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1 Kabir SANTO E POETA Notas bio-bibliográficas

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KabirSANTO E POETA

Notasbio-bibliográficas

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DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA AOS SÓCIOS DA SHP

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SOCIEDADE HOLOSÓFICA DE PORTUGAL

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Edition Naam, Cadolzburg, Alemanha

Edição da

SOCIEDADE HOLOSÓFICA DE PORTUGAL

Lisboa, Maio de 2000

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KABIR, Santo e Poeta

1. OS HINOS DE KABIR RESSOAM AINDA, quase meio milénio após a sua passagem pela Terra, em milhares de aldeias da velha Índia. Alimento espiritual e moral das massas iletradas, actuaram como fermento numa vida social e religiosa que só em época recente a bem dizer, no nosso tempo começou a deteriorar-se sob o influxo da modernidade ocidental.

Qual o segredo desta popularidade fenomenal? porque é preciso não esquecer que a poesia de Kabir não é propriamente uma poesia de agrado incondicional e imediato junto das massas populares: vai contra a corrente de pensamento e de acção da ortodoxia religiosa, ainda tão forte e influente; denuncia uma tendência para a idolatria num país em que a idolatria continua a ser uma vertente dominante no sentimento popular; condena todos os ritos e rituais, tão caros ao povo simples de todas as latitudes do planeta; desvaloriza a virtude das peregrinações e visitas a lugares santos, nomeadamente aos rios sagrados, ainda hoje frequentados por milhões e milhões de crentes; mofa de todas as superstições espirituais, numa linguagem áspera e acutilante que não encontra paralelo em nenhuma outra literatura espiritual; parodia as cerimónias iniciáticas da circuncisão e do cordão sagrado, num país em que não há casta hindu que dispense o cordão, nem muçulmano que acredite sê-lo de verdade sem a circuncisão; expõe ao ridículo brâmanes e mullas1, yoguis, tapis2 e ascetas de todos os tipos, ainda geralmente tão venerados na Índia.

Trata-se de um feito notável, mormente na época de Kabir e na cidade santa de Benares.

1. Sacerdotes muçulmanos.

2. Praticantes de austeridades.

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2. AS SUAS CANÇÕES FUSTIGAM, IRREVERENTES:

a) os sadhus3 de túnica cor de açafrão e questionam: se a indumentária tingida de açafrão pudesse conduzir à salvação, que diríamos dos cães dessa mesma cor?

b) os bairagis4 de cabeça rapada e questionam: se rapar a cabeça pudesse conduzir à salvação, que diríamos dos carneiros que são tosquiados duas vezes ao ano?

c) os digambars5 nus e questionam: se a nudez pudesse conduzir à salvação, que dizer dos milhões de animais que andam nus a vida inteira?

d) os que demandam a Deus empoleirados no topo das árvores e questionam: se trepar às árvores levasse à salvação, que dizer dos milhões de aves que se empoleiram nas árvores?

e) os que se banham nos rios sagrados e questionam: se tomar banho nos rios sagrados conduz à salvação, que dizer dos peixes?

f) os que passam o tempo todo a entoar Ram, Ram (Deus, Deus) e questionam: se conseguíssemos matar a fome repetindo indefinidamente comida! comida!, para que serviria a cozinha em todas as casas?

g) os jainas6, que consideram o não matar7 como essencial à salvação e questionam: que dizer dos milhões de germes que engolimos em cada copo de água? Que dizer do leite materno, feito da própria carne e do sangue da mãe?

E falam ainda, as canções do grande Santo e poeta, dos desfiadores de rosários, perguntando-lhes se porventura alguma roda de orações persa ganhou a salvação; e dos pregadores de profissão, convidando-os a observar a tagarelice dos pardais; e dos eruditos da literatura védica, comparando-os com burros carregados de cenouras que não podem consumir...

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3. KABIR DESAFIA TODA A AUTORIDADE, no plano tem-poral como no plano espiritual, pondo em causa os príncipes e equiparáveis, nomeadamente os mais poderosos toda a autoridade, excepto a de um Mestre Perfeito. E vai mais longe e nega a divindade dos próprios avatares8 e o seu poder de conferir a salvação, apoiando-se nas Escrituras hindus. Proclama, numa canção vibrante, que Deus não se compadece com o massacre de milhões perpetrado pelo Senhor Rama, o herói do Ramayana; e que Deus está para além de todos os atributos e qualificações, não se entregando a certo tipo de actividades em que os avatares participam. E tudo isto a despeito da veneração que no seu tempo, como hoje ainda, congrega milhões e milhões de pessoas em nome desses avatares.

A própria divindade da trindade hindu9 e a sua equiparação ao Senhor Supremo são postas em causa pelo poeta-santo, que cita as narrativas dos Puranas10 em abono da sua tese. E quanto aos deuses menores, demite-os pura e simplesmente, considerando-os irrelevantes. Tudo isto se passa, não esqueçamos, num país em que tais divindades são tidas em grande reverência.

4. KABIR FOI UM HEREJE este o ponto de vista das ortodoxias. Com uma aversão profunda e declarada pelos aspectos institucionais e as observâncias externas da religião, denunciou todo o aparato da piedade hindu e muçulmana o templo, a mesquita, o sacerdote, as Escrituras como de relevância mínima na auto-realização de Deus. E, zombeteiramente, repetia aos quatro ventos que nem era muçulmano nem hindu.

Descrevê-lo como cabeça de proa do movimento reformista hindu é, no entanto, descer do sublime ao terreno. É meramente circunstancial a sua denúncia das superstições e rituais, da religião or-

8. Encarnações de deuses ou de Deus...

9. Brahma, o criador; Vishnu, o sustentador; Shiva, o destruidor ou transformador.

10. Narrativas mitológicas hindus.

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ganizada com os seus suportes temporais (políticos, sociais, económicos). A verdadeira e suprema missão de Kabir situava-se muito acima, num plano espiritualmente sublime: o desenvolvimento do amor a Deus e a recondução à Morada do Pai dos que se empenhavam sinceramente numa busca espiritual.

