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Shift onyria - capa quinta-feira, 13 de outubro de 2016 20 ... · Certa noite, Toby, meu irmãozinho, acordou gritando em meio à escu- ... aceitara o fato de que papai havia partido

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Shift onyria - capa

quinta-feira, 13 de outubro de 2016 20:23:24

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A Antes mesmo que Miranda Vaile começasse a frequentar as aulas em nos-sa escola, havia duas coisas que todos já sabiam sobre essa garota. A pri-meira era que ela não tinha pais – eles estavam mortos. E a segunda? Eles estavam mortos porque Miranda os matara.

Quando esses rumores começaram a se espalhar, as pessoas fica-ram bem nervosas com a situação; comentava -se que era revoltante que Miranda tivesse permissão para aparecer na escola e, sabe como é, juntar--se a nós, que somos legais e não cometemos homicídios.

Mas nem todos viam as coisas desse modo. Eu, por exemplo, mal po-dia esperar para conhecê -la. É como eu tinha dito a Ami: só um grande chato não gostaria de conhecer alguém que parecia ser no mínimo interes - sante. Claro, talvez isso apenas tenha mostrado que eu também não me enquadrava em nossa escola.

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Certa noite, Toby, meu irmãozinho, acordou gritando em meio à escu-ridão. Ele havia passado semanas sem fazer isso, o que de certo modo piorou a situação. Eu tinha sido tola o suficiente para acreditar que Toby,

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enfim, aceitara o fato de que papai havia partido. Eu pensava que os pesa - delos haviam terminado definitivamente. Depois de gritar, Toby chorou. Chorou como um bebê. Sentei -me perto dele, sentindo que eu mergu - lharia naquela tristeza e nunca mais escaparia dela.

Mamãe apareceu no quarto de Toby momentos depois de mim, as luzes do corredor brilhavam atrás dela. Ali, de pé, vestindo sua camiseta larga, ela parecia -se com Toby mais do que nunca. Era pequena e delica-da, com grandes olhos azuis de tom acinzentado; seu cabelo era bonito e claro, do tipo que permanece perfeitamente arrumado mesmo quando se é acordado no meio da noite.

Eu não me parecia com ninguém da minha família, e isso sempre me incomodou. Já examinei fotografias em busca de semelhanças. O nariz, as orelhas, o contorno do queixo. Qualquer detalhe semelhante. Mas ja-mais descobri nada. No fim das contas, desisti de procurar.

– Está tudo bem – eu disse à mamãe. – Volte para a cama. Sou boa em acalmá -lo.

Isso era verdade. Mas havia outra razão para que eu quisesse ficar ali. Tratava -se do meu dever. Porque, antes de qualquer coisa, era por minha culpa que Toby se encontrava naquele estado.

Aninhei -me junto de meu irmão, de modo que nossa cabeça ficasse uma do lado da outra no travesseiro dele, como duas pupilas em uma só órbita. Ele acabou adormecendo. Mas eu não tinha nenhuma chance de que acontecesse o mesmo comigo – estava tensa demais. Então, eu sim-plesmente continuei deitada ali, olhando para a maquete do sistema solar que Toby havia feito no 2º ano. Fiquei esperando a noite terminar e pen-sando em tudo que havia acontecido.

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Não me lembro de muita coisa a respeito da manhã seguinte. Não me re-cordo de “hora do banho”, “hora do desjejum”, “hora do remédio” nem de

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nenhuma destas bobagens que devem ter acontecido, porque as manhãs eram feitas para isso. “Primeiro faça isso, depois faça aquilo.” Esperava -se que eu me parabenizasse por cada pequeno ato realizado: “Ei, você fez um bom trabalho tirando seu pijama!”, “Comeu toda a torrada? Muito bom, garota!”

Dra. Richter chamava isso de “pequenos passos de bebê”. Mas as pes-soas parecem esquecer que bebês caem o tempo todo, droga!

