanto as forças de oposição dele se serviam para se unirem e se

alinharem na conspiração.

O que ocorreu no Sindicato dos Metalúrgicos e no Automóvel Club mostrou o

quanto se superestimaram as lideranças radicais e como alimentaram a oposição, num

temário que não saiu mais das manchetes dos jornais e das edições extraordinárias dos

jornais falados!

O Presidente João Goulart dormiu sob os louros de uma noite de massas

empolgadas pelo seu Governo e não ouviu os tropéis de uma cavalgada que partia dos

setores que se assustaram, incentivados por um jogo político que vinha de muito longe,

que vinha desde quando, pela primeira vez, depusera, Getúlio Vargas.

Sexta-feira, 13, mareou a caminhada do Presidente pelo Poder. Levou-o ao delírio

de uma glória efêmera, ao mesmo tempo que o jogou no ostracismo de um exílio, ele

que, por sua vez, subestimou os seus adversários e julgou invencíveis os sentimentos

populares.

Sexta-feira, 13, mais uma vez se fortalecia na superstição popular e mais uma vez

mostrava que os antigos tinham razão quando afirmavam – não acredito em bruxas, mas

que elas existem,existem!

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XIV - Começo do Fim

MANHÃ de quarta-feira (Semana Santa), sou chamado, com urgência, ao Palácio

das Laranjeiras. Pareceu-me, pelo movimento, que o Presidente tomava providências

que o permitissem ausentar-se do Rio por alguns dias. Era desejo do Presidente deixar-

se ficar em.São Borja até Domingo de Páscoa.

Também este era o meu desejo. Antes de sair de casa, já havia combinado com a

minha mulher e alguns casais amigos, marcando-se um almoço em Corrêas, na casa de

um dos meus conterrâneos da Paraíba, favorecido pela sorte, que nos prometia peixada

gorda e tranqüila. Na quarta-feira mesmo, meu conterrâneo subira com a esposa para

Corrêas, levando os peixes e os condimentos necessários. Teria muito que esperar, uma

vez que os acontecimentos se encarregariam de alterar todos os nossos planos de uma

Feliz Páscoa.

Contrariando o habitual, o Presidente não se achava com uma fisionomia muito

boa, isto é, tranqüila e confiante. Estava algo preocupado e conversando muito

amiudadamente com o General Assis Brasil. Darciy Ribeiro participava, vez por outra,

desses conciliábulos. Algo estava contrariando o Presidente e algo teria que ser

determinado lá não muito do seu agrado.

Lá para meio-dia, convocado pelo Presidente, compareci ao seu gabinete

improvisado no Palácio das Laranjeiras (não há palácio mais impróprio para despacho

administrativo). Contou-me o Presidente que o Ministro da Marinha, Almirante Sílvio

Motta, estava em crise na sua Pasta. Disse-me que mais de vinte mil marinheiros

rebelavam-se contra determinações do Ministro. Falou que já, por várias vezes,

recomendara ao Ministro evitar choques com a Associação dos Cabos e Marinheiros, e

procurasse contornar, pois se já o Governo não dispunha do almirantado, não poderia

perder a simpatia dos inferiores. Disse-me, por fim, que naquele dia, à noite, iria

realizar-se uma reunião comemorativa do 2º aniversário de fundação da Associação, no

Sindicato dos Metalúrgicos. Iriam comparecer para mais de quinze mil marinheiros,

segundo informações seguras. Ele não poderia comparecer, em face dos atritos

ocorridos entre o Ministro da Marinha e os marinheiros, dos quais já haviam resultado

algumas prisões que, por sinal, estavam contrariando muito o Presidente.

Pediu-me o Presidente para representá-lo, na solenidade, falando em tom de

conselheiro e de amigo. Fez-me recomendações várias, todas nesse sentido. Por

momentos, repetia até o que teria eu de dizer aos marinheiros.

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Levantou-se em seguida e foi andando pelo Palácio afora, numa escalada entre

amigos que terminou no aeroporto, rumo a São Borja.

Em seguida, Dareyi Ribeiro me explicava mais minuciosamente o problema da

Marinha, que não me pareceu de fácil solução. Inclusive, achei, pela exposição do chefe

da Casa Civil, que a minha presença na reunião não seria muito aconselhável nem

política. Apesar do entusiasmo de Dareyi Ribeiro pela reunião e pelo meu

comparecimento representando o Presidente, confesso que saí do Palácio das

Laranjeiras meditando muito sobre o assunto. Dirigi-me de imediato ao Almirante

Cândido Aragão. Apesar de toda a sua fama, encontrei-o cordato e também contrário à

reunião, mas esclarecendo que não tinha mais força para impedi-la. Censurou, também,

o Ministro Sílvio Motta por não ter sabido dialogar com o que chamava ele a moçada a

moçada, achando ainda um erro as últimas prisões verificadas.

Falei dialeticamente com o Almirante Aragão. Disse que aquela reunião não

capitalizaria nada para o Governo nem renderia, politicamente, nada para a sua a sus

moçada. Disse, em tom eloqüente, que ela iria servir para mais uma campanha contra o

Presidente e que o esvaziamento do Almirante Sílvio Motta era um erro, pois até aquela

data tinha sido ele curtíssimo corretíssimo, disposto, leal e atuante – ainda há alguns

dias o Presidente havia participado, com o maior entusiasmo, das homenagens prestadas

ao Ministro por milhares de servidores do Arsenal de Marinha. Em tom até veemente,

cheguei a dizer que, se ele, Aragão, era líder mesmo, devia impedir a reunião. Não

compreendia que a a moçada não ouvisse ninguém, pelo que, assim, acrescentei eu, não

teriam eles direito a querer o nosso apoio e a nossa compreensão. Aragão respondia

sempre que a coisa chegara a um ponto que não dava mais para uma ação conciliatória

dele. Não tinha mais autoridade para isso. Disse-lhe para procurar o cabo Anselmo cabo

Anselmo (um menino) e outros dirigentes, inclusive líderes sindicais e deputados que

davam cobertura às reivindicações dos marinheiros. Andamos de ceca em meca e não

foram encontrados os protagonistas da crise da Marinha. Fui com o Almirante Cândido

Aragão ao Ministro da Marinha. Entrei no gabinete de Sílvio Motta, sozinho. Aragão

ficou na chefia do Gabinete.

Ouvi toda a história oficial da chamada crise. O Ministro Sílvio Motta se mostrava

confiante de que podia debelá-la. Disse-me que não compareceriam nem quinze nem

vinte mil à noite e sim uns mil. Disse-me que várias das reivindicações (casamento,

vestir à paisana fora do serviço, melhoria de salários – um marinheiro fazia de quatro a

cinco mil cruzeiros por mês –, reconhecimento dos estatutos da Associação com

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pequenas modificações) já estavam aceitas e me mostrou estudos reservados, realizados

pelo seu “staff”, e que indicavam o atendimento daqueles pontos. Explicou que não

seriam atendidas de imediato, porque, primeiramente, teria que ser mantida a disciplina.

Mostrou-se inflexível e, ao ser indagado por mim sobre o meu comparecimento à

reunião, foi compreensivo, mas muito lógico, dizendo-me que iriam sair críticas à sua

gestão, na minha presença, e que, naturalmente, iriam constranger-me não apenas como

seu amigo mas como membro do Governo a que ambos servíamos.

Durante toda a tarde, ainda promovi “démarches” e entendimentos para evitar a

reunião. Havia o propósito deliberado de fazêe-la. Devia haver interessados na

substituição do Ministro da Marinha. Devia haver algum irresponsável atuando pelos

bastidores. Devia haver inocente sendo manobrado. Devia haver muita coisa, mas o fato

é que, sob todos os aspectos em que examinava o problema, mais me parecia um erro a

reunião. Um erro maior a presença de qualquer Ministro lá e, muito mais ainda, a

minha, como titular da Justiça e que seria interpretada como a própria presença do

Jango. Só me preocupava o número de manifestantes que iriam, comparecer ao

Sindicato. O argumento era de que o almirantado já era contra Jango, por isto não se

podia perder a moçada a moçada que era toda da legalidade e do Jango.

Senti em tudo, também, o dedo da exploração eleitoral. Os marinheiros não

votavam, mas suas famílias, amigos, parentes e aderentes votavam. Era um colégio

eleitoral carioca a ser disputado por deputados ativos e atuantes.

O CGT também queria ser dono da bola para conquistar prestígio para os seus

quadros e, assim, fortalecer os seus líderes.

Os marinheiros eram uma presa de guerra política. Não há a negar que focos de

infecção estavam já, há tempo, provocando todo esse quadro.

As constantes demonstrações de indisciplina de oficiais superiores, como no caso

da nomeação e promoção do Almirante Aragão, a atuação do ex-Ministro Sílvio Heck,

as constantes publicações de manifestações hostis ao Governo, tudo isto estimulou a

marujada, que devia estar sendo trabalhada com igual intensidade, de fora para dentro.

Não é à toa que se leva, para uma situação como aquela que se verificou no

Sindicato dos Metalúrgicos, uma juventude garbosa e que constitui orgulho da Pátria

nos conveses dos nossos navios de guerra!

À noite, deixei-me ficar em casa de prontidão, de ouvido colado aos telefones,

enquanto observadores pessoais meus compareciam ao Sindicato dos Metalúrgicos,

informando-me dos preparativos da reunião e, depois, de suas fases iniciais. As

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informações previam um grande comparecimento. Indicavam, entretanto, discursos

violentos. As previsões eram pessimistas. Consegui, ainda por intermédio dos meus

observadores, falar com vários líderes da reunião, civis e militares. Fiz apelos, mostrei

que era uma reunião sem desdobramento, como num processo reivindicatório, salientei

que o Governo não poderia ficar com a indisciplina e disse, ainda, da disposição do

Ministro Silvio Motta para o entendimento, desde que as armas fossem ensarilhadas.

Não houve jeito. Os ouvidos estavam fechados à razão. Pressionavam até o Governo,

com a convicção de que entre almirantes do contra e uma marujada a favor, o Governo

não teria mais do que escolher os que contavam com o apoio sindical, para uma greve

geral, no caso de conseqüências mais graves da reunião. De nada adiantaram para os

líderes os meus últimos argumentos, de que tudo aquilo vinha somar mais dificuldades

para o Governo, fortalecer o inimigo comum na exploração do dia seguinte e levantar

novas forças contra nós, como “slogan” da inquebrantabilidade da disciplina. Foram

palavras ao vento...

Todo o sossego de uma Semana Santa foi devorado pelos insensatos e por uma

juventude mal conduzida.

Pela manhã cedo de Quinta-Feira Maior, já coisas mais graves se juntavam aos

acontecimentos do Sindicato dos Metalúrgicos. Um médico, responsável e muito meu

amigo, procurava-me para dar-me notícias intranqüilizadoras para a segurança do País.

O Ministro da Guerra, que se havia internado na segunda-feira da Semana Santa, na

presunção de voltar para casa e ao despacho normal no fim da semana, tinha sofrido

acidentes operatórios, em função do que os prognósticos mais otimistas davam-lhe trinta

dias de pós-operatório se não ocorressem novos imprevistos.

Comuniquei cedo, nesse mesmo dia (Quinta-Feira Maior), a Dareyi Ribeiro e a Riff

(Raul secretário de imprensa da Presidência da República) todo o ocorrido. Lembro-me

que entre os atropelos que se seguiram nesse dia, Raul Riff dizia: – “Seu Jurema,

estamos fritos, o Presidente fora (São Borja), o chefe da Casa Militar (General Assis

Brasil), em Porto Alegre, o Ministro da Marinha de missionário e, ainda por cima, sem

Ministro da Guerra!”

Tivemos um dia cheio de dificuldades. Vários foram os entendimentos com o

General Morais Âncora, comandante do 1º Exército. Providências acauteladoras da

ordem foram adotadas. Sentia -se, a todo instante, a falta do General Jair Dantas Ribeiro,

hospitalizado no Hospital dos Servidores do Estado.

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O Ministro Sílvio Motta, preocupado e muito justamente ferido no seu orgulho de

chefe da Marinha, procurava o apoio do Exército para abafar o movimento indisciplinar.

Fuzileiros mandados para o Sindicato haviam aderido ao movimento, jogando as armas

fora e ingressando no recinto do Sindicato para se unirem aos manifestantes. Impossível

ao Exército entrar numa operação limpeza, que se aligeirava afigurava sangrenta, contra

companheiros de outra arma. A situação se tornava extremamente delicada e, a meu ver,

sem solução conciliatória mais, naquela altura. Alguém teria que se arranhar,

descapitalizar-se, perder substância popular. Seria o Presidente João Goulart. Os limites

toleráveis já haviam sido alcançados. Não mais poderia o Presidente dialogar com uma

tropa que já não obedecia aos seus superiores.

Várias reuniões de Ministros se seguiram. Oficiais da Aeronáutica também

compareciam, procurando ajudar numa solução. Lembro-me bem que o Cel. Lino

Teixeira, que era sempre um juscelinista doente e um janguista ortodoxo, dizia a todo o

momento: – “Qualquer que seja a solução, não esqueçam, é sagrada, e até rudimentar, a

disciplina”. Creio que foi do Cel. Lino a primeira idéia de conduzir presos os

marinheiros para os quartéis do Exército, pois o ambiente entre oficiais e tropas, na

Marinha, não era muito animador nem inspirava confiança.

A noite de quinta-feira ia alta e toda gente esperava pelo Presidente João Goulart

que já havia partido de São Borja, com escala em Porto Alegre.

Em todo esse cipoal, ninguém havia compreendido como era que o General Assis

Brasil, chefe da Casa Militar, havia viajado na madrugada dessa quinta-feira agitada,

deixando atrás de si um mundo turbulento, na vã esperança de uma Ppáscoa tranqüila no

Rio Grande...

Chega, afinal, o Presidente. Toda a noite de Quinta para Sexta-Feira Santa foi gasta

em conferências sucessivas – do Ministro da Marinha de missionário (Silvio Motta) ao

Ministro da Marinha novo (Paulo Mário).