Assim, embora Kabir se referisse sarcasticamente à idolatria, ele não tinha vindo para abolir a idolatria; embora atacasse o sistema de castas, a abolição do sistema de castas não fazia parte da sua missão; embora pretendesse que hindus e muçulmanos vivessem numa harmonia frater- nal, a realização da unidade Hinduísmo-Islão não estava nos seus propósitos; embora criticasse a complexidade dos ritos e rituais hindus, não o fazia para tornar o hinduísmo mais acessível às massas, nem tão-pouco para lhe dar vantagem no confronto com o Islão e a sua simplicidade de processos; na verdade, não lhe interessava minimamente o confronto com qualquer religião: o seu verdadeiro estandarte era o da Religião do Amor.

Mas não ficamos por aqui no inventário de paradoxos que carac-terizam superficialmente a poesia do grande Santo. Assim, se é certo que ele criticou duramente a erudição e egocentrismo dos panditas11, não é menos certo que estava longe de se opor drasticamente à erudição. E ainda que tenha defendido o vegetarianismo e afirmado que a cabra que hoje degolarmos nos há-de degolar amanhã, também é certo que a defesa do vegetarianismo não figurava nos seus objectivos prioritários. Do mesmo modo, salientando as vantagens duma abstinência sexual total, ele próprio não foi um renunciante absoluto: repugnavam-lhe a obrigatoriedade e a compulsão como padrões de comportamento. Aliás, aceitava e compreendia as vantagens duma vida familiar normal. A propósito, também as suas canções interrogam os brahmacharis12: se o celibato podia conferir a salvação, que dizer dos milhões de animais de carga castrados?

5. KABIR NÃO VEIO AO MUNDO PARA FUNDAR uma nova seita ou religião, tão-pouco para reformar a sociedade que o acolheu. O único propósito que norteou a sua vida foi mostrar às pessoas o verdadeiro caminho espiritual. Seria descabido, pois, criticá-

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lo por não ter conseguido abolir a idolatria ou o sistema de castas, atribuindo a "falha" à sua tendência contemplativa e consequentemente à ausência de "acção positiva".

Os temas que por vezes elege nos seus poemas, a forma agreste e mordaz da linguagem empregada, o tom sarcástico tão frequente, o sentido de humor agudo e por vezes rude são instrumentos adaptados às circunstâncias da época em que viveu. Diríamos mesmo que foram instrumentos essenciais ao cumprimento da sua divina Missão.

6. NO PERÍODO EM QUE VIVEU KABIR, um dos mais problemáticos da história da Índia a população em geral via-se a braços com uma perseguição religiosa implacável movida pelo conquistador muçulmano. Forçada a conversões maciças, a população laica via-se, por outro lado, desamparada pela classe sacerdotal hindu, que em vez de procurar aliviar o clima de terror generalizado, ainda contribuía para o agravar com o peso das superstições; estavam em jogo a subsistência e a prosperidade da própria classe sacerdotal... e nesse tempo, como em todos os tempos e latitudes, a classe sacerdotal esforçava-se por manter os cofres cheios e os fiéis de joelhos. A linguagem de Kabir visava justamente esta situação. A sua severidade tinha uma motivação de amor.

7. KABIR FOI UM MESTRE PERFEITO, um Santo, um Sat-guru13.

Pela mesma época viveram outros santos de grande nomeada, como o Guru Nanak, Dadu Dayal e Ravidas, e todos concordam nesse ponto quando a ele se referem. De resto, o próprio Kabir não faz segredo do facto. Há um poema em que ele revela ter vindo ao mundo repetidamente na Idade do Ouro, na Idade da Prata, na Idade do Cobre e na Idade do Ferro, sempre com a mesma missão de reconduzir as almas ao seio do Senhor. Em resposta a Gorakhnath14, que lhe perguntou quando se tornara asceta, o Santo respondeu:

Quando Ele, que agora assume múltiplas formas,

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não tinha iniciado o Seu jogo de criação;quando não havia nenhum Guru, nenhum discípulo;quando o mundo não estava criado;quando o Senhor Supremo existia só;qesse tempo era eu um devoto!E então, oh Gorakh, fazia eu devoção ao Senhor.

No tempo em que iniciei a prática de yoganão existia Brahma, nem Vishnu,e Shiva não nascera ainda.Foi em Benares que me revelei,e Ramananda15 foi quem me deu a Luz, me iniciou.Comigo trazia já a sede do Infinito,e vim aqui para O alcançar.Unir-me-ei aO Que É Simples, por um caminho simples.Oh, Gorakh, marcha com a Sua músicae vai ter com Ele!

8. QUE CAMINHO DE SALVAÇÃO ERA ESSE? Quanto a este ponto, dispomos de múltiplas e variadíssimas referências; tem a ver, obviamente, com a missão última do Santo. Não há que ir muito longe em busca de Deus, diz ele, pois Ele existe dentro do nosso próprio corpo; procuremo-Lo aí mesmo seguindo uma orientação adequada, e encontrá-Lo-emos:

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Neste receptáculo terreno, o corpo,há bosques e jardins,e nele habita também o Senhor;neste receptáculo, o corpo,estão os sete oceanos e estrelas inúmeras;dentro do corpo está a pedra de toqueque põe à prova o teu mérito espiritual;dentro dele está também o Avaliador,o Senhor que te põe à prova.Escuta, meu amigo, palavras de Kabir:o teu Bem Amado está dentro de ti!

E, dirigindo-se aos muçulmanos:Não é por jejuar e repetir credos e oraçõesque alcançamos o céu;o véu interior do templo de Mecaestá na cabeça do homem, se a Verdade for conhecida.Faz do espírito16 a tua Kaaba,do teu corpo o templo que a envolve;a consciência é o Instrutor Principal.Oferece como sacrifícios a Ira, a Dúvida e a Malícia;faz da Paciência o tema de cinco orações.Hindus e muçulmanos têm o mesmo Senhor.

Tão-pouco pretende Kabir que aguardemos nova oportunidade, após a morte, para ir em demanda do Senhor. Há que iniciar a caminhada aqui e agora exortação que as suas canções repetem mais de cem vezes pois

Aqueles que não alcançarem a margem agora,como é que lá chegarão depois de mortos?

