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REVISTA USP, São Paulo, n.53, p. 117-149, março/maio 2002 117 e a questão racial no Brasil imigração Colonização, GIRALDA SEYFERTH GIRALDA SEYFERTH é professora do Departamento de Antropologia, Museu Nacional – UFRJ.

SEYFERTH, Giralda. Colonização, Imigração e a Questão Racial No Brasil

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SEYFERTH, Giralda. Colonização, Imigração e a Questão Racial No Brasil.

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  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 117

    e a questo racialno Brasil

    imigraoColonizao,

    GIRALDA SEYFERTH

    GIRALDA SEYFERTH professora doDepartamento deAntropologia, MuseuNacional UFRJ.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002118

    O presente trabalho procura mostrar a

    influncia da idia de raa sobre os princ-

    pios que embasaram a poltica de coloniza-

    o no Brasil e as controvrsias relativas ao

    nucleamento de estrangeiros em colnias

    agrcolas no Sul regio onde ocorreram

    duas revolues de implicaes separatis-

    tas no sculo XIX e seus reflexos no dis-

    curso sobre nacionalizao, especialmen-

    te, mas no exclusivamente, no Estado

    Novo, perodo de desqualificaes mais

    radical das diferenas de natureza tnica e

    cultural, imaginadas como ameaa uni-

    dade do Estado-Nao.

    OS PRINCPIOS DA COLONIZAO

    EUROPIA

    A noo de princpios alude ao trabalho

    do gegrafo Leo Waibel, que estabeleceu

    um modelo analtico dos sistemas agrco-

    las produzidos pela imigrao europia nas

    regies de floresta do Rio Grande do Sul,

    Santa Catarina e Paran. Definiu a coloni-

    zao como um sistema econmico diver-

    so da grande propriedade, porque baseado

    numa classe de pequenos proprietrios de

    origem europia (Waibel, 1958), princpio

    igualmente presente na motivao imi-

    grantista desde 1818, quando D. Joo VI

    assinou o tratado de Nova Friburgo. O in-

    teresse na diversificao da agricultura

    marcou a fundao de Nova Friburgo (RJ)

    com imigrantes suos, em 1819, e sinali-

    zou para os desdobramentos da coloniza-

    o: a localizao em colnias ocorreu na

    periferia da grande propriedade escravista,

    ou longe dela, em terras devolutas privi-

    legiando-se correntes imigratrias euro-

    pias. A questo racial est implcita no

    Decreto Real que autorizou o estabeleci-

    mento dos imigrantes suos na regio ser-

    rana do Rio de Janeiro aludindo civiliza-

    o e, principalmente, no artigo 18 do tra-

    tado acima referido, que trata da criao de

    uma milcia de 150 suos, capazes de em-

    punhar armas, colaborando na manuteno

    dos regimentos portugueses de cor branca

    a questo racial estava subjacenteaos projetos imigrantistas desde1818, antes da palavra raa fa-zer parte do vocabulrio cient-fico brasileiro e das preocupa-es com a formao nacional.Desde ento, a imigrao pas-sou a ser representada como umamplo processo civilizatrio e forma mais

    racional de ocupao das terras devolutas.

    O pressuposto da superioridade branca,

    como argumento justificativo para um mo-

    delo de colonizao com pequena proprie-

    dade familiar baseado na vinda de imigran-

    tes europeus portanto distinto da grande

    propriedade escravista foi construdo mais

    objetivamente a partir de meados do sculo

    XIX. Menos evidente nas leis e decretos

    relativos colonizao, o contedo racista

    est presente, sobretudo, na discusso da

    poltica imigratria articulada ao povoa-

    mento e na externalizao nacionalista dos

    problemas de assimilao especificados

    atravs das probabilidades do caldeamento

    racial. Ambas as discusses so significati-

    vas quando envolvem a colonizao euro-

    pia efetivada no Sul durante mais de um

    sculo num contexto de povoamento em

    que os imigrantes alemes aparecem como

    anttese da brasilidade.

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    (1). A meno cor branca por si mesma

    significativa pois as primeiras classifica-

    es raciais produzidas nos meios cientfi-

    cos europeus na segunda metade do sculo

    XVIII tinham por base uma diviso geo-

    grfica e/ou a variao da cor da pele. Pode-

    se argumentar que seus autores no esta-

    vam interessados em estabelecer critrios

    de desigualdade para grupos humanos arti-

    culados com suposta origem comum,

    depois anunciados nas tipologias criadas,

    s vezes doutrinariamente, no sculo XIX;

    mas a noo hierrquica de civilizao es-

    tava por trs de certos desideratos biolgi-

    cos, fazendo da cor branca um indicador de

    superioridade, mesmo na ausncia de um

    discurso explicitamente racista (2).

    Os resultados efmeros obtidos em

    Nova Friburgo (3) no interferiram no pro-

    psito colonizador, retomado, dentro dos

    mesmos princpios, logo aps a indepen-

    dncia com a fundao da colnia de So

    Leopoldo, no Rio Grande do Sul, em 1824.

    Atravs do agenciamento, o governo im-

    perial recrutou em vrios estados germni-

    cos, simultaneamente, colonos e soldados.

    Afinal, havia forte tenso na fronteira in-

    ternacional ao sul, envolvendo a disputa

    pela provncia Cisplatina (o atual Uru-

    guai), que teve como conseqncia uma

    guerra com a Argentina, iniciada em fins

    de 1825.

    Assim, a colonizao no seguiu, ex-

    clusivamente, o princpio civilizatrio que

    exigia imigrantes brancos europeus; tam-

    pouco significou uma recusa ao modelo

    escravista de explorao agrcola. Surgiu

    de uma lgica geopoltica de povoamento,

    articulada ocupao de terras pblicas

    consideradas vazias sem qualquer con-

    siderao pela populao nativa, classifi-

    cada como nmade e incivilizada, na medi-

    da em que esse sistema de ocupao terri-

    torial avanou a partir da dcada de 1840

    (quando terminou a Revoluo Farrou-

    pilha). A escolha do colono ideal, porm,

    teve seus determinantes biolgicos articu-

    lados pressuposio da superioridade eu-

    ropia, e o sistema esteve associado imi-

    grao pelo menos at meados do sculo

    XX, com participao extremamente limi-

    tada da populao nacional. Nem o radica-

    lismo nacionalista, contrrio imigrao

    alem, no incio da repblica, abriu maior

    espao para o assentamento de colonos

    nacionais.

    Conforme observao de Waibel

    (1958), colonizao e povoamento so

    binmios; e a localizao dos primeiros n-

    cleos coloniais no Rio Grande do Sul e Santa

    Catarina, entre 1824 e 1829, mostrava isso

    com preciso: estavam situados em pontos

    estratgicos dos caminhos de cargueiros que

    uniam o extremo sul a So Paulo. A esco-

    lha de imigrantes alemes para efetivar os

    primeiros projetos coloniais criticada mais

    tarde por muitos nacionalistas preocupa-

    dos com a etnicidade germnica dos des-

    cendentes no teve qualquer relao com

    premissas raciais: eram europeus, havia um

    fluxo imigratrio para os Estados Unidos e

    um nmero significativo de alemes circu-

    lava na corte brasileira, inclusive o princi-

    pal agenciador at 1830, o Major G. A

    Schffer, que pertencia ao Corpo de Guar-

    das de D. Pedro I. Entretanto, h uma pre-

    missa articulada a essa imigrao: a classi-

    ficao do colono alemo como agricultor

    eficiente, um critrio presente em toda le-

    gislao imigratria vinculada coloniza-

    o. Nas regras de admisso de estrangeiros

    o imigrante ideal, o nico merecedor de sub-

    sdios, o agricultor; mais do que isso, um

    agricultor branco que emigra em famlia.

    A primeira fase da colonizao encer-

    rou-se em 1830, quando a oposio parla-

    mentar aprovou uma lei que impedia gas-

    tos com a imigrao o que, na prtica,

    inviabilizou o agenciamento pois no exis-

    tia um fluxo espontneo para o Brasil. O

    ltimo ato colonizador do governo imperi-

    al foi a fundao da colnia de So Pedro

    de Alcntara (SC), em 1829 lugar que,

    alm de imigrantes oriundos de Bremen,

    recebeu um grupo de soldados alemes

    egressos dos batalhes estrangeiros acan-

    tonados no Rio de Janeiro, dispensados em

    1828 (4). A retomada do processo imigrat-

    rio demorou quinze anos: em 1845 reco-

    meou a localizao de alemes no Vale do

    Rio dos Sinos (Rio Grande do Sul), a partir

    de So Leopoldo, em Santa Catarina (no

    1 A maior parte do tratado refe-re-se s condies acordadascom o agenciador, Sebastien-Nicolas Gachet, para estabe-lecer imigrantes suos na Fa-zenda Morro Queimado, com-prada pelo governo portuguspara esta finalidade. Mas jnesse momento evidenciou-seum outro propsito associado imigrao: o recrutamentode soldados na Europa, prti-ca efetivada aps a indepen-dncia com a criao de bata-lhes estrangeiros. A ntegrado tratado com Gachet encon-tra-se no trabalho de Nicoulin(1981).

    2 Desde o sculo XVI, a varia-o da cor da pele serviu paraassinalar as clivagens entrediferentes grupos humanos,muitas vezes articulada dis-tribuio geogrfica na confi-gurao dos cinco troncos prin-cipais. As primeiras tipologias,apoiadas na anatomia compa-rada, surgiram no incio dosculo XIX como a deBlumenau, que dividiu a huma-nidade em cinco grandes fa-mlias raciais caucsica,monglica, malaia, america-na e etipica. Aparentementeneutras, em nome do rigor ci-entfico, essas classificaesimplicavam uma hierarqui-zao em que os brancos es-to localizados no topo e osnegros na base.

    3 Vrios problemas inviabili-zaram a colonizao de NovaFriburgo: o alto custo do agen-ciamento e da manuteno doncleo colonial, as altssimastaxas de mortalidade na via-gem e nos primeiros mesesaps a localizao, a m qua-lidade das terras, o isolamen-to (apesar da proximidade deCantagalo e suas grandes pro-priedades cafeeiras). Cf.Nicoulin, 1981. O empreen-dimento perdeu a maior partedos colonos suos (muitosretornaram) e s no desapa-receu porque aps a indepen-dncia foram para l encami-nhados imigrantes alemes.

    4 Os batalhes estrangeiros fo-ram formados em 1823, prin-cipalmente com mercenriosalemes e irlandeses. Por v-rias razes incluindo castigosfsicos e precrias condies deaquartelamento ocorreu umarebelio dos soldados no Riode Janeiro, em 1828, que de-terminou a extino dessesbatalhes. Aos soldados ale-mes foi dada a opo de lo-calizao em lotes coloniais naprovncia de Santa Catarina o que explica sua presena emSo Pedro de Alcntra. VerHandelmann, 1931.

