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HVMANITAS Vol. XLVII (1995) Y. K. CENTENO Universidade Nova de Lisboa SHAKESPEARE: CALIBAN OU AS FULGURAÇÕES DA LINGUAGEM (materiais de trabalho) Nas indicações que precedem a acção do Acto I, salientem-se as referências aos personagens: as figuras nobres são descritas pela função ou título, as menos nobres pelos seus defeitos visíveis: Stephano é bêba- do; Caliban é um escravo selvagem e disforme. Também será interessan- te fixar, para o nosso ponto de vista, que a acção decorre numa ilha deserta. Acto I Já no início do Acto I, a alusão à forca da natureza, indomável, se reveste de algum significado que veremos ampliar mais tarde. Exclama o Mestre, no meio da tempestade desenfreada, para Gonzalo, o velho conse- lheiro do rei: «Mestre — Sois conselheiro: se conseguirdes fazer calar estes elementos e mantê-los em paz... Usai a vossa autoridade (cena I)». A autoridade secular não chega para comandar os elementos, que desconhe- cem, na sua desordem natural, a ordem da função e o respeito por ela. Na cena II vamos encontrar Próspero na ilha, diante da sua cela. Conta a Miranda a sua história passada e como ali foram trazidos por Gonzalo, o bondoso conselheiro. Entra Ariel que descreve a tormenta e recorda-lhe como a bruxa Sycorax, nascida na Argélia, o maltratara até Próspero o libertar. Aqui se narra a origem de Caliban. A sua mãe era uma «bruxa de olhos azuis» e estava grávida quando a exilaram para a

SHAKESPEARE: CALIBAN OU AS FULGURAÇÕES DA … · Miranda, ainda neste Acto I, ao referir-se a Ferdinando, o filho do rei de Nápoles, exclama para Próspero: «This is the third

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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)

Y. K. CENTENO

Universidade Nova de Lisboa

SHAKESPEARE: CALIBAN OU AS FULGURAÇÕES DA LINGUAGEM

(materiais de trabalho)

Nas indicações que precedem a acção do Acto I, salientem-se as referências aos personagens: as figuras nobres são descritas pela função ou título, as menos nobres pelos seus defeitos visíveis: Stephano é bêba­do; Caliban é um escravo selvagem e disforme. Também será interessan­te fixar, para o nosso ponto de vista, que a acção decorre numa ilha deserta.

Acto I

Já no início do Acto I, a alusão à forca da natureza, indomável, se reveste de algum significado que veremos ampliar mais tarde. Exclama o Mestre, no meio da tempestade desenfreada, para Gonzalo, o velho conse­lheiro do rei: «Mestre — Sois conselheiro: se conseguirdes fazer calar estes elementos e mantê-los em paz... Usai a vossa autoridade (cena I)». A autoridade secular não chega para comandar os elementos, que desconhe­cem, na sua desordem natural, a ordem da função e o respeito por ela.

Na cena II vamos encontrar Próspero na ilha, diante da sua cela. Conta a Miranda a sua história passada e como ali foram trazidos por Gonzalo, o bondoso conselheiro. Entra Ariel que descreve a tormenta e recorda-lhe como a bruxa Sycorax, nascida na Argélia, o maltratara até Próspero o libertar. Aqui se narra a origem de Caliban. A sua mãe era uma «bruxa de olhos azuis» e estava grávida quando a exilaram para a

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ilha. E o filho é descrito nestes termos: «Uma cria manchada, filho de bruxa, a quem a forma humana não foi concedida»; e ainda: «uma coisa obtusa».

Preparado o ambiente para a recepção e o entendimento de Caliban, nesta primeira fase, Próspero sai com Miranda:

«Próspero - Vamos visitar Caliban, o meu escravo, que nunca nos dá

uma resposta amável.

Miranda - E um vilão, Senhor, para quem eu não gosto de olhar.

Próspero - Mas mesmo assim não podemos dispensá-lo: é ele que acende

o nosso fogo, vai buscar a nossa lenha, e sei~ve-nos em tudo o que nos faz

falta. EU Escravo! Caliban! Tu, terra! Tu, fala!»

(v. 307-314)

Está feita a descrição de um ser antipático, repugnante, mas útil como qualquer servo seria: carrega a lenha, prepara o fogo, etc. Próspero chama-lhe «terra», e a seguir, porque ele não surge logo, «tartaruga»: «anda tartaruga!» (v.316). Caliban não responde e Próspero insiste, cada vez mais zangado:

«Tu, escravo venenoso,

gerado pelo diabo em pessa.»

(v. 319)

Caliban surge então, com a boca cheia de maldições, e Próspero ameaça com temíveis castigos, dolorosos, que o hão-de fazer sofrer por muito tempo. E Caliban justifica-se. Está na sua ilha, herdada de sua mãe. Tem direito a comer, como qualquer um: «Tenho de comer o meu jantar» (v.331). Queixa-se de como Próspero, inicialmente, o tratara com carinho, fazendo-lhe festas, dando-lhe de comer, ensinando-lhe o nome do sol e da lua; diz como amara Próspero e lhe revelara todos os recantos da ilha, as fontes, as terras férteis e as secas. Sente-se traído por Próspero que fez dele, outrora rei da ilha, o seu escravo para todo o serviço: «for I am all the subjects that you have»: «pois eu sou todos os súbditos que tens», (v. 341) Próspero responde que o acarinhou até que ele ofendeu Miranda ao tentar violá-la. (v.349). E Caliban responde que assim teria povoado a ilha de pequenos Calibans, (v.350). O diálogo prossegue, e Próspero não poupa as censuras ao seu escravo. Pela negativa vai esboçando a forma do seu carácter, o primarismo da sua natureza. Recorda que foi ele quem o ensinou a falar («Esforçei-me por te fazer falar»). Entre muitas das coisas

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que ao longo do dia lhe ia ensinando destaca o dom de nomear os seus desejos e de se fazer entender pela palavra:

Próspero - Quando tu, selvagem, não conhecias o teu próprio sentido, e andavas por aí tagarelando como um bruto, fui eu que atribuí palavras aos teus desejos, Para os poderes exprimir... Mas foste com razão preso a este rochedo, tu que merecias muito mais que a prisão.»