9. COMO NASCEM OS SANTOS...

Reza a lenda que um discípulo de Ramananda viu uma luz estranha descer em Lahar Talao, perto de Benares. Referiu o fenómeno ao

16. A mente.

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Mestre, e disse este que se tratava da Luz duma criança que viria a ser um grande Santo. Niru, tecelão muçulmano que na mesma altura deambulava pela margem de um lago em companhia de sua mulher, Nima, avistou um lindo bebé flutuando no lago. Sugeriu à mulher que, uma vez que não tinham filhos, recolhessem o bebé e o adoptassem. Mas Nima hesitou, e foi o próprio bebé a revelar que, em conse-quência da generosidade de Nima para com ele numa vida anterior, tinha vindo para salvá-los das misérias da transmigração. Queria, assim, proporcionar-lhes o mérito de o criarem.

Uma outra lenda diz que um brâmane seguidor de Ramananda levou um dia ao Mestre a sua filha viúva, ainda virgem, e que o Mestre, ignorando que se tratava de uma viúva, a abençoou com uma criança. Tal criança não tardaria a nascer da palma da mão da rapariga, que a depôs numa flor de lótus em Lahar Talao, donde foi retirada por Niru e Nima.

10. A DATA EXACTA do nascimento de Kabir não é conhecida. Segundo a tradição, Kabir teria vindo ao mundo em 1398 e deixado o corpo em 1518, mas aquela data não se coaduna com certos episódios da vida do Santo. Possivelmente nasceu à volta de 1440, tornou-se discípulo de Ramananda cerca de 1455 e deixou o corpo em 1518 com a idade de 78 anos. Esta cronologia ajusta-se aos registos históricos relativos a Sikandar Lodi, que reinou de 1488 a 1512 e foi, também de acordo com a lenda, responsável pela perseguição de Kabir, por instigação combinada de brâmanes e sacerdotes muçulmanos.

Kabir nasceu antes do Guru Nanak, que viveu entre 1459 e 1538.

Ainda de acordo com as lendas, já na mais tenra infância Kabir entoava canções espirituais, fenómeno que provocava a estupefacção da vizinhança. No meio das brincadeiras infantis, costumava repetir o nome de Ram17, e os seus companheiros muçulmanos arreliavam-no chamando-lhe kafir18. Por outro lado, brâmanes que deviam ficar felizes de ouvir uma criança muçulmana repetir o nome de Deus ameaçavam-no com castigos severos.

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11. CHEGADA A HORA DA CIRCUNCISÃO, Kabir recusou submeter-se... Bem tentou o Kazi19 explicar-lhe a necessidade da circuncisão, comum aos muçulmanos, mas Kabir replicou: Se é a circuncisão que torna o homem muçulmano, que dizer das mulheres? Têm de permanecer kafirs! E, voltando-se para os brâmanes também presentes, disse: Se são as cerimónias do cordão que vos tornam hindus, que dizer das mulheres hindus? Permanecem párias!

12. MUITAS HISTÓRIAS se contam acerca da forte tendência espiritual e da generosidade ecuménica reveladas por Kabir desde a mais tenra idade. Tinha ele dez ou doze anos, ao que parece, quando o seu pai adoptivo deixou o corpo, e o moço teve de se agarrar ao tear com unhas e dentes para sustentar a casa. Ele mesmo se encarregava de ir ao mercado vender os tecidos que fabricava. Mas... metade do dinheiro que recebia, distribuía-o pelos necessitados, e a outra metade entregava-a à mãe.

Uma vez, um pobre sadhu foi ter com ele e queixou-se de não ter nada que vestir. Kabir ofereceu-lhe metade da peça de tecido que levava. Mas o sadhu insistiu em ter a peça inteira, e Kabir deu-lha. O pior é que, depois, ficou preocupado: que diria à mãe quando chegasse a casa? Foi então que alguém se aproximou, comprou a peça de tecido ao sadhu e deu metade do dinheiro a Kabir!

Era uma família pobre que dificilmente conseguia manter aceso o fogo do lar.20 Como criança, Kabir foi precoce; mas na adolescência parece que a sua precocidade se acentuou. No meio do trabalho, costumava parar o tear e sentar-se em meditação; horas a fio, lá ficava o tear abandonado, o que contribuía para manter em baixo nível os rendimentos da família. Nima queixava-se-lhe constantemente, mas em vão...

13. KABIR CASOU DUAS VEZES, de acordo com o Granth Sahib.21 Da segunda mulher, Loi, teve dois filhos, Kamal e Kamali. Reza uma lenda que Kabir, um dia já na casa dos trinta, procurou abrigo num eremitério da floresta. O asceta que lá vivera deixara o corpo anos atrás, mas o sítio achava-se ocupado por uma jovem de 20

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anos que perguntou a Kabir o nome, a casta e a religião. A todas estas perguntas ele respondeu: Kabir. Claro que a jovem ficou surpreendida com a monocórdica resposta, mas, na sua qualidade de anfitriã, convidou Kabir a sentar-se.

Entretanto, cinco sadhus chegaram à cabana e a rapariga serviu leite a todos. Kabir, porém, recusou beber, uma vez que, disse, estava para chegar outro sadhu. Efectivamente, outro sadhu chegou à cabana poucos minutos depois.

Kabir perguntou à rapariga quem era e como fora ali parar, ao que ela respondeu que tinha sido achada a flutuar num rio pelo pai adoptivo, um asceta; que ele a embrulhara numa manta e lhe dera o nome de Loi.22

Finalmente, Kabir acabou por levá-la para casa e, de acordo com a lenda, viveram juntos como irmãos. Mas não há razão nenhuma para dar crédito a este pormenor da lenda, pois o próprio Kabir se refere muitas vezes a Loi como sua mulher. Segundo o Granth Sahib, era uma mulher de excepcional beleza.