Porém, lembro -me da sensação de alívio que me invadiu quando che-guei à escola e encontrei Ami, que esperava por mim. Ami, com quem eu realmente me parecia – muito embora nós não fôssemos parentes. Tí - nhamos os mesmos olhos negros, cílios bizarramente longos e o mesmo cabelo escuro curto e desgrenhado – se bem que o dela parecia proposi - talmente desarrumado, enquanto o meu dava a impressão de ter sido com-primido de modo estranho durante o sono. Nós também tínhamos nossas diferenças, claro. A pele de Ami era perfeita, e seu uniforme não amarro-tava como o meu. Entretanto, as maiores diferenças encontravam -se em detalhes que os outros não podiam ver. Eu explico: eu me constrangeria e reagiria como uma completa perdedora se tivesse ficado sozinha na frente dos armários. Mas não Ami. Ela estava lá, de pé, com seu sorriso aberto, observando calmamente todo mundo se aglomerar à sua volta – como se todo aquele ato fosse algum evento especial realizado para entretenimen-to dela. A turma dos bocas -moles em busca de fofocas. Os apavorados que sempre fazem o dever de casa na última hora. Os “ratos de academia” imbecis que tinham roubado a mochila de algum pobre garoto e agora a arremessavam de um lado para outro. O casal apaixonado do 9º ano pas-seando pelo corredor, grudados um no outro e parando a todo instante para trocar saliva.

Quando eu cheguei, Ami aspirou ar profundamente.– Sente este cheiro? – disse ela. – É o fedor da manhã de segunda-

-feira. O que há nele? Suor, é claro. Cigarro. Produtos para o cabelo. Mas existe algo mais...

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O casal campeão de beijos da escola veio caminhando em minha di-reção. É difícil andar direito quando seus lábios estão colados à boca de outra pessoa. O cotovelo do cara bateu com força em meu braço.

– Desculpe -me – ele disse, rindo. – Nós não...Quando ele percebeu quem havia golpeado, afastou -se devagar, como

se temesse pegar alguma doença.– Ahn – ele balbuciou. – Eu...Sua namorada puxou -lhe o braço.– Venha, vamos.Ami voltou -se para mim quando o casal bateu em retirada.– Feromônios – disse -me. – Esse é o cheiro que faltava.Deixei minha mochila escorregar ombro abaixo e desabei no chão.

Encostei a cabeça na parede. – Não consigo sentir cheiro nenhum – eu disse. Minhas narinas esta-

vam obstruídas. Meus pulmões também. Eu estava me afogando em mim mesma. Senti que Ami examinava meu rosto debilitado. Meus cabelos projetavam -se como espinhos secos e escuros. Sob meus olhos, as marcas da desolação.

– A noite não foi boa, não é?– Não, nada boa – inclinei -me e abri o zíper de minha mochila.Ami sentou -se ao meu lado.– Toby? – disse ela.Pus as mãos em meu rosto, as palmas unidas, como se eu estivesse

rezando. Ou espirrando.– As coisas não deveriam ser mais fáceis agora? – desabafei. – Seis

meses já se passaram. Quase sete!– Olive – disse Ami firme e determinada como um batimento car-

díaco –, as coisas vão melhorar, ficarão mais fáceis. Eu prometo a você. Lembre -se de que eu também já passei por isso.

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Eu queria acreditar nela.Ami segurou minha mão, envolvendo meus dedos com os seus. A

unha perfeita no final de cada longo e elegante dedo fazia minhas mãos parecerem ainda mais curtas e castigadas.

– Ei – disse ela. – Se eu posso fazer isso, por que você não poderia?Bem, eu não poderia por mil razões. Para começar, Ami possuía fibra

de lutadora. Ela adaptava -se e desenvolvia -se. Ela era capaz de direcionar a própria mente a fim de não se fixar apenas nas coisas ruins. Esse não era exatamente o meu ponto forte. Mas havia algo mais a ser levado em conta. Sim, o pai de Ami havia partido, assim como o meu. Porém, não foi culpa de Ami; seu pai não foi embora por causa dela.