(v. 363)

«A thing most brutish», é como Próspero descreve o Caliban que se encontrava na ilha. E ajudou-o a dar às suas intenções as palavras adequa­das, que fizessem dele um ser articulado, com um discurso inteligível. Mas Caliban não se contém:

«Caliban - Ensinaste-me a falar e a minha vantagem foi que aprendi a amaldiçoar.»

(v. 364)

A única vantagem de ter aprendido a falar foi a de poder lançar-lhe as suas maldições. Próspero, impaciente, manda-o embora e chama-lhe «hag-seed», semente de bruxa, (v.369). Caliban exprime-se bem, tal como reage e raciocina. Não há dúvida de que nele a humanidade se afirma, e até de forma poética, quando se refere à sua ilha, e ao seu crescimento nela, antes da chegada de Próspero, e mesmo quando este ainda se ocupava dele: «davas-me água com amoras, ensinavas-me a nomear o Luzeiro maior e o mais pequeno, que ardiam noite e dia; e eu então amava-te...». Igualmente poéticas são as suas maldições: «Que todos os malefícios de Sycorax, sapos, besouros, morcegos, se abatam sobre ti!» (v.340). Dificilmente se podem aceitar as várias versões cenográficas em que se dá a Caliban a forma de um bicho-monstro, desprovido de toda e qualquer humanidade. E, pelo contrário, humano, demasiado humano... Come (e gosta de comer); só não dorme quando Próspero o castiga e lhe inflige dores pela noite fora; deseja amar e ser amado (ainda que brutalmente): quer ter filhos de Miranda. Embebeda-se, e o vinho traz ao de cima os vícios da sua natureza ainda bastante imperfeita. A conclusão é que falar não chega. A fala ajuda à expressão do desejo. Mas o que Shakespeare-Próspero nos ensina é que a fala se deve substituir ao desejo. É tal substituição que caracteriza o homem e sua humanidade. E vendo um pouco mais — o

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artista e a sua criação (a arte substitui-se à vida, neste caso). Quando Miranda, ainda neste Acto I, ao referir-se a Ferdinando, o filho do rei de Nápoles, exclama para Próspero: «This is the third man that ever I saw; the first that ever I sighed for» (v.444), ajuda-nos de novo a concluir que os dois primeiros homens são Próspero e Caliban. O que reforça a humani­dade deste, de uma vez para sempre. Os epítetos anteriores eram insultos, e não alusões à sua forma física. Eram tão-só imagens para um carácter que não merecia louvores. Como adiante Próspero dirá de Ferdinando que tam­bém ele é «um Caliban», ou seja, moralmente, um monstro, (v.480). Aliás não deixa de ser curiosa, neste Acto I, a atitude de Miranda face à narrati­va do pai. Adormece com o seu discurso, apesar de Próspero, mais do que uma vez, a interpelar chamando-lhe a atenção. Apesar de algo ingénua (mas não tanto como se possa julgar, veja-se como defende o seu direito à paixão pelo jovem Ferdinando) não faz sentido que reaja com tanto alhea­mento ao historial do seu passado e à condição que perdeu quando Próspero, traído pelo irmão, se vê expulso do seu legítimo ducado. A razão pela qual Shakespeare sublinha o tédio de Miranda, a sua mal escondida indiferença (não pela condição perdida, mas pelo discurso que a explica, pelo relato) é que ele próprio, insigne dramaturgo, já estava farto do peso dessa tradição da intriga de corte, com os eternos irmãos ou cortesãos desavindos. Macbeth ou King Lear são bons exemplos da desordem indivi­dual contaminando a ordem social (nenhum destes heróis acaba por sobre­viver ao mal que desencadeia); mas nas comédias o mesmo suporte da intriga, ou um suporte aparentado, pode obter melhor e mais feliz resolu­ção. A este respeito, segundo o sentimento de Shakespeare, o que havia para dizer estava dito. Repetir seria banalizar ainda mais o tema. Adormecer o público, como adormeceu Miranda. A questão fundamental que vai pôr-se a Próspero — o mágico condicionador da acção — será pois bem diferente. E já a começar com Miranda, sua filha, que se apaixo­na à primeira vista por Ferdinando. A saber: a questão do desejo, o direito à paixão, sem mais palavras que a exprimam, o direito à vida, ainda que tal implique o sacrifício da arte (em Shakespeare, como em Próspero). Saltando uns séculos, podemos talvez lembrar Mefistófeles quando excla­ma que «verde é a árvore dourada da vida e cinzenta toda a teoria».