Nas aparências, a solução do Presidente parecia justa e a única. Remoção dos

marinheiros sublevados para os quartéis do Exército, abertura de inquérito e regresso ao

trabalho de todos oficiais e marinheiros, no início da próxima semana, segunda ou terça-

feira.

Assisti à posse do Almirante Paulo Mário e o comparecimento de quase todo o

almirantado me tranqüilizara. Parecia que o Presidente havia acertado na escolha e na

hora precisa. De regresso ao Palácio das Laranjeiras, essa também era a impressão de

todos, inclusive a do próprio Presidente.

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Tinha-se a impressão de que, afinal, iria reinar paz na Semana Santa. Regressei

para casa, no começo da noite da Sexta-Feira, com a convicção de que a tempestade

havia passado.

Alguns telefonemas de repórteres me indicavam, mais tarde, que o ambiente

voltava a agitar-se. Haviam sido libertados os marinheiros que se achavam nos quartéis

do Exército e já realizavam passeatas rumo ao Ministério da Guerra.

Confesso, não entendi nada a esta altura. Voltei ao Palácio das e Laranjeiras e todas

as explicações diziam que o Almirante Paulo Mário havia anistiado gregos e troianos,

num licenciamento geral, para, na próxima semana, apurar as responsabilidades. Na

manhã do sábado, estive longamente com o Ministro Paulo Mário. Tinha

recomendações do Presidente João Goulart para explicar, pela televisão, toda a decisão

do Governo. O instituto da anistia era vitorioso no Brasil, pois que nunca fora de penas

eternas. Vários exemplos me foram alinhados, inclusive o da anistia concedida pelo

Ministro Pedro Paulo de Araújo Suzano aos oficiais generais que haviam devolvido

condecorações. Falou-se na anistia que Juscelino Kubitschek concedera aos sublevados

de Jacareacanga, logo no dia seguinte às últimas prisões, sem que, ao menos, tivesse

sido aberto inquérito.

Apesar de preocupado, pareceu-me razoável a atitude do Ministro da Marinha, cuja

figura me inspirava confiança pela sua serenidade e, sobretudo, pela sua firmeza.

Mas, ao sair do Mministério, já os jornais publicavam clichês de Aragão e Suzano

à frente de marinheiros, que realizavam passeatas pelas ruas da cidade. A repercussão,

realmente, em toda a cidade era a pior possível. Ninguém entendia a pressa na libertação

dos marinheiros que não chegaram a passar mais que horas nos quartéis do Exército.

Muito menos compreendia alguém que tudo fosse comemorado festivamente, como

faziam crer os noticiários da imprensa e do rádio.

O Presidente João Goulart a mim disse que havia determinado as prisões dos

Almirantes Cândido Aragão e Suzano, em face das fotografias publicadas, apesar, dizia-

me o Presidente, de o Ministro da Marinha haver explicado que aqueles oficiais-

generais haviam deixado o Ministério por ordem sua para encontrarem a massa de

marujos na Candelária e evitarem a sua vinda maciça ao Ministério. Tudo isso fez voltar

intranqüilidade, desconfiança e apreensões em todos os círculos oficiais. Ninguém se

sentia seguro.

Jantando num restaurante da cidade, na noite do sábado, com a minha família e

amigos, fui abordado pelo Cel. Lino Teixeira. Estava furioso. Havia tido um choque

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com o próprio irmão, Brigadeiro Francisco Teixeira. Não compreendia a solução e me

dizia, expressamente, que o que ele estava sentindo, de revolta, de mal-estar e de

surpresa, todo o mundo militar janguista estaria também. Salientou que o Governo.havia

perdido substância total no seu dispositivo militar. Ele que era um ortodoxo, que havia

sido preso pelos mesmos oposicionistas de hoje e que ontem negavam a posse ao Sr.

João Goulart, ele que tinha um irmão num dos postos-chave do dispositivo militar (3ª

Zona Aérea), ele que lutaria até ontem com armas na mão ao lado do Presidente e das

reformas, hoje não titubearia em lutar ao lado de Carlos Lacerda para manter a

disciplina, que, a seu ver, havia sido violentada irreparavelmente.

Impressionou-me o Cel. Lino Teixeira e nunca mais pude esquecer a sua

advertência: “Seu Jurema, a causa é tão ingrata que você, que eu sempre escuto um

agrado na televisão, não estava, no programa de hoje, nem convincente nem convicto da

tese que defendia...”

Se o Cel. Lino, que era um janguista politizado assim estava, podia bem imaginar

outros.setores apenas de simpatizantes!

No domingo, almoçava eu com generais do dispositivo militar do Presidente, no

Rio. Todo inquietos com a ausência do General Jair, do Ministério. Faltava comando e

as noticias de Minas já indicavam que o Governador Magalhães Pinto estava à frente de

um movimento, pelo menos, naquele momento, de opinião. hHavia reformulado o seu

secretariado, integrando-o com figuras nacionais mineiras, como Alkmim, Milton

Campos e Afonso Arinos.

Era voz unânime: em tempo de paz, Jair poderia ser substituído interinamente pelo

Ministro da Aeronáutica, Anísio Botelho, que teria livre trânsito no Exército. Acontece

que já começava a soprar fumaça de guerra e todos achavam que o Presidente teria que

quebrar o seu natural constrangimento e designar um general para Ministro Interino. A

Guerra não podia ficar sem comando na hora da guerra. Era doutrina mansa e pacífica.

Não sei se o Presidente subestimou os acontecimentos ou se seu sentimentalismo

foi maior do que o seu senso da realidade. A verdade é que, ainda hoje, aguarda alta no

Hospital, o General Jair Dantas Ribeiro. Tudo, aliás, dentro dos prognósticos do

médico, que transmiti ao Presidente. O Presidente foi deposto e nunca foi designado um

Ministro substituto. Vencera em Jango o sentimentalismo. Sem querer ferir as

suscetibilidades do General Jair, deixou o barco militar sem direção. Os quatro exércitos

ficaram, exclusivamente, ao arbítrio dos seus comandantes, que não tinham com quem

se entender nos acontecimentos que se sucederam.

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Com Jair Dantas Ribeiro no leme, talvez não tivesse regressado aos navios, com

tanta rapidez, a marujada sublevada. Talvez a crise da Marinha não tivesse atingido

aquelas proporções. Com Jair Dantas Ribeiro no comando, os campos de batalha teriam

tomado outra conformação e a legalidade seria mais uma vez salva, ainda mesmo por

um preço alto. O Presidente, talvez, tivesse tido outra decisão e a disciplina preservada!

O destino tem mais força do que os seus participantes. Os acontecimentos envolvem os

homens. Só grandes figuras, na hora exata, podem alterar, com um gesto, o curso da

História. São, entretanto, homens carlylianos, que surgem de cem em cem anos.

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XV - Entreato

O RESCALDO da crise da Marinha fumegava ainda. Toda a imprensa da

Guanabara e do País, rádios e televisões, a opinião pública ainda tonta, tudo ainda

estava revolto e sem maior explicações, e, já na segunda-feira após a Semana Santa,

novo acontecimento fora programado para o Automóvel Club. É bem verdade que a

festa dos sargentos já estava marcada e sem conexão com os acontecimentos da

Marinha, mas ninguém poderia dissociá-los, agora, na opinião pública.

Em meio a tudo isso, as notícias de Minas Gerais eram intranqüilizadoras.

Magalhães Pinto havia reformulado o seu secretariado, convocando figuras nacionais

para integrá-lo. Corriam notícias, por toda parte, de idas e vindas de Magalhães Pinto a

Juiz de Fora e de Mourão Filho (General Comandante das Tropas Federais mineiras) de

Juiz de Fora a Belo Horizonte. Já havia rebuliço nas ruas de Belo Horizonte. Prisões

efetuadas de líderes operários, gasolina requisitada, transportes requisitados,

mobilização da Policia Militar, abertura de voluntariado, todo um estado de guerra, em

Minas Gerais, já era um fato consumado para os observadores mais imparciais.

No Palácio das Laranjeiras reinava relativa tranqüilidade e o Presidente João

Goulart, ao ser interrogado, por mim, sobre os fatos que corriam, sobre a situação do

Estado de Minas Gerais, me respondia que havia muito boato... A preocupação do

Presidente e de todo o seu Gabinete Militar era a concentração de sargentos e cabos no

Automóvel Club. Notícias chegavam, a todo instante, de que o número de participantes

iria ultrapassar vinte mil. Ninguém fazia conta do tamanho do Automóvel Club. Às

perguntas mais indiscretas e realísticas, respondiam que era bom que a massa de

sargentos e praças represassem pelos jardins do Passeio Público. Optantes da Polícia

Militar e Civil e do Corpo de Bombeiros da Guanabara também iriam comparecer.

A preocupação do Gabinete Militar da Presidência da República não era com vistas

aos acontecimentos de Minas Gerais. Dominava a todos a preocupação de não faltar

transporte para os manifestantes.

Enquanto Mourão Filho, Carlos Luis Guedes e Magalhães Pinto punham já a tropa

na rua, para marchar para o Rio de Janeiro, e se articulavam com Adhemar de Barros no

sentido de que as tropas de São Paulo, simultaneamente, convergissem para o mesmo

objetivo, o General Assis Brasil e toda a oficialidade da Casa Militar da Presidência

consumiam as melhores horas de articulação e vigilância não na defesa do Governo,

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mas no empenho de ser realizada, no Automóvel Club, uma manifestação

consagradora...

O quadro me fazia lembrar uma situação semelhante em João Pessoa, na Paraíba,

embora sem a gravidade dessa. Véspera de eleição. Nós, do Partido Social Democrático,

nos achávamos tão eufóricos com a vitória, na eleição, no dia seguinte que, já à noite,

nos reuníamos nos bairros, em churrascos cívicos, comemorando a sagração dos nossos

candidatos, enquanto os adversários udenistas se esparramavam pelo, bairros

distribuindo chapas eleitorais dos seus candidatos, rasgando as nossas e substituindo-as

pelas deles... Entre o nosso churrasco e o trabalho dos adversários, não houve outro

caminho para a decisão das urnas. Perdemos...

Uma voz cheia, enérgica, serena mas sincera, em tom até dramático, fazia-se ouvir

no apartamento privado do Presidente. Reunidos a ele apenas o autor, Samuel Wainer,

Raul Riff, General Assis Brasil, Jorge Serpa e Amaury Silva. Era Tancredo Neves que

aconselhava o Presidente a não comparecer à reunião, acrescentando que seria uma

provocação, sobretudo depois dos acontecimentos da Marinha, que ainda não estavam

com a sua situação resolvida. Sustentava o líder do Governo, na Câmara dos Deputados,

que a conduta do Presidente, naquela hora, teria que somar e nunca que criar condições

polêmicas que pudessem ser exploradas por uma imprensa que estava lançando muita

lenha na fogueira de uma guerra civil. Salientava Tancredo Neves que motivos havia -os

de sobra para o Presidente desculpar-se a não comparecer. A crise na Marinha era o

argumento razoável e suficiente. Um representante autorizado, com um discurso

eloqüente, daria a presença do Presidente e evitaria conseqüências imprevisíveis.Além

do mais, o General Jair Dantas Ribeiro - que teria aprovado a reunião e compareceria -

achava-se hospitalizado e o seu estado de saúde, irão sendo bom, seria um pretexto a

considerar,para justificar-se a ausência do Presidente. Só compreendia o

comparecimento do Presidente a uma reunião como aquela, numa luta armada, em que

dali saíssem tropas para o combate, pois teria ela o sentido de galvanizar as forças da

legalidade. Mesmo assim, só se o Presidente comparecesse já com todo o seu Estado

Maior militar, como se já estivesse numa campanha. Tancredo Neves até se expôs aos

desagrados do Presidente. Apesar de toda a intimidade entre ambos, sentia-se que o

Presidente estava algo incomodado, pois logo mais se retirava para uma sala e não via

mais o seu líder na Câmara dos Deputados.

Todos concordavam, discretamente, com a tese de Tancredo Neves. Ninguém

sabia, entretanto, o que se iria se desenvolver dali por diante e, por isso mesmo,

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aguardavam, com impaciência, a palavra do General Assis Brasil. De fisionomia

carregada, o chefe da Casa Militar pronunciou algumas palavras incisivas, afirmando

que ninguém, na Presidência da República, tivera um dispositivo militar como o Sr.

João Goulart. Salientou ainda que a manifestação tinha o concordo de todos os

Ministros Militares, que a ela iriam comparecer. Ainda ouço as palavras proféticas de

Tancredo Neves: – “Deus faça com que eu esteja enganado, mas creio ser este o passo

do Presidente que irá provocar o inevitável, a motivação final para a luta armada!”

Daí para adiante, os telefones não paravam. As primeiras notícias do Automóvel

Club eram desanimadoras. Havia pouca gente. Surgiam as explicações de que o pessoal

da Vila Militar não havia chegado ainda. Esclareciam que tinha havido dificuldades de

transporte. Falavam em sabotagem. Diziam que alguns comandantes de tropas tinham

criado dificuldades ao comparecimento dos sargentos e cabos à reunião. Alegavam,

ainda, que os promotores da reunião não se haviam organizado devidamente.

Ninguém falava da necessidade de a tropa ficar de prontidão em face das noticias

alarmantes de Minas Gerais. Ninguém falava mesmo na situação de Minas Gerais.

Dominava a todos a perspectiva de êxito ou fracasso da manifestação.

Era tal o otimismo com relação ao dispositivo militar do Presidente da República,

que muitos exclamavam que era ótimo mesmo que os inimigos botassem a cabeça de

fora para serem esmagados. Só assim, saberia o Governo com quem contaria para a luta

das reformas...

Afinal, já 20 horas, veio o sinal de partida. O Automóvel Club estaria superlotado.

Todos os Ministros presentes, eu, Oliveira Britto, Wilson Fadul, Expedito Machado,

Paulo Mário, Anísio Botelho e Oswaldo Lima Filho iríamos na frente. Aguardaríamos o

Presidente já na mesa diretora da reunião.