– O que você acha de matarmos aula hoje? – sugeriu Ami de repente. – Relaxar, bater papo...

Balancei a cabeça em uma negativa. Eu havia feito algumas promes-sas à mamãe e à dra. Richter, e a primeira delas era que eu não volta ria a fugir da escola. Além do mais, Ami e eu já tínhamos passado um bom tempo falando sobre nossos pais. Mas era de se esperar que isso aconte-cesse – afinal, foi principalmente por essa razão que nos tornamos amigas depois que recebi alta. Eu podia desabafar com Ami porque ela compre-endia minha situação. Mas agora nossa amizade estava crescendo. Pelo menos, era o que eu esperava.

Os lábios de Ami estremeceram, de maneira travessa.– Puxa, eu pensei que você quisesse se divertir, Olive. A nova garota

e tudo mais.Havia outra coisa que Ami também sabia fazer bem – arrancar meu

humor do fundo do pântano e enviá -lo para as terras de uma floresta tropical.

– Oh, Deus, a parricida! – eu disse. – Não posso acreditar que esqueci.– Olive! – Ami riu, fingindo estar chocada. – Ela não matou os pais.– Provavelmente não – respondi, apanhando alguns livros de minha

mochila e enfiando o resto em meu armário. – Mas eu posso ter esperan-ças, não é?

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Agora eu tinha pressa para chegar à sala de aula. Nós disparamos pelo corredor e seguimos em frente, passando no meio de todos. Uns olhavam fixamente, outros apontavam o dedo, outros ainda sussurravam; davam um passo para trás quando passávamos e, depois, voltavam para o mesmo lugar.

– Você realmente acredita que eles aceitariam um assassino na escola? – indagou Ami. – Aqui dentro? Seja como for, se existisse um pouquinho de verdade nisso, os noticiários teriam divulgado tudo amplamente.

– É possível que os fatos tenham sido encobertos a todo custo – ar-gumentei. – Talvez a sra. Deane tenha recebido um monte de dinheiro para abrir caminho para ela. Eles não são tão exigentes assim, você sabe. Quero dizer, eles me aceitaram de volta depois do meu pequeno inciden-te, não é?

Um grupo de idiotas do 7º ano surgiu de repente, aos gritos, como se estivesse em um estádio de futebol. Um deles esguichou nos outros o conteúdo do extintor de incêndio, espalhando espuma por toda parte.

Ami pisou sobre um pequeno monte de espuma que estava no meio do caminho.

– Apenas tome cuidado para não exagerar nas expectativas – disse ela. – Lembre -se do que aconteceu com aquela garota do último ano, que no fim das contas não estava nem um pouco grávida.

– Ainda pode ser verdade, Ami – protestei.– Vamos lá, admita – Ami fitou -me com impaciência. – Ela apenas

ganhou peso.Eu suspirei, um tanto dramaticamente.– Você é tão absurdamente sensata e... sensível. Ajude -me a lembrar:

Por que ficamos amigas mesmo?– Quem disse que nós somos amigas? – Ami sorriu com prepotência.

– Para mim você não passa de uma experiência científica.– Muito engraçado. Vamos lá, temos que ir andando. O primeiro si-

nal já tocou.

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– Você não acha esquisito que todos estejam tão paranoicos por cau-sa dela? – disse Ami quando nos aproximamos da porta de nossa sala de aula. – Quando aquele novo cara começou na semana passada, ninguém agiu assim.

Um novo cara? Por um momento, eu não consegui imaginar a quem ela se referia. E então lembrei. Era apenas mais um garoto igual a tantos. Alegre, insosso e absolutamente comum. Só mais uma peça do céu azul no quebra -cabeça de nossa escola.

– Sim, é disso que eu estou falando – respondi. – Todo esse alarde. Deve haver algum motivo para isso.