Acto II

Próspero assistiu, no Acto I, algo impotente, à atracção que Miranda e Ferdmando sentiram logo um pelo outro. O príncipe julga que o pai

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morreu no naufrágio, e Próspero aproveita-se da situação para pôr à prova a verdadeira natureza de Ferdinando. No Acto II somos levados a outra parte da ilha, onde os náufragos se recolheram, todos de boa saúde. O naufrágio foi um artifício da magia de Próspero para potenciar a sua vingança sobre aqueles que o tinham atraiçoado. Nada mais. O interesse da cena reside na utopia descrita por Gonzalo, o velho conselheiro, ecoan­do a Idade do Ouro:

«Gonzalo - Fosse esta ilha minha propriedade, Senhor, e fosse eu rei, o que faria? Organizaria tudo ao contrário na nossa sociedade; o negócio não seria admitido; e nenhum magistrado. Todos seriam analfabetos; riqueza e pobreza, sei-viços de qualquer género, tampouco existiriam.

Todos os homens seriam inactivos e as mulheres também, inocentes e puras.

Sem soberania -

Eu governaria, Senhor, com uma tal perfeição

que excederia a Idade do Ouro.»

(v. 163)

O estado natural aqui descrito por Gonzalo, anterior à própria aquisi­ção da linguagem e da socialização que ela implica, remete para o Caliban já nosso conhecido, alma mesma da ilha, antes de Próspero, o mágico letrado e civilizador, ter aportado a ela. Já aqui temos duas visões que merecem comentário: a do próprio escravo selvagem, impetuoso, revoltado e infeliz; e a do nobre conselheiro, privando com reis e altos dignatários, que tem também ele a nostalgia de um paraíso natural perdi­do. Se ele o descrevesse, o seu seria decerto um bom selvagem. Mas a questão é mais complexa: os conceitos de bem e mal não são entendidos do mesmo modo pelo homem primitivo e pelo homem já civilizado ao qual a sociedade já impôs os seus códigos (definições e limites). Enquanto com António e Sebastião nova intriga se desenha com vista à eliminação do rei de Nápoles (que julga o filho, Ferdinando, morto no naufrágio), somos de novo levados a Caliban, noutro ponto da ilha. É a cena II. Caliban, obedecendo às ordens de Próspero, recolhe lenha para as fogueiras. Da sua boca saem impropérios e maldições, (v.17). Vê

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Trínculo a chegar e julga que ele é um dos espíritos enviados por Próspero. Receoso, deita-se no chão. Trínculo não percebe logo o que ele é: «O que temos aqui? Um homem ou um peixe? Morto ou vivo? Um peixe: ele cheira a peixe. (...) Um estranho peixe! Com pernas de homem e barbatanas como braços! Não é um peixe, é um habitante da ilha...» (v. 38). Mais uma vez, o que se discute aqui é a aparência dis­forme e o mau cheiro de um nativo, e nada nos permite concluir (como farão alguns críticos e artistas que lidaram ao longo dos tempos com esta figura) que Caliban não seja um ser humano. Seria, quando muito, o «missing link» da doutrina de Darwin, o humanóide nosso antepassado. Mas julgo que nem isso. A designação de «homem selvagem» é a mais adequada, foi a que Shakespeare nos deixou, e tem antecedentes na mesma época, na Faerie Queene de Spenser, por exemplo. A ideia de homem selvagem corresponde a de alguém com pouca ou nenhuma civi­lização e cultura, com poucos ou nenhuns hábitos sociais, e totalmente alheio aos códigos de honra estabelecidos, entre eles o da relação reser­vada com a mulher. Este é o nosso Caliban, ou, como Shakespeare dei­xará pouco a pouco entender, o Caliban dentro de nós (a sombra, o negro das pulsões, a nostalgia da alma que se adivinha por trás do discurso organizado). O encontro de Caliban com Trínculo e Stephano, os mari­nheiros bêbados, tem algo de iniciático. O vinho é o elemento propicia­dor de novas revelações.

Caliban, neste episódio cómico, toma os bêbados por deuses e ajo-elha-se diante deles. O licor que lhe deram pareceu-lhe celestial. (v.110). E apressa-se, servilmente, a oferecer-se para fazer com eles o que tinha feito com Próspero: revelar todos os recantos da ilha (v.140). Os marinheiros fazem troça dele, e os epítetos desagradáveis seguem-se: «monstro de cabeça de cão; monstro pérfido e bêbado», etc. (v.149). Monstro, em resumo, de todos os pontos de vista, físico e moral. Mas humano, sempre humano: quando Trínculo se esconde junto dele um e outro confundem-se, em alusão à baixa natureza que ambos partilham, a da matéria espessa, sem espiritualidade: «quatro pernas e duas vozes, um monstro especial» (v. 149).Trínculo faz troça do pobre monstro que confunde um bêbado com um deus. (v.156). Esta é uma situação idênti­ca à que encontramos no Sonho de uma noite de S. João em que Titânia, por malefício de Puck, se apaixona pelo actor com cabeça de burro. O jogo é o da ilusão, teatro dentro do teatro, espelho ora da consciência, ora do instinto, postos a descoberto. Caricaturalmente, Caliban chama liberdade à nova servidão a que julga entregar-se. Assim termina a cena (v.176).

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Acto III

Desenvolve-se no Acto III um dos motivos condutores desta peça: o desejo de Miranda e Ferdinando um pelo outro. Desejo que ambos prome­tem festejar com um casamento. Próspero foi ultrapassado pela intensida­de manifesta da paixão dos dois jovens, mas não lhe desagrada por com­pleto a ideia. Saberá lidar com ela, amenizando a vingança que se tinha proposto (sobre o irmão e o rei de Nápoles que o tinha protegido).