A chegada dos Ministros ao Automóvel Club foi contagiante. Grande massa, à

entrada, nos aplaudia a todos. Da porta principal à mesa central, as aclamações não

pararam. Havia mesmo delírio nos aplausos. Sentia-se a confiança de todos os presentes

nos auxiliares do Presidente João Goulart. Comovi-me até com as aclamações nominais

que me faziam. Só o Almir ante Aragão me vencera nos aplausos.

Era evidente, entretanto, que ali não estavam mais de dois mil sargentos e cabos,

pois todo o salão repleto indicava a presença de numerosos civis e inúmeras famílias.

Era uma grande reunião, mas não teria o significado que a ela se queria emprestar, de

fazer sentir aos adversários que vinte mil sargentos e cabos estavam ao lado do

Presidente João Goulart contra a reação.

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No Automóvel Club não caberiam vinte mil sargentos e cabos, nem tampouco as

guarnições da Guanabara poderiam esvaziar-se de sargentos e praças, sobretudo com os

ventos de guerra soprando das montanhas mineiras. Creio até que generais bem

advertidos, apesar de amigos leais do Presidente, autorizaram o comparecimento só de

parte dos seus graduados, reservando-se para uma eventualidade.

Notei a ausência de oficiais- generais das três armas. Oficiais generais amigos e

decididos, que conhecia e que não se achavam ali. Alguns amigos também estranharam.

Pensei que todos deviam estar à frente de suas tropas, mas, ao mesmo tempo, num

almoço no dia anterior, Domingo de Páscoa, tinha estado eu até com comandantes de

tropas do Sul, que aqui se achavam, passando tranqüilamente a Semana Santa ... E que

Semana Santa tranqüila havíamos passado! Sublevação de marinheiros, regresso

inopinado de Jango, do Rio Grande, reuniões sucessivas até de madrugada, trabalho sem

cessar durante o dia e a noite, a semana inteira! Não obstante, algumas guarnições do

Sul estavam sem seus comandantes, que passavam a Páscoa na Guanabara...

Falaram vários oradores. Monótonos uns, exaltados outros, objetivos poucos, mas

tudo num ambiente de contagiante entusiasmo. Tudo tinha o calor e o aspecto de uma

marcha para a vitória. Comandantes leais dispondo de inferiores daquela têmpera,

generais amigos com uma juventude daquela nos quartéis, ninguém teria coragem de

enfrentar o Presidente.

Escalado para falar, enchi-me de entusiasmo e de confiança num Governo que

tinha massa, dispunha de tropa leal, aguerrida e entrosada com seus princípios e que

ainda possuía o maior trunfo para uma luta, que era a legalidade.

Com o povo, com as Forças Armadas e com a legalidade, não haveria o que temer!

Na cabeça do Presidente deviam estar também estas razões. A sua fala foi forte,

entusiástica e até parecia uma palavra de ordem para medidas conseqüentes no campo

das reformas. Falara como um chefe que dispõe de tropas invencíveis.

Sempre observei que, por duas coisas, o Presidente não escondia a sua paixão: o

povo e a Força Armada. Em qualquer oportunidade, deixava ele qualquer ambiente para

se deixar ficar horas em palestra com um general amigo. Nas manifestações públicas,

quer em recinto fechado ou aberto, os responsáveis pela sua segurança pessoal

passavam aperturas. O Presidente se, deixava envolver pelo povo, com um riso de

satisfação que o dominava inteiramente, fazendo-o esquecer outro compromisso já

marcado pelo seu dedicado Eugênio Caillard.

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Naquela noite, como na sexta-feira, 13, o Presidente da República estava entregue

ao seu próprio destino e à sua vocação. Era todo povo e todo Força Armada.

Lembro-me, entretanto, da fisionomia carregada do General Bomtempo, chefe do

Gabinete do Ministro Jair Dantas Ribeiro e seu substituto eventual já há alguns dias,

como também do ar inquieto do Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Anísio Botelho,

quando o cabo Anselmo – mal saído da sublevação da Armada, foi levado por um

graduado das Forças Aéreas até a tribuna, recebendo as palmas delirantes de toda a

assembléia.

Era visível o constrangimento de muitos de nós que estávamos sentindo que a

presença do Anselmo era contraindicada naquele instante. Associava, mais ainda, à

reunião dos acontecimentos da Marinha. Estava ainda aquele inferior da Marinha em

vésperas de responder a inquérito e ali se achavam o Presidente da Republica e o

Ministro da Marinha.

A situação foi tão incômoda que logo o retiraram do lado do orador, levando-o para

o fundo do palco. O cabo Anselmo ainda não havia baixado à terra. Estava sublimado.

Parecia fora da terra. Dava, sem dúvida, a impressão nítida, de quem não tinha preparo

nem condições psíquicas e intelectuais para viver aquela posição de herói, em que o

haviam colocado até mesmo a imprensa que combatia a sublevação dos cabos e

marinheiros.

Ninguém tinha dúvida de que se o Presidente havia comparecido àquela reunião, se

havia pronunciado discurso tão veemente e forte nas suas adjetivações de endereço certo

e se contava, naquela ocasião, com dispositivo militar de segurança tão ostensivo,

ninguém tinha a menor dúvida de que os adversários do Governo estariam, àquela hora,

desarvorados. Teria pois razão o General Assis Brasil: nenhum Presidente da República

tivera, até os dias correntes, um dispositivo militar tão poderoso!

Estávamos, apenas, há quarenta e oito horas do desmoronamento desse dispositivo

do modo mais espetacular que já se realizara na República Brasileira!

oObviamente, aquela massa saiu dali até mais confiante do que o próprio Jango.

Dificilmente, nós, Ministros, conseguimos tomar os nossos automóveis. Perdemo-nos,

uns dos outros, nos braços do povo. Reunimo-nos, mais tarde, em um restaurante da

cidade, que, por sinal, estava repleto de simpatizantes da causa do Governo. Todos nós

recebíamos cumprimentos e acenos cordiais de congratulações. Havia, em todos,

entusiasmo e muita confiança no futuro. O povo, realmente, estava do nosso lado e

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esperava do Presidente ação a seu favor no campo das suas reivindicações mais caras e,

sobretudo, no combate aos seus exploradores.

No fundo, entretanto, de cada um de nós e a fisionomia do Ministro Oliveira Britto

não escondia – havia uma dúvida, uma desconfiança. Uma grande interrogação presidia

a todos os nossos pensamentos.

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XVI - Ato Final

MANHÃ cedo de terça-feira, 31 de março. Os jornais não deram tempo para uma

melhor reflexão. Páginas inteiras ampliavam a seu modo, de acordo com a linha política

de cada um, os acontecimentos do Automóvel Club, juntando-os aos da Marinha. Era

muito barulho de uma só vez sobre a frente governista. De Minas continuava a soprar o

vento da revolta. As notícias se amiudavam, em nada favoráveis para a situação

governista.

Telefonemas de amigos inquietos davam conta do clima de agitação e de apreensão

reinante. Ninguém estava tranqüilo. Os mais confiantes nos então poderosos

dispositivos governamentais, os mais radicais até em favor de programações radicais do

Governo, jornalistas, cronistas, políticos, toda a gente enfim, com quem tive contato

nessa manhã, mostrava-se insegura e nervosa. Algo no ar perturbava o ambiente,até o

familiar. Várias foram as amigas de minha mulher que lhe telefonaram perguntando o

que havia, pois diretores de colégio estavam fazendo voltar seus alunos para casa, na

previsão de graves acontecimentos.

Notícias me chegavam da interdição, pela Polícia Estadual, das ruas de acesso ao

Palácio Guanabara. Falavam até em cerco do Palácio das Laranjeiras, onde se achava o

Presidente João Goulart. O noticiário radiofônico, aqui e ali, deixava escapar notícias

intranqüilizadoras e mesmo alarmantes, juntando-se estas àquelas que eram ouvidas das

emissoras de São Paulo e de Minas Gerais.

O clima era, sem dúvida, de guerra.

Saí para despachar com os meus auxiliares. Todos me trouxeram noticias

semelhantes e todos estavam preocupados. Caminhões do governo da Guanabara

bloqueavam inúmeras ruas do Flamengo, das Laranjeiras e de Botafogo. A Polícia

Estadual estava mobilizada para a guerra. Nas imediações dos seus quartéis, os

quarteirões estavam impedidos. Tinha-se mesmo a impressão de que o governo da

Guanabara havia, realmente, tomado conta da cidade e que tinha começado a ofensiva.

Só não eram vistas, em todo o centro da cidade, tropas federais. Nós, do Governo, nos

sentíamos como numa cidade ocupada pelo inimigo e até sem segurança individual.

Noticias chegavam de buscas pela Policia Estadual, Civil ou Militar, de amigos nossos

em suas próprias residências.

Confesso que, ao atravessar as ruas Voluntários da Pátria e São Clemente, vias de

acesso para a minha residência, não me sentia seguro, com um quartel em pé de guerra

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perto da Real Grandeza. Já, na noite anterior, observei anormalidades nas imediações,

com reforço de patrulhamento em áreas distantes do quartel.

Mobilizei o pessoal de segurança do Ministério da Justiça com receio até de que

viesse o mesmo a ser ocupado pelos adversários. Determinei que os optantes da Polícia

Militar e Civil e do Corpo de Bombeiros se encontrassem nas suas sedes provisórias,

assim como recomendei aos seus comandantes que entrassem em ligações com o I

Exército, para se inteirarem da situação e se integrarem, se fosse o caso, às tropas do

Exército. Não dispunham os optantes de armas, pois começávamos a organizá-los em

unidades, iniciando-se as compras de armamento e fardamento que, obviamente, ainda

não haviam chegado ao Ministério da Justiça. Mais de cinco mil homens disponíveis e

habilitados, mas inteiramente desarmados, era essa a força dos optantes.

Procurei discipliná-los, determinando que os optantes da Polícia Militar ficassem

sob as ordens do I Exército e os do Corpo de Bombeiros sob o comando do Corpo de

Fuzileiros. Todo o pessoal da Polícia Civil ficaria mobilizado, aguardando ordens

exclusivamente do meu gabinete, para qualquer ação ofensiva ou de segurança.

No Palácio das Laranjeiras, aonde cheguei no mesmo dia, antes das 12 horas, já era

o ambiente um pouco diferente. Ou havia muita calma e muita segurança, ou as fontes

de informação da Presidência da República falhavam ou poupavam o Presidente do

dissabor das más notícias.

Impressionou-me a aparência de calma do Presidente. Achava que havia muito

boato. Não se mostrava seguramente informado do que se estava passando, nem mesmo

na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Sucediam-se audiências, umas

necessárias ao momento, outras ainda de rotina.

No Gabinete Militar da Presidência da República, apesar do esforço de vários dos

seus componentes, sobretudo oficiais mais novos, as notícias eram escassas. Às minhas

indagações do que se passava, realmente, em Minas e na Guanabara, as respostas eram

inseguras e até cheias de evasivas.

Assisti, impressionado, os ajudantes de ordens do General Assis Brasil, perto das

13 horas, ainda no telefone para o Ministério da Guerra, sugerindo que se mandasse

observadores a Juiz de Fora e a Belo Horizonte para se informarem, com segurança, do

que ocorria. Na rua, já era público o movimento sedicioso de Minas, chefiado pelo

Governador Magalhães Pinto e Mourão Filho. Já eram ouvidas até proclamações. No

Palácio da Presidência da República, ainda se falava em observadores para apalpar uma

situação que já era do domínio público.

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Lembro-me que, às minhas indagações, informavam-me que do Ministério da

Guerra haviam falado com as guarnições de Juiz de Fora e de Belo Horizonte e que seus

comandantes esclareciam que estava tudo em ordem, sem anormalidades. Afirmei que

se estas houvessem, obviamente, os seus responsáveis não iriam denunciá-las. Fazia

parte da prudência dos que se levantavam em armas, fazia parte mesmo do mecanismo

tático do rudimentar principio conspiratório, prosseguir com o elemento surpresa até o

máximo, ganhando tempo e deixando o Governo ar.

Ao correr os dedos pelo teclado da máquina, agora, fico a imaginar como poderia

aninhar-se, na cabeça de gente com tanta responsabilidade com a segurança do

Presidente e do Governo, tal ingenuidade. Que mundo de anjos, que cabeça de

dispositivo militar tão oca e tão pobre de argúcia e de decisões!

Não tive aí mais qualquer dúvida quanto ao nosso destino. Continuava o Ministério

da Guerra sem titular, apesar de o seu Ministro merecer admiração pelas suas atitudes

coerentes, firmes e prontas. Estava ele, porém, num leito de hospital. Um corpo sem

cabeça começava a ser atacado. Desde menino que as leituras das guerras, das

revoluções e dos “putsch” me indicavam que, sem comando único, as vitórias são

impossíveis. Nós estávamos até piores, pois não só não havia comando único para as

forças do Governo, como o seu ponto-chave, o centro nervoso de todo o dispositivo

militar que era, sem dúvida, o Ministério da Guerra, estava vago por impedimento de

saúde do seu titular.

Na crise dos marinheiros pude bem aquilatar a falta do Ministro Jair Dantas

Ribeiro, quando vi, no I Exército, inúmeros generais leais e dispostos, atônitos, sem

decisões prontas e perplexos ante a sucessão dos fatos.

Quem daria ordens para os quatro Exércitos, que tinham à sua frente generais de

tradição como Amaury Kruel, Justino Alves Bastos, Benjamim Galhardo e Moraes

Âncora? Quem conjugaria Marinha, Aeronáutica e Exército para uma ação comum

contra os focos de infecção da lei e da ordem e que, naquele instante, eram apenas focos

localizados e localizáveis? Quem faria sentir a todo o dispositivo militar, do Amazonas

ao Rio Grande do Sul, que havia um homem no comando geral das forças do Governo?

Quem imprimiria às massas confiança na ação militar em favor do Presidente da

República? Quem faria sentir aos governantes estaduais que um pulso dirigia a

legalidade? Quem assinaria os boletins militares para a Nação permanecer ao corrente

dos acontecimentos? Quem, afinal, daria as ordens de marcha para a sufocação da

resvolução que nascia e, como todas, ainda informe, insegura e desordenada?