Ami franziu as sobrancelhas.– Olive, ela não pode ser ao mesmo tempo uma criança superdotada,

e uma modelo, e uma traficante de drogas.– É claro que ela pode – eu ri. – Ou talvez ela seja apenas uma dessas

coisas.– Vamos lá, Olive. Nós duas sabemos onde os rumores provavelmente

começaram.– Katie – empurrei uma mecha de cabelos para trás da orelha, mas na

mesma hora ela escapou. – Sei lá, Ami. Ela seria capaz de inventar uma coisa tão interessante?

– Vamos perguntar a ela – murmurou Ami, olhando para a frente. – Lá vêm eles.

Sem dúvida, Katie e os outros caminhavam em nossa direção. Eu vi--me buscando alguma saída de emergência. De preferência, uma saída que levasse diretamente a um universo paralelo.

– Estou sem disposição nenhuma para isso – resmunguei.Katie e os outros se colocaram diante de mim em uma disposição que

lembrava um sorrisinho sem graça. Eu podia até mesmo sentir o brilho forte dos dentes de Katie, tão radiante que já devia estar causando cân-cer de pele em mim. Katie olhava -me fixamente e parecia paralisada de horror.

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Olhando -me de alto a baixo, ela notou minhas unhas roídas e meu uniforme, que exibia contornos que não existiam antes. Além de me dar espinhas, minha medicação havia me dado um corpo novo em folha. Mais suave, mamãe dizia sempre. Curvilíneo.

Katie deteve -se em meu cabelo.– Meu Deus, Olive... Quando é que você vai deixar seu cabelo voltar

a crescer?Justine e Paige concordaram, obviamente chocadas demais para falar.

Então, Katie tocou o próprio cabelo – loiro e muito liso. O tipo de cabelo que não escapa de trás da orelha quando você o coloca lá. A fita cor -de--rosa que ela usava ao redor do pulso delgado escorregava levemente.

Às vezes, eu quase gostava desses encontros com Katie. Ami chamava--os de Pontuando com Kate, porque sempre tínhamos a impressão de que Katie nos dava mentalmente uma nota de zero a dez. Ami já havia enfa-tizado que, se eu não quisesse mais ser a pessoa que era antes – de jeans apertados, de cabelos compridos e coisas do tipo –, então talvez fosse divertido ser diferente. E, quando eu estava bem -humorada, era mesmo engraçado ver a confusão estampada no rosto de Katie enquanto ela ten-tava entender o que havia mudado. Naquele dia, porém, eu simplesmente não estava no clima.

– Obrigada pelo feedback, Katie – eu disse –, mas preciso ir agora.– Eu só estou fazendo isso porque éramos amigas – disparou Katie. – Ah, não, por favor – eu disse. – Não comece com isso de novo.A expressão de Katie mudou. É impressionante como um rosto bo-

nito pode se tornar feio apenas com o enrijecimento de alguns poucos músculos faciais.

– A antiga Olive preferiria morrer a ter uma aparência como essa aí – afirmou Katie por fim.

Aquele gosto metálico e amargo estava em minha boca novamente.– Preferiria morrer? Não, a antiga Olive já morreu! – retruquei com

irritação.

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A mão de Ami estava em meu braço.– Vá com calma – ela sussurrou. – Não perca a paciência por causa

de alguém que ainda se gaba de ter vencido o concurso de verão Garota sorriso. Você deveria ficar contente por saber que ela não gosta da sua aparência.

Ami tinha razão. Já havia ficado para trás, havia muito tempo, a épo-ca em que eu buscava a aprovação de Katie. Uma época em que eu cos-tumava estar ao lado dela naquele tipo de conversa, tornando miserável a vida de alguma garota gorda. Minha raiva começou a diminuir e passou. Não completamente, mas o suficiente.

– Está certo, vá em frente – disse Katie em voz alta enquanto nos afastávamos. – Mas não esqueça: quando se arrepender, não venha chorar no meu ombro!

Estávamos abrindo a porta da sala de aula quando meus ouvidos cap-taram aquela coisa.