A cena II devolve-nos Caliban com Stephano e Trínculo. Continuam os gracejos sobre a forma de Caliban: monstro, cabeça de vitelo, meio--peixe, meio-monstro, etc. (v.28). E Caliban implora que matem Próspero, que o tiraniza. Primeiro roubando-lhe os livros, pois neles reside todo o seu poder: «Primeiro é preciso tirar-lhe os livros. Pois sem eles não passa de um simplório, como eu» (v.88). E a seguir refere-se à beleza inexcedí-vel de Miranda, com quem pretende casar: «a non Pareil» (sem igual) (v. 96). A sua apreciação é feita em linguagem elaborada, quase cortês (como poderia pôr-se em causa a sua humanidade?); e mesmo a conclusão final: «She will become thy bed/...And bring thee forth brave brood» revela apenas o interesse, mais do que natural, pela continuidade da espé­cie, (v.101). Segue-se, com acentos de grande lirismo, nova descrição das magias da ilha:

«.. A ilha está cheia de barulhos, sons, doces áreas, que deliciam e não fazem doer. Oiço por vezes mil instrumentos de cordas. E oiço vozes.... que ajudam a adormecer.»

(v. 137)

A ilha é um paraíso de harmonia musical, os seus acordes são propí­cios ao sono, ao sonho, ao doce embalar da alma. Caliban excede-se a si próprio na linguagem que utiliza. Revela-se poeta. A sua selvajaria disfor­me esconde a flor de ouro do lirismo mais puro, o que se identifica com o pulsar da vida harmoniosa, da perfeição edénica da ilha. Caliban dá voz à ilha, enquanto Próspero, que a domina, apenas a brutaliza.

Na cena III reencontramos o rei, o falso duque, os cortesãos. O liris­mo anterior cede o passo à intriga aborrecida do cânon que Shakespeare ao mesmo tempo aceita e parece abominar. Miranda já não dorme, foi salva pela paixão. Próspero, invisível, comanda o show que preparou com os seus espíritos. A música é solene. É servido um banquete por figuras que dançam a toda a volta e saúdam os presentes. Saem, depois de convi-

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dar o rei a comer. Todos se declaram encantados com a harmonia da música e com os que julgam ser os habitantes da ilha. Sebastião observa que, depois do que viu e ouviu, já acredita que existam unicórnios e que haja uma fénix na Arábia. Mas todo o acto serve um único propósito: confrontar, pela boca de Ariel, os culpados com a sua culpa: usurpação do ducado de Próspero, seu abandono na ilha com a filha pequenina. Ariel, tomando a assustadora forma de uma harpia, arrebata no ar o banquete com o qual ninguém chegará afinal a deliciar-se.

Acto IV

No Acto IV, diante da cela de Próspero estão ele mesmo, a filha e Ferdinando. Assiste-se à reconciliação do mago com o futuro genro, a quem pede que o desculpe pelo excesso do castigo infligido. Concede-lhe a mão de Miranda e ameaça com a maldição de um leite estéril se ele se atrever a quebrar a sua virgindade antes da santificação da cerimónia ofi­cial. Vem à memória a tentativa de violação de Caliban, e o abandono a que Próspero o votou, depois de o ter acarinhado. Sublinha-se a importân­cia do respeito pelo código religioso (moral e social) e a necessidade de domínio sobre as pulsões do desejo. E do desejo de que aqui se fala: da sua manifestação incontrolada (Caliban) e do seu controle (Próspero, Ferdinando). O interlúdio maravilhoso com que Próspero entretém o futu­ro genro enquanto aguarda que se precipitem os últimos acontecimentos (a traição que Caliban lhe prepara com os marinheiros) leva o mago a fazer-se porta-voz implícito de Shakespeare:

«Estes nossos actores, Como eu tinha anunciado, Eram todos espíritos e Dissolveram-se no ar, no fino ar.

Nós somos feitos da matéria De que os sonhos são feitos. E a nossa pequena vida Está rodeada por um sono.»

(v. 157)

Eis o testamento de Próspero-Shakespeare, eis a verdade última com que nos deixa: a vida uma ilusão que se desfaz, envolta em sono. A exis­tência — a colectiva, com os seus marcos e monumentos, tanto como a individual — matéria que se dissolve. Descrê-se, aqui, de toda a alquimia,

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descrê-se da perfeição. Fala-se sobretudo do homem com a sua sombra (Próspero com Caliban, resquício negro e informe de si próprio, da sua breve fulguração). Do monstro dirá Próspero que foi inútil todo o esforço que fez por ele: «a devil, a born devil, on whose nature/ Nature can never stick; on whom my pains,/ Humanely taken, all, all lost, quite lost;/ And as with age his body uglier growes,/ So his mind cankers.» (v. 192). Natureza imperfeita, (demoníaca é o termo usado) em que a educação se perde, sem efeito (ocorre-me a célebre citação: chassez le naturel, il re­vient au galop!). Próspero, o mago, o educador (educou Miranda como, diz ele, nenhum tutor o faria) acaba por ceder à força da natureza, reco­nhecendo valores que nenhuma autoridade consegue contrariar. Onde se lê demónio deveria ler-se talvez daimon, o obscuro impulso instintual, ino­minável. Próspero, envolto nas roupas mágicas da sua imaginação, percor­re todas as esferas da desordem: a social, tão recorrente que até já se tor­nava maçadora; a individual, que o atrai porque a julga susceptível de ser dominada e sublimada em algo de espiritual como o vaporoso Ariel. Ariel é fogo e ar, ou luz e ar, recordando Cleópatra, que na hora de morrer exclama: «I am fire and air; my other elements I give to baser life». (Acto V, cena II). Próspero controla os elementos: o ar e a água da tempestade; o fogo do trovão e o da luz dos espíritos; quanto à terra, o elemento mais pesado, menos subtil, o elemento de que é feito Caliban, a quem ele chama «terra» como verdadeiro insulto, a terra já ele não controla tão bem. A terra é a realidade incontrolável, com ela terá de se haver na vida, a sua e a dos outros. A terra é a esfera do meio, nela reside o segredo da natureza humana. Próspero confrontou todos uns com os outros e consigo próprio. Confrontou-se, enquanto homem e enquanto mago, com a sua própria obra. Que reconhece e renega. Abjura do exercício da imaginação e do poder da linguagem. A ele, como a Caliban, só estaria a servir para lançar maldições. Apagado o fulgor do discurso, verificada a aridez de um Verbo que esteriliza o desejo, só resta a Próspero abandonar a cena. E é o que fará Shakespeare. A Tempestade foi a sua última peça.