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    Vale do Rio Cubato), nas terras altas do

    Esprito Santo e do Rio de Janeiro (5). Hou-

    ve um investimento claro na imigrao ale-

    m expressado atravs da representao

    diplomtica brasileira em Berlim, chefiada

    pelo visconde de Abrantes, juntamente com

    o debate sobre a necessidade de regulamen-

    tar a posse e a propriedade da terra que,

    afinal, resultou na lei 601 (Lei de Terras),

    de 1850, um passo decisivo para incremen-

    tar a colonizao (6). No entanto, esse apa-

    rente privilegiamento dos alemes no o

    fato mais significativo para discutir a ques-

    to racial nesse perodo, porque, afinal, essa

    imigrao tinha crticos dado o grau de

    irredutibilidade tnica a eles atribuda. O

    reincio da colonizao com base no agen-

    ciamento de europeus (7) foi concomitante

    com a proibio da escravido nas colnias

    fato no ocorrido na primeira fase. Na

    prtica, ao tomar essa iniciativa, os gover-

    nos provinciais separaram ainda mais os

    dois regimes de trabalho quando se avizi-

    nhava a proibio do trfico de africanos

    para o Brasil. A promulgao quase simul-

    tnea da Lei de Terras e da Lei Euzbio de

    Queirs marca ainda mais esse distancia-

    mento a colonizao definitivamente vin-

    culada ao trabalho livre. Apesar dessas evi-

    dncias, a ausncia de negros e mestios na

    maioria das reas coloniais foi atribuda ao

    preconceito racial dos imigrantes e de dire-

    tores de empresas colonizadoras, como

    pode ser verificado em certos discursos

    nacionalistas da dcada de 1930 e 1940 (8).

    Na verdade, a imigrao europia est

    naturalizada no debate sobre a colonizao

    e nele, negros e mestios, livres ou escra-

    vos, s eventualmente aparecem como ato-

    res sociais descartveis sob um argumento

    simplista o do indireto restabelecimento

    do trfico (9). Essa figura de retrica tem o

    propsito de desqualificar a imigrao de

    africanos, em geral considerados inaptos

    para o trabalho livre na condio de peque-

    nos proprietrios rurais. No pensamento

    imigrantista do sculo XIX a escravido

    no percebida como um regime imoral ou

    ilegtimo, mas simplesmente adjetivada por

    seu carter arcaizante, um modelo econ-

    mico retrgrado e impeditivo de imigrao

    porque produz uma imagem negativa do

    pas na Europa. Em resumo, a vigncia do

    regime escravista faz da frica apenas um

    lugar de negros brbaros e no de imigran-

    tes potenciais. Nesse sentido, no precisa-

    vam estar situados no debate sobre imigra-

    o. O esforo classificatrio dirigiu-se para

    a nomeao das virtudes e defeitos de cada

    nacionalidade europia, em funo do in-

    teresse maior: o imigrante agricultor. Eram

    hierarquias de brancos pautados por habili-

    dades agrcolas, nas quais o fator raa no

    aparece como limitao, e que adentram o

    sculo XX. Nas classificaes imperam os

    atributos usualmente associados ao

    campesinato, incluindo a adjetivao da

    submisso: o bom colono deve ter amor ao

    trabalho e famlia e respeito s autorida-

    des, alm de ser sbrio, perseverante, mori-

    gerado, resignado, habilidoso, etc. Alemes

    e italianos so as nacionalidades mais fre-

    qentemente situadas no topo da hierarquia

    dos desejveis bons agricultores (10).

    Os princpios da colonizao foram

    estabelecidos na legislao imigratria,

    tendo a modernidade como parmetro, e

    nela no cabe a escravido. Para muitos

    imigrantistas, o trfico era incompatvel

    com a imigrao, mas no a escravido,

    fadada, necessariamente, ao desapareci-

    mento na configurao do pas moderno e

    capitalista. Por outro lado, nem o mais ra-

    dical dos abolicionistas brancos caso de

    Joaquim Nabuco duvidava da inferiori-

    dade de negros e mestios, sob influncia

    do determinismo racial ento vigente nos

    meios acadmicos europeus (11).

    A colonizao, portanto, recomeou no

    perodo de ampla discusso sobre as refor-

    mas necessrias para transformar o Brasil

    num pas de imigrao distanciada do

    escravismo e, pelo menos at o incio da

    dcada de 1870, associada ao agenciamento

    de alemes. A excluso dos no-brancos

    estava subjacente, dada a relativa ausncia

    do elemento nacional nessa forma de ocu-

    pao territorial. A escolha dos alemes,

    porm, foi ditada pela imagem do agricul-

    tor eficiente cultivada por uma parte da elite

    imigrantista, embora recebesse crticas

    contundentes de setores nacionalistas preo-

    5 A incluso das provncias do Riode Janeiro e Esprito Santo mos-tra que o projeto colonizador erabastante abrangente, mas forada Regio Sul teve limitaes,deslocado para reas perifricase quase sempre montanhosas o que dificultou a expanso daatividade agrcola. NovaFriburgo e Petrpolis no rece-beram contingentes significativos(muitos colonos se retiraram) elogo se transformaram em cen-tros de veraneio para os abasta-dos da capital do Imprio.

    6 A lei (regulamentada em 1854)passou o controle das terrasdevolutas para as provncias,definiu a concesso de terrasdevolutas exclusivamente porcompra o que, na prtica,permitiu a atuao de empre-sas particulares de colonizao, enfim, traou a poltica decolonizao atrelada imigra-o, embora seu alcance fossemuito mais amplo. Na verda-de, sua promulgao coincidecom um maior investimento noagenciamento de imigrantespara projetos coloniais.

    7 At o incio da dcada de1880, o governo imperial con-tratou, por decreto, a vinda deimigrantes atravs de agencia-dores, que recebiam pagamen-to per capita. Nesses decretosesto indicados os pases (ouas nacionalidades) preferenci-ais de emigrao sempre eu-ropeus. Sobre o agenciamento,ver Seyferth, 2000a.

    8 Essa interpretao, influenciadapela ideologia da miscigenaoe da ausncia de preconceitoracial no Brasil, particularmen-te evidenciada no discurso dosmilitares que participaram dacampanha de nacionalizaoem regies colonizadas por ale-mes como no Vale do Itaja,Santa Catarina. Ver, por exem-plo, o texto do tenente RuiAlencar Nogueira, publicadoem 1946.

    9 Negros e mestios, categori-zados como brbaros, devi-am desempenhar apenas umpapel coadjuvante na coloni-zao (isso quando sua parti-cipao era cogitada) a elescabia desbravar a floresta,conforme se verifica em algunstextos anteriores abolio,caso do relatrio apresentadoao Ministrio da Agriculturapelo conselheiro Menezes eSouza em 1875.

    10 Hierarquizaes dessa nature-za, subjetivadas por um mode-lo ideal de capacidade paraproduzir agricultura familiar,foram comuns at a dcada de1930. Cf. Seyferth, 1996.

    11 Nabuco, por um lado, afirmouque a maldio da cor desa-pareceria com a abolio, mas,por outro lado, atribuiu ao cru-zamento entre brancos e negros

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    cupados com a introduo em massa de

    gente com lngua, cultura e religio muito

    diferentes da realidade brasileira (12).

    Referncias de natureza racial, portan-

    to, esto ausentes da legislao maior, re-

    pleta de regras sobre demarcao, venda e

    legitimao de lotes coloniais, regulamen-

    tao do agenciamento em pases europeus

    e do funcionamento de rgos ministeriais

    de controle do processo de localizao de

    imigrantes, inclusive no mbito dos proje-

    tos particulares, visto que a atuao das

    empresas colonizadoras estava sujeita

    fiscalizao.

    Referenciada exclusivamente ao agen-

    ciamento de imigrantes na Europa, em es-

    pecial nos pases germnicos (conforme

    indica a misso diplomtica especial do

    visconde de Abrantes na Prssia) com a

    questo racial dimensionada na definio

    branca do colono ideal , prosseguiu a

    ocupao de reas de floresta no Sul, forte-

    mente incentivada pelo governo central

    atravs do Ministrio da Agricultura ao qual

    a imigrao estava subordinada. A partir

    de 1846 e, sobretudo, aps a promulgao

    da Lei de Terras, surgiram no Rio Grande

    do Sul e Santa Catarina inmeras colnias

    alems, fundadas por empresas particula-

    res, pelos governos provinciais ou pelo

    governo imperial etnicamente homog-

    neas, pelo menos nos seus primrdios (13).

    Existem referncias a pequenos contingen-

    tes poloneses, noruegueses, suecos, suos,

    irlandeses e franceses encaminhados para

    algumas dessas regies (especialmente em

    Santa Catarina). A intensificao do pro-

    cesso ocorreu na dcada de 1870, quando

    comeou a imigrao italiana na Serra

    Gacha, e no sul de Santa Catarina (alm

    de localizao junto s colnias alems no

    Vale do Itaja).

    Na sua grande maioria esses imigrantes

    vieram para o Brasil recrutados por agen-

    tes das empresas colonizadoras (14) ou

    agentes nomeados pelo governo imperial,

    num sistema de imigrao subsidiada em

    grande parte pelo Estado (como se observa

    na legislao sobre colonizao e nos de-

    cretos de contratao dos servios dos agen-

    ciadores e de autorizao das atividades das

    empresas a partir da concesso de terras

    pblicas).

    Nos contratos firmados com agencia-

    dores h cuidadosa especificao da nacio-

    nalidade dos imigrantes pretendidos como

    ocorreu no Decreto 5.663, de 1874, cele-

    brado pelo governo imperial com Joaquim

    Caetano Pinto Junior (15) , um indicativo

    de que europeu no era exatamente uma

    categoria exclusiva ou absoluta. Na

    listagem, esto ausentes portugueses e es-

    panhis mas, curiosamente, ela inclui

    bascos e italianos do norte. difcil ponde-

    rar sobre os critrios de incluso ou exclu-

    so implcitos na lista (encabeada por ale-

    mes e austracos) mas o privilegiamento

    dos italianos do norte sugere alguma espe-

    culao de natureza racial ou civilizatria

    (possivelmente vinculada noo de

    latinidade). Desde as primeiras teorias ra-

    ciais que produziram o mito ariano, os po-

    vos do Mediterrneo passaram a ser

    categorizados como raa ou tipo atravs de

    critrios morfolgicos s vezes imaginados

    como desabonadores (ou indicadores de in-

    ferioridade): pele brunide, cabelos negros,

    estatura baixa, etc. Mesmo autores menos

    comprometidos com o pressuposto da desi-

    gualdade das raas humanas como Paul

    Topinard bastante conhecido no Brasil por

    sua condio de discpulo de Paul Broca

    distinguiu, no seu manual LAnthropologie,

    os tipos europeus louros dos tipos euro-

    peus brunos (a includos os habitantes do

    sul da Frana e da Itlia, alm de espanhis,

    portugueses e gregos). s vezes usava-se,

    simplesmente, a designao de povos do

    meio-dia, que no jargo racista da segun-

    da metade do sculo XIX era indicativo de

    inferioridade por oposio aos arianos

    (16). Essas teorias tiveram alguma influn-

    cia no Brasil, s vezes escamoteadas numa

    retrica ambgua, visvel, inclusive, em

    trabalhos supostamente mais tcnicos que

    expressam posies polticas, conforme se

    verifica no texto de Menezes e Souza

    (1875). Mas os imperativos da poltica de

    colonizao no estiveram prioritariamente

    atrelados aos determinismos mais minucio-

    sos das doutrinas tipolgicas sobre raa.

    O europeu genrico, portanto, continuou

    o abastardamento da raamais adiantada (branca) pelamais atrasada (negra). E, paradesgraa do pas, os descen-dentes dessa populao (mes-tios) formam dois teros dapopulao do pas. Cf.Nabuco, 1977.