Também o nascimento de Kamal e Kamali foram objecto de várias narrativas lendárias, mas lenda não foi decerto a série de dificuldades que Loi deve ter experimentado para cuidar de um marido tão desprendido do mundo. Parece que não havia dia em que não se juntasse em casa deles um grupo de sadhus, para debater questões espirituais. Entretanto, o tear ficava parado horas e horas. Não se conformando, Loi terá várias vezes chamado a atenção do marido para aquela inútil perda de tempo. Estas cabeças rapadas, teria ela dito referindo-se aos sadhus, raparam completamente tudo o que tínhamos em casa!23 Mas o marido teria replicado: Estas cabeças rapadas levaram-me para o caminho de Deus.

Mau grado todas as dificuldades domésticas, Loi, como boa esposa indiana, era extremamente devotada ao marido e aceitava as ordens dele com verdadeiro amor.

14. OUTROS EPISÓDIOS SE CONTAM que põem em destaque a dedicação mútua e o excelente entendimento no seio do

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casal. Numa ocasião, um grupo numeroso de sadhus chegou a casa de Kabir e este pediu à mulher que lhes preparasse algum alimento. Não havendo em casa nem alimentos nem dinheiro para os comprar, Kabir sugeriu à mulher que os adquirisse a crédito numa loja próxima. O lojista, que andava fascinado pela beleza de Loi, prometeu fornecer-lhe a crédito o que ela desejasse, mas só com a condição de ela ir ter com ele à noite. Loi voltou a casa e o marido pediu-lhe que aceitasse a condição. Assim foi, por forma que os sadhus tiveram uma lauta refeição.

Ao anoitecer começou a cair uma chuva pesada, mas Kabir manteve a sua palavra e levou a mulher aos ombros até casa do lojista. Quando este abriu a porta, ficou perplexo ao ver Kabir em pessoa, e mais ainda quando reparou que nem uma gota de chuva molhara as roupas de ambos. Envergonhado da sua conduta, caiu-lhes aos pés e pediu perdão.

E a este muitos outros episódios se podiam acrescentar, todos mais ou menos nimbados do perfume da lenda. Não cremos que mereça a pena aprofundá-los ou discutir-lhes a veracidade. É provável que o grande Santo nada tenha a ver com a maior parte desses milagres. Podemos inclusivamente ignorá-los por completo. Seja como for, o que não podemos é ignorar a excelência dos seus ensinamentos, que, tal como os de Jesus e outros Mestres e grandes Santos, nos colocam ante o dilema supremo da nossa existência: escolher o caminho da salvação ou permanecer eternamente acorrentado ao ciclo de nascimentos e de mortes no mundo material.

15. KABIR REFERE COM A MAIOR ÊNFASE a importância suprema do Mestre (Guru) no progresso espiritual do discípulo: Se toda a superfície da terra se transformasse em papel, diz, e todos os mares se transformassem em tinta e todas as florestas em canetas, não seriam suficientes para descrever a grandeza de um Guru. E, noutro passo, se o Senhor e o Guru se achassem diante de nós ao mesmo tempo, a cujos pés é que devíamos prosternar-nos? Devíamos prosternar-nos aos pés do Guru que nos mostrou o Senhor, a Quem jamais teríamos visto senão pela graça do Guru.

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E quem foi o Guru de Kabir?

A fazer fé nos indícios mais seguros e numerosos, foi Ramananda o Guru de Kabir, pelo menos nos primeiros estádios da sua carreira espiritual.

16. RAMANANDA ERA UM VISHNUITA24 que por esse tempo vivia em Benares e congregava muitos seguidores. Como bairagi25 que era, praticava uma devoção mística e observava também certos rituais externos. Como brâmane, estava vinculado às regras de casta e em princípio não aceitaria Kabir ou outros não-hindus como discípulos. Conta-se que Kabir teve de recorrer a um estratagema engenhoso para se fazer aceitar por Ramananda.

Mas Kabir assumia-se como um Param Sant Satguru, o que significa que já era um Santo perfeito ainda antes da vida presente. Porquê, então, ter de ser iniciado na senda espiritual por um Mestre? Trata-se de uma norma cardinal do misticismo, que mesmo o mais perfeito dos Santos, ao vir a este mundo, se comporta como um vulgar ser humano, envolvendo-se em Maya26 e submetendo-se a todas as leis físicas do mundo. Assim, também Kabir teve de procurar um Mestre para chegar à Luz, e teve de praticar a devoção para eliminar a treva da Ilusão e realizar o próprio Eu e o Senhor.

17. MAS A DIFERENÇA entre um Param Sant Satguru, como discípulo, e uma pessoa vulgar, é que o primeiro progride vertiginosamente no caminho espiritual, ao passo que uma pessoa vulgar tem de suar as estopinhas, numa trajectória longa e fatigante, para vencer sucessivamente as diversas paixões que a prendem ao mundo; e, além do mais, tem de desempenhar simultaneamente as tarefas mundanas que lhe foram atribuídas pelo respectivo karma-destino.

Para pessoas vulgares, alcançar o primeiro estádio do desenvolvimento espiritual tem já muito que se lhe diga. Mas Kabir alcançou o nível mais alto do progresso espiritual pouco depois de receber a Luz de Ramananda. E há indícios de que o próprio Ramananda se teria mais tarde convertido num discípulo do discípulo!

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18. CONTA A LENDA que um dia, quando Ramananda celebrava o aniversário da morte do seu Guru, pediu a Kabir que lhe trouxesse leite para ser "servido" ao falecido Guru. Ora isto, para um Param Sant, era um disparate grosseiro. Kabir saiu e voltou com um carregamento de ossos duma vaca morta. No momento devido, quando Ramananda lhe perguntou pelo leite, Kabir replicou que tinha trazido ossos duma vaca morta e que tanto bastava para um homem morto.

É fora de dúvida que Kabir ultrapassou em muito o seu antigo Mestre. Nunca adoptou a vida de um asceta profissional, como Ramananda, e sempre ganhou o próprio sustento com a sua actividade artesanal, "combinando a contemplação com o trabalho". Também, ao invés de Ramananda, Kabir enaltece a vida de família e "desdenha da santidade profissional de um yogui". Tudo isto se enquadra no ensinamento dos Mestres perfeitos, indicando que Ramananda não pertencia ao número destes. De resto, a ideia de que o próprio Ramananda se tornou discípulo de Kabir é apoiada pelo seu compor-tamento ulterior: Ramananda violou todas as restrições de casta e viveu na companhia de muçulmanos e hindus de todas as castas, tendo sido excomungado por esse motivo.