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Ninguém. Nem mesmo o Presidente João Goulart que não se revelava nem com

índole bélica, nem tampouco com conhecimento exato do que se passava. Um

Presidente civil, numa hora de revolução, cobre apenas com a sua autoridade legal as

ações militares de defesa do Governo. Como comandante supremo das Forças Armadas,

um Presidente civil fica na dependência dos planos táticos e estratégicos dos seus

Ministros Militares e, sobretudo, do seu Ministro da Guerra.

Na ausência do Ministro da Guerra, como era o caso, o que se via era a confusão no

barco situacionista até mesmo com relação à extensão dos acontecimentos.

De fora, comandantes leais, da Marinha, Aeronáutica e Guerra, reclamavam, pelo

telefone, a ausência de planejamento e de ordem. Fuzileiros, acronautas e poderosos

grupamentos da Vila Militar prontos para a defesa do Governo, sem terem a quem se

dirigir e a quem sequer apelar para ouvir uma voz de comando. Afora o Forte de

Copacabana, cuja notícia de sublevação somente se espalhou e foi conhecida do Palácio

das Laranjeiras na quarta-feira, quando já tudo ia por água abaixo, nenhuma defecção se

operava no dispositivo militar governista da Guanabara.

Já pelo começo da tarde, a Casa Militar da Presidência começou a se inquietar com

o cerco, agora ostensivo, do Palácio Guanabara pelas forças policiais do Estado. Com

esforço e muita movimentação, pois se sentia, claramente, que havia dificuldades, lá

pelas bandas do Ministério da Guerra, para a vinda de reforços de tropa para a

segurança do Presidente no Palácio das Laranjeiras, foi conseguida a limpeza de

algumas ruas de acesso, apreendendo-se muitos caminhões de lixo e carroças do

governo do Estado.

Em várias oportunidades, tinha o I Exército ocupado o Rio, restringindo a área de

movimento do Governador. Além do grande comício de sexta-feira, 13, cuja

repercussão, tanto nos círculos governistas como antigovernistas, fora enorme, inúmeras

foram as vezes em que o Governador da Guanabara se amendrontara, até na expectativa

de que havia chegado a hora de sua deposição.

Lembro-me que, quando da realização de comícios contra a carestia, o Cel. Borges,

Chefe de Polícia da Guanabara, determinou a sua proibição de fato, uma vez que não

permitia a passeata, da Central do Brasil para o local da concentração, que era em frente

ao antigo Palácio Tiradentes. O Gen. Jair Dantas Ribeiro protegeu os sindicatos, cercou

toda a área do Palácio Tiradentes, policiou toda a Avenida Presidente Vargas, garantiu

as estações das Estradas de Ferro Leopoldina e Central do Brasil e ainda assenturou

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perfeita e normal retirada dos manifestantes, quando do término do comício, não

havendo nenhuma anormalidade.

No grande comício da Cinelândia, quando do aniversário da morte do Presidente

Vargas, igual demostração de força foi feita, de forma espetacular até. Era a presença do

General Jair Dantas Ribeiro.

No caso da Faculdade Nacional de Filosofia, o Governador da Guanabara

permaneceu mais de quatro horas na rua e o Exército, com várias patentes das mais altas

no local, não permitiu o seu ingresso no Salão de Honra da Faculdade, onde se realizaria

a solenidade programada para a exaltação da figura do Governador. Assisti a tudo da

janela do Gabinete do Ministro da Educação e pude bem verificar a disposição das

forcas federais, com relação ao Sr. Carlos Lacerda.

Em Recife, nas grandes manifestações populares que cercaram a visita do

Presidente da República, inclusive à zona campesina de Massangana, o Exército estava

presente e maciçamente. No Piauí, foi o mesmo espetáculo de segurança militar e de

apoio popular. No Rio Grande do Norte, ainda se fala na grandeza da manifestação

prestada ao Presidente, quando da inauguração da energia elétrica de Paulo Afonso.

Ainda aí, e de maneira inequívoca, o Exército garantia o Presidente, com poderosa

exibição de força.

Em Porto Alegre, São Paulo, Salvador, Volta Redonda etc., o Presidente estava

sempre envolvido pelo verde oliva.

Daí a minha surpresa, na terça-feira, 31 de março, quando senti, pela primeira vez,

o Presidente quase sozinho. Creio que até receios de ser preso, pelas forças do Cel.

Borges, deve ter ele tido, pois, durante todo o tempo, achava-o desconfiado e

apreensivo.

Todos os amigos que chegavam ao Palácio das Laranjeiras falavam na completa

insegurança das autoridades e dos próprios amigos do Governo, pois o Governador

Lacerda, com a sua Polícia, que devia ser mínima com relação ao grosso das tropas leais

que se achavam na Vila Militar, estava absoluto na cidade. Estava, como se poderia

dizer na gíria, dando as cartas e jogando de mão... Ninguém compreendia mesmo o que

estava acontecendo! Por que a cidade não era ocupada ostensivamente como das outras

vezes? Por que o Cel. Borges parecia o próprio comandante do I Exército no domínio

das posições estratégicas da cidade? Por que não se ouvia a zoada de um tanque? Por

quê?

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Aviões na Base de Santa Cruz roncando para a luta, fuzileiros bem armados e com

a melhor disposição de ânimo ansiavam por uma ordem de combate e fortíssimas

unidades do Exército como o GUEs ficaram com os seus comandantes esgotados à

espera de uma palavra de ordem que nunca chegou ...

Enquanto isso, faltava força até para a segurança pessoal do Presidente no Palácio das

Laranjeiras, e para chegar, até lá, um choque blindado, passou-se todo o dia de terça-

feira na espera. Somente chegou no fim da noite.

Era impressionante a desarticulação. Várias vezes os Generais Moraes Âncora,

Milton Barbosa, Bomtempo e até mesmo Pery Bevilacqua estiveram no Palácio das

Laranjeiras. Nada mudava a perspectiva. Entravam e saíam e o clima de tensão era o

mesmo.

Quem conversasse com os três primeiros generais, sairia, sem dúvida, mais

preocupado. Não sabiam nem mesmo das notícias já divulgadas pelas rádios, nem

traziam para o próprio Presidente da República notícia de qualquer movimento ofensivo

ou defensivo que indicasse a presença do dispositivo militar do Presidente nos

acontecimentos.

Até a madrugada de terça-feira, nem no Palácio das Laranjeiras nem no Palácio da

Guerra se sabia de qualquer coisa positiva com relação ao General Amaury Kruel, nem

muito menos sobre o ambiente militar de São Paulo. Igualmente nada se sabia com

relação ao General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército. Falava-se, ainda,

àquela altura, que o General Ladário Teles rumara para o Rio Grande do Sul, a fim de

assumir o comando do III Exército, de vez que o General Benjamim Galhardo não tinha

aprovado à sua frente. Também se dizia que os Generais Crisanto Figueiredo e Silvino

Castor da Nóbrega haviam-se dirigido ao Paraná para reassumirem os seus postos em

Ponta Grossa e em Curitiba.

Na verdade, jamais estes dois últimos generais chegaram aos seus destinos. As

notícias foram sempre desencontradas. Até mesmo as oficiais. Ora se falava que o

General Crisanto invadira já São Paulo, ora se informava que o General Silvino

controlava toda Curitiba, tendo o Governador Ney Braga sob o seu controle. Na

realidade, ambos não desceram no Paraná, ou por dificuldade do tempo, ou porque as

tropas já se tivessem sublevado. O fato é que dois grandes e leais comandantes, na hora

da borrasca, estavam de férias...

O General Ladário, segundo notícias muito filtradas da Casa Militar, estava

encontrando dificuldades no Rio Grande do Sul. Chegara à última hora, com uma

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situação já deflagrada e os planos conspiratórios traçados e os conspiradores já

compromissados. Era homem forte, disposto e muito firme para com o Governo, mas

ninguém realiza milagres. Não seria em 24 horas que o General Ladário iria transformar

um Exército numa unidade fechada aos trabalhos e infiltrações de desagregação que, há

tempo, já se faziam sentir.

Toda a tarde de terça-feira levou o Presidente sem uma definição clara do que

pretendia fazer. Consumira em conversas e audiências que, bem pesadas, não estavam

trazendo contribuição efetiva para a sufocação do movimento.

Entre as audiências, uma deve ter sido proveitosa, a do Marechal Osvino Ferreira

Alves. Disse este cabo-de-guerra ao Presidente que tinha, quando no comando do I

Exército, um plano para ocupar, em qualquer emergência, a cidade do Rio de Janeiro

em hora e meia. Acrescentou que, à frente da Petrobrás, somente poderia tomar

providências complementares, mas que aguardava ordens sobre o “front” que deveria

ocupar. Após a audiência, o Marechal Osvino palestrou nas ante-salas, com ar grave, e

sempre a dizer que o Governo, nos setores militares, estava inteiramente desorientado.

Disse que havia sugerido ao Presidente da República a nomeação imediata de um

Ministro da Guerra, mesmo interino, e a deflagração imediata da ação repressora ao

movimento.

Entre uma obrigação e outra, lá vinham notícias de S. Paulo e de Minas, captadas

sobretudo pelo rádio. Não havia mais dúvida sobre a sublevação mineira. As tropas do

General Mourão Filho já marchavam para a fronteira do Estado do Rio. Em São Paulo,

dizia-se, até aquela hora, que generais leais estavam sendo presos e o interventor da

Companhia Telefônica, General Puertas, com o jornalista Nélson Gato, chefe do setor

de repressão ao contrabando, achavam-se cercados pela Polícia do Governador

Adhemar de Barros. Falas de Adhemar na televisão, proclamações e convocações à luta

eram divulgadas sem qualquer controle mais do CONTEL (Conselho de

Telecomunicações). O Cel. Adhemar Scaffa, presidente do Conselho e homem da

melhor categoria moral, social e militar, comunicava-me que o II Exército não dava

cobertura à determinação do Conselho. Por isso, não havia como controlar as

comunicações de rádio e de televisões, em São Paulo. Tentei falar várias vezes com o

General Amaury Kruel, não sendo possível. Reuniões impediam o comandante do II

Exército de ser encontrado.

Em face dessa e de outras, fui sentindo que as notícias, espalhadas e de origem

paulista, de que o General Amaury Kruel marcharia ao lado dos revolucionários contra

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Jango eram verdadeiras. Assisti, várias vezes nesse dia e pela madrugada adentro, o

Presidente falar com o General Amaury Kruel. Apesar do cuidado do Presidente nas

suas respostas, como que a nos esconder a realidade de São Paulo, pude bem colher a

verdade nua. Justamente aquele general sobre cujos ombros estavam todas as

responsabilidades de uma situação militar decisiva para o Governo, justamente o

General Amaury Kruel, em cuja atitude todo o Estado-Maior do I Exército depositava as

suas esperanças de êxito e, ainda, a sua própria disposição de marchar para o campo da

luta pela legalidade, justamente esse general, efetivamente, não estava mais com o

Presidente.

Às nossas perguntas, Samuel Wainer, eu, Riff, Serpa e pouquíssimos outros mais, o

Presidente sempre respondia evasivamente e quase que textualmente: – “Kruel –vai

bem... é meu amigo, esta comigo, mas... sempre falando nesse negócio de comunismo,

na infiltração do CGT, no PUA, nessas bobagens que eu liquido em dois tempos. Vai

bem...”

Às minhas solicitações para falar ao General Amaury Kruel, para garantir a ação do

General Puertas no controle das rádios e televisões de São Paulo, sempre o Presidente se

descartava, encaminhando-as para o General Assis Brasil.

Afinal, a primeira proclamação lançada pelo General Amaury Kruel, na qual ainda

abria portas para um recuo do Presidente, no caso de libertar-se de Dareyi Ribeiro, Raul

Riff, CGT, PUA e UNE, estabeleceu pânico entre os militares presentes. Não havia

dúvidas quanto à posição do General Kruel. O Presidente, que conversara amiúde com

ele pelo telefone, entenderia melhor a proclamação.

Nova reunião de Ministros Militares e alguns generais, sem qualquer conseqüência

satisfatória. Os Ministros Civis dela não participaram. A uma minha pergunta, na

presença de vários colegas do Ministério, sobre a necessidade de uma demonstração de

existência do dispositivo militar do Governo, o General Moraes Âncora, coadjuvado

pelo General Bomtempo, respondeu, sem muita convicção, dizendo que a cidade estava

entregue à Marinha e à Aeronáutica, para que o Exército pudesse concentrar todos os

seus elementos em operações pesadas. Nessa ocasião, foi o Presidente convencido de

que o General Cunha Mello, comandante das tropas federais no Estado do Rio, já à

frente de poderosos contingentes, achava-se em Paraibuna e, logo pela madrugada da

quarta-feira (1º de abril), com cobertura da Aviação, romperia as linhas mineiras e

deveria chegar, no mesmo dia, até Juiz de Fora. Em todas essas 24 horas de sublevação,

foi a única notícia positiva mesmo, sobre deslocamento de tropa e expectativa de ação.

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O Estado da Guanabara continuava entregue à Polícia do Governador Lacerda, com as

ruas atravancadas e as autoridades e amigos do Governo expostos a toda sorte de

violência.

Em nenhum momento, o Presidente João Goulart foi informado da posição e

situação do General Castello Branco – homem que a Revolução revelou, no seu capítulo

final, ser o verdadeiro chefe e o seu paciente articulador.

Ao ser preso, no final dos episódios, no começo da noite de quarta-feira, conduzido

para a Escola de Estado-Maior, pude bem aquilatar como o Presidente e nós, seus

auxiliares, andávamos enganados sobre as proporções da sublevação, até mesmo no Rio.