    12 O conflito entre os arautos dacolonizao e os nacionalis-tas contrrios imigrao emgrande escala pode ser perce-bido no livro de um polticofluminense, Augusto de Carva-lho, escrito e publicado emPortugal em 1874.

    13 O Vale do Jacu, no Rio Gran-de do Sul, foi a primeira re-gio ocupada por imigrantesalemes (desde So Leopoldo);em Santa Catarina, HermannBlumenau fundou a principalcolnia do Vale do Itaja, em1850 e, no ano seguinte, aSociedade Colonizadora deHamburgo iniciou a coloniza-o do nordeste da provncia,nas terras recebidas como dotepela irm do imperador PedroII na ocasio do seu casamen-to com o prncipe de Joinville.At o final do sculo XIX quaseduas centenas de projetos co-loniais foram iniciados por imi-grantes alemes no Rio Gran-de do Sul e Santa Catarina.Cf. Seyferth, 1999a.

    14 Apesar da propaganda queenfatizou a possibilidade desubsdios, a facilidade da con-cesso de lotes coloniais (afi-nal, a propriedade da terrafazia parte da utopia campo-nesa) e o clima temperadodo Sul do Brasil, a maioria dosdiretores de empreendimentosparticulares referiu-se s dificul-dades de atrair imigrantes. Oexemplo mais significativodessa dificuldade diz respeito colnia Blumenau: a empre-sa de Hermann Blumenau faliuporque seu diretor no conse-guiu atrair compatriotas e acolnia passou para o contro-le do Estado em 1860, tornan-do-se, assim, um empreendi-mento oficial. Ainda em 1860,o governo imperial patrocinoua fundao de um ncleo colo-nial no Rio Itaja-Mirim (a cer-ca de 40 km de Blumenau),fato que evidencia o interessegovernamental na ocupaodo Vale do Itaja. Cf. Ferreirada Silva, s/d; Seyferth, 1974.

    15 Sobre os critrios seletivos pre-sentes nesse contrato, ver:Seyferth, 2000a.

    16 O manual de Topinard foi publi-cado na dcada de 1870 (sua3a edio de 1879), ocasioem que as tipologias raciais jeram numerosas no mbito daantropologia (fsica), muitasapregoando a desigualdade apartir de diferenas morfolgi-cas. Sobre os usos (e abusos) daidia de raa, ver: Poliakov(1974) e Banton (1979).

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    sendo o alvo preferido da poltica imigra-

    tria, e as determinaes seletivas passam

    pela condio de agricultor ou arteso. O

    Decreto 537, de 1850, que aprovou o con-

    trato com a Sociedade Colonizadora de

    Hamburgo (que representava os interesses

    do Prncipe de Joinville), autorizando a

    fundao da colnia de D. Francisca (Santa

    Catarina), no pargrafo 1o do artigo nico

    diz que os colonos s podem desembarcar

    livremente se constar da bagagem os ins-

    trumentos do seu ofcio sementes, ani-

    mais e utenslios destinados ao trabalho

    agrcola. O pargrafo 10o do mesmo decre-

    to probe o emprego do brao escravo na

    colnia.

    No entanto, atravs da naturalizao da

    ndole ou pendor agrcola, os colonos

    alemes ficaram no topo da hierarquizao

    por nacionalidade mesmo quando criti-

    cados por sua irredutibilidade tnica. A

    colonizao alem a que mais convm ao

    Brasil: variaes dessa frase foram comuns

    nos textos sobre colonizao aps 1845,

    inclusive na Memria escrita pelo vis-

    conde de Abrantes e publicada em 1846

    quando procurava atrair imigrantes para o

    Brasil com o beneplcito do governo prus-

    siano, expressando opinies reformistas

    sobre liberdade de culto, naturalizao,

    escravido e propriedade da terra. A pre-

    ferncia aparece tambm em escritos de

    brasileiros que passaram por regies de

    colonizao, caso do padre Joaquim Go-

    mes dOliveira e Paiva, que elogia o pro-

    gresso de So Leopoldo e So Pedro de

    Alcntara (ambas colnias alems) contra-

    pondo o fracasso de colnias francesas,

    sardas e belgas (17). Igualmente publicada

    em 1846, a Memria do padre Paiva

    externaliza, ainda, o sentido civilizatrio

    dado ocupao do territrio:

    [] foroso concluir que no pequena

    utilidade tem tirado a provncia de Santa

    Catarina com o estabelecimento da colnia

    de S. Pedro de Alcntara em seu territrio.

    [] Os indgenas, que outrora infestavam

    o continente a ponto de se aproximarem da

    capital em distncia menor de cinco lguas,

    hoje amedrontados pela vizinhana dos

    colonos tem abandonado esses logares, de

    modo que um s j no apparece na longa

    estrada de 34 lguas, que communica a villa

    de S. Jos com a de Lages. Hoje o viajante

    caminha tranquillo, no teme a flexa do

    Bugre; e o lavrador habitando solitario es-

    ses sertes, goza das delicias do campo,

    sem receiar os perigos do ermo.

    []

    vista das vantagens que esta provncia

    tem obtido com a colonia alem [] foro-

    so confessar que a colonizao allem

    a que unicamente pde utilisar ao Brazil.

    [] os Alemmes so industriosos, since-

    ros, e a constancia que os caracterisa no os

    deixa desanimar vista do trabalho. So

    estes os verdadeiros colonos de que o Bra-

    sil precisa, e para cujo engajamento se deve

    fazer os maiores sacrifcios (Paiva, 1846,

    pp. 519-20).

    A meno s incurses indgenas estan-

    cadas pela presena colonizadora mostra o

    lugar reservado aos nativos, designados por

    um termo depreciativo (bugres) o desapa-

    recimento. Com a intensificao dos assen-

    tamentos, os remanescentes seriam im-

    piedosamente caados pelos bugreiros,

    categorizados como selvagens, anttese da

    civilizao europia trazida pela coloni-

    zao. Os prprios colonos formularam

    representaes dessa natureza na constru-

    o da sua identidade (cf. Seyferth, 2000b).

    Por outro lado, ao privilegiar os alemes, o

    Padre Paiva estava igualmente motivado

    pelo relativo sucesso das duas principais

    colnias fundadas antes de 1830 ambas

    alems. De certa forma, os fracassos de

    franceses, belgas e sardos na provncia de

    Santa Catarina, associados a pressuposi-

    es sobre o carter nacional dos imigran-

    tes, ajudavam a conformar as classifica-

    es sobre o colono ideal.

    Alm disso, o discurso sobre a eficin-

    cia germnica, entendida como qualidade

    (biolgica) nacional, faz parte de relatrios

    e escritos de propaganda produzidos por

    alemes interessados na colonizao parti-

    cular de terras pblicas que se desenhava

    mais precisamente na discusso da poltica

    imigratria na dcada de 1840. Um bom

    17 Paiva remete a trs empreendi-mentos particulares de coloni-zao em Santa Catarina for-malizados no incio da dcadade 1840: a colnia Nova It-lia, que recebeu imigrantes daSardenha em 1836 iniciati-va do empresrio italiano CarloDemaria, radicado em Dester-ro; a colnia do Sa, formadapor falansterianos francesesaps autorizao dada pelogoverno imperial ao mdicohomeopata Benoit Joseph Mureem 1841; e a colnia belgade Ilhota, iniciativa do enge-nheiro Charles van Lede, entre1841-44, no baixo Vale doItaja. Os empreendimentos fra-cassaram devido s pssimascondies de localizao e sprecrias condies, denuncia-das nos pases de origem so-bretudo no caso dos belgas efranceses , o que dificultou oagenciamento de outros imi-grantes. Cf. Cabral, 1970;Piazza, 1994.

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    exemplo o relatrio apresentado ao Baro

    de Cairu por Luiz Frederico Kalkmann, em

    1846, aps uma viagem s colnias meridio-

    nais, com o objetivo de divulg-las na Ale-

    manha. O relatrio apresenta alguns dados

    acerca do desempenho agrcola em So

    Leopoldo e So Pedro de Alcntara, aponta

    problemas enfrentados pelos colonos (inclu-

    sive de natureza religiosa) (18), referindo-

    se, ainda, aos prejuzos decorrentes da guer-

    ra civil, entre eles a absoluta limitao de

    entradas de novos imigrantes at 1845.

    escassez de imigrantes no Brasil contrape

    1,2 milho de alemes que se dirigiram para

    os Estados Unidos no mesmo perodo (1830-

    45) argumento igualmente utilizado por

    imigrantistas brasileiros.

    Segundo Kalkmann, a pacincia, per-

    severana prpria dos integrantes da na-

    o alem, e a frugalidade e religiosidade

    dos colonos ajudaram a superar as dificul-

    dades e cultivar a terra brasileira com van-

    tagens fato que viu demonstrado nos re-

    sultados obtidos nas colnias j existen-

    tes, dando bom exemplo aos vizinhos bra-

    sileiros. No ano seguinte, 1847, juntamen-

    te com Jlio Koeller, apresentou um Me-

    morial ao imperador Pedro II com proposta

    de constituio de uma companhia coloni-

    zadora para trazer imigrantes da Alema-

    nha, usando os mesmos argumentos encon-

    trados em escritos brasileiros da mesma

    poca. De acordo com o Memorial (19), a

    iminncia do fim do trfico representa s-

    ria ameaa lavoura, j comprometida por

    um regime escravista cujo capital reverte

    para a compra de escravos, sendo urgente

    a substituio do brao cativo por braos

    livres. O capital investido no trfico po-

    deria ser usado positivamente, para cha-

    mar a imigrao branca livre e industriosa,

    que daria ao pas cidados exemplares, e ao

    imperador sditos fiis. Sem qualquer re-

    ferncia cor, os escravos so desqua-

    lificados como trabalhadores estpidos,

    brutos e precrios; a escravido e o que

    se chama de falta absoluta de medidas

    permanentes e dignas de confiana (isto

    , uma legislao favorvel ao imigrante)

    so apresentados como os verdadeiros im-

    pedimentos ao progresso da imigrao.

    O discurso dos estrangeiros interessa-

    dos na colonizao, portanto, o mesmo

    dos representantes mais notveis do imi-

    grantismo brasileiro (20) que, junto com a

    escravido, desqualificam a populao ne-

    gra e mestia do pas, na adjetivao estig-

    matizante do trabalho escravo. Pode ser

    observada certa diversidade na preferncia

    por uma ou outra nacionalidade europia e

    eventuais aluses populao indgena e

    s possibilidades de civilizao do povo

    liberto (principalmente quando o assunto

    a emancipao dos escravos), atenuando-

    se a irredutibilidade da inferiorizao dos

    trabalhadores nacionais a partir da estig-

    matizao absoluta das correntes imigra-

    trias indesejveis. Assim, mesmo autores

    aparentemente propensos ao aproveitamen-

    to da mo-de-obra nacional no se afastam

    da vinculao entre colonizao e imigra-

    o. Nesse sentido, a proposta para organi-

    zao de um Conselho de Imigrao apre-

    sentada ao Ministrio da Agricultura, Co-

    mrcio e Obras Pblicas, em 1868, por

    Joaquim Maria de Almeida Portugal con-

    tm uma inusitada crtica imigrao de

    coolies associada catequese dos ndios,

    que antecede a concluso do autor em prol

    da imigrao oriunda das Ilhas Britnicas.