19. ALGUNS BIÓGRAFOS DE KABIR pensam que o Guru de Kabir teria sido o Sheikh Taqqi, místico e tecelão que morreu em 1574. Contra esta hipótese, porém, algumas lendas referem um tal Skeikh Taqqi que foi para Kabir uma fonte constante de preocupações e dissabores.

Fosse quem fosse o Guru que o iniciou, quanto a este ponto não resta a menor dúvida: Kabir foi, ele próprio, a personalidade espiritual mais marcante do seu tempo, tendo exercido uma influência fecunda em muitos que mais tarde ganhariam aura de santos.

20. BEM SE COMPREENDE por que é que sacerdotes e magistrados muçulmanos, mais do que uma vez, desejaram eliminar Kabir do número dos vivos. Provinha-lhes o poder da submissão do

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povo aos dogmas oficiais do Islão. Difícil seria não cair em desgraça quem se atrevesse a pôr em causa a instituição "sagrada", tão intimamente ligada à estrutura política do Estado muçulmano. Kabir denunciou, com efeito, alguns dogmas islâmicos considerados intocáveis, apontando-os como não essenciais à demanda do Senhor Supremo. Foi o caso da circuncisão, já referido, e de outros mais.

Em relação ao jejum do Ramadão, Kabir teve a ousadia de dizer aos magistrados: Vocês jejuam o dia inteiro, mas à noite matam as vacas devoção de dia, assassínio à noite. Como é que isso pode agradar a Deus? E àqueles que acreditavam chegar a Deus pela simples leitura do Alcorão, dizia: Oh, insensatos, não ganhais nada com a leitura e o estudo desde que não O procureis no íntimo do coração. E aos que oravam cinco vezes ao dia e peregrinavam a Meca em busca de salvação: Sois vítimas de ilusão: de que servem as vossas orações e a peregrinação a Meca? E aos que frequentavam a mesquita em busca de Deus: Para que frequentais a mesquita construída por mãos humanas? Não é lá a morada do Senhor. Procurai-O dentro do vosso corpo e haveis de encontrá-Lo sem a ajuda de sacerdotes.

21. MAS A TEOCRACIA MUÇULMANA não estava isolada no seu sentimento de antipatia contra o grande Santo, pois aceitava a solidariedade ocasional dos rivais brâmanes o que também perfeitamente se compreende. Tal como os outros, também estes dependiam, afinal, da crença cega e da superstição de outros tantos milhões de devotos. E Kabir não era mais complacente com uns do que com outros. Aos brâmanes recomendava que renunciassem às prerrogativas de casta, de família, de linhagem... e pregava-lhes a humildade proposta quase tão utópica, naqueles tempos, como convencer um tecnocrata dos nossos dias a abdicar da informática.

Kabir denunciou toda a hierarquia de deuses e deidades e desdenhou dos banhos rituais nos rios sagrados, das peregrinações a lugares santos, dos jejuns e orações repetidas mecanicamente e tudo isto numa linguagem terrivelmente simples e directa, por vezes bombástica, mas duma eficácia de linha recta entre dois pontos.

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Atingida em cheio, a classe bramânica bramava de fúria. Nem os próprios sadhus escapa- ram, como membros de um grupo numeroso de homens santos que ostentavam publicamente a sua devoção e constituíam assim, na prática, uma autêntica classe profissional. Se andar por aí nu fosse suficiente para se conseguir a união com Deus, dizia o Santo, todos os animais da floresta teriam esse privilégio. E mais: se rapar o cabelo bastasse para chegar a Deus, todos os carneiros estariam salvos. Se o celibato conduzisse a Deus, todos os eunucos chegariam a Santos.

22. CLARO QUE ESTA MANEIRA FRONTAL e pitoresca de evidenciar a insensatez das classes sacerdotais não podia de modo nenhum agradar nem a gregos nem a troianos, tanto mais que este tipo de crítica não foi meramente ocasional: contam-se por centenas os poemas em que Kabir, metaforicamente ou não, denuncia a inutilidade de toda a devoção exterior e põe a nu a hipocrisia daqueles que a defendem. Convém não esquecer que se vivia uma época em que a liberdade de consciência não era reconhecida e aceite como princípio cardeal duma vida civilizada. Não surpreende, pois, que Kabir tenha várias vezes sido alvo de perseguições, o que, obviamente, não as torna justificáveis. A coragem de dizer a Verdade, e mais ainda a coragem de a repetir coerentemente, constitui normalmente uma provação reservada aos mais capazes.

O bramanismo era então uma força poderosa que influenciava os destinos duma comunidade inteira. As regras de casta desafiavam na sua severidade toda a comparação com as prerrogativas de nascimento das sociedades aristocráticas europeias. Ser declarado pária constituía, naquela sociedade, punição muito séria que imediatamente desen-cadeava uma reacção generalizada. A vítima e seus familiares eram alvo de um boicote social completo: os filhos não podiam aspirar ao casamento; à família de um pária não era permitido assistir a funerais; os merceeiros e outros recusavam geralmente fornecer os géneros que comerciavam, a não ser um ou outro e por pura misericórdia.

23. MAS OS BRÂMANES DE BENARÈS não podiam excomungar Kabir porque ele era, ao menos exteriormente, muçul-

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mano. E as massas hindus, desnorteadas e aterrorizadas pelas perseguições do dominador estrangeiro, procuravam alívio onde o havia e havia-o, sem dúvida, aos pés de Kabir. Ora não se pode excomungar milhões de pessoas. E assim, esse grande devoto de Deus que a Deus se unira pela sua infinita devoção, foi acusado de infiel... Um Santo de carácter imaculado, aceite pelo próprio Deus, acusado de corromper a moral do povo!