Toda a Praia Vermelha era uma praça de guerra muito bem defendida. Note-se, praça de

guerra preparada só por oficiais da Escola Técnica do Exército e da Escola de Estado-

Maior. Não havia inferior, nem cabo, nem sargento, nem praça. Tudo era de tenente

para cima. Gente aguerrida, disposta, unida e com um comandante que era o seu ídolo,

General Jurandir Bizarria Mamede, diretor da Escola de Estado-Maior, homem

estudioso, sereno, educado e que gualdvanizava mais de 200 oficiais, que se

transformavam em várias companhias não só pelas qualidades técnicas como pela sua

politização. Eram oficiais fanáticos à causa e ao seu comandante. Dificilmente uma

força se poderia dispor a atacar tão qualificados combatentes. Compreendi por que o

General Moraes Âncora, respondendo a perguntas sobre onde andava o General Castello

Branco, respondia que o Chefe do Estado-Maior do Exército havia passado até às 14

horas da terça-feira (31 de março) no Palácio do Ministério da Guerra, acompanhado de

muitos oficiais armados e que dali já se havia retirado, tendo o General Bomtempo

acrescentado que todas as dependências do Estado-Maior estavam fechadas. Senti, em

ambos os generais, o alívio de ter o General Castello Branco se retirado,

espontaneamente, do Palácio da Guerra, sem ser molestado, à frente dos seus oficiais,

que constituíam, sem dúvida, o núcleo central da Revolução. Recordo-me que era

doutrina vitoriosa, nos altos comandos militares janguistas, a transferência de oficiais

oposicionistas ou mesmo duvidosos para as regiões do Norte e Nordeste e para o

Estado-Maior e a Escola Superior de Guerra. Sempre se alegava que o IV Exército não

teria maior importância num movimento, pois a situação se decidiria em São Paulo, Rio

Grande e Guanabara. Nem Minas Gerais entrava nas cogitações. Por isso mesmo, os

Generais Mourão Filho e Carlos Luís Guedes, apontados sempre como contrários ao

Presidente, eram ali mantidos como inofensivos comandantes de pequena tropa.

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A Revolução mostrou justamente o contrário. Foi de Minas que veio o primeiro

grito e de onde se ouviram os primeiros passos pelas estradas rumo ao Rio de Janeiro.

De Recife, vieram as primeiras demonstrações da extensão do movimento, com a

ação rápida do General Justino Alves Bastos contra o Governador Miguel Arraes e todo

o dispositivo governista da época.

Da Escola de Estado-Maior, veio não apenas o chefe da Revolução, como também

o atual Presidente da República. Da Escola de Estado-Maior surgiu todo o comando

revolucionário. Da Escola de Estado-Maior surgiram os planos de ação. Da Escola de

Estado-Maior deve ter surgido toda a filosofia do movimento revolucionário.

Alegavam, ainda, que no EMFA, no Estado-Maior do Exército e na Escola

Superior de Guerra não havia tropas e os generais se perderiam, como no 11 de

novembro de 1955 se perderam Cordeiro de Farias, Juarez Távora, Jurandir Mamede

etc.

Esqueciam-se, entretanto, da contaminação do movimento através da cátedra.

Desses altos centros de estudos técnicos e profissionais, devem sair alunos para todas as

guarnições. Devem sair mentalidades formalmente contra toda uma situação política.

Deve sair uma consciência, como saiu, que daria corpo a um movimento armado de

estatura e de base.

Sobre comandos de guarnições distantes como as do Maranhão, Paraíba, Piauí,

Amazonas etc., entregues a adversários, as argumentações se revestiam da mesma

ausência de conteúdo e densidade. Não decidiriam essas guarnições nenhum movimento

militar. Sempre achei que, juntas todas, a força seria grande e de repercussão em várias

camadas sociais, políticas, administrativas e mesmo militares da Nação. A Revolução de

1930 foi praticamente decidida quando todo o Nordeste caiu nas mãos de José Américo,

Juarez Távora e Juracy Magalhães, de vez que todo o Norte tomou igual destino e na

Capital da República começou logo a medrar a idéia da pacificação. Sabiam os mais

radicais da República Velha que seria impossível uma retomada do Poder com áreas tão

extensas nas mãos dos chamados revolucionários de trinta. Muitos governadores de

Estado foram derrubados pelo telégrafo. Outros não chegaram a esboçar a menor

resistência e fugiram por mar. E tudo em conseqüência da junção de pequenas unidades

da Federação que eram, como agora o foram novamente, subestimadas não apenas na

sua capacidade de luta como na de repercussão nos quadros da opinião pública nacional.

Que papel de importância não exerceu, agora, um General Justino Alves Bastos, no

comando do IV Exército? Que decisão não teve, em tudo isso, um comandante de

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guarnição do extremo norte? Que força de convicção não teve na Paraíba, por exemplo,

um modesto Cel. Ávila, comandante do 15º Regimento de Infantaria, que não só atuou

no Estado como assistiu às guarnições de Pernambuco, na mesma medida em que o

antigo 22º B. C., também de João Pessoa, atuou em 1930, dando sangue novo aos

tenentes que haviam fracassado no primeiro ímpeto de rebelião junto ao 21º B.C.,

localizado em frente à velha Faculdade de Direito da hoje Universidade do Recife?

Tenho comigo um telegrama curioso de governador de Estado pequeno que ao enviar

emissários ao Presidente João Goulart, na manhã da terça-feira (31), com as mais firmes

disposições de apoio à legalidade constitucional, já de terça para quarta-feira se

manifestava, no despacho, muito discreto e até desconfiado, começando assim: –

“Acuso recebimento seu telegrama que me dá notícias até às 22 horas de ontem ...

espero entrar em contacto com o Governador Magalhães Pinto para interar-me

devidamente da situação etc...” Outros agiram de forma diferente, mas com a mesma

indecisão e sob pressão de comandos militares regionais. Assisti o Presidente João

Goulart falar pelo telefone com vários deles e, até horas antes do desmoronamento da

situação governista, as manifestações de lealdade, de apoio a ordem, à política do

Presidente e às forças da legalidade eram absolutas e inequívocas... Todo o quadro se

alterava rapidamente, por força da ação desses comandantes, dos quais ninguém tomava

conhecimento!

Obviamente, tinha sido errada essa política de, concentrar comandantes leais nos

grandes centros, despreocupando-se com as menores guarnições. Havia que ser feita

uma política de esclarecimento, de catequese, de mobilização espiritual e de

arregimentação, uma vez que desde os últimos dias de Getúlio Vargas se sentiam sulcos

se abrindo nas Forças Armadas, enquanto outras Armas eram como que totalmente

envolvidas por um sentimento contrário aos governos que se sucederam até agora.

Juscelino Kubitschck lutou para ser candidato, lutou para eleger-se, lutou para tomar

posse e lutou para manter-se no Poder. Tolerante, magnânimo, otimista e despido de

sentimentos de ódio ou de vindita, Juscelino Kubitschek pôode governar até o fim, sem

maiores e mais profundas crises, apesar de Aragarças, Jacareacanga etc. Dizia -me

sempre o ex-Presidente mineiro: – “No Brasil, elege-se pelo povo, mas governa-se com

os olhos voltados para as Classes Armadas...” Noutra oportunidade, quando os

Ministros Militares se mostravam indóceis com relação à aprovação, pelo Congresso, da

chamada Lei da Paridade, recomendando-me o adiamento “sine die” da proposição,

acrescentava: – “Ou comando ou serei comandado”. No caso do porta-aviões, que

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despertou tanta controvérsia e luta interna mesmo entre a Aeronáutica e a Marinha,

afirmava-me, recomendando a aprovação do crédito para a sua aquisição: – “Com o

porta-aviões deixarei de ser inimigo da Marinha e, ao mesmo tempo, serei esquecido

pelos partidários do Brigadeiro (Eduardo Gomes) que, de outra maneira, não me

deixarão governar”. Promovendo o Almirante Pena Botto, concedendo anistia aos

rebeldes de Jacareacanga, 24 horas após a sufocação do movimento, o atual senador

goiano esclarecia: “Não se governa sem mártires nem com caprichos...”

Mas força é não esquecer que, durante todo o seu Governo, manteve na Pasta da

Guerra o Marechal Lott e este o seu dispositivo militar de 11 e 21 de Novembro de

1955, muito azeitado e para funcionar a tempo e a hora. O Presidente João Goulart, em

pouco mais de 3 anos de Governo, teve 4 Ministros da Guerra, não tendo nenhum tido

tempo de formar nada de concreto no que diz respeito a esquema militar. Um General

Nélson de Mello, um Jair Dantas Ribeiro e um Amaury Kruel não poderia m realizar

milagres com meses apenas de Ministério. Qualquer um deles seria osso duro de roer,

com tempo de sobra para firme atuação. Nisso o Presidente João Goulart não foi em

nada discípulo de Getúlio Vargas, que, durante quinze anos de Governo, teve Dutra no

Ministério da Guerra por quase dez anos e outros tantos o General Góes Monteiro. Já no

seu segundo Governo, mexendo muito com o Ministério da Guerra, encontrou-se na

situação que o levou ao suicídio!

É lugar comum o de que “a História se repete”. Por que? Será que os homens mais

inteligentes, mais sábios, mais manhosos mesmo, no Poder, se esquecem das lições da

História? Hitler não procurou afogar a sua tática militar pelos mesmos caminhos de

Napoleão, que terminou em Santa Helena? Não jogou a sua esquadra pelos mesmos

caminhos marítimos pelos quais Filipe de Espanha se lançara contra a Grã-Bretanha?

Não abriu duas frentes para uma Alemanha cujo Estado-Maior Militar se horrorizava,

através dos séculos, com a perspectiva constante de ter de lutar em duas frentes?

E era Hitler!

* * *

Creio que o Presidente João Goulart somente veio mesmo a sentir toda a extensão

do movimento revolucionário e a gravidade da sua própria situação, quando, na

madrugada de quarta-feira (1º), soube que todo um regimento das forças do General

Cunha Mello, que devia ocupar, Juiz de Fora naquele mesmo dia, havia-se passado todo

inteiro, inclusive com um grupo de Artilharia, para o lado do General Mourão Filho.

Este fato foi guardado até à derrocada final. Nenhum Ministro soube e creio que o da

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Aeronáutica e o da Marinha só vieram a sabê-lo pelo General Assis Brasil, já o

Presidente em Brasília.

A idéia de nomear o General Âncora, Ministro da Guerra, e o General Oromar

Osório, comandante do I Exército, já se concretizara muito tarde, quando toda a Nação

sentiu, e principalmente os comandantes das guarnições mais longínquas, que as forças

de apoio ao Presidente não tinham um comando único, nem tampouco um Ministro da

Guerra no posto. A proclamação pela disciplina e pela legalidade, do Marechal Lott, não

podia produzir mais efeitos, pois o barco governamental já adernava e o seu esquema

militar se esfacelava rápida e estrondosamente!

Toda uma semana de crise na Marinha, com os seus efeitos reforçados pela

assembléia dos sargentos, nada influiu para a revisão do dispositivo militar governista.

Nenhum ato, nenhuma providência, nenhuma medida, nenhum plano,enfim, foi

esboçado. O Presidente João Goulart se perdia em conferências com militares e civis,

permanecendo as suas forças nos quartéis, enquanto Kruel e Mourão Filho convergiam

para o Rio de Janeiro.

Também chegava tarde ,a tomar corpo, no pensamento do Presidente, a sugestão,

que ninguém sabe de onde havia partido, de se entregar o Ministério da Guerra e o

Comando Supremo das forças legais ao Marechal Lott. Animava o Presidente a idéia de,

com isso, chegar a uma condição satisfatória, deixando o Governo nas mãos de um

homem firme, de tradição legalista, que poderia pacificar a Nação sem retrocesso nas

suas conquistas políticas e sociais e mesmo com espírito reformista. Não havia mais

condições de sustentação do Governo para uma parlamentação desse tipo. Quando o

General Âncora foi parlamentar com o General Kruel, já não era o comandante de um

Exército, mas um soldado vencido que apenas iria acertar a rota dos vitoriosos para

neutralizar possíveis choques e perdas inúteis de vidas, humanas.

Pela manhã de quarta-feira, o Presidente João Goulart se mostrava visivelmente

abatido e perplexo. A nenhum Ministro fez qualquer recomendação e nenhum Ministro,

para ser verdadeiro, sabia de nada. Nenhum sabia nem onde se achavam os rebeldes,

nem onde estavam as forças legais.

O Governador Badger Silveira, por várias vezes, telefonou e eu não soube

responder, porque ninguém me informava, nem mesmo o General Assis Brasil, onde se

achavam as forças do General Cunha Mello que se dispunham a dar combate às do

General Mourão Filho. Informando-me o governador fluminense, certa vez, que tinha

conhecimento de que o General Mourão Filho já se achava à frente de suas tropas em

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Três Rios, a 1 hora do Rio, procurei esclarecimentos do General Assis Brasil que,

depois de muitas reticências, me confessava que o General Cunha Mello estava com os

seus soldados em Areal, muito mais perto ainda do Rio. A luta nas margens do

Paraibuna não tinha havido e felizmente...

Igualmente, numa oportunidade, quando se pensava, pelas informações oficiais,

que o General Zerbine continha o avanço do General Kruel em Jundiaí (a elevação do

terreno permitia uma resistência) e que grossos contigentes da Vila Militar (as melhores

e mais equipadas tropas) estavam rumando para reforçarem as forças do General

Zerbine, eis que impactou toda gente, no Palácio das Laranjeiras, a notícia de que as

forças do General Kruel já estavam em Resende e que a Escola Militar, também

rebelada, já marchava para o Rio.

O Palácio das Laranjeiras estava repleto por toda a manhã de quarta-feira. Havia

entusiasmo, disposição e firmeza em inúmeros amigos do Presidente. Acabava eu de

deixar o microfone da Rede da Legalidade (criação espontânea minha e do Riff para se

esclarecer a Nação, para se noticiar só fatos, para se transmitir à Nação a palavra de

ordem do Presidente) por volta das 12 horas e 30 minutos deste mesmo dia, quando o

telefone me chama. Era Raul Riff que, de casa, me comunicava que o Presidente havia

voado para Brasília. Não soube ele acrescentar e o que teria ido fazer o Presidente em

Brasília, onde os contingentes militares eram escassos. Desde a noite anterior que o

Presidente falava em ir a Brasília, enquanto todos nós o aconselhávamos a desistir de

viajar, porque a resistência (se é que podíamos chamar de resistência a estagnação das

forças legais), no Rio, se esfacelaria com a sua ausência. Após sua saída, quem estava

no Palácio das Laranjeiras foi vendo que se aproximava o fim da festa, pois as tropas

que o garantiam já começavam a abandoná-lo, inclusive o contigente de fuzileiros que,

aproximadamente às 14.30 h, já o deixava, rumo ao Ministério da Marinha. Ficara o

Palácio das Laranjeiras com uns 8 Ministros de Estado, com o Chefe da Casa Militar,

com o presidente da SUPRA e vários outros auxiliares do Governo, quase que

inteiramente desguarnecidos. Só um choque da PE do Cel. Ventura ainda dava sinal de

existência no Parque Guinle! Das varandas do Palácio das Laranjeiras, mostrei ao

Ministro Oliveira Britto as forças do Governador Lacerda andando pela Rua das

Laranjeiras.