Acto V

Mas vejamos o Acto V: Próspero encontra-se de novo na sua cela, vestindo as roupas mágicas, e falando com Ariel, o espírito luminoso e obediente. As roupas mágicas, que ora veste ora despe, ao longo da acção (que não deixa nunca de controlar), representam de algum modo o jogo da aparência e da realidade, a sua indispensável alternância na essência mesma da Arte (mágica, ou teatral). Diz-se do palco que é o teatro do

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mundo, o espaço por excelência da «representação» no seu sentido mais

alto, ali se espelham as esferas do social com os seus códigos, aceites ou

rejeitados. Ali se espelha também a dimensão metafísica, própria da

essência do homem. Quase chegado ao fim do seu projecto, como Shakespeare da sua obra, diz Próspero:

«Concentra-se agora o meu projecto e adquire uma cabeça; Os meus encantamentos não se quebram, os meus espíritos obedecem; e o tempo segue em frente com a sua carruagem.»

(v. 3)

A importância da concentração (que se verifica na estrutura, pelo res­peito às regras de Aristóteles) e da coerência (projecto com cabeça) aponta tanto para a ordem desejada por Próspero como por Shakespeare, o autor e verdadeiro manipulador de todos os intervenientes. Próspero, seu duplo, é a ele que obedece. Quanto aos outros, estão todos prisioneiros, como Ariel recorda, dos feitiços do mago; e estão arrependidos dos seus crimes. Comovido, e movido também pela força da razão, Próspero irá perdoar. A oposição entre a fúria, impulso ou instinto de vingança, e a nobre razão, é sublinhada para que esta vença. E o mesmo com a virtude. Apelando aos espíritos e forcas elementares que até aí evocara, renega a sua magia. O passo revela uma exaltação poética idêntica à de Caliban pela força das imagens da natureza: montes, lagos, grutas, areias, mar, sol e lua, ventos tempestuosos, árvores e rochedos, a tudo o que é força natural faz alusão. E tudo renega: «I'll drown my book» (afogarei o meu livro) (v.57).

Renega a magia natural, dos espíritos e forças elementares, e renega também a magia espiritual. Joga o seu livro ao mar. Ao contrário de John Dee, o mago isabelino, favorito da corte, seu astrónomo e astrólogo, res­peitado alquimista (que se julga ter servido de modelo a Shakespeare nesta obra), ao contrário de Dee, Próspero que outrora tinha cedido o seu lugar por amor aos livros e ao saber, volta agora a ceder o seu lugar por amor à vida que Miranda e Ferdinando prefiguram. Embora algo ingénua ou parecendo que o é (pois alguma ironia se pode detectar na afirmação), Miranda concentra em si, intocável, a fé no mundo que a leva a comentar:

«Oh que maravilha! Que bela é a humanidade! O admirável mundo novo Que contém tal gente!»

(v. 183)

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Os olhos de Miranda, ofuscados pelo traje e pelo tom daquele grupo de, só em aparência, nobres fidalgos (à excepção do velho Gonzalo) não vêem o Caliban malformado escondido neles. Toda a peça mostrou, pelo contrário, que a humanidade é em geral feia, bruta, má. Próspero abdicou da magia, mas Shakespeare não abdicou ainda por completo da ironia. Ariel recebe por fim a ordem de libertar Caliban e os seus companheiros Stephano e Trínculo. De novo se discute a humanidade do monstro. António julga-o um peixe, mas Próspero chama-lhe «misshapen knave», bruto malformado, ou deformado (v.268). E refere a sua origem nefasta, mas poderosa, por ser filho da bruxa que controlava, a ilha (v. 271). Chama ainda a Caliban «demi-devil», semidiabo, sugerindo que ele é filho bastardo do demónio e da bruxa. (v.272-273). Deste modo se refor­ça, na figura de Caliban, o lado demoníaco, ao lado do humano. Próspero assume a responsabilidade por Caliban: «...this thing of darkness/ I ack­nowledge mine» (v.276). E será dele porquê, esta «coisa das trevas». Por que razão diz «reconheço-a como minha»? Por que razão não pode ele renegar Caliban, como fez com todas as outras forças naturais?