A título de exemplo: acusaram-no de se misturar com prostitutas e outros marginais, que naturalmente o procuravam em busca de conselho e alívio; acusaram-no de libertino, a ele, que condenara toda a espécie de libertinagem. Mas a história repete-se, como é sabido e inevitável, já que a natureza humana também não muda assim... Quem não se lembra dos episódios bíblicos em que os grandes pecadores, as grandes pecadoras, procuram alívio na única fonte acessível nesse tempo? Não foi Jesus acusado pelos sacerdotes judeus de andar associado a publicanos e pecadores?

24. DADA A PERSISTÊNCIA DAS QUEIXAS, tanto de brâmanes como de sacerdotes muçulmanos, o soberano de Delhi, Sikander Lodi, chamou Kabir à sua coroada presença. Alegavam uns que Kabir havia ultrajado os fieis com gritos de Ram, Ram nas vias públicas, como se fora crime ou ofensa bradar um dos nomes de Deus; outros que Kabir ostentava ilegalmente o tilak (marca na testa) e o cordão sagrado. É pouco provável que o Santo condescendesse no uso daqueles sinais exteriores, mas isso pouca diferença faz. O facto é que Sikander Lodi não se deixou convencer com a argumentação dos acusadores e mandou Kabir em liberdade. Ainda mais descontentes com este fracasso, os inimigos de Kabir recorreram a um tal sheikh Taqqi, indivíduo de grande influência na corte de Delhi. Contactado novamente o soberano, não foi difícil convencê-lo de que Kabir representava para ele uma séria ameaça política, uma vez que era odiado tanto por hindus como por muçulmanos. De novo em presença do soberano, Kabir foi acusado de ignorar o sistema de castas e prerrogativas religiosas e de levar uma vida desonrosa. Pregar e praticar a fraternidade do homem tinha-se convertido, obviamente, em crime contra a segurança do Estado. Como agravante, Kabir não era

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propriamente um servo atento, venerador e obediente a Sua Majestade, e não se apressara a comparecer na corte. Nem tão-pouco se prosternou diante do rei, como toda a gente fazia. Sikander perguntou-lhe por que demorara tanto tempo a responder à chamada e Kabir replicou que tinha estado entretido a observar elefantes e camelos a passar pelo fundo duma agulha. Tornou o soberano que Kabir estava a mentir descaradamente, e obteve a seguinte resposta:

Oh, Kabir, não faltes à verdade.Ninguém sabe o que pode acontecerna quarta parte dum segundo.Oh, Kabir, que uma gota entrou no mar todos podem compreender.Mas o mar entrou numa gota, e issopoucos conseguem entender.Os olhos do exterior pereceram,os olhos da mente pereceram.Oh, Kabir, que poderemos nós encontrarem alguém que perdeu os quatro (olhos)?

25. À ACUSAÇÃO DE FALAR DEMAIS da fraternidade dos homens, ignorando distinções religiosas e de casta, e de conviver demais com os pobres e os deserdados da sorte, Kabir respondeu deste modo:

Que eu saiba que todos são um,em que pode isso ofender outras pessoas?Se fiquei desonrado,foi a minha própria honra que perdi;não precisam os outros de me dar atenção.Humilde eu sou, entre os humildes serei contado.De honras e desonras não quero saber;quem tem os olhos abertos há-de compreender.Diz Kabir que a honra se baseia nisto:renuncia a tudo o mais,canta apenas o nome de Deus.

26. KABIR NÃO ABDICAVA da sua condição de Santo, e a sua

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firmeza de propósitos, decerto mal interpretada por todos os opositores, levou os kazis27 a uma atitude ameaçadora: ou ele mudava de vida e passava a comportar-se como um verdadeiro muçulmano, ou teria de enfrentar o cadafalso. Como de costume, porém, Kabir replicou coerentemente: O mesmo Senhor vive tanto nos corpos dos muçulmanos como dos hindus. Não é monopólio de ninguém.

Perguntaram então os kazis por que razão ele se chamava a si mesmo Kabir, nome geralmente relacionado com Deus e usado pelas pessoas importantes, sendo certo pertencer a uma casta baixa. A resposta do Santo foi sincera e frontal, revelando a sua verdadeira condição espiritual:

Meu nome é Kabir toda a gente sabe.Aos três mundos pertence o meu nome,bem-aventurança é a minha morada.Água, ar, as estações, assim criei o mundo.A vibração imperturbável troveja no céue Sohang mantém a harmonia.Tornei manifesta a Semente de Brahma.Do cativeiro de Yama ofereci a redenção,e fiz o corpo limpo.Deuses, homens e munis28 não me conhecem o fim.Só os Santos de Kabir29 conseguem lá chegar.Pelos Vedas e o Livro ninguém atingirá a costa.Tão profundo é o misterioso conhecimento.

27. ESTA "BLASFÉMIA" valeu ao Santo a condenação como herético. Segundo a lenda, a uma ordem de Sikander Lodi, Kabir foi atado de pés e mãos e lançado ao Ganges. Mas logo se achou livre e a flutuar nas águas do rio sagrado...

Sikander Lodi ordenou então que o fizessem esmagar sob as patas de um elefante. Mas quando o cornaca montou o elefante, viu um leão na sua frente, e o elefante, assustado, recusou mover-se. Sikander pensou que o cornaca tinha uma imaginação demasiado fértil e resolveu montar ele mesmo o elefante. Mas também ele viu o leão na frente, e não houve argumentos que convencessem o elefante a dar um

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passo. Confundido e perplexo, Sikander expulsou Kabir de Benarès. Durante alguns anos a partir dessa data, Kabir deambulou pelo Norte e o Centro da Índia.

Por curiosidade, lembremos que alguns dos mais íntimos discípulos do Santo se mancomunaram com Sikander Lodi. Cada Santo tem o seu Judas Iscariotes...

28. HOUVE UMA FASE da carreira do Santo em que grandes multidões costumavam aglomerar-se em torno dele, geralmente para tentar obter auxílio nos seus negócios mundanos. Ora Kabir não desejava que essa gente andasse a perder tempo... E assim, congeminou uma maneira de os afastar.