Nessa altura, Pedrinho (Pedro de Castro um serviçal do Presidente, modesto e

humilde), que me tinha muitas atenções e respeito, revelando-se mesmo zeloso em

muitas oportunidades pela minha segurança, chamou-me a um canto e me cochichou: –

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“Ministro, o patrão, de Brasília, deve ir para Porto Alegre, pois ouvi quando, pelo

telefone, acertava ele a ida de um “Coronado” da Varig para Brasília , a fim de ficar à

disposição da Presidência da República. Fale com o Berta para arranjar outro avião e vá

embora com os outros Ministros, para Brasília ou Porto Alegre”.

Esta foi a mensagem melancólica mas verdadeira, que chegava aos Ministros de

Estado de toda a situação governista. Era a voz de um doméstico, humana porém, que

vinha como um roteiro. Era mais um companheiro de infortúnio que nos advertia,

verdadeiramente, da situação do que mesmo um empregado do Presidente!

Provoquei, em seguida, o General Assis Brasil e este, afinal, se resolveu a explicar

tudo aos Ministros – Amaury, Oswaldo Lima, Britto, Expedito, Fadul, Anísio Botelho,

Pinheiro Neto

e eu. Levou o Chefe da Casa Militar a contar coisas que já sabia, há mais de uma

hora. Não sabia, entretanto, para onde os Ministros deveriam ir, se para Biasília, Porto

Alegre ou se deviam permanecer no Rio (na cadeia, sem duvida). Não havia condições

de permanência no Rio, obviainente, pois, àquela altura, já a televisão do Palácio

mostrava que tudo havia acabado. Achava-se, no vídeo, o Governador Carlos Lacerda, e

as câmaras mostravam, com muita nitidez, vários tanques, daqueles que, há alguns

minutos, pareciam nos garantir no Palácio das Laranjeiras, com as suas guarnições se

apresentando ao governador guanabariano.

Resolvemos todos falar com o Presidente pelo rádio. Informamos que iríamos

todos para Brasília naquele instante.

Precisamente às 17.30 h, deixávamos o Palácio das Laranjeiras, justo quando o

último choque da PE do Exército também o abandonava e já começavam a chegar

curiosos e grupos lacerdistas. Todo o percurso até o comando da 3ªZona Aérea, no

Santos Dumont, foi feito sob tensão. O aspecto da cidade era o de uma praça de guerra,

ocupada por tropas inimigas. Na fisionomia de muitos, surgiam traços de vanglória, na

de outros, talvez, até de pena dos que se estavam retirando, batidos e desorientados...

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XVII - A Prisão

SEM rumo programado, antecipadamente, pelo Chefe do Governo, que se achava em

Brasília, e sem sabermos para onde, afinal, se dirigiria ele, nem tampouco quais os seus

planos ou sua estratégia político- militar, chegamos todos ao Aeroporto Militar do

Santos Dumont, onde fomos recebidos pelo Cel. Alvarez, substituto, no comando, do

Brigadeiro Francisco Teixeira, que se achava no Aeroporto Militar do Galeão, em

conferência com o Ministro da Aeronáutica e seus oficiais de maior confiança. O

ambiente era de derrota. Fisionomias tristes e perplexas. Ambiente de desolação até na

fisionomia dos subalternos. Muita cordialidade para todos nós e unia uma interrogação

se estampava em todos os que nos olhavam.

Havia um “Avro” (avião turboélice de transporte do Gabinete Militar da

Presidência da República) em condições de voar imediatamente para Brasília. Faltava

chegar o Gen. Assis Brasil que saíra conosco, na mesma hora, do Palácio das

Laranjeiras. Pela sua demora, tivemos até preocupações com o destino do Chefe da

Casa Militar da Presidência. Só muito mais tarde, já asilados na Embaixada do Peru, é

que soubemos ter sido a demora motivada pela sua ida à residência, para ver a família.

Acontece que nenhum de nós tínhamos tido este privilégio...

Na espera da hora da partida do “Avro”, decorrida quase uma hora, senti, pelos

olhares dos oficiais para o pátio do Aeroporto, que algo de anormal estava- se passando.

Quase que me achava certo de que chegavam revolucionários à minha busca. O sexto

sentido funciona rapidamente!

Poucos minutos depois, o Cel. Alvarez, muito emocionado, me procurava

discretamente, distante dos demais Ministros de Estado para me informar que uma

patrulha de oficiais da Escola de Estado- Maior do Exército se achava em uma das salas

do comando, com ordem de me conduzir preso. O Cel. Alvarez e o seu ajudante de

ordens, Tenente Farias, sugeriram-me fugir por uma das portas do comando que dava

acesso ao interior do quartel, onde se achavam viaturas que me conduziriam para

qualquer lugar que desejasse. Respondi ao Cel. Alvarez e ao Tenente Farias que estava

muito reconhecido pela sugestão e pelo interesse que tomavam pela minha pessoa, mas

que nada tinha a temer e nem iria comprometê-los numa fuga até inglória. Ao consultar

os meus colegas de Ministério da decisão que iria tomar (Ministros Amaury Silva,

Expedito Machado, Wilson Fadul, Oswaldo Lima Filho, Oliveira Britto e Pinheiro Neto,

presidente da SUPRA), naquela oportunidade histórica, ouvi Wilson Fadul, muito

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pálido, me dizer que era um caso de consciência. Respondi que apenas participava a

minha decisão para ouvir opiniões dos colegas, uma vez que não queria que qualquer

atitude minha prejudicasse a qualquer deles ou alterasse os planos delineados pelos

Mmesmos.

Dirigi-me, com o Cel. Alvarez e o Tte. Farias, à sala onde se achava a patrulha

comandada pelo Coronel Hiram. Todos portavam metralhadoras. Eram seis. Três mais

graduados, de major a coronel, e três outros de menor patente. Embaixo, quando da

minha partida, verifiquei que ainda os acompanhavam outros oficiais, igualmente

armados de metralhadora. Nessa altura, o Comandante Artur Benigno, meu assistente

militar no setor da Marinha, com muita dignidade fez questão de me acompanhar.

Na troca rápida de palavras formais da ordem de prisão e, obviamente, do seu

acatamento, fiz entrega ao Cel. Alvarez da minha carteira de Deputado Federal,

pedindo-lhe para fazer chegar às mãos do Presidente da Câmara, Deputado Ranieri

Mazzilli (mais tarde vim a saber que, mais ou menos naquele instante, 18.30 h, assumia

ele a Presidência da República), a fim de que tivesse conhecimento de que estava sendo

violada minha imunidade, assegurada pela Constituição da República. À saída do

gabinete, lembrei-me que estava armado e, espontaneamente, fiz entrega da minha

pistola “Walter”, com dois pentes de balas.

Num Volkswagem dirigido por um oficial, acompanhado de mais dois outros e

mais do Comandante Artur Benigno que, com rara dignidade e bravura, fez questão,

junto ao Coronel que comandava a patrulha, de acompanhar o “seu Ministro até o fim

da jornada”, cortamos o aterro da Glória, atravessamos Botafogo e chegamos,

precisamente às 19.20h, à Escola de Estado-Maior do Exército, localizada na Praia

Vermelha. Alguns outros carros acompanhavam o Volkswagem. Do começo da

Avenida Pasteur até à Escola, a praça era de guerra. Vários obstáculos espalhados pela

Avenida e ao longo de toda a praça central da Praia Vermelha. Não vi soldados. Toda a

tropa era de oficiais graduados e com metralhadoras. Senti, mais uma vez, como

estavam enganados aqueles que subestimavam as Escolas do Exército e que, para elas,

fizeram concentrar toda a oficialidade hostil ao Governo da Repúblic a! Aqueles que

achavam que comandar Escolas de Estado Maior, de Aperfeiçoamento e Técnica

constituía tarefa sem maior importância para uma ação militar, deviam ter visto o que

vi. Sim, compreendi que impossível seria a vitória completa do Governo. Aquela

oficialidade estava disposta a tudo. Não se entregaria e nem se renderia, fosse qual fosse

a sorte da luta. Eram fanáticos, como já disse. Nas fisionomias de cada um, senti

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lampejos até de ódio. Ouvi imprecações contra mim, como ouvi protestos contra aquela s

explosões de ira. Ouvi bem quando muitos reprimiram, em voz alta, um grito ainda mais

alto que me feriu a sensibilidade, apesar de minha preparação espiritual para enfrentar

um ambiente que já imaginava que fosse de exaltação e de trepidação revolucionárias.

Pela disposição que tomaram os que me conduziam, ladeando-me com suas

metralhadoras, percebi que o Comandante da Escola devia ter recomendado toda

segurança e proteção à minha pessoa física.

Uma praça de guerra como aquela, para ser sufocada, destruída e vencida, haveria

de ser um preço muito alto para a democracia brasileira. Poucos seriam os comandantes

legais que teriam a decisão de ordenar o ataque. Dificilmente, a paz voltaria a reinar no

País, se, por infelicidade, se desse o choque de armas.

No interior da Escola era maior ainda a aglomeração. Passei por corredores como

uma estranha figura, que todos quisessem ver como era. Só readquiri tranqüilidade

quando uma voz segura me abriu uma porta dizendo: “Esteja como na sua casa,

Ministro Jurema”. Contrastava aquela fidalguia com o ambiente de tensão. Há mais de

72 horas que não tomava conhecimento de tanta polidez. No interior da sala de

comando, o Cel. Paiva Chaves e o Major D’Aguiar seguiam o seu comandante, General

Jurandir Bizarria Mamede, na sobriedade dos gestos e atitudes, mas, por igual, na

cortesia e no respeito a uma autoridade de um Governo vencido.

Fui, realmente, um prisioneiro privilegiado, apesar da impressão colhida

desfavoravelmente à entrada da Escola. Só quando o General Mamede e os seus

auxiliares se ausentavam por um momento da sala, para atenderem telefonemas ou

adotarem providências exigidas pela hora, era que o ambiente se toldava. Vários foram

os oficiais de menor patente e bem mais jovens que ingressaram na sala, nessas

ocasiões, para matar a curiosidade e, uns poucos, para lançar alguns impropérios ou

insultos, que eu ouvia sem empáfia e sem valentia arrogante, mas com altivez,

compreendendo que não podia esperar outra coisa de um fanático, que a própria luta e a

tensão dos últimos dias fizeram ainda mais extremado. Apenas me preocupava a minha

insegurança ali, pois bem imaginava que, apesar de toda a preocupação para me pôr à

vontade, sem que me sentisse prisioneiro, não teria o General Mamede condições para

assegurar integralmente minha própria vida ou minha integridade física.

A conversa com o General Mamede, começa da várias vezes e interrompida outras

tantas elos chamados telefônicos que recebia e até por visitas de oficiais, inclusive a de

um general, que quase ia sendo atingido à entrada do edifício, por não obedecer ao sinal

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e advertência de uma sentinela, prolongou-se noite adentro. Sempre o General fazia

questão de me dizer que não me achava preso, mas sob a proteção do Exército, pois na

rua não havia segurança para mim, de vez que bandos armados do Governador Lacerda

e fuzileiros sem comando inquietavam toda a cidade. Na minha presença, falou pelo

telefone com o General Castello Branco e me transmitiu, também, a mesma afirmativa

de que me achava sob a proteção do Exército.

Essa conversa foi agradavelmente interrompida por duas vezes. Uma quando

chegou a esposa do Comandante Artur Benigno e a outra quando me surpreendeu o meu

parente João Carlos Pessoa de Oliveira, moço de pouco mais de vinte anos, que, ao

tomar conhecimento da minha prisão, rompeu todas as barreiras, arriscou-se e chegou

até a mim, trazendo não só o conforto de sua presença, como notícias de minha família.

Curioso, julgava o João Carlos um “playboy”, de caráter, mas sem maior senso de

responsabilidade. A sua bravura e, sobretudo, o seu “fair play”, naquela hora realmente

de perigo, me surpreenderam. É uma das coisas que guardo com maior carinho na

minha memória. Este gesto, de um jovem ainda imberbe, me impressionou vivamente.

Jantei com o General Mamede, sentados à mesa apenas o Comandante Artur

Benigno, o Major D’Aguiar e o Cel. Paiva Chaves. Para aumentar a intensidade da hora,

o garçom que nos servia desmaiou ao nos servir, levando, na queda, a bandeja de

serviço. Nos olhos do Comandante Benigno, via sempre estampada a emoção e, ao

mesmo tempo, a sua preocupação com o meu destino. Que correção!

Afinal, lá para duas da madrugada, fiz a seguinte sugestão ao General Bizarria

Mamede: “Se estou preso, General, nada terei a dizer, pois prisioneiro não tem vontade.

Se não estou, quero dispensar a proteção do Exército a fim de evitar que, amanhã, na

Câmara dos Deputados, se diga que um seu membro foi violado na sua imunidade

constitucional. Não deixarei que se faça a menor exploração a respeito e contarei,

fielmente, o que se passou. Acho natural tudo isso, mas me impressiona não apenas a

minha detenção como parlamentar, mas a minha insegurança pessoal, apesar de toda a

sua boa vontade e correção. Assim, faço a minha sugestão que é a de ter a proteção do

Comando da Escola de Estado-Maior até um ponto qualquer da cidade e, daí, o destino

que tomar será de toda a minha responsabilidade. Iria para uma residência de um

parlamentar que o General conhece e nela ficaria, à disposição do Comandante da

Escola de Estado-Maior, para qualquer explicação, esclarecimento ou informações, pois

não tenho crimes a responder. Servi a um Governo constituído. Servi lealmente e

respondo pelos meus atos. Não me omiti, não me escondi e, na hora de sua sustentação,

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também estava no “front” que me cabia”. Era uma proposta leal que fazia e somente o

General Mamede saberia onde me encontrar.