Caliban, ser das trevas, força do instinto vital só comparável ao impulso criador, Caliban não pode ser renegado pelo artista Shakespeare nem pelo mago Próspero. Escapa à determinação e à vontade de um e de outro. Não é domável pela força da «nobre razão». Pelo contrário: enquanto a retórica da razão adormece quem é vítima dela, cresce dentro do sonho o impulso que dá forma ao desejo, criando os seus próprios canais de comunicação (de que a linguagem será um, mas não o único). Caliban aspira a uma ordem, divina ou humana, que o modele (veja-se com que facilidade se submeteu a Trínculo e Stephano), mas que também o respeite. Próspero, que o aceita como seu, conhece-o, mas tem dificul­dade em se reconciliar com tal conhecimento: «He is as disproportioned in his manners as in his shape» (v.290).

O seu comportamento é tão fora de normal quanto a sua forma. Caliban, e a sua rebeldia, com o seu desajustamento, tornar-se-á, ao longo dos séculos, o pretexto para variadas utilizações ideológicas: do índio nativo ao negro escravo e ao simples marginal (a que Peter Brook coloca­rá uma máscara de violador numa sua encenação). Caliban reconhece que foi estúpido ao confundir os bêbados com deuses, e ao desejar servi-los. Retira-se humildemente para a cela de Próspero, obedecendo à sua ordem de aí ficar aguardando perdão. Admite-se que lhe seja concedido. Próspero, sem poderes mágicos, não poderá torturá-lo. E quando todos seguirem rumo a Nápoles, Caliban, só na ilha, voltará a ser dono e senhor de si mesmo. Ganhou, com a sujeição ao mago, a aquisição da linguagem

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e o conhecimento do mundo e de si mesmo que ela permite. Pois nomear, ou ser capaz de nomear é tornar-se articulado, é ampliar o saber a partir de um estado natural que o pressupõe mas não o concede de imediato. A linguagem é uma aquisição a posteriori; e artificial, nessa medida. Caliban, que se retira para a cela de Próspero, aí ficará, a substituí-lo. A natureza, indomável, e ela sim eterna, substituirá o artifício efémero do discurso político, social, e mesmo artístico (dramatúrgico). Só do silêncio (o do túmulo a que Próspero alude), poderá renascer uma nova linguagem (v. 311).

Caliban é, ao lado de Próspero, a figura mais interessante da Tempestade de Shakespeare. Sendo este o seu último drama, revestiu-se, aos olhos da crítica, de um significado especial. Não tanto pelo enredo — uma história de traição e de amor como tantas outras ao gosto cortês — mas muito mais pela dimensão simbólica que se atribuiu ao mago Próspero, à sua ilha e aos seres que nela controlou: o «luminoso» Ariel e o «tenebroso» Caliban. Este surge como o negativo da figura do bom sel­vagem, destruindo os alicerces do conceito que mais tarde Rousseau tor­naria emblemático: o que é natural é naturalmente bom, a civilização é que corrompe o natural no homem. A relação Próspero/Caliban leva a pensar o contrário: a natureza bruta precisa do seu domador, o selvagem é a expressão directa de instintos que não controla e só o controle imposto pela socialização, pela civilização, pode fazer com que evolua. Dessa tare­fa se encarrega Próspero ao dominar a ilha.

É certo que Caliban é descrito como um «escravo selvagem e disfor­me». Mas é mesmo assim, ou sobretudo porque assim, uma figura que fascina. Fascina porque viola a ordem estabelecida por Próspero, paradig­ma do civilizador. Mas também Próspero exige a nossa atenção, e um ponto de vista alternativo: serve-se da magia para controlar a ilha; só no fim abdica dos seus livros, da sua arte, e deixa seguir o curso natural das coisas. «Próspero representa a hierarquia europeia e o primado da lingua­gem. Caliban aprendeu esta linguagem mas só para amaldiçoar o que ela significa. Caliban apela aos instintos de rebelião porque desafia uma cul­tura dominante. Como força de oposição, o outro sobre o qual a cultura dominante projecta os seus medos da desordem, Caliban transforma-se num poderoso símbolo de resistência e transgressão». Cito aqui a obra de Alden T. Vaughan e Virginia W. Vaughan, Shakespeare's Caliban, A cul­tural history. (Cambridge University Press, 1991, pp. IX-X). O estudo destes autores segue com detalhe a evolução do tratamento da figura ao longo dos tempos, em poetas, dramaturgos, romancistas, encenadores e