    Aps mencionar a posio crtica da

    imprensa estrangeira sobre a emancipa-

    o da escravatura, o problema a discutir

    deve se fixar no povo que melhor pde

    convir, e como sobre esse assumpto ulti-

    mamente appareceu um folheto com o ttu-

    lo de A crise da Lavoura, apresentando os

    Coolies como a immigrao a mais fcil, a

    mais conveniente e a mais profcua, eu di-

    rei que, considerando a corrente da Immi-

    grao espontanea como o termo emergente

    de todos os nossos esforos, e no tendo at

    hoje a raa asitia apresentado a menor

    tendncia ou symptoma de seu desenvolvi-

    mento, por qualquer forma que seja, no

    sei como possmos admitir a possibilidade

    de entreter uma immigrao cuja inefficacia

    neste ponto fica provada nas prprias pa-

    lavras do escripto, A crise da Lavoura.

    Se tivessemos procurado colonizar essa

    centena de milhares de nossos conterraneos

    18 O autor comentou os conflitosentre catlicos e protestantes(algo bastante comum duranteo Imprio em razo do podertemporal da igreja catlica) eacentuou os desentendimentosentre colonos e administrado-res (brasileiros), alm dos pro-blemas relacionados s condi-es precrias de localizao.O Relatrio foi publicado naRevista de Imigrao e Coloni-zao (ano IV, no 2, 1940,pp. 236-43). importanteobservar que, nesse documen-to, esto evidenciadas as si-tuaes de crise que se torna-riam mais comuns nas reascoloniais aps 1850 dandomargem a representaes bas-tante distanciadas do colonoideal. Cf. Seyferth, 1999b.

    19 O Memorial de Kalkmann eKoeller foi publicado na Revis-ta de Imigrao e Coloniza-o (ano IV, no 2, 1940, pp.244-52). O Memorial exem-plifica o interesse de estrangei-ros na formao de empresasparticulares para obter conces-ses de terras devolutas com afinalidade de coloniz-las comimigrantes europeus, desdeque essa possibilidade surgiuna legislao (inclusive provin-cial) a partir de 1845.

    20 No texto de Kalkmann figuramoutros temas comuns na discus-so da questo imigratria,como a crtica ao poder tempo-ral da igreja catlica (com oconseqente discurso sobre li-berdade religiosa), permann-cia do trfico de africanos e doprprio regime escravista, e sdificuldades da naturalizao.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002124

    que vivem no barbarismo, inteis socie-

    dade, alheios civilizao e ao Christia-

    nismo, por certo que a Immigrao dos

    Coolies poderia aproveitar, plantada ou

    distribuda por entre essas colonias, por elles

    povoadas; mas, nas circumstancias em que

    nos achamos, ella smente viria entorpecer

    ou retardar esse desenvolvimento que o Paiz

    precisa, e que nasce e se desenvolve com a

    concorrncia de braos laboriosos, e con-

    venientemente educados. Para aproveitar-

    mos os Coolies devemos aspirar que maior

    auxlio se preste ao assumpto da cathechese.

    []

    Attendendo pois a estas circunstncias,

    evidente que a Immigrao dos Coolies no

    nos pode convir (21).

    A redao, ambgua quanto a seus pres-

    supostos raciais, no representa, simples-

    mente, mais uma opinio contrria imi-

    grao chinesa (objeto de grande polmica

    no perodo que antecedeu a abolio da

    escravido (22)). O autor vai alm disso,

    considerando a catequese dos ndios um

    processo civilizatrio de menor custo, exi-

    gindo menos cuidados e com maior provei-

    to para o pas do que qualquer investimento

    na vinda de chineses.

    ndios conterrneos e chins, portan-

    to, aparecem nesse discurso na condio de

    raas semelhantes; e a catequese, como

    parte substantiva da civilizao, apresen-

    ta-se mais facilmente aplicvel s tribos

    indgenas que j esto dentro do territrio

    nacional, algumas aldeadas pela perseve-

    rana apostlica dos missionrios. Essa

    imagem refora a dupla desqualificao dos

    chineses (e, por tabela, tambm a dos n-

    dios), atravs da pretensa inferioridade ra-

    cial e do distanciamento cultural externado

    atravs de um problema de natureza religi-

    osa (a possvel dificuldade com a cateque-

    se). Finalmente, apelando pra exemplos de

    outros pases que se valeram do trabalho

    dos coolies (como Cuba e Peru), afirma-se,

    com certa nfase, que a raa chim-india-

    na s pode ser considerada mais industrio-

    sa quando comparada s raas africanas.

    No h uma hierarquizao racial explci-

    ta, mas a forma retrica adotada, aparente-

    mente referida ao trabalho, exclui os afri-

    canos do contexto imigratrio. Podia haver

    alguma dvida quanto eficincia dos

    coolies, apesar dos pressupostos da inferio-

    ridade contidos na configurao do povo

    chins atravs de estigmas associados a

    falhas do carter vinculadas idia de raa:

    preguia, tendncia ao roubo, desrespeito

    sistemtico s leis e tribunais, etc. (23).

    Alm disso, est presente o princpio de

    excluso pela filiao religiosa enunciado

    nas referncias catequizao:

    [] pode esta immigrao (chinesa)

    porventura convir-nos tal e qual correm as

    cousas no nosso Paiz? Certamente no.

    Mais tarde, poder talvez ella servir-nos;

    mas isso s quando a catechese estiver mais

    desenvolvida, e a Immigrao Europia es-

    tabelecida espontaneamente (24).

    A inquietude com a situao do pas

    expressa a dificuldade de atrair a imigra-

    o espontnea de europeus e, principal-

    mente, a falta de mobilizao do poder p-

    blico para a questo indgena e algumas

    posies favorveis vinda dos coolies,

    claramente influenciadas pela presuno da

    inferioridade dos asiticos, includos no

    mesmo tipo racial dos ndios. Insinua-se,

    a, a imagem negativa de um aumento da

    populao a ser civilizada maneira oci-

    dental-crist, tornando a serventia futura

    dos chineses uma dissimulao apensa

    maior regularidade de entrada de gente da

    Europa. Da o exerccio de convencimento

    para o governo brasileiro se empenhar no

    agenciamento de imigrantes no Reino Uni-

    do, especialmente na Irlanda e na Esccia

    corajosos, de natureza forte e robus-

    ta, ativos, empreendedores, dados la-

    voura e industriosos, facilmente sujeitos

    aos regimens coloniais. Antes de deline-

    ar a proposta de regulamento do Conselho

    de Imigrao, definido como o centro de

    todo movimento e fiscalizao do servio

    de imigrao, colonizao e catequese,

    expe a preferncia pelos sditos do rei da

    Inglaterra que estavam emigrando para os

    Estados Unidos. Observa-se no texto de

    Joaquim Maria de Almeida Portugal a

    21 Transcrito da proposta para aorganizao de um Conselhode Imigrao, apresentada porJoaquim M. de Almeida Portu-gal (1868), publicada na se-o Documentos Histricosda Revista de Imigrao eColonizao (ano V, no 1,1941, pp. 112-3).

    22 Havia propostas para trazercoolies, atendendo deman-da de mo-de-obra nas fazen-das de caf. No foram cogi-tados para participar dos pro-jetos de colonizao com pe-quena propriedade familiar; emesmo os que estavam de acor-do com a vinda de chinesesqueriam uma imigrao tempo-rria. Na verdade, os chins oucoolies (termos mais freqente-mente usados para designar oschineses) eram consideradosraa bastarda, e o perigoamarelo, tantas vezes mencio-nado no discurso imigrantista,era associado s possveis con-seqncias sobre o processo deformao do povo pela misci-genao. Cf. Azevedo, 1987;Seyferth, 1991.

    23 A lista das falhas da raa bem maior em outros textos damesma poca, mais propensosaos determinismos biolgicos:espantosa anomalia que trazconsigo o vrus da imoralida-de, conforme Menezes e Sou-za (1875).

    24 A negativa baseia-se em mat-ria do New York Times sobre asituao de trabalho dos cooliesem Cuba, obrigada a recorrera esse systema de escravido,em conseqncia da cessaodo trfico de africanos. Essa uma das poucas menes aoregime escravista, usada paradesqualificar os chineses. Cf.Revista de Imigrao e Coloni-zao (ano V, no 1, 1941, p.114).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 125

    mesma diligncia reformista e os mesmos

    argumentos usados vinte anos antes pelo

    visconde de Abrantes para justificar a op-

    o pela imigrao alem. O horizonte de

    ambos no a grande propriedade escra-

    vista e, conseqentemente, a questo da

    substituio do trabalho escravo diante do

    fim do trfico, mas o modelo colonizador

    de ocupao territorial num formato prxi-

    mo ao que estava ocorrendo nos Estados

    Unidos e na Austrlia. Nesse contexto, o

    colono no percebido apenas na sua con-

    dio de trabalhador rural, mas visualizado

    como um pequeno produtor e portador de

    civilizao. Escravos, ex-escravos, negros,

    mulatos, enfim, as camadas inferiores (li-

    teralmente) da sociedade estavam automa-

    ticamente excludas, inclusive no debate

    sobre imigrao preferencial. Recorrer a

    trabalhadores africanos equivalia para essa

    elite ao restabelecimento do trfico, com

    aumento da africanizao da sociedade e

    da cultura; no podiam receber a catego-

    rizao de imigrantes.

    A mesma forma de excluso encontra-

    se no discurso de alguns abolicionistas

    caso de Joaquim Nabuco, que ressaltou o

    papel do negro escravo no desbravamento

    do territrio e na formao econmica, mas,

    com retrica nada ingnua, observou que,

    no Brasil, dado o formato da africanizao

    associada escravido, o caos tnico foi o

    mais gigantesco possvel (Nabuco, 1977,

    p. 159), observao atrelada, por um lado,

    crtica ao regime escravista (causa de todos

    os males do crescimento do pas) e, por

    outro, convico da inferioridade da raa

    negra (de instintos brbaros, desenvolvi-

    mento mental atrasado e supersticiosa). A

    imigrao europia, metaforizada como

    Os Emigrantes,

    leo de

    Daumier

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002126

    corrente de sangue caucsico vivaz, enr-

    gico e sadio, a soluo para a formao

    do Brasil ps-abolio o que leva Nabuco

    a descartar, por impropriedade, a onda

    chinesa com que a grande propriedade as-

    pira viciar e corromper ainda mais a nossa

    raa (Nabuco, 1977, p. 202).

    A legislao, de certa forma, tambm

    possui suas ambigidades: nas leis maio-

    res raramente existem referncias raciais,

    mas elas esto subsumidas no substantivo

    imigrao, cujo significado genrico reme-

    te a europeu. De qualquer modo, as indica-

    es mais diretas do privilegiamento dos

    imigrantes europeus (ou brancos) so en-

    contradas, sobretudo, nas autorizaes para

    formao de empresas colonizadoras e nos

    contratos com agenciadores. O privilegia-

    mento da Europa, imaginado celeiro de

    imigrantes no Imprio e na Repblica, no

    significou uma abertura irrestrita a essa

    imigrao: na legislao so especificados

    os indesejveis (incluindo os brancos)

    desordeiros, criminosos, mendigos, vaga-

    bundos, portadores de doenas contagio-

    sas, profissionais ilcitos, dementes, inv-

    lidos, velhos, etc., constantes, por exem-

    plo, do Decreto 9.081, de 1911, que regu-

    lamentou o Servio de Povoamento (e nos

    decretos que o antecederam). Ciganos,

    ativistas polticos, aptridas, refugiados

    tambm figuraram em muitas listagens de

    indesejveis (especialmente depois da Pri-

    meira Guerra Mundial). Restries expli-

    citamente racistas, porm, foram menos

    comuns, aparecendo de forma clara no

    Decreto 528, de 1890, que dificultou a en-

    trada de indgenas da sia ou da frica,

    dispositivo que desapareceu na nova regu-

    lamentao da imigrao, constante do

    decreto que criou a Diretoria Geral de Po-

    voamento em 1907, pouco antes de iniciar-

    se a imigrao japonesa.