Ouviu o General Mamede, calado e sério, a minha sugestão. Falou, em sala

reservada, pelo telefone, com o General Castello Branco e, minutos após, com um riso

nos lábios, vinha me comunicar que o General Castello Branco havia aceito a minha

proposta. Iria me dar segurança e proteção até a Praça José de Alencar (a escolha deste

logradouro me ocorreu pelo hábito de almoçar e jantar freqüentemente no “Parque

Recreio”). Daí, eu rumaria para a casa do meu amigo congressista, para quem telefonei,

apenas conseguindo falar com a sua corajosa esposa que, informando-me que o seu

marido se achava em Brasília, acrescentou, com muita decisão e firmeza, que eu podia

ir que ela já ia preparar o apartamento de hóspedes. Já passavam de duas da madrugada

e esta senhora tomou todas as providências para me receber e me resguardar na sua

residência, arrostando com todas as conseqüências de um estado de guerra que ainda

não se normalizara.

Na minha residência, aguardava João Carlos Pessoa de Oliveira o meu chamado.

Veio incontinenti, acompanhado de outro amigo, um engenheiro que conheço, há

muitos anos, da Paraíba. Passaram, novamente, todas as barricadas, com ordens do

General Mamede e chegaram até onde eu me achava, no gabinete do Comando.

Na minha caminhada de regresso, pelos corredores da Escola, o ambiente era diferente.

Havia oficiais graduados de fisionomias cerradas, mas todos disciplinadamente

acompanhando a cena com discrição e respeito ao prisioneiro. O General Mamede me

acompanhou até ao automóvel de João Carlos. Ao meu lado, um coronel foi abrindo as

barreiras. Seguia-nos uma Kombi, com o Major D’Aguiar e outro oficial. Ao terminar a

Avenida Pasteur, o coronel que vinha no meu carro saltou. Prosseguimos, seguidos

sempre pela Kombi do Major D’Aguiar. Na Praça José de Alencar, o Major D’Aguiar se

perfila e bate continência, dizendo: – “Está finda aqui a minha missão. Felicidades,

Ministro Jurema”.

Que dignidade, que fidalguia, que correção, que compostura e que elegância de um

vencedor para um vencido, demonstrava o Major D’Aguiar! Era, realmente, um oficial,

na luta, na vitória e no trato com prisioneiros!

Na Rua das Laranjeiras, perto do novo viaduto que leva ao Túnel Catumbi-

Laranjeiras, o trânsito estava fechado por numerosos caminhões com tropas do

Governador do Estado. Valeu-nos, aà distância, a faixa amarela dos veículos do Estado.

João Carlos manobrou rápido o Gordini e rodamos desorientados as ruas do Catete e a

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pista do aterro. Impossível seria a passagem para a Zona Norte. Ou se iria pela Rua

Gomes Freire, onde a Polícia de Lacerda tinha o seu quartel general, ou pela Avenida

Presidente Vargas onde, em frente ao Ministério da Guerra, deveria haver muita tropa

concentrada.

Acolheu-me um amigo, bem em rua discreta e casa mais discreta ainda.

Era madrugada alta de quarta para quinta-feira (1º de abril). Recebi, ainda, amigos

decididos que me queriam ajudar. Tive noticias da família. Acertamos planos para

minha ida a Brasília a fim de reassumir o meu mandato de deputado. Era a minha meta.

Voltar ao posto para o qual me conduzira o povo paraibano e pela segunda vez. Dormi

tranqüilo, na expectativa de conseguir alcançar Brasília, por qualquer meio de transporte

à mão.

Sexta e sábado se passaram sem que as coisas, clareassem. Vários amigos tiveram

os seus esforços baldados na busca de um meio de condução que me levasse a Brasília.

Afinal, na manhã de domingo, os amigos acordaram que só haveria um recurso, o asilo

numa embaixada, pois o Deputado Neiva Moreira, que havia conseguido embarcar num

“Caravelle” para Brasília, à altura da nova Capital, teve o seu avião de regresso ao Rio,

por ordem do Comando Revolucionário e estava preso numa fortaleza. Brasília já não

oferecia segurança nem mesmo aos parlamentares. A Revolução alcançara outra etapa.

Não seriam respeitados os mandatos eletivos de qualquer figura comprometida com o

Governo deposto. O Presidente Ranieri Mazzilli havia mandado informar a minha

esposa que não podia me dar garantias e que, possivelmente, até ela própria teria que

comparecer à Polícia para prestar esclarecimentos...

Nessa altura, já a minha casa havia sido varejada por duas vezes pelos policiais do

conhecido Borer. Armados de metralhadora, voluntários e policiais submeteram minha

mulher e meus filhos aos atropelos e vexames de uma busca pelas dependências da casa

modesta em que resido, na Rua Cesário Alvim, 27, em Botafogo. Até tiro dispararam no

portão para amedrontar mulheres e crianças. E de tudo ficou a coragem de minha

mulher. Não houve amigos que conseguissem retirá-la de casa com as crianças.

Permaneceu nela e ainda permanece, Sem temer novas “visitas”, novos vexames, novas

arbitrariedades. Ao vasculhar por debaixo da cama do meu quarto, o irmão do Borer

ouviu de um jovem paraibano que havia servido no meu gabinete: – “O senhor já viu

paraibano se esconder debaixo da cama?” De minha mulher, o mesmo Borer ainda

ouviu: – “Para prender um homem é preciso tanta metralhadora? Se meu marido aqui

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estivesse não fugiria nem resistiria. Ele não tem nada a temer. Bastaria o convite da

autoridade competente, para ser atendido. Meu marido não é criminoso nem covarde!”

Na lei das compensações naturais, até as provações, por mais duras que sejam, têm

o seu sentido e o seu significado. Guardei, de tudo o que se passara, mais esses gestos

do que mesmo todas as incertezas vividas, todos os percalços, todas as apreensões e

sofrimentos!

No dia 5 de abril, domingo, às 13.30 h, entrava eu na Embaixada do Peru, cujos

portões e cujos braços do Embaixador Cesar Elejalde abriram-se cordial e

acolhedoramente, não apenas por força do sagrado direito de asilo, mas pelos

sentimentos que inspiram uma personalidade simpática de um diplomata que, durante

37 dias, sempre cresceu, no meu conceito e na minha admiração, pelo seu sentimento de

solidariedade humana, pelo alto teor de sua formação pública e pela firmeza de

propósitos em assegurar, a todos os asilados sob a bandeira do Peru, as garantias mais

completas e inequívocas.

Foram 37 dias de recolhimento, mas de ambiente sadio, tranqüilo e hospitaleiro.

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XVIII - O Asilo

AO chegar à Embaixada do Peru, residência do Embaixador, na Avenida Pasteur,

146, lá já encontrei um asilado. Antônio Luiz Prazeres, chefe da secção de treinamento

de pessoal da Petrobrás. Chegara no sábado, à tarde, depois de ter verificado, nos dias

subseqüentes ao movimento, a impossibilidade de voltar ao trabalho e, o que era pior, a

de ficar em liberdade.

Depois das apresentações formais à Embaixatriz, ao Ministro-Conselheiro e ao

Primeiro-Secretário, recolhi-me à meditação. Tudo se desmoronara tão rapidamente que

ainda não tinha tido tempo de pensar na vida. Na vida daí por diante. Vivendo do dia a

dia, sem recursos em disponibilidade, percebendo vencimentos, com compromissos

permanentes de manutenção da família e, ainda, com compromissos assumidos na

própria luta pela existência, em padrões exigidos pelo meio em que vivia, obviamente a

minha situação, se não era das piores, afligia e preocupava.

Não era das piores e o tempo se encarregou de me tranqüilizar, pois o regresso do

meu filho mais velho, de Roma, não apenas confortou a todos, a mim e a minha família,

como me assegurava um mínimo de cobertura das despesas normais de casa, com os

vencimentos que percebia na Caixa de Amortização. As manifestações constantes dos

amigos, do Rio e da Paraíba, as mensagens dos parentes mais próximos, tudo isso

começou a me dar mais segurança com relação aos dias que se iam seguir.

Havia, no entanto, o problema da viagem ao exterior, por força do asilamento.

Durante os meus trinta anos de vida pública, dispondo de todas as facilidades para

viajar, somente conhecia Assunção, Lisboa e Nova York, graças às comissões com que

me distinguiu o Presidente Juscelino Kubitschek quando exerci a liderança do seu

Governo na Câmara dos Deputados. Preocupava-me, sobremodo, o vulto das despesas

com passagem e estadia. Sabia-as altas, por experiência. Evidentemente, não seria fácil

viver no exterior, sem fontes de renda e sem trabalhar.

Aos poucos, pelas mãos de amigos impressionantemente dedicados, essas aflições

foram sendo superadas. Eles se movimentavam e, com a colaboração efetiva e também

muito carinhosa, pude, afinal, armar-me para suportar o exílio, com padrões modestos,

obviamente.

Houve Mmanifestações comovedoras entre muitas que me tocaram, a fundo, a

sensibilidade. Um contínuo do Banco do Brasil, através de uma carta, revelando-se

paraibano, mandava-me, por um amigo, ajuda. Outras se seguiram e até dólares, em

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pequenas parcelas, chegavam minha casa para a minha mulher me entregar. As visitas

não pararam em minha casa e na Embaixada, apesar do clima de tensão em que se vivia.

É que a provação tem dessas coisas! De par com o sofrimento, com o isolamento da

família, com as restrições à liberdade, com as injustiças cometidas, com os maus

julgamentos, com a fuga de alguns colegas e amigos dos velhos tempos de fastígio,

seguiam-se gestos que sufocavam inteiramente as mágoas e abriam horizontes ao

espírito, que valiam por um Ministério perdido da noite para o dia! Valiam muito mais,

até por um reino deste mundo!

Recebi abraços que nunca se assemelham àqueles que são dados quando no Poder

da glória ou do dinheiro. Recebi-os com o coração ferido, embora, mas com a alegria

profunda que a certeza da sinceridade dessas demonstrações de afeto e de amizade

desperta e faz crescer. Ouvi palavras de sabedoria e de compreensão. Ouvi conselhos

profundos. Ouvi vozes amigas que nunca mais sairão dos meus ouvidos. Aos meus

olhos desfilam, diariamente, mesmo aqui em Lima, toda aquela gente boa que não se

perdeu através do trombetear dos rádios e de noticiário oficial e oficioso. Toda aquela

gente que, sem alterar julgamentos e sem revisionar conceitos, apesar do tempo e das

tempestades, veio até a mim e me dava uma absolvição o que vale mais do que a de

qualquer tribunal. Não foram às provas, não foram aos indícios, não escutaram os

libelos. Ouviram, apenas, a consciência. Sentia elevação destses gestos, que

representaram, no meu espírito, a sentença moral dos que acreditavam em mim,

continuaram a acreditar e nunca, em tempo algum, julgaram-me mau brasileiro, mau

amigo, mau pai, mau esposo e mau companheiro de trabalho e de luta.

Os 37 dias passados na Embaixada do Peru fizeram-me passar, e muito bem, no

teste do ostracismo e no do opróbrio a que, alguns pensaram me jogar. Se não dão

saudades, mataram, entretanto, as saudades de casa, fazendo-nos orgulhosos perante a

família. Ela não estavas sozinha no julgamento do seu chefe. Ela não choraria sozinha a

separação. Ela não derramaria lágrimas, porque também de orgulho se encheriam os

seus olhos e corações.

Até os atropelos naturais de uma vida em comum e em casa alheia, as cerimônias,

os constrangimentos e os conflitos de temperamento e de formação cultural e política,

tudo isto era superado pela romaria dos que ainda acreditavam em nós e a maioria deles

desvinculada de quaisquer compromissos políticos. Muitos deles nunca tiveram os seus

destinos vinculados ao meu. Muitos me acompanhavam, apenas, pelo rádio e pela

imprensa, face ao meu tempo muito escasso para estreitar amizades e convivências. O

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importante é que estavam ali na hora certa de destinos incertos. Estavam ali na

espontaneidade de atitudes e gestos que dão à vida beleza e felicidade.

Não fiquei sozinho na hora da adversidade e isso me basta mesmo.

* * *

Toda a segunda-feira (6 de abril) seguinte, na Embaixada, discorreu sem novidade.

Eu e o Antônio Prazeres, com o Embaixador ausente da Chancelaria (Av. Ruy Barbosa)

e a Embaixatriz também fora, atendendo a compromissos sociais, vendo os portões

abertos, sentindo que, na casa, só estavam os serviçais e ouvindo, pelo rádio, e lendo,

pela imprensa, as batidas do Borer, as buscas em domicílio, as prisões em massa e toda

uma série de violências que se seguia ao sucesso revolucionário, começamos a ter

conhecimento do que representava o instituto do asilamento. Garantia a nossa

integridade física apenas um símbolo. Não havia força alguma nem dentro nem fora da

Embaixada, apenas, da linha do portão para dentro, estávamos nós protegidos por uma

convenção de povos, por normas internacionais, por compromissos que nenhuma força,

até mesmo a de uma revolução, poderia quebrar.

Da nossa janela divisávamos o “Princesa Leopoldina” e víamos, ao longe, as

Fortalezas da Laje, Santa Cruz e São João que estavam, como diziam os jornais, repletas

de prisioneiros. Imaginávamos quantos injustamente ali estavam e sentíamos não terem

tido eles tempo ou idéia de alcançarem uma Embaixada, como a nossa, por exemplo,

onde, do Embaixador ao mais modesto serviçal, tudo era uma vontade só, em nos

acolher bem e com toda a dignidade.