Num dia santificado e festivo, pediu a um discípulo que lhe arranjasse uma prostituta e uma garrafa de água colorida. Com a garrafa na mão e um braço pelos ombros da rapariga, passeou-se pelas ruas mais movimentadas, a cantar e a dançar. Muitos pensaram que Kabir se entregava agora às mulheres e ao vinho e foram direitinhos ao rajá Bir Singh apresentar as suas queixas. Claro que o rajá chamou Kabir à sua presença para se justificar. Kabir obedeceu e entrou no palácio de garrafa na mão. Mas, na presença do rajá, esvaziou a garrafa aos seus pés e informou o rajá que havia um incêndio no templo de Jaggannath Puri, mas que ele apagara o fogo esvaziando a garrafa. Surpreendido com a revelação, Bir Singh enviou um emissário a Jaggannath Puri para se certificar. De regresso, o emissário confirmou que houvera de facto um incêndio no templo, mas que Kabir aparecera no local e, pessoalmente, apagara o fogo.

Claro que não existe prova cabal do acontecimento. Lendas deste tipo não acham facilmente justificação racional nos arquivos da moderna historiografia. Mas há com certeza uma dose mínima de verdade que lhes serve de fundo; e depois, as gerações posteriores encarregam-se de completar o quadro e acrescentar pormenores.

29. COMO TODOS OS MESTRES PERFEITOS, Kabir ganhava a vida à custa do seu trabalho. Todavia, com tantas horas dedicadas às práticas espirituais e um exército de sadhus a enxamear-

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lhe a porta todo o santo dia, a sua produção de tecidos encolhia drasticamente. Já a mãe dele se queixava; e mais tarde a mulher, Loi, tendo de enfrentar a mesma situação, renova as queixas da sogra: que os cabeças rapadas (sadhus) lhe rapavam tudo o que tinha em casa.

Reduzido em certas ocasiões a uma pobreza extrema, Kabir escreve, a propósito:

Diz Kabir, nunca tive tecto nem telhado de colmo,nem tive casa nem aldeia.Penso que Deus há-de perguntar: "Quem és tu?"Não tenho nome nem casta...nunca fui ambicioso. O Teu Nome e mais nada,oh, Hari30, é suficiente para mim.

Também o Mestre Jesus declarava, quatro ou cinco séculos atrás: As raposas têm as suas tocas, as aves os ninhos. Mas o Filho do homem não tem onde encostar a cabeça.

30. KABIR ENFRENTOU PERSEGUIÇÕES E POBREZA como rotina normal. Não obstante, pelos seus inimigos nunca nutriu outro sentimento que não fosse de amor:

Para aquele que semear espinhos para ti,para ele deves tu semear flores;terás botões quando for tempo de primavera,e ele ficará triste ao encontrar espinhos.

Kabir atingira entretanto um estádio de realização e progresso espiritual que lhe permitia afirmar a sua plena identificação com o Senhor:

Encontrei a Deus, que habita no coração.Quando uma corrente se perde no Ganges,Converte-se no próprio Ganges.Kabir está igualmente perdido em Deus.

31. COMO É QUE KABIR CHEGOU A DEUS?

Diz ele que encontrou a Deus buscando-O no interior do seu

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próprio corpo, e que ao realizar Deus dentro de si próprio encontrou Deus em toda a parte. Ele via a criação inteira dentro do seu corpo:

Conheci no meu corpo o Jogo do Universo:escapei do engano deste mundo.Para dentro, como para fora,tudo se tornou no mesmo céu.Infinito e Finito estão unidos.Estou embriagado com a visão do Todo!

Eu e meu Pai somos um.O Mestre deu-me a visão equânimee o conhecimento perpétuo.Para onde quer que me voltasse,só O via a Ele,pois que nada mais existe.

O Mestre deu-me a visão equânimee apagou em mim todo o mal e ilusão;agora, para onde quer que me volte,só O vejo a Ele,só dEle vejo a imagem em toda a parte.

Acaba com o teu egoísmo, afasta-o para bem longe;virá então à luz a equanimidade.Só então poderás compreenderque o Senhor, Ele mesmo,vive no interior de tudo quanto existe;só então poderás compreender O que é uno.

32. A FIM DE APRECIARMOS os métodos de choque a que Kabir recorria para realçar a inutilidade das superstições, rituais, jejuns, penitências e práticas fantásticas a que as pessoas se entregavam para apaziguar a mente neste mundo e assegurar a salvação no além, é necessário entender o fundo socio-religioso dos tempos de Kabir.

Falecido em 632, o profeta Maomé deixou atrás de si uma multidão de seguidores entusiastas, apostados em perpetuar os

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ensinamentos do Mestre: vida simples, sem luxos, contenção moral e piedosa um caminho para Deus. Não tardou muito, contudo, que aquelas tribos de gente dura e sangue na guelra varressem todo o Médio Oriente à ponta da espada e da lança, substituindo pela fé islâmica todas as religiões e facções religiosas ali existentes até então. Os zoroastrianos, por exemplo, foram exterminados em massa ou convertidos à força; escaparam apenas os que na altura procuraram refúgio na Índia, onde lograram manter viva a semente do zoroastrianismo.

Em poucos anos, o Islão conquistou o vasto território que se estende de Bagdad a Córdova, e nem cem anos tinham passado ainda sobre a morte do profeta, já as hordas árabes ameaçavam os contrafortes do sub-continente indiano. O Punjab suportou o primeiro embate, mas o furor atacante dos invasores levou tudo de vencida até Uttar Pradesh e Sind. Sem temer Deus nem o homem, saquearam e reduziram a cinzas cidades inteiras. Homens, mulheres e crianças foram chacinados indistintamente, e as donzelas foram renovar a população feminina dos harens do vencedor.

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33. OS INIMIGOS DA ÍNDIA não transportavam consigo mantimentos nem roupas, preferindo pilhar tudo quanto lhes servisse de alimento e agasalho. Celeiros a abarrotar foram esvaziados; colheitas inteiras desviadas para sustentar as hostes. E as populações que conseguiram sobreviver à espada tinham de fazer face à fome e às epidemias.