    Os princpios de colonizao europia

    vigentes no Imprio pouco mudaram de-

    pois da abolio, apesar da crtica republi-

    cana concentrao de europeus no Sul

    vista como pecado mortal da poltica

    imigratria brasileira. O binmio imigra-

    o-colonizao persiste na legislao re-

    publicana; mas, nos discursos sobre imi-

    grao desde a dcada de 1890, entram em

    cena, de forma exasperada, os debates so-

    bre o tipo nacional (algo diretamente liga-

    do noo morfolgica de raa) e a ques-

    to da assimilao associada formao

    nacional.

    MESTIAGEM, POLTICA

    IMIGRATRIA E PRESSUPOSTOS

    DA LATINIDADE

    Apesar da maior abrangncia pretendi-

    da para a colonizao com pequena proprie-

    dade, evidenciada pela fundao de algu-

    mas colnias no Rio de Janeiro, So Paulo,

    Esprito Santo e Minas Gerais, foram as

    provncias do Sul que, desde a dcada de

    1840 (25), investiram na vinda de imigran-

    tes, apoiadas pelo governo imperial. As

    motivaes econmicas e a apregoada ne-

    cessidade da ocupao do territrio preva-

    leceram nas determinaes colonizadoras,

    mas a intensificao do processo imigrat-

    rio suscitou o debate sobre a assimilao

    dos dvenas, essencialidade do nacionalis-

    mo confrontada, especialmente, com a

    imigrao alem. Trs fatores ajudaram a

    engrossar os argumentos assimilacionistas

    contrrios presena germnica no Sul: a

    primazia nas estatsticas da colonizao at

    meados da dcada de 1870, a concentrao

    em colnias relativamente homogneas

    localizadas no Rio Grande do Sul e Santa

    Catarina, as propostas para incrementar a

    imigrao apresentadas por alemes, bem

    como os textos de propaganda produzidos

    por administradores ligados a empresas

    colonizadoras (editados na Alemanha).

    Os dados referentes s entradas de imi-

    grantes durante o Imprio apontam para a

    maior relevncia numrica dos portugue-

    ses (26), e aps 1875 os alemes foram

    amplamente superados pelos italianos.

    Entretanto, os ncleos coloniais com pre-

    dominncia de colonos de origem alem,

    at porque eram mais antigos, ganharam

    notoriedade nacional e internacional, apre-

    25 Atravs do Ato Adicional de12/8/1834, a colonizaoestrangeira passou para a com-petncia das provncias apre-sentada como solues parao problema imigratrio. A Leide Terras de 1850 manteveessa descentralizao.

    26 Sobre a distribuio dos fluxosimigratrios para o Brasil at adcada de 1950, ver: DiguesJunior, 1964.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 127

    sentados com o brilho do progresso em

    textos brasileiros bilnges veiculados nas

    exposies internacionais (como em Vie-

    na, 1873, e Filadlfia, 1876). Essa notorie-

    dade visava incrementar a imigrao, mas

    deixou em evidncia a diversidade cultural

    dos lugares povoados por colonos extre-

    mamente distanciados do ideal brasileiro

    de nao e dos quais se exigia a assimila-

    o. Por essa razo, os projetos que visa-

    vam ao aumento da colonizao alem,

    apresentados ao governo imperial, recebe-

    ram crticas porque falavam em imigrao

    em massa, sugerindo reformas nem sem-

    pre aceitveis para certos setores do naci-

    onalismo caso da liberdade religiosa. A

    proposta de colonizao de Kalkmann e

    Koeller, j citada, um bom exemplo, as-

    sim como o plano de Oscar von Kroppf,

    includo na correspondncia entre a Lega-

    o Imperial do Brasil nos Estados Unidos

    e a Secretaria de Negcios Estrangeiros do

    Imprio relativa ao ano de 1866. Kroppf

    viveu no Brasil entre 1851 e 1854, passan-

    do por diversos ncleos coloniais; no tex-

    to, emite opinio sobre a importncia da

    imigrao em massa para o desenvolvimen-

    to do Brasil, sugerindo esforos para atrair

    gente da Alemanha. Segundo seu racioc-

    nio, na Europa s existe emigrao em gran-

    de escala das ilhas britnicas (irlandeses e

    ingleses) e dos pases germnicos; como os

    britnicos se dirigem prioritariamente para

    as possesses coloniais ou para os Estados

    Unidos, a imigrao para o Brasil s pode

    vir da Alemanha, que no tem colnias.

    Para atra-los (desvi-los da Amrica do

    Norte) sugere, como indispensvel, a igual-

    dade de direitos civis e de religio; e vai

    alm, afirmando que a imigrao no deve

    ser atrelada substituio do brao escravo

    nas grandes propriedades, dada a impossi-

    bilidade de convivncia da escravido com

    o trabalho livre (27), justificada pela su-

    posta incompatibilidade social entre bran-

    cos e negros. Tal incompatibilidade apre-

    sentada em termos de um grande distancia-

    mento intelectual, mais visvel quando

    ambas as raas so obrigadas a viver e tra-

    balhar em comum. No h referncias tipo-

    lgicas, de base morfolgica, na distino

    entre brancos e negros, mas a suposio da

    inferioridade dos negros levou proposi-

    o de concentrar isto , separar os

    imigrantes no regime de colonizao, res-

    tando aos grandes proprietrios de terras

    procurar gente de cor para o trabalho servil

    ou dividir suas propriedades em lotes da-

    dos exclusivamente para trabalhadores

    brancos (28). Essa maneira de pensar a

    questo imigratria no apresenta grandes

    divergncias em relao aos brasileiros

    influenciados pelo modelo colonizador

    norte-americano. Mas a perspectiva do iso-

    lamento dos alemes em colnias homog-

    neas, com liberdade religiosa para os pro-

    testantes, enunciada, inclusive, por algu-

    mas lideranas emergentes nos meios teuto-

    brasileiros, resultou numa reao naciona-

    lista de setores contrrios imigrao ale-

    m e preocupados com a formao catlica

    e latina do pas.

    Vrios alemes radicados no Sul do

    Brasil escreveram textos de propaganda

    (principalmente folhetos e livros sobre as

    colnias) para atrair compatriotas para pro-

    jetos coloniais. Os textos falam do progres-

    so dos ncleos j existentes, das possibili-

    dades de acesso terra e do instrues

    consideradas teis para potenciais emi-

    grantes. Destacam-se as publicaes de

    Karl von Koseritz (alemo naturalizado

    brasileiro, jornalista e o mais importante

    poltico teuto-brasileiro do Rio Grande do

    Sul durante o Imprio), de Hermann Blu-

    menau (o fundador da principal colnia do

    Vale do Itaja, em 1850) e Ottokar Doerffel

    (o fundador do mais antigo e influente jor-

    nal teuto-brasileiro, o Kolonie Zeitung, de

    Joinville) (29). Embora o efeito desse tipo

    de propaganda tenha sido pouco significa-

    tivo, e apesar de os textos apresentarem uma

    espcie de viso do paraso, com avaliao

    positiva especialmente das provncias me-

    ridionais, a pretenso de ampliar o fluxo

    germnico para uma regio especfica do

    territrio nacional foi interpretada como ato

    imperialista e um risco para a unidade na-

    cional, dando origem expresso perigo

    alemo.

    Pode-se dizer que esses escritos produ-

    zidos por alemes, fossem eles propostas

    27 A utilizao da mo-de-obraimigrante em fazendas de caf,no regime de parceria, iniciou-se com a experincia do sena-dor Vergueiro em sua fazendade Ibiacaba (SP), na dcadade 1840; as pssimas condi-es de trabalho e os contra-tos desfavorveis resultaram emuma revolta dos colonos, de-pois relatada em livro publica-do na Europa por ThomasDavatz, um dos participantes,em 1859 (cf. Davatz, 1941).O livro teve repercusso na Ale-manha, servindo propagan-da contra a imigrao para oBrasil. Por outro lado, a Prssia,mais ou menos na mesma po-ca, criou empecilhos vindados seus cidados depoisrevogados apenas para asprovncias do Sul. Esses fatospossivelmente influenciaram aspropostas de colonizao dotipo apresentado por Kroppf.

    28 A correspondncia de JoaquimMaria N. Azambuja (da Lega-o Brasileira nos EstadosUnidos), incluindo o plano deOscar von Kroppf, foi publica-da na Revista de Imigrao eColonizao (ano I, no 2,1940).

    29 A literatura laudatria sobre ascolnias numerosa e nelatambm se inscrevem os textosde propaganda, que existiramdurante quase todo o proces-so imigratrio. Cf. Seyferth,1988.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002128

    relacionadas instalao de colnias ou

    textos de propaganda, ajudaram a reforar

    o discurso assimilacionista desde meados

    do sculo XIX, e nele estava implcito uma

    crtica ao princpio da colonizao patroci-

    nada pelo Estado, que permitia a localiza-

    o compacta de estrangeiros afastados do

    convvio com a sociedade nacional. Embo-

    ra nem sempre aparente, esse discurso vin-

    cula-se questo racial.

    A poltica de colonizao privilegiou a

    localizao de europeus, sendo conjuntural

    a primazia dos suos e alemes na primei-

    ra fase do processo de implantao de co-

    lnias; e a distintividade estava baseada na

    qualificao de agricultor. Ningum pare-

    cia duvidar da capacidade de trabalho dos

    alemes (elemento que, depois, seria usa-

    do como componente da identidade teuto-

    brasileira), e havia certa unanimidade quan-

    to suposio de inferioridade racial dos

    africanos (evidenciada no debate sobre o

    fim do trfico e da abolio) e asiticos

    grupos sistematicamente desqualificados

    para imigrao. A imigrao alem come-

    ou a ser considerada inconveniente ao pas

    quando comearam os conflitos princi-

    palmente aqueles motivados por razes

    religiosas ou tnicas e ficaram evidentes

    as distintividades atribudas a pertenci-

    mento nacional. O historiador Heinrich

    Handelmann, defendendo o germanismo

    dos colonos, mencionou desavenas tni-

    cas entre colonos e brasileiros em Petrpolis

    (RJ), envolvendo, inclusive, um padre ale-

    mo. A proximidade da corte deu certa

    notoriedade a essas crises, em parte moti-

    vadas pelas identidades nacionais envolvi-

    das, em parte devido filiao religiosa da

    maior parte dos colonos (que pertenciam

    religio evanglica luterana) (30). Segun-

    do Handelmann (1931) as autoridades bra-

    sileiras deveriam respeitar os valores cul-

    turais dos colonos se desejassem prosse-

    guir com a imigrao alem.