Ami percebeu a mudança em minha expressão facial.– Uma daquelas dores de cabeça?– Parece diferente desta vez – respondi. Dei uma sacudidela na cabe-

ça. – Há um ruído. Algo zunindo, como estática. Você consegue ouvir?Ami ficou imóvel por um momento.– Não mesmo – disse ela por fim.Esfreguei meu ouvido, estremecendo.– Não seria melhor você ir para casa, Olive?Bufei.– Ah, sim, certo. Você sabe como minha mãe fica quando estou do-

ente. De qualquer modo, eu quero ver a nova garota.Eu podia ver Ami tentando avaliar se valia a pena discutir o assunto.

Como eu esperava, ela decidiu que não valia. À sua própria maneira, Ami também precisava de mim por perto.

– Não me culpe se sua cabeça explodir – disse ela.

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– Certo. Mas, se isso acontecer, você pode garantir que não será pu - blicado no blog da escola? Já cansei de aparecer lá.

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Quando nós chegamos, a srta. Falippi estava de pé diante da sala, usando sua roupa com camadas desorganizadas e seus pingentes metálicos ba-rulhentos. Com uma mão, ela segurava sua sempre presente caneca com um chá de ervas malcheiroso e, com a outra, mexia em seu medalhão. Eu costumava olhar o tempo todo para aquele disco prateado e me pergun-tava qual era o pequeno segredo guardado dentro dele. Uma foto do seu namorado hippie? Um tufo de cabelos cujo dono seria um recém -nascido que ela fora obrigada a doar? Um estoque de maconha para superar mais facilmente as dificuldades do dia? Isso explicaria por que ela às vezes se mostrava desligada, com os olhos perdidos na distância, como se tivesse esquecido que nós estávamos ali.

Porém, perdi o interesse no assunto depois que retornei da clínica. O medalhão era provavelmente apenas um colar.

– Pessoal – disse a srta. Falippi. – Por favor, sentem -se.Ami e eu nos sentávamos no fundo da sala. As fileiras da frente eram

utilizadas por estudantes com problemas de concentração – em alguns casos excessiva, em outros insuficiente. As fileiras do meio pertenciam à Katie. Era ali que todos queriam se sentar; e quanto mais perto de Katie, melhor. Paige ocupava um lugar ao lado dela, e Cameron Glover – natu-ralmente – ocupava o outro. Era onde eu costumava me sentar também e, vez por outra, eu ainda parava ali. Força do hábito, eu acho. Isso acontecia quando, por um instante, eu esquecia que as coisas haviam mudado tanto. Esquecia quem eu era agora.

Enquanto eu caminhava para a minha cadeira, geralmente não tirava os olhos dos pôsteres na parede dos fundos. Os pôsteres retratavam ciclos de vida de insetos, desde o estágio de pupa até o adulto. Eu havia apren-dido muito sobre esse assunto fascinante após ter mudado de lugar.

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Naquele dia, porém, algo surpreendente fez meus olhos se desviarem dos pôsteres. Voltado para a minha direção, o lampejo de um sorriso em um rosto desconhecido. O rosto do novo cara. O novo Cara era o que mamãe chamaria de bonitão – tinha ombros largos e cabelos escuros e desgrenhados. Parecia deslocado, sentado a duas fileiras de distância de Katie. Mas não demoraria muito para que ele mudasse de assento. Katie faria com que um dos colegas dela se associasse ao recém -chegado, e em breve o novo cara se sentaria em seu devido lugar.

Olhei para trás a fim de ver a quem o sorriso se destinava.Não havia ninguém atrás de mim. Quando voltei a olhar para o novo

cara, os olhos dele estavam à minha espera, e seu sorriso contorceu -se um pouco. Então, eu compreendi. Ele – assim como todos os outros – ouviu a versão de Katie a respeito do que acontecera, e o sorriso era de chacota. Isso mostrava que ele já havia iniciado sua jornada ali e que essa jornada passaria longe de pessoas como eu. Virei a cabeça e segui com altivez o resto do caminho até meu lugar.

A srta. Falippi fechou a porta e pôs a caneca em sua mesa, entre um porta -lápis e seu manual de mitologia grega.