O povo aterrorizado "corria para Deus" em busca de auxílio. Precipitava-se para os templos e santuários e oferecia à classe sacer-dotal tudo o que conseguira salvar da sanha do inimigo - em troca, ou na expectativa, melhor dizendo, de algum alívio. Mas os brâmanes, em vez de facultarem aos crentes desesperados o alívio desejado, ainda lhes agravavam o medo, na mira de os despojar de alguns bens mundanos passados despercebidos ao invasor. Por essa altura, os templos e a respectiva administração acumularam fortunas tão grandes que faziam a admiração dos viajantes de terras estranhas. Para a gente comum, acolher-se aos brâmanes era como saltar da frigideira escaldante para as próprias chamas.

34. O INIMIGO INTERNOU-SE AINDA MAIS. Entrou em Bihar, chegou ao Nepal, ao Tibet. Milhares de templos budistas foram profanados e reduzidos a escombros. A história da Índia foi então uma sucessão monótona de assédios e massacres, violações, pilhagens e fome. Kutb-ud-din, o primeiro sultão de Delhi, destruiu só à sua conta e só em Benarès quase um milhar de templos, no ano de 1206. Dos outros templos destruídos algures não existe cálculo. A Benarès de hoje, embora ainda rica em templos, é uma pálida sombra do que foi antes da invasão islâmica.

Timur invadiu a Índia em 1398. Durante uma estadia de poucos meses saqueou Delhi, passou os habitantes à espada e pilhou e destruiu tudo por onde passou. Aquele ano é significativo pois foi o ano em que Kabir veio ao mundo.

35. NO TEMPO DE KABIR, era Sikander Lodi o governador de Delhi. Muçulmano intolerante, ainda que, ele mesmo, de religiosidade muito duvidosa, destruiu inúmeros templos e forçou milhares de

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pessoas à conversão. As classes mais pobres aderiam ao Islão para escapar à fúria perseguidora e ao imposto especial cobrado aos não muçulmanos. "E no entanto, o hinduísmo florescia!" E florescia porque eram aos milhares os que, nessa época de terror, se acolhiam aos templos e santuários em busca de paz.

36. A ATRACÇÃO DO INVASOR PELA ÍNDIA tinha uma razão bem definida: a Índia era então conhecida como "a terra do ouro". As suas manufacturas tinham atingido um grau de perfeição que não conhecia rival em parte nenhuma do mundo. Ainda antes do advento do Islão, já os mercadores árabes se entregavam a um comércio próspero com aquele país. Os tecidos indianos de lã e algodão vestiam os monarcas e os harens do Médio Oriente. E os mercadores passavam os têxteis para o Ocidente, para encher os guarda-roupas da aristocracia europeia.

Há que ter em conta este quadro para melhor se entenderem os métodos de choque de Kabir: para fazer passar a sua mensagem ele tem de recorrer à "acha de armas"!

Mas nada melhor que umas quantas histórias saborosas para ilustrar tais métodos:

37. UMA VEZ, UM BRÂMANE pediu à filha de Kabir, que estava a tirar água de um poço, que lhe desse de beber. Lesta, a rapariga tirou mais água do poço e deu-a ao brâmane. Pouco depois de beber, o brâmane começou a suspeitar que a moça seria muçulmana de casta inferior, e perguntou-lhe quem era. Ela disse-lhe que fosse ter com o pai. Foram ambos e narraram o incidente. Kabir apaziguou os ânimos do brâmane e perguntou: "Como é que a água só fica suja se te for dada por um não-brâmane? Quando bebes água, deves saber de que é que a água é composta! Os teus livros sagrados registam que cinquenta e seis milhares de Yadavas e oitenta e oito milhares de outros foram mortos na guerra do Mahabharat, e o sangue e os ossos deles estão misturados na nossa água. Além disso, não há uma polegada de terra que não tenha corpos enterrados, e a sua carne e sangue apodrecidos estão dissolvidos na água. Milhões de peixes,

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tartarugas, sapos e jacarés nascem na água, vivem na água e procriam na água. A água que tu bebes está cheia destas impurezas. Dissolvidos nela estão os corpos mortos de todos os animais. Milhões de insectos vivem e morrem na terra e na água e dissolvem-se nos poços e nos rios. O leite maternal que tu bebes, donde é que ele vem? É feito do sangue e dos ossos da tua mãe, e é esse leite que tu bebes! Oh, pandita, a água não fica suja pelo simples contacto com um ser humano, a água não fica conspurcada! É conspurcada por milhões de criaturas vivas e mortas. Oh, pandita, deita fora os Vedas todos e mais os Shastras, que são criações da mente e não de Deus."

O pandita começou por ficar chocado, mas depois convenceu-se da veracidade do argumento e tornou-se discípulo de Kabir. Segundo a lenda, teria mesmo casado mais tarde com Kamali, filha de Kabir, mas isso já não se pode afiançar...

38. NUMA OUTRA HISTÓRIA, encontramos Kabir, um dia, a passear pela margem do Ganges e a ir ao encontro de um grupo de pessoas sentadas à volta de um pandita, que arengava sobre a santidade das águas daquele rio: "A água do Ganges é capaz de lavar os piores pecados!", assegurava o homem.

Ouvindo isto, Kabir aproximou-se e perguntou ao pandita se dizia aquilo por experiência própria ou só por ter ouvido dizer. Replicando o outro que falava por experiência própria, Kabir dirigiu-se ao rio e encheu de água um recipiente de madeira. Trouxe-o ao pandita e convidou-o a beber.

"Como é que eu posso beber água trazida por um homem de casta baixa como tu?", perguntou o pandita. "Foi conspurcada por ti!"

Kabir disse então: "Se a água do Ganges fica conspurcada pelo simples contacto de um recipiente de madeira transportado por um muçulmano, como é que pode lavar os nossos pecados?"

O pandita perdeu a compostura e começou a insultar o Santo...

39. UM BELO DIA, um faquir enviou recado a Kabir, que iria visitá-lo em tal data...

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Na data esperada, Kabir arranjou um porco e foi amarrá-lo na cerca mesmo em frente de sua casa. Ao ver o porco, o faquir ficou chocado: "Mas porquê, mesmo em frente da casa de um santo muçulmano? Por que é que guardas o porco aqui?"

"O meu porco está do lado de fora da casa", replicou Kabir, "mas o teu vive mesmo dentro de ti!"

Kabir referia