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cenógrafos, artistas e sociólogos em geral. Daí o seu grande interesse, no conjunto da bibliografia shakespeariana mais recente. O interesse de Caliban não se esgotará nunca enquanto estiver em aberto a discussão natureza vs. civilização. Tema que hoje em dia os ambientalistas retomam com afinco. Mas para a nossa leitura é necessário não esquecer o que sig­nificava, na época de Shakespeare, o termo «selvagem» (savage). Savage significava, nessa época, bárbaro, não-educado, não-domesticado, incivili-zado segundo o modelo europeu, como observam os autores supracitados (p.8). O selvagem não tinha religião, não tinha escrita, não tinha leis, nem governo, nem hábitos requintados de vestir, falar, comer. A condição so­cial de Caliban também é explicitamente definida: é um escravo, situação que não se modifica ao longo de toda a peça. Próspero e Miranda tratam-no como tal. Já não é tão explícita a descrição física de Caliban. Terá aspecto humano, ainda que informe. Só assim se justifica o esforço de Próspero para o educar, ensinando-lhe a língua que falava, e o serviço de que necessitava (como trazer lenha e cuidar do fogo, por exemplo). E se nada houvesse nele de humano não haveria o perigo, a que se alude, de ele violar Miranda e povoar a ilha com pequenos Calibans. O que se con­clui é que a sua forma é desproporcionada: «é tão desproporcionado nos seus modos/Como na sua forma». Miranda, de resto, já no Acto I aludira à sua «raça vil» (Acto I, II, 356-57). Os bêbados Trínculo e Stephano, embora aludam ao seu «cheiro a peixe», não deixam de reconhecer em Caliban as pernas e os braços de um homem, como tivemos ocasião de ver: «tem pernas como um homem, e as barbatanas são como braços». A utilização das imagens aquáticas não é exclusiva de Trínculo. António, no final da peça, também chama peixe a Caliban, referindo-se ao seu cheiro ou ao seu aspecto, sem especificação. Próspero, no Acto I, já lhe chamara «tartaruga», aludindo à sua lentidão. Enfim, o que acontece, em relação a estes epítetos, é que muitos artistas farão deles a imagem prefe­rencial de Caliban: de humano passará a monstruoso peixe ou tartaruga, conforme o gosto. Há vários exemplos desta distorção em autores do séc. XIX e mesmo do nosso tempo '. A desordem no barco, durante a tempes­tade, quando só a voz do capitão deveria fazer-se ouvir e ser a autoridade respeitada, dá o tom da desordem generalizada, sem respeito pela desi­gualdade e pela função (o degree) que é apanágio da corte, ou da socieda-

1 Joseph Hunter, A Disquisition on the Scene, Origin, Date, etc., of Shakespeare's Tempest, London, 1839; Brinsley Nicholson, Shakespeare Illustrated by Massinger, 1868; Barry Gaines and Michael Lofaro, What did Caliban look like?, 1976; etc.

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de em geral, de que a corte é reflexo. Assim define Shakespeare uma das

linhas de interpretação da sua peça. A desordem irá depois contrapor-se a

utopia natural de Gonzalo no Acto II, tão imaginária quanto aliás o fora a

tempestade inicial, desencadeada pela magia de Próspero. Nada é real

nesta peça, a não ser o desejo: o de Caliban, incontrolado, o dos dois

jovens, Miranda e Ferdinando, enquadrado nas normas da usual civilidade.

A autoridade já não serve de nada, esgotou-se, os tempos mudaram, é isso

que Shakespeare também nos quer dizer. Está-se a caminho de novos tem­

pos, outros mundos, outras realidades políticas, sociais, morais e artísticas.

Duas questões fundamentais preocupam Shakespeare: a da origem e natu­

reza do mal, que ele disseca minuciosamente na personagem de lago no

drama Othello; e a da consciência moral que vemos em Macbeth, e aqui,

nos diálogos de António, o cortesão ambicioso, com Sebastião, a quem

quer convencer a matar o rei de Nápoles:

«Seb — Mas a vossa consciência? Ant — Sim. Mas onde fica isso?

Não sinto essa divindade no meu peito.»

(v. 271)

Na obra de Alden T. Vaughan e Virginia W. Vaughan estabelecem--se os modelos possíveis, históricos, culturais, literários, e acompanha-se o desenvolvimento subsequente por parte de encenadores e cenógrafos, pin­tores e escritores, como se disse. Se o modelo do «homem selvagem» (the wild man) é o que mais depressa acorre à mente — as descobertas na África e na América propiciaram tal imagem — não deixa de ser também pertinente a sugestão que os autores fazem da influência do folclore celta na imaginação de Shakespeare. E teríamos Merlin, o mago da floresta, como protótipo de Caliban2. O facto é que durante o século dezoito Caliban é sempre posto em cena com uma pele de animal a cobri-lo, uso que poderia datar já do tempo de Shakespeare, reforçando a ideia de homem primitivo, de cavernícola das florestas. O próprio Merlin tem ori­gem antiga, com precursores na Babilónia, Grécia e Roma. Na Idade Média floresceram vários tipos de homem-primitivo: sátiros, centauros,

2 Esta sugestão deve-se a Noel Cobb em Prospero's Island: The secret Alchemy at the heart of the Tempest (Conventure, London, 1984, p. 121-122).

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faunos, gigantes, homens-verdes. Em termos modernos, freudianos, a ima-gética do homem selvagem serve a expressão dos impulsos instintivos à margem dos condicionalismos e repressões da ordem social (legal ou moral). Por exemplo, numa representação de The misfortunes of Arthur, feita em 1587 para a rainha Isabel I, o homem selvagem é identificado ao irlandês, igualmente indomável: «Tal como o homem selvagem, o homem irlandês precisava das restrições da lei isabelina para se tornar civilizado» (Alden T. Vaughan, p.68). Quanto à apropriação literária da figura ou do mito do homem selvagem: o melhor exemplo encontra-se na Faerie Queene de Edmund Spenser3 No seu poema alegórico este inclui dois homens selvagens (salvage men). O primeiro aparece no Livro IV, quando Amoret o encontra na floresta. Era um «wilde and salvage man Yet was no man, but onely like in shape and fed on fleshly gore». (Book IV, Canto VII). Este era um canibal, visão decerto mais aterradora do que a de Caliban, mas que lhe pode ter servido de inspiração. Representava, segundo Edward Tayler, a humanidade no estado da natureza. O segundo homem selvagem é mais complexo e interessante, talvez porque, na opini­ão de Vaughan, «a sua ascendência é de sangue nobre» (p.72). Trata-se neste caso de um lutador incansável que só obedece às ordens de Artur. Artur — emblema do poder real — controla as forças violentas que o sel­vagem representa. Inserido no contexto da linguagem de Spenser, a selva­jaria em causa significa falta de cortesia e de civilidade e não apenas força bruta. Serve de exemplo para a necessidade da disciplina moral e social, sem o que se volta a cair no estado da natureza à margem do pro­gresso racional (Book VI, Canto VIII). Caliban pode ainda ser estudado (e tal acontece em obras já do nosso tempo, como a de G.Wilson Knight, em The Crown of Life, Oxford University Press, 1947) como um símbolo do mal interior, representando a visão de um Shakespeare no fim da sua vida, decepcionado com a natureza humana: «all Shakespeare's imagery of nausea and evil expressed through reptiles, or creatures of black magic...» (p.211). Em Othello e Macbeth encontramos tais exemplos, da perversidade natural, eterna como o mundo, inexplicável. Mas, observa Knight, este Caliban pode ainda ser uma representação de uma faceta da psyche de Shakespeare. E sendo assim simboliza a ascenção do mal, ou da desordem, à ordem da criação. Interessante seria discutir esta noção do mal e suas representações na obra de Shakespeare. Othello seria, com