Ao nosso lado havia um cinema cujas filas se esparramavam pelas calçadas da

Embaixada, à nossa frente o Iate Clube, cheio de vida e de mocidade, e, mais além,

contrastando com a Baía de Guanabara, presídios que falavam à nossa alma, indicando

como os erros dos homens que perdem e que vencem são comuns nos seus efeitos,

jogando na desdita gregos e troianos, inocentes e culpados, numa promiscuidade em

nada favorável aos destinos do País.

No correr da semana, foram chegando mais Hóspedes à Embaixada. Pela ordem,

foram entrando: advogado Magarinos Tôrres, radialista Hiran Aquino, industrial Otto da

Rocha e Silva e o psiquiatra Clidenor Freitas.

Todos jamais imaginaram ter de recorrer ao asilo. Vitoriosa a Revolução, cada um

pensou que, passados os primeiros instantes de vindita, de violência e de perseguição,

retornaria a Nação à vigência das suas leis que a formam uma Nação democrática.

Direta ou indiretamente, todos tinham servido ou ajudado, cooperado ou simpatizado

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com o Governo João Goulart. Nenhum, entretanto, julgou seus papéis à altura de ter que

recorrer ao asilo para que não sofresse os vexames de uma prisão e as humilhações de

policiais desarvorados, que nada respeitavam.

O psiquiatra Clidenor Freitas, por exemplo, achava-se em casa, no dia seguinte ao

sucesso revolucionário, arrumando calmamente as suas malas para regressar a Brasília e

se considerando já exonerado do cargo de Presidente do IPASE quando, do gabinete

daquela instituição previdenciária, um bom amigo anônimo lhe telefonou e recomendou

a sua fuga, pois, naquele instante, oficiais armados de metralhadoras o buscavam por

todas as dependências do IPASE, já tendo levado para as prisões um dos seus diretores,

Gamaliel Bueno. O médico já estava de passagem marcada para Brasília, com a

consciência tranqüila e à espera só de ser chamado, posteriormente, para

esclarecimentos ou mesmo defesa dos seus atos que, por certo, iriam ser, levados a

duras pendências. A partir daquele instante, a sua vida mudou e passou a ser um

fugitivo, de casa em casa de amigos, até à Embaixada, onde chegou com os nervos, o

corpo e o espírito esgotados pelo sofrimento e pelas injustiças. Dormiu doze horas

seguidas, restaurando-se fisicamente.

Assim, viveram muitos dos que se acham hoje no exílio ou ainda nas prisões que o

Brasil vê, pela primeira vez, mais cheias de acusados do que de criminosos, mais cheias

de suspeitos do que de réus, mais cheias de inocentes do que de culpados.

Já nos últimos dias do asilamento, chega de Minas Gerais o advogado Fabrício

Soares, ex-deputado estadual e procurador do IPASE. Estava também sob suspeita e

caçado pela Polícia se Minas e pelos “voluntários” de Borer.

Já antes alguns dias, o advogado Magarinos Tôrres, irrequieto e teimoso, trocava o

asilo da Embaixada do Peru pelo da Bolívia.

Nos dias 11 e 15 de maio, chegavam a Lima dois grupos de asilados. Primeiro

grupo: eu, Hiran Aquino e Otto da Rocha e Silva. Segundo grupo: Clidenor Freitas e

Antônio Luiz Prazeres. O advogado Fabrício Soares resolvera, na última hora,

abandonar o asilo para esconder-se em algum lugar, à espera de luzes para voltar aos

livros de Direito e aos processos do fórum.

Lima nos acolheu bem. Cidade limpa, plana, ampla e em pleno desenvolvimento. A

acolhida discreta dos peruanos, pelo temperamento e pela educação, não seduz à

primeira vista, mas acalenta, embala e esquenta a alma, pela fidalguia e, sobretudo, pela

mais absoluta compreensão e respeito às motivações que levam estrangeiros aos seus

horizontes.

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As portas de Lima se abriram tão largas como as da Embaixada no Brasil. E aqui

estamos cumprindo um destino, voltados para a Pátria distante, com o coração e o

espírito alimentados pelos mesmos ideais que já, por tantas vezes, tem sacrificado não

apenas centenas de milhares de presos e grande número de asilados, mas até gerações.

Que nos sacrifiquem a nós, mas não aquelas gerações que nunca se tornarão felizes

com as costas voltadas para as injustiças.

Nunca o ódio construiu.

“Só o amor constrói para a eternidade.”

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XIX - Diálogos

A DEMOCRACIA que, na sua essência, vive da convivência dos contrários, jamais

poderá subsistir no monólogo que a definhará até à morte. Sua consistência se apura no

debate, na controvérsia, no entrechoque das teses e idéias. Qualquer outra modalidade

que se lhe aplique, não apenas porá em curso o processo de distorção do seu conteúdo

moral e político, como se alterará toda a sua significação através da história da

humanidade. Toda a sua história é de lutas, de sangue, de sacrifícios, de suor e lágrimas.

Por isso mesmo é que grandes vultos, na história de todos os povos, que surgiram

para salvá-la, no delírio do Poder se perderam, e, ainda em seu nome, por algum tempo

a exerceram, deformada e deturpada, até à queda fatal. Há monumentos, nas praças

públicas, de reconhecimento pelo que representaram nas lutas libertarias, mas nunca

pelo que praticaram do alto, pensando, sem dúvida, em servi-la.

Napoleão aí está, de corso a imperador, de soldado do povo ao déspota que

terminou os seus dias em Santa Helena. Seus troféus e glórias servem para a exaltação

do ideário que simbolizou na época, mas nunca para o ditador, como paradigma (do

espírito francês.

Na sua visão de estadista, de político e de chefe, Getúlio Vargas, ao inspirar,

simultaneamente, a criação do Partido Social Democrático e do Partido Trabalhista

Brasileiro, nos começos da redemocratização política do País, procurou lançar bases

sólidas de uma democracia que resistisse aos embates ideológicos que já começavam a

agitar, mais intensamente, a vida brasileira.

Estava Luiz Carlos Prestes em liberdade e recebendo consagrações populares por

toda parte em que surgia. As chamadas classes dirigentes já apontavam, para o embate

político, divididas entre o varguismo e o antivarguismo, origens do PSD e da UDN.

Uma indústria nascente já dava oportunidade à expansão de um trabalhismo que se

avolumaria, com ou sem o PTB. Esse trabalhismo se misturaria a um populismo

preexistente ao desenvolvimento industrial e faria ainda mais crescer o “preéstismo” e,

conseqüentemente, o Partido Comunista Brasileiro. O PTB, na visão de Getúlio Vargas,

seria o dique a essa onda vermelha e, unido ao PSD, daria consistência à democracia em

nosso País.

Já se disse, e com muita razão, pelos fatos que têm ocorrido, que o PSD, sem o

PTB, marcharia para a reação absoluta. E o PTB, por sua vez, sem o PSD, Mmarcharia

para a revolução. Um completaria o outro, nas suas deficiências e defeituosas

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interpretações humanas dos fenômenos sociais. A aliança conteria os dois nos justos

termos. Nem muito ao mar, nem muito à terra. José Américo, o grande estadista

paraibano, dizia sempre, numa advertência ao seu povo e à própria gente brasileira, que

é preciso se dar alguma coisa hoje, para não se perder tudo amanhã!

A essa luta das esquerdas pelo controle do PTB, o Presidente João Goulart esteve

presente em toda a sua vida política. A princípio, de forma até inconsciente, disputando

a liderança e lutando pela sua consolidação. Na Presidência da República, não fez outra

coisa, lutando para não lhe fugir das mãos a liderança trabalhista cuja disputa não

apenas partia das esquerdas como das camadas mais esclarecidas do Partido Trabalhista,

como aconteceu com Alberto Pasqualini e Fernando Ferrari. Na Presidência da

República, jamais pensou em substituir Baeta Neves no exercício da Presidência do

Partido, se bem que conhecesse as suas deficiências e a sua curta projeção política.

Quando a Almino Afonso cresceram as asas, como Ministro do Trabalho, sobre o

campo trabalhista, logo Gilberto Crockat de Sá foi despachado para controlá-lo e em

seguida derrubá-lo.

Certa vez, simples deputado, ouvi do Almino Afonso, no seu gabinete de Ministro

de Estado, que não permitiria o “peleguismo” oficial como filosofia trabalhista e não

admitiria a existência dos Crockats de Sá nos sindicatos, federações e confederações do

trabalho. Julgava ter limpado a área de toda essa influência de Gilberto Crockat de Sá,

que vinha desde os tempos de Vargas.

No dia seguinte, ao chegar a Brasília, recebi um convite do Presidente para uma

audiência especial na Granja do Torto. À minha entrada, estava Gilberto Crockat de Sá,

muito à vontade e me dizia que “há três dias estava com o Jango que ainda não o

deixara regressar ao Rio, num repasso das providências a serem tomadas na área

trabalhista sindical...”

Compreendi, de logo, que o Ministro Alinino Afonso estava no chão. Lutara contra

uma tradição e fora facilmente vencido pelo ciúme do Presidente com aquele setor que

era seu, por herança política, e permanecia seu, pelo prestígio que já se consolidara nas

massas e ainda, obviamente, pela força da Presidência da República.

Pelas mesmas razões, nunca um Sérgio Magalhães teria força no trabalhismo

oficial. O Governador Miguel Arraes, na última convenção do PTB, em Pernambuco,

desejou ingressar no Partido Trabalhista. Já era um candidato ostensivo quase à

Presidência da República. Teve, Arraes, o seu ingresso barrado pelo Presidente.

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Na Paraíba, dispensava considerações especiais ao Senador Argemiro de

Figueiredo, Presidente do PTB regional, mas alimentava o prestígio do jovem Deputado

Assis Lemos junto aos trabalhadores e às Ligas Camponesas, mesmo contra o Senador

Argemiro de Figueiredo, como cuidado de evitar que Francisco Julião o arrebatasse.

Barros Carvalho, Bezerra Leite, Souto Maior, Oswaldo Lima Filho e alguns líderes

sindicais eram elementos da sua confiança, que punha de sentinela, em Pernambuco,

para evitar que Arraes dominasse a área trabalhista. O Padre Melo, figura singular de

pároco de aldeia, com larga irradiação nos campos agitados da zona canavieira de

Pernambuco, desfrutava de todo o seu prestígio, justamente para neutralizar e mesmo

evitar a predominância de Francisco Julião na área nascente do trabalhismo camponês.

Assim atuava o Presidente por todo o País. E, para conservar-se nessa liderança,

teria que dialogar com as esquerdas, conservá-las ao seu lado, simular-lhes prestígio,

ainda mesmo concessões que, aparentemente, poderiam significar rendição ou

envolvimento.

Em despachos subseqüentes à minha investidura, aplaudindo os meus

pronunciamentos de que seria, no Ministério da Justiça, o “homem do diálogo”,

recomendou-me: – “Converse com as esquerdas, dê uma conversada com Arraes,

dialogue muito e em toda parte, mas não dê nada às esquerdas”...

Evidentemente, ninguém governará bem o País, ignorando correntes de opinião. As

esquerdas constituem uma corrente. Muito dividida e sem um líder único, mas sempre

presentes em todas as lutas reivindicatórias. As maiores dificuldades, para se conter uma

greve, não eram encontradas na intransigência da massa trabalhista, mas na

radicalização de muitos dos seus líderes que, num jogo político, ampliavam as

postulações para se fortalecerem.

O Ministro Amaury Silva, na sua paciência beneditina, levava o diálogo por

madrugadas inteiras, esgotando-se em vão. Só a intervenção pessoal do Presidente da

República, às vezes até com ameaças diretas aos líderes sindicais, sobretudo àqueles que

sabia mais da extrema esquerda do que do trabalhismo petebista, com o seu

conhecimento pessoal de cada um, a sua experiência no trato com todos eles, a sua

autoridade de Chefe trabalhista e de Presidente da República, carreava sempre êxito às

suas intervenções.

Fortalecia-se o Presidente na liderança trabalhista, mas cada vez mais se

comprometia com as Classes Produtoras e com uma opinião pública trabalhada pela

oposição que jamais lhe deu tréguas.

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Ampliava-se a área de diálogo com as classes trabalhadoras, mas estreitavam-se as

condições para entendimento com as classes patronais que rapidamente, se foram

associando àquela oposição que engrossava à medida que os desajustamentos sociais

provocavam novas crises entre o cCapital e o Trabalho.

Dos contactos que tive com o Presidente, e que se amiudaram, obviamente, nos

nove meses que passei no Ministério, nada me levava a aceitar o seu envolvimento pelo

Partido Comunista. Disputava, sim, o comando das massas, com manobras até nas mais

das vezes audaciosas, nunca, porém, para distribuir as glórias com Prestes ou com quem

quer que aparecesse travestido nas roupagens de líder popular.

Faltou ao Presidente decisão de chefia, como, às lideranças populares que o

apoiavam ostensiva ou discretamente, faltou perspectiva histórica. O diálogo que se

abria para o debate amplo das idéias e das reivindicações, com o afastamento total da

velha tese de que a “questão social era um caso de polícia”, substituíram-no pelo

tumulto, pela agitação e pela seqüência de situações. Esgotaram a capacidade e as

reservas de resistência e de sustentação do Presidente João Goulart.

O processo democrático, numa República sacudida pelos efeitos multiformes do

seu vertiginoso crescimento, da transformação de sua sociedade tradicionalmente

agrária em sociedade agroindustrial, da participação dos trabalhadores, cada vez mais

presentes, nos comandos nacionais e da onda inflacionária que desajusta e inquieta a

maior parte da família brasileira, esse processo, para se conservar normal, dentro da

processualística jurídico-constitucional, teria que ser cuidado como uma planta tenra a

exigir paciência, renúncia, compreensão e transigência.

As radicalizações eclodiram por todos os lados e a violência surgiu como medida

que, a grandes forças, pareceu oportuna, numa adequação imposta e que o tempo será o

grande juiz da sua oportunidade e justeza saneadora.

Acima das contingências do momento, das injustiças e do arbítrio, mais alto e mais

forte falará a Nação.

Ouçam vencedores e vencidos os ecos do grito de Marat, do fundo da banheira em

que foi assassinado: – “Oh, Liberdade! Quantos crimes se cometem em teu nome!”