– Gente! – ela começou, erguendo a mão para que fizéssemos silên-cio. – Tenho certeza de que vocês já ouviram falar que uma nova aluna se juntaria a nós hoje. Miranda Vaile.

– A garota que acabou com os próprios pais? – alguém gritou. Came - ron, eu acho. Seguiram -se muitos risos abafados.

A srta. Falippi suspirou. Ela também tomara conhecimento das his-tórias, sem dúvida.

– Está bem, vamos esclarecer algumas coisas aqui. É muito triste, mas Miranda é uma órfã – afirmou a professora.

– Boato confirmado! – eu disse a Ami, não sem uma ponta de orgulho.Metade da fileira da frente voltou -se para olhar. Xi... Por causa do

zunido em meus ouvidos, não percebi que falava alto demais.

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A srta. Falippi balançou um dedo no ar.– Quero que uma coisa fique bem clara – avisou a professora. –

Miranda Vaile não é uma assassina. Os pais dela morreram em um aci-dente de carro quando ela era apenas um bebê.

Agora era a vez de Ami olhar para mim com orgulho.– Boato desfeito – disse ela. – A menos que você acredite que ela te-

nha cortado o cabo do freio com as mãozinhas de bebê que ela tinha...A professora balançava seu medalhão como se fosse um pêndulo.– Miranda passou a maior parte de sua vida no exterior – explicou a

srta. Falippi. – Sem dúvida será uma grande mudança para ela deixar a atmosfera vibrante e empolgante da Europa para viver em nosso pequeno e tranquilo bairro residencial. Nós precisaremos ser muito compreensivos. Talvez ela precise de algum tempo para se adaptar.

– Ela não devia ter saído de lá – disse Katie, limpando a unha com a tampa da caneta de Paige. – Se era assim tão vibrante e empolgante...

De alguma maneira, Katie conseguia dizer todo tipo de bobagem sem se meter em encrenca.

– Miranda está se mudando para cá a fim de morar com sua tia -avó – explicou a srta. Falippi em meio às risadas abafadas, tentando manter a ordem. – É possível que alguns de vocês a conheçam. Oona Delaunay.

Mais risadinhas abafadas. Oona Biruta, a maníaca dos germes? Sim, pode apostar que nós a conhecíamos!

– Difícil imaginar Oona tomando conta de alguém – eu disse a Ami. – Ela já trava uma batalha para tomar conta de si própria.

Katie virou -se para mim, o desgosto estampado em suas feições.– Você pode parar de fazer isso?– Fazer o quê?– Sussurrar – ela respondeu. – Isso realmente atrapalha.Que curioso... Katie podia tagarelar quanto quisesse, sem nenhum

problema. Mas, quando eu abria minha boca para falar, de alguma ma-neira eu atrapalhava.

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A professora bateu palmas, fazendo suas pulseiras colidirem entre si.– Pessoal! Já basta!O zunido que me perseguia ficou mais alto. “Talvez alguma coisa te-

nha entrado em meu ouvido. Algum insetinho rastejando lá dentro.” Esse pensamento me fez estremecer. Quando inclinei a cabeça para um lado e a balancei de novo, vi algo pela janela que me chamou a atenção. Duas figuras passavam pelo pátio em direção a nossa sala de aula. Reconheci imediatamente a sra. Deane, claro – determinada e sombria em seu terno de diretora, pisando firme sobre o concreto com o salto de seu sapato. A outra pessoa eu nunca tinha visto antes. “Deve ser ela... Miranda Vaile!”

Qualquer que fosse a aparência de uma possível parricida, certamen-te não seria a daquela criatura pálida e frágil que caminhava logo atrás da sra. Deane. Inclinei -me para ficar mais perto da janela, buscando um melhor campo de visão. Quando as duas figuras sumiram de vista, eu voltei -me para Ami, agitada.