3 Edmund Spenser, The Faerie Queene, ed. A. C. Hamilton, Longman, London, 1977, p. 473.

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lago, um excelente ponto de partida. E se neste caso há, no final, um exercício de castigo (mas lago não morre), no caso de Caliban a natureza regressa a si própria; com a partida de Próspero e a sua família, o mons­tro selvagem retoma os seus direitos, a desordem que se re-instaura deixa adivinhar certa forma de respeito pelo que de insondável há no grande como no pequeno mundo, ambos sendo o reflexo da própria alma do homem. A desordem estará como o mal, na matriz mesma da vida? O paraíso carece dessas árvores? Do bem e do mal, tanto como da outra, da vida eterna? A ilha fica para trás, e o seu pulsar volta a ser o dos rit­mos de Caliban. O instinto natural recupera o seu espaço, os seus direitos. Próspero foi o primeiro educador de Caliban, mas este poderá ter sido o seu iniciador na beleza e na substância da vida. René Girard, em A Theater of Envy A (o melhor estudo sobre a obra de Shakespeare que me foi dado 1er nestes últimos anos) define Caliban como «o sentimento poé­tico não educado, a poesia antes da linguagem (sublinhado meu), infor­me, amoral, imoral até, e por isso perigoso e possivelmente reprovável, mas sendo apesar disso tudo poesia verdadeira (p. 344). Para Girard, Próspero educando Caliban é Shakespeare transformando em peças de tea­tro e em poemas a matéria da inspiração poética que deve ao Caliban que tem dentro de si. Caliban é, para Girard, a representação simbólica do processo mimetico: «Caliban é ao mesmo tempo o produto, o monstro mítico, e o processo que o produz — o nosso processo mimetico, é claro» (p. 345). Caliban é, para concluir ainda segundo Girard, «toda uma teoria do monstruoso numa casca de noz» (p. 346). O que remete, como eu dizia atrás, para a discussão do conceito de mal. «This thing of darkness/ I ack­nowledge mine», esta coisa da treva, exclama Próspero-Shakespeare, reco­nheço que é minha. A treva em todos nós, a sombra na natureza, a pulsão mais obscura, em contraponto ao sol do mundo da razão. Caliban pode ser lido à luz de uma grelha junguiana, mais do que freudiana, ou somente à luz da teoria poética subjacente às noções fundamentais de ordem e de caos tal como surgem na obra shakespeariana. Assim, e ao contrário do que geralmente se tem sublinhado, desde o tempo de Shakespeare até aos nossos dias, Caliban não é só a metáfora da força obscura, natural, instin-tual, que Próspero educa tentando integrá-la numa ordem superior articu­lada, mas é sobretudo a descoberta e a afirmação de que essa pulsão obs­cura é coisa nossa, e que a articulação a que a norma social obriga tem de a reconhecer e aceitar como tal, para que não esmoreça a vida e com a

René Girard, A Theater of Envy, Oxford University Press, 1991.

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vida a possibilidade da criação artística. A linguagem de Caliban, poética

por excelência (ou violenta de raiz pelas mesmas razões — é uma lingua­

gem dos instintos e dos sentidos) traduz aquilo a que Paul Kluger chama­

ria «a linguagem da alma»5. Há dois modos de falar que reflectem a

necessidade que a psique humana tem de formas complementares de

expressão: a metonímica e a metafórica, a racional e a irracional, a lógica

e a mítica, a do ego e a da alma. O pensamento dito «directo» caracteriza-

se por um estilo linear e lógico, mais objectivo, e o «indirecto», ou «fan­

tasioso», é mais imagético e metafórico (pp. 62-63). Cada um deles tem a

sua própria linguagem e forma de articulação do universo. Uma será a de

Próspero, outra a de Caliban, e ambas de Shakespeare que as reconhece e

aceita liminarmente. Para Jung, diz Kluger, «a linguagem do inconsciente

é a voz mesma da natureza» (p. 63), afirmação que podemos extrapolar

para o caso de Caliban e a fulguração da sua linguagem instintual. Só a

aproximação arquetípica de uma linguística das profundidades, que se

ocupe da linguagem da imaginação poética, pode ajudar à decifração deste

mistério: que seja Caliban a personagem emblemática da Tempestade,

mais do que o seu domador provisório, o mago Próspero, que no final

abdica de toda a sua magia.

5 Paul Kluger, The Alchemy of Discourse, London and Toronto Ass. University Press, 1982, pp. 62 e segs.