    No Sul, na mesma poca (final da dca-

    da de 1850), surgiram as primeiras mani-

    festaes escritas da etnicidade teuto-bra-

    sileira que conduziram ao incensamento do

    germanismo (Deutschtum). A retrica

    germanista, tambm presente nos textos de

    propaganda j mencionados, e nos inme-

    ros relatos histrico-descritivos sobre as

    colnias, alimentou mais o discurso

    assimilacionista do que as diferenas cul-

    turais, observveis nas comunidades, pois

    foi inmeras vezes recriada na imprensa e

    na literatura teuto-brasileira at o Estado

    Novo. Os primeiros jornais em lngua ale-

    m surgiram em Porto Alegre e no Rio de

    Janeiro, em 1852 e 1853; logo depois, cons-

    tituiu-se uma imprensa relativamente in-

    fluente nas colnias mais importantes.

    A matria da primeira pgina do nme-

    ro piloto do jornal Kolonie Zeitung, criado

    por Ottokar Doerffel na ento colnia D.

    Francisca (SC) em dezembro de 1862,

    exemplifica a etnicidade incmoda. A situa-

    o de minoria nacional, com a conseqen-

    te perda de identidade, e a necessidade de

    construir outra no contexto colonial, vin-

    culada noo de ptria, sempre cara aos

    nacionalismos, esto bem delineadas no

    editorial. Entre outras coisas, diz Doerffel:

    Ptria![]

    A verdadeira ptria, com as suaves recor-

    daes de nossa juventude, com tudo aqui-

    lo que se nos tornou caro pela educao e

    pelo hbito do dia-a-dia ns a deixamos

    longe [] E a nova terra, na qual constru-

    mos o nosso lar e qual ligamos toda a

    nossa existncia? Esta nova terra ainda no

    se tornou ptria para ns. Ela parece ainda

    no querer nos aceitar como seus filhos e

    quanto mais profunda a afetividade com

    que a ela nos tentamos ligar, mais nos sen-

    timos estranhamente repelidos [] Real-

    mente embaraosa e desalentadora situa-

    o a nossa, quando feito aptridas no

    sabemos, por assim dizer, a quem perten-

    cemos!

    Mas no, caros leitores! Exatamente esta

    nossa situao poder se tornar bastante

    feliz, se ns mesmos no falharmos. Com

    vontade firme e perseverana conseguire-

    mos reatar as relaes com a velha ptria,

    [] torn-las cada vez mais vivas e assim

    ampliar, por assim dizer, a velha ptria at

    ns no no espao, decerto, mas espiritu-

    almente. Atuando contnua e persistente-

    mente, de acordo com a nossa ndole e o

    30 Conflitos desse tipo ocorreramem vrias regies, principal-mente onde havia populaomajoritariamente protestante,como em Blumenau. Ali o go-verno provincial manteveHermann Blumenau na direoda colnia, mas sua adminis-trao foi marcada pela tensocom o proco catlico direta-mente nomeado pelo Papa da as constantes reivindicaessobre liberdade religiosa duran-te o Imprio. A presena deimigrantes no-catlicos eraconsiderada um problema deassimilao, embora a maio-ria dos imigrantistas exigisse ofim do poder temporal da Igre-ja Catlica.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 129

    nosso esprito germnico, haveremos de

    conseguir tambm o respeito e o afeto da

    nova ptria [].

    A fundao deste jornal se deve, primordi-

    almente, ao desejo de contribuirmos para

    que todos os imigrantes alemes que esco-

    lheram o Brasil meridional e, principalmen-

    te, a provncia de Santa Catarina para se

    estabelecerem, aqui encontrem, realmen-

    te, uma nova ptria, sem que isso implique

    na perda de sua antiga ptria (31).

    Aqui, a construo de uma nova identi-

    dade est atrelada a dois pertencimentos

    ptrios algo absolutamente estranho

    para um nacionalismo assimilacionista

    com destaque para a ndole e o esprito

    germnico (prprios da percepo do jus

    sanguinis). Essa identidade, que logo as

    lideranas coloniais denominaram teuto-

    brasileira, surgiu para marcar as distintivi-

    dades tnicas da populao de origem

    germnica num contexto social em que a

    maior parte dela no tinha direitos de cida-

    dania, sujeita administrao colonial, o

    que explica o formato retrico da matria

    acima citada. Deixando de lado a formao

    da etnicidade teuto-brasileira, deve-se ob-

    servar que o distanciamento cultural (mar-

    cado pela continuidade do uso cotidiano da

    lngua alem e pela presena protestante) e

    a ideologia germanista, depois codificada

    na imprensa pelo termo Deutschtum, deram

    motivao ao discurso assimilacionista e

    conseqente desqualificao da imigrao

    alem. Isso remete a um desvio na concep-

    o do imigrante ideal no final do sculo

    XIX, definido como aquele que melhor se

    deixa assimilar. Nos idos de 1850 ou 1860,

    assimilar significava uma adequao do

    estrangeiro formao latina e catlica do

    pas, mantendo-se, por certo, a opo prefe-

    rencial pelos brancos, agora, da Pennsula

    Ibrica e da Itlia (32). Protestantes e naes

    avessas assimilao passaram condio

    de indesejveis, especialmente quando o

    conceito incorporou uma dimenso racial,

    qual seja, um ideal especfico de miscigena-

    o associado imigrao branca.

    O relativo isolamento dos colonos es-

    trangeiros no parecia preocupar os defen-

    sores do modelo de colonizao das terras

    pblicas ligados ao Ministrio da Agricul-

    tura do Imprio caso do conselheiro Joo

    Cardoso de Menezes e Souza que, numa

    listagem das naes europias que podiam

    fornecer emigrantes mais aptos e em mai-

    or cpia, no atribuiu grande importncia

    ao problema da assimilao, ou mesmo

    miscigenao. O autor at comete um equ-

    voco comum na poca, confundindo nao

    e raa (usados em sinonmia); mas sua de-

    finio do melhor imigrante passa pela

    imagtica da capacidade produtiva e das

    qualidades morais. Elege os alemes como

    os mais convenientes, apelando para seu

    sucesso nos Estados Unidos e em colnias

    de Santa Catarina e Rio Grande do Sul,

    apesar de reconhecer que, por seu car-

    ter, a fuso com os ramos da raa latina

    muito lenta (Menezes e Souza, 1875, pp.

    403-5). Portanto, no incomodava ao con-

    selheiro aquilo que chamou de estabeleci-

    mento por aglomerao prprio dos colo-

    nos alemes povo de mais rectos e pro-

    videntes instinctos em relao ao estabele-

    cimento nos paizes para onde emigra

    (Menezes e Souza, 1875, p. 399). O tema

    da miscigenao, porm, aparece com cer-

    ta virulncia na desqualificao dos coolies

    e chins isto , na recusa imigrao asi-

    tica em nome da suposta degenerao mo-

    ral e fsica que poderia resultar do cruza-

    mento racial com a populao brasileira.

    As formas de excluso incluem determi-

    nantes raciais, especialmente quando a

    desqualificao assume o impondervel

    biolgico da desigualdade.

    A aglomerao de pessoas da mesma

    origem nacional no Sul do pas tornou-se

    fator de crtica ao modelo colonizador do

    Imprio quando a formao racial do Bra-

    sil passou a ser mais diretamente acordada

    poltica imigratria, presentes os mesmos

    princpios de excluso de asiticos e afri-

    canos. Princpios que comearam a ser fi-

    xados no pensamento social brasileiro no

    mbito da discusso sobre o trfico e a

    abolio o fim da escravido considerado

    imprescindvel para impulsionar a civili-

    zao do pas atravs da introduo de

    imigrantes. Nesse contexto, um autor como

    31 Kolonie Zei tung, J .1,Probenummer, 20/12/1862,p. 1. Conforme traduo deElly Herkendorf (Arquivo Hist-rico de Joinville).

    32 Os termos do debate na versoimigrantista que situou os inte-resses da colonizao comimigrantes europeus acima donativismo e sua preocupaocom uma improvvel ocupaogermnica no Sul do Brasil podem ser observados no livrode Augusto de Carvalho. Nostermos desse autor, o estran-geiro, inteligente e activo, quetrabalha e edifica no paiz, mais brasileiro do que o nacio-nal, que, vivendo na indoln-cia, nada faz, quer moral, quermaterialmente, para o engran-decimento da ptria (Carva-lho, 1874, p. 210).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002130

    Perdigo Malheiro, que escreveu uma obra

    legalista sobre a escravido no Brasil, pu-

    blicada em 1866-67, j usava um conceito

    de raa, talvez de concepo mais genea-

    lgica e vinculada idia de nao, para

    expressar a desigualdade dos no-brancos,

    sem maiores referncias a critrios de na-

    tureza biolgica ou fenotpica (apesar do

    uso das categorias designativas da cor da

    pele). Para ele, a necessidade de braos (in-

    clusive para a colonizao), num sentido

    civilizatrio, deve ser suprida por gente

    livre, mas no por negros ou chineses:

    Houve j quem se lembrasse da introdu-

    o de negros livres (33). Basta, porm, o

    elemento que existe entre ns; fiquem eles

    na frica, que bem precisa, e tal parece ter

    sido o seu destino. Falou-se em coolies

    (caulis) ou ndios da sia; porm ndios

    tambm temos ns [].

    outra a raa que devemos preferir. Con-

    vm insistir na imigrao da raa Europia

    (Malheiro, 1976, pp. 140-1).

    Raa alem, raa europia, enfim,

    brancos, no importa o modo de design-

    los, eram categoricamente definidos pela

    utilidade e pelas necessidades civili-

    zatrias, sem suscitar quaisquer inquieta-

    es sobre a formao nacional ou proces-

    sos assimilacionistas.

    Nas vsperas da Abolio, contudo,

    emerge a questo da mestiagem, influen-

    ciada por diversos racismos europeus com

    prestgio do cientificismo, investigada por

    alguns prceres do pensamento social, so-

    bretudo quando o assunto o modelo de

    colonizao imperial e, nele, a preferncia

    pela imigrao alem. Na perspectiva et-

    nolgica de Silvio Romero delineada a

    partir de 1880 e enfaticamente reafirmada

    em 1888 (Histria da Literatura Brasilei-

    ra), 1902 (O Elemento Portugus no Bra-

    sil) e 1905 (O Allemanismo no Sul do Bra-

    sil) alis, dominante nas primeiras dca-

    das da Repblica, a histria do Brasil uma

    histria de mestiagem, explicada pelos

    cruzamentos de trs traas, duas das quais

    classificadas por critrios de inferioridade

    biolgica e cultural (negros e ndios). Sob

    esse prisma imagina, a longo prazo, uma

    ao seletiva agindo na sociedade, cujo

    efeito seria a depurao gradativa dos

    mestios fazendo prevalecer as caracters-

    ticas da raa branca. Trata-se da tese do

    branqueamento racial, calcada na idia da

    formao tnica e histrica dos povos me-

    diterrneos (eles prprios plasmados pela

    mestiagem). Romero ressalta a colabora-

    o dos negros e ndios na formao do

    pas e destaca o peso da cultura e do carter

    lusitano, bem como seu pendor para o

    cruzamento produtor dos mestios de

    todos os graus que formam a grande maio-

    ria da populao brasileira. Para o autor,

    a populao mestia, majoritria,

    [] tem amalgamado os elementos que a

    formaram e tende a fundi-los cada vez mais

    intensamente. Com a extino do trfico

    de africanos, o gradual desaparecimento dos

    ndios e a constante entrada de europeus,

    poder a vir predominar no futuro, ao que

    se pode supor, a feio branca em nosso

    mestiamento fundamental inegvel (Ro-

    mero, 1949, I, p. 282).