Ami ergueu os olhos.– O que foi, Olive?– Eu a vi – sussurrei. – A nova garota!Os olhos de Ami arregalaram -se.– E como ela é?Levei alguns momentos para responder, tentando encontrar uma ma-

neira de descrever exatamente o que eu havia visto.– Bem, ela parecia... embaçada – eu disse.Ami suspirou.– Malditas janelas sujas.Eu não respondi. A sra. Deane não pareceu embaçada – apenas a

nova garota. Era como se ela estivesse fora de foco, como acontece com alguém que se move no instante em que é fotografado. Mas eu sabia que isso pareceria idiota, especialmente para a supersensível Ami. Assim sen-do, fiquei quieta, vigiando a porta da sala. Esperando.

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A sra. Deane era eficiente em tudo. Na maneira de criticar. No modo de falar. Até mesmo no modo de entrar nas salas de aula. Era como se ela tivesse desenvolvido alguma fórmula matemática para garantir que não haveria desperdício em nada do que ela fizesse.

– Srta. Falippi, classe, apresento -lhes Miranda Vaile.Vinte e dois pares de olhos fixaram -se na garota em pé ao lado da sra.

Deane. A menina tinha uma pele esbranquiçada. Os cabelos com fios grisalhos escorriam de sua cabeça e salpicavam os ombros arqueados de velha. O uniforme de Miranda pendia frouxo, como se quase não houves-se corpo suficiente para sustentá -lo.

Assim como os demais alunos, eu examinei -a de perto. Que estranho. Como era de se esperar, ela agora não parecia embaçada. “Devem ter si-do as janelas, afinal de contas. Ou meus olhos estão pregando peças em mim.” Mas definitivamente havia algo em Miranda que tornava difícil captá -la com o olhar. Ela era tão apagada que nossos olhos de repente se desviavam dela para buscar algo mais sólido nas proximidades. Miranda teria se misturado à decoração da sala, se essa decoração não fosse mais interessante que ela.

Katie torceu o nariz e proferiu seu veredicto. Aquele que determinaria o tipo de tratamento que todos dariam à recém -chegada.

– Era só o que faltava – disse ela com sua voz ao mesmo tempo baixa e possante. – Outra aberração!

– Bem -vinda a Jubilee Park! – a srta. Falippi estendeu a mão para que Miranda a apertasse.

Miranda olhou para a mão da professora sem o menor interesse. A mão tremelicou e, então, deslizou apressada de volta para o medalhão.

– Há uma cadeira vaga no fundo da sala, Miranda – disse a sr-ta. Falippi visivelmente envergonhada. – Ao lado de Olive – então ela

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despachou Miranda corredor adentro em minha direção, meio que sus-surrando, como se estivesse soprando fumaça no recinto.

Olhei para baixo e fiquei mexendo em meus livros e canetas. Por que eu estava tão nervosa? “É minha dor de cabeça”, disse a mim mesma. “O zunido.” Quando percebi que Miranda já devia estar bem próxima de mim, olhei para cima, incapaz de resistir por mais tempo. Ela estava quase diante de mim, e, quando me dei conta, eu a fitava diretamente nos olhos. No mesmo instante, o zunido em minha cabeça começou a aumentar mais e mais, tornando -se alto e insistente como um alarme. “Oh, Deus!”

A memória opera de um modo tão estranho. Existem algumas coi-sas, como músicas, por exemplo, que eu só preciso escutar uma vez para que sejam guardadas permanentemente em meu cérebro. Outras coisas, como fórmulas algébricas, podem cruzar minha mente diversas vezes sem deixar vestígios. Certas vezes, porém, recordações surgem em sua mente mesmo quando você não quer. Algumas coisas que você sabe o acompa - nharão intactas pelo resto da vida.

Foi assim quando, pela primeira vez, fiz contato visual com Miranda e recuei como se tivesse sido ferroada. Eu jamais vira na vida olhos iguais aos dela. Eles pareciam feitos de metal, polido a ponto de brilhar. Refletida neles eu podia ver minha própria face retribuindo o olhar.

Shift onyria - capa

quinta-feira, 13 de outubro de 2016 20:23:24