    A est a expresso mais acabada das

    condies de formao do povo: a mesti-

    agem pensada como verdade antropol-

    gica insofismvel que influenciou o car-

    ter nacional em todas as suas dimenses,

    inclusive a literria, no obstante o sentido

    de inferioridade presente na sua concep-

    o, de certa forma supervel pela possibi-

    lidade futura do branqueamento fenotpi-

    co. Tal possibilidade de conformao do

    tipo brasileiro, porm, duplamente con-

    dicionada: diminuio dos cruzamentos

    das duas raas inferiores entre si (que re-

    sultaria no desaparecimento natural de

    negros e ndios) e ao aumento dos cruza-

    mentos com indivduos da raa branca.

    Romero tem opinio bastante negativa so-

    bre os efeitos da mestiagem, atrelando suas

    explicaes aos trabalhos do antroplogo

    francs Paul Broca (34), pois acreditava

    que ela causou a instabilidade moral e a

    desarmonia das ndoles, entre outros estig-

    mas atribudos inferioridade racial e ao

    regime escravista imaginados obstculos

    33 Aluso ao debate sobre o trfi-co negreiro na dcada de1830, mencionando um traba-lho de Moniz Barreto (Mem-ria sobre o Trfico) e a propos-ta parlamentar de HolandaCavalcanti. Perdigo Malheirotambm no queria nova ver-so do trfico, eufemismo paraimpedir uma possvel imigraoafricana. Cf. Malheiro, 1976,II, p. 140.

    34 Fundador da Sociedade de An-tropologia de Paris e autor bas-tante citado nos estudos antro-polgicos e mdicos no Brasilat a dcada de 1930, pelasistematizao que fez das tc-nicas e procedimentos estatsti-cos da antropologia fsica.Acreditava na desigualdadedas raas humanas e nos preju-zos biolgicos e sociais damestiagem.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 131

    na configurao de um ideal nacional.

    Idealizando um modelo de nao plas-

    mado pela mestiagem, ao qual atribui a

    falta de unidade antropolgica (isto , de

    raa ou tnica), Romero construiu sua ar-

    gumentao acerca da imigrao mais de-

    sejvel para o desenvolvimento nacional

    condenando a aglomerao de europeus

    no Sul e afirmando a necessidade de espa-

    lhar imigrantes por todo o territrio nacio-

    nal para evitar o desequilbrio entre o Nor-

    te e o Sul (35). Nesse caso, o melhor imi-

    grante aquele que no s se deixa assimi-

    lar, mas tambm se integra, pela mestia-

    gem, com os nacionais, cumprindo o de-

    sgnio do branqueamento. Aqui, assimila-

    o a mesma coisa que caldeamento ou

    fuso racial. Da a convenincia da imigra-

    o lusitana, ou at mesmo da imigrao

    italiana segundo seus termos, menos pe-

    rigosas por serem gentes latinas e mais

    assimilveis. Em suma, apesar da centrali-

    dade da miscigenao na definio do ca-

    rter nacional, Romero, como outros auto-

    res da mesma poca, estava convencido da

    inferioridade de negros e indgenas, e da

    maioria dos mestios, fadados ao desapa-

    recimento no curso da histria formativa

    do tipo brasileiro. E quando fala da imigra-

    o, seu referencial a Europa, mais preci-

    samente mediterrnea e com vantagem atri-

    buda aos portugueses pelo papel represen-

    tado nessa histria da mestiagem que, para

    seu desconforto, ainda no tem feio

    caracterstica e original. A tese da conve-

    nincia da imigrao portuguesa passa lon-

    ge das relaes com o Real Gabinete Por-

    tugus de Leitura. Romero no ope o ele-

    mento portugus aos outros dois elemen-

    tos que com ele formaram a nao, mas sim

    aos concorrentes novos, inesperados e

    perigosssimos, sob o ponto de vista nacio-

    nal vale dizer, a imigrao alem (Ro-

    mero, 1902), que produziu grupos avessos

    mistura! A isso chamou de alemanismo

    no Sul: colnias onde a lngua oficial por-

    tuguesa no falada, que proliferam con-

    quistando o territrio, abrindo a possibili-

    dade de secesso. Claramente, situa a etni-

    cidade teuto-brasileira no extremo oposto

    da pretendida formao histrica, pela qual

    o Brasil tem a definio de pas ibero-lati-

    no. O argumento que desqualifica os ale-

    mes tem, aparentemente, uma natureza

    poltica: o discurso antiimperialista, con-

    denatrio do pangermanismo e baseado na

    doutrina Monroe, mencionada no opscu-

    lo de 1906 (36). Entretanto, o que importa

    a desnacionalizao, a diferenciao

    cultural, o fato simples da fronteira grupal

    e da construo da identidade tnica, evi-

    denciadas por matrias vinculadas ao

    Deutschtum, semelhantes s do j citado

    nmero inaugural do Kolonie Zeitung.

    Na mesma dcada da publicao dos

    primeiros trabalhos importantes de Silvio

    Romero, encontramos matrias na impren-

    sa em lngua alem com crticas perspec-

    tiva da mistura de raas, associada as-

    similao dos imigrantes, e ao privilegia-

    mento nativista dos povos latinos em de-

    trimento da colonizao alem. Isso signi-

    fica que a tese do branqueamento, desde o

    incio da sua formulao, tornou-se objeto

    de discusso de alguns setores teuto-brasi-

    leiros, num confronto entre a manifestao

    de pertencimento etnia germnica (ou,

    mais precisamente, a uma nao alem

    configurada pelo jus sanguinis, pela cultu-

    ra e pela lngua) e os princpios da forma-

    o nacional brasileira que, alm da vincu-

    lao latinidade, estava assentada na idia

    da miscigenao seletiva (37). J nessa

    poca exigia-se a imposio da lngua por-

    tuguesa nas colnias alems como meio de

    acelerar a assimilao, sendo a intolern-

    cia com as diferenas culturais justificada

    com acusaes de preconceito: os colonos

    alemes so definidos pelo nacionalismo

    por seu orgulho de raa, que os faz pre-

    conceituosos e difceis de absorver. Dessa

    forma, a identidade tnica, tambm lastrea-

    da num discurso em parte articulado a uma

    noo de raa, que supe um grau mais

    elevado na hierarquia de naes, conver-

    teu-se no desqualificador da imigrao ale-

    m por interferir nos caminhos da preten-

    dida formao nacional brasileira.

    A converso dos alemes em indesej-

    veis, com imputao parcial de culpabilida-

    de poltica de colonizao do Imprio,

    mostra que o conceito de nao unvoca e

    35 As opinies de Silvio Romerosobre imigrao e o mododesgraado de colonizar o sulesto contidas em dois ops-culos de retrica xenofbica epanfletria: num deles defen-de a intensificao da imigra-o portuguesa em confern-cia realizada no Real Gabine-te Portugus de Leitura do Riode Janeiro (Romero, 1902), nooutro, condena a imigraoalem e o pangermanismo,numa posio claramentemonrosta (Romero, 1906).

    36 Deve ser lembrado que a ideo-logia imperialista-racial da LigaPangermnica suscitou amplareao na Frana, Inglaterra eEstados Unidos, o que explicao apego de Romero doutrinaMonroe. A influncia da dimen-so racista do pangermanis-mo, que atribua superiorida-de racial aos povos teutnicos,era evidente em alguns jornaisteuto-brasileiros na passagempara o sculo XX caso do DerUrwaldsbote, de Blumenau(SC) que ajudou a construir anoo de perigo alemo.

    37 A colonizao alemo no Sulfoi amplamente criticada peloJornal do Commrcio (Rio deJaneiro), bastante citado porSilvio Romero, especialmenteno texto de 1906. Uma dasprimeiras matrias de jornalcriticando, explicitamente, onativismo contido no postula-do racial da assimilao e naimposio da latinidade, saiuno Blumnauer Zeitung de 26de junho de 1886.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002132

    presumidamente latina pela civilizao

    assumiu uma importncia crucial na deter-

    minao do imigrante ideal desde o incio

    da Repblica. Manifesta-se outro aprioris-

    mo o crisol de raas e seu significado de

    amalgamar, caldear, fundir, miscigenar,

    enfim, assimilar imigrantes e descendentes

    para atingir uma totalidade inequivocamen-

    te brasileira. Italianos e portugueses (s ve-

    zes tambm espanhis) figuraram nas

    listagem preferenciais, talvez mais os pri-

    meiros, pois havia manifestaes de

    antilusitanismo (inclusive nos meios inte-

    lectuais) no perodo com maior volume de

    entradas de estrangeiros (entre 1885 e 1914).

    O peso atribudo imigrao branca na

    construo da nao tem sua contrapartida

    na legislao e na estatstica: a promulga-

    o da lei que imps restries imigrao

    asitica e africana em 1890 (atenuadas em

    1907), e os altos ndices de europeus (prin-

    cipalmente italianos) admitidos no primei-

    ro decnio aps a abolio, em grande par-

    te direcionados para So Paulo. Apesar do

    pessimismo com a situao racial brasilei-

    ra manifestado por algumas figuras not-

    veis nos meios cientficos caso de Nina

    Rodrigues , a crena no ideal de branquea-

    mento vicejou impulsionada, inclusive pela

    antropologia, atravs do trabalho sobre a

    mestiagem escrito por Joo Batista de

    Lacerda, diretor do Museu Nacional. Esse

    aspecto do pensamento social brasileiro foi

    analisado em diversos trabalhos (38), im-

    portando, aqui, ressaltar suas implicaes

    no modelo assimilacionista de nao.

    Nina Rodrigues parte do mesmo princ-

    pio de Silvio Romero, citando-o: todo

    brasileiro mestio, seno no sangue, pelo

    menos nas idias (Rodrigues, 1938, p.

    117); mas acredita na desigualdade biosso-

    ciolgica das raas e nas ms condies

    38 Sobre a doutrina do branquea-mento da raa ver, entre ou-tros, Skidmore (1976), Seyferth(1985, 1995), Schwarcz(1993).

    Migrantes

    europeus na

    Amrica

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 133

    antropolgicas do mestiamento no Bra-

    sil, descartando a possibilidade do bran-

    queamento. Mais preocupado com a pato-

    logia racial, e supondo o desequilbrio

    mental dos mestios, afirma que, no futu-

    ro, haver sempre predomnio dos mulatos

    na populao brasileira (cf. Rodrigues,

    1938; 1939). A verso de Lacerda (1911,

    1912) vai no sentido oposto, pois v na pr-

    pria sociedade os mecanismos seletivos de

    depurao racial do tipo brasileiro no

    sentido do fentipo branco. Sua tese apre-

    goa o tempo de trs geraes para ocorrer

    o retorno ao tipo branco atravs da mestia-

    gem porque, acredita, a seleo sexual e a

    ausncia de preconceitos raciais arraiga-

    dos conduzem escolha de cnjuge mais

    claro. Apesar da preocupao com os ata-

    vismos (percebidos como ressurgncias

    de traos de inferioridade racial), estima o

    desaparecimento dos negros e mestios (39)

    em cerca de cem anos por sua inade-

    quao s condies de vida plenamente

    civilizada. Claro que vida civilizada, nes-

    sa representao, diz respeito ao desenvol-

    vimento da sociedade brasileira aps a abo-

    lio da escravatura um enunciado sus-

    tentado na idia de desigualdade biolgica.

    O crescimento estatstico da imigrao

    europia na repblica considerado uma

    espcie de vantagem seletiva por aumentar

    o contingente branco da populao.

    H dois enunciados nas consideraes

    sobre a mestiagem no Brasil que persis-

    tem em trabalhos posteriores aos de Rome-

    ro, Nina Rodrigues e Lacerda: negros e

    ndios e seus mestios so definidos por

    sua suposta inferioridade biolgica (por-

    tanto, a desvantagem seletiva atribuda

    desigualdade racial); e a civilizao, obra

    exclusiva do homem branco, incompat-

    vel com essa inferioridade. No volume

    que escreveu associado aos resultados do

    recenseamento de 1920, Oliveira Vianna

    (1938) considerou o Brasil um vasto cam-

    po de fuso de raas radicalmente diferen-

    tes que produziu um caos tnico, revoltoso

    e confuso, de onde vai sair o tipo brasileiro.

    Especulando sobre os efeitos da mistura,

    anuncia a inferioridade das raas brba-

    ras (negros e ndios), razo do caos, a

    configurao atual de um povo cromatizado

    e de baixa estatura (os tipos cruzados ainda

    muito prximos das raas inferiores que

    ajudaram a form-los), e o processo lento,

    mas inexorvel da arianizao (40) , com

    aumento do coeficiente branco atravs da

    imigrao e pelo estacionamento da

    populao negra e mestia. Assim, a imi-

    grao tem um papel nesse processo de

    arianizao, apesar da ressalva sobre o

    maior volume de brancos melanocrides

    nas correntes imigratrias (italianos, portu-

    gueses e espanhis). O processo de bran-

    queamento, portanto, localizado histori-

    camente no Brasil Colnia vinculado s

    selees sociais (outro termo para a seleo

    sexual definida por Lacerda) significati-

    vamente articulado escravido. A fecun-

    didade dos brancos aparece como diferen-

    cial de reduo dos sangues brbaros e,

    numa clara demonstrao adicional de ra-

    cismo, afirma que a abolio, em 1888, con-

    correu para retardar a eliminao do Homo

    afer. Oliveira Vianna foi defensor da imi-

    grao europia, no mudou sua opinio

    sobre a inferioridade racial dos no-bran-

    cos, embora atenuasse a retrica racista na

    dcada de 30, expressando-se por eufemis-

    mos; teve grande influncia nos assuntos de

    imigrao durante o Estado Novo.

    A mesma retrica sobre a unificao do

    tipo nacional aparece em trabalhos volta-

    dos para a poltica de colonizao, como o

    de Joaquim da Silva Rocha, que exerceu

    cargo de chefia no Servio de Povoamento

    do Ministrio da Agricultura, Indstria e

    Comrcio. E, como Silvio Romero, acusa

    os governos monrquicos de verdadeiro

    descaso pelo futuro da nossa nacionalida-

    de (Rocha, 1919, V. II, p. 9), visto que no

    procuraram resolver o problema do tipo

    termo usado como metfora para formao

    do povo. Mais claramente existe a no s

    o enunciado da assimilao, quando diz que

    no deve ser tolerada a preponderncia de

    um elemento tnico sobre os nacionais em

    nenhum lugar do pas, mas igualmente a

    crena do que a estabilidade do tipo depen-

    de da integrao dos imigrantes. Dessa

    percepo resulta a condenao (principal-

    mente em textos do apndice) do ingresso

    39 Baseado em dados censitriosdo final do Imprio e incio daRepblica, Lacerda estimouque no prazo de cem anos osnegros desapareceriam, osmestios seriam apenas 3% dapopulao e os ndios 17%.Cf. Lacerda, 1912 (diagramacom co-autoria de Roquette-Pinto).

    40 O livro, de fato, defende aeconomia latifundiria emnome da suposta condioariana do colonizador portu-gus que conquistou o territ-rio isto , os paulistas dasentradas e bandeiras! Na maisperfeita apropriao da teseariana de Arthur de Gobineau(que imps a noo de aristo-cracia natural) procurou legiti-mar o poder poltico e econ-mico nas mos da elite de gran-des proprietrios. Cf. OliveiraVianna, 1938; 1952;Gobineau, 1853.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002134

    de elementos provenientes da sia, especi-

    almente hindus, chineses e japoneses

    imaginados obstculos unificao do tipo

    (povo) nacional.

    Em todos os trabalhos citados, e em

    muitos outros, fica evidente a apropriao

    de certas teorias raciais europias funda-

    das na desigualdade das raas, devidamen-

    te adaptadas para dar conta de uma realida-

    de insofismvel a excessiva mestiagem

    brasileira. O uso da palavra tipo reflete as

    classificaes raciais da antropologia da

    segunda metade do sculo XIX, que pre-

    tendiam dar conta das linhas de variabili-

    dade da espcie humana postuladas como

    leis biolgicas irredutveis. O conceito de

    tipo agregou critrios morfolgicos e su-

    postos indicadores de qualidades e defei-

    tos socioculturais, alm das vinculaes

    civilizatrias, num contexto em que medi-

    das corporais e modelos estatsticos, mais

    do que outros traos fenotpicos ou crit-

    rios geogrficos, serviram para classificar

    e hierarquizar os grupos humanos. Partin-

    do de uma ideologia que afirmava a supe-

    rioridade biolgica, intelectual e cultural

    dos europeus, muitas dessas teorias preten-

    diam ter demonstrado que o desenvolvi-

    mento da civilizao, o progresso tecnol-

    gico e a prpria estratificao social obe-

    deciam a leis naturais. Nesse caso, nem os

    europeus eram imaginados como tipo ni-

    co, embora houvesse certo consenso quan-

    to superioridade europia em geral no con-

    fronto comparativo com outros troncos

    raciais (41).

    Alm dos princpios tericos e

    metodolgicos dessa antropologia racial,

    tiveram bom trnsito no Brasil os trabalhos

    da antropossociologia de G. Vacher de

    Lapouge (uma das muitas vertentes do

    darwinismo social), a antropologia crimi-

    nal de Lombroso e sua fixao nos efeitos

    do atavismo, alm dos ensaios de Gobineau

    e Chamberlain com seu panegrico da su-

    perioridade ariana to caro a Oliveira

    Vianna. A preocupao com a ressurgncia

    de atavismos no processo de miscigenao

    com raas consideradas inferiores, o pos-

    tulado de Gobineau sobre dosagens da

    mistura racial (miscigenao em grau m-

    nimo, equilibrada, produzindo civilizao,

    em grau excessivo, decadncia) ajudaram

    a conformar a idia de caos tnico mas,

    paradoxalmente, produziram a retrica

    sobre miscigenao seletiva ancorada nas

    estatsticas imigratrias. No surpreende,

    portanto, o rumo tomado pelas discusses

    da poltica imigratria, privilegiando os

    brancos e condenando especialmente aps

    a abolio a concentrao de europeus no

    Sul facilitada pelo modelo de colonizao.

    Nesse caso, no h dvida quanto defini-

    o da formao nacional, percebida como

    processo de construo de um povo mesti-

    o. A mestiagem, na representao do

    carter nacional, uma especificidade da

    nao, algo que no se apaga, mas com o

    concurso da imigrao europia pode pro-

    duzir um tipo brasileiro de fentipo bran-

    co. No importa muito se tal postulado

    contraria certos dogmas do racismo cient-

    fico entre eles o da tendncia esterilizadora

    da mestiagem; afinal, tais ideologias dis-

    tinguem-se pelo contraditrio e a cincia

    (ou, no caso, pseudocincia) serve a um

    propsito preestabelecido.

    Enfim, os pensadores sociais, a elite

    imigrantista comprometida com o modelo

    de colonizao baseado na pequena pro-

    priedade, e os prprios legisladores, ao

    articular assimilao/miscigenao com

    imigrao europia, estavam sinalizando a

    nao pretendida mestia, porm com um

    povo branco na aparncia, mantidas as ca-

    ractersticas socioculturais da civilizao

    latina de lngua portuguesa. Nessa confi-

    gurao, os grupos mais apegados sua

    identidade nacional e considerados, por-

    tanto, avessos mistura e distantes da

    latinidade, eram inaceitveis.

    No entanto, o padro republicano de

    colonizar manteve a caracterstica concen-

    tradora do Imprio e no imps obstculos

    a quaisquer correntes imigratrias brancas:

    as colnias do Sul continuaram a receber

    preferencialmente europeus, inclusive os

    irredutveis alemes, isto , prevalece-

    ram as intenes econmicas e geopolticas

    da colonizao, passando ao largo das pre-

    tenses assimilacionistas do nacionalismo.

    Na dcada de 1930, a Repblica Ve-

    41 Sobre o desenvolvimento daidia de raa no Ocidente, ver:Pol iakov (1974); Banton(1977); Gould (1991).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.53, p. 117-149, maro/maio 2002 135

    lha recebeu as mesmas crticas dirigidas

    poltica de colonizao do Imprio acu-

    sada de permitir enquistamentos tnicos,

    despreocupando-se dos fundamentos da

    nacionalidade. Assim, tem sentido o dire-

    cionamento do sistema de cotas de imigra-

    o em 1934, que favoreceu a formao

    latina da nao.

    PARADIGMAS DE ENQUISTAMENTO

    TNICO E A DOUTRINA

    DA FORMAO NACIONAL NO

    ESTADO NOVO

    Se os antroplogos e socilogos mais si-

    sudos estabelecem que no h raa pura,

    seno no sentimentalismo poltico, isto

    patente no nosso tempo e nossa vista. Um

    exemplo, o que ocorre no Brasil. O sangue

    autctone dos ndios, assimilado pelos bran-

    cos ao norte; o negro importado por toda a

    parte. O selvagem desapareceu e o negro

    no vem mais; o branco vem sempre, e se

    reproduz. Em 1869 Gobineau, no Brasil,

    vaticinava: as crianas morrem, tal quan-

    tidade, que em nmero de anos pouco con-

    sidervel, no haver mais brasileiros. Em

    menos de duzentos anos ver-se- o fim da

    posteridade dos companheiros de Costa

    Cabral (sic) e dos imigrantes que o segui-

    ram. No s o Brasil cresce, e enorme-

    mente, de populao; em 72, perto de

    Gobineau, ramos 10 milhes, meio scu-

    lo aps j 47 milhes, como as misturas

    raciais se fazem rapidamente. A albumina

    branca depura o mascavo nacional Ne-

    gros puros j no h; mestios, por fraque-

    za somtica, sensualidade, nervosidade,

    sensibilidade tuberculose, ou desapare-

    cem pela morte precoce, ou se cruzam,

    sempre com elementos mais brancos: a raa

    se aclara. Em duzentos anos, longe de se

    extingirem no Brasil os descendentes do

    povo de Cabral, ter passado inteiramente

    o eclipse negro, desses quatro sculos de

    mestiagem (Peixoto, 1975, pp. 15-6).

    O texto de Afrnio Peixoto, transcrito

    sem descontinuidade, faz parte do segundo

    captulo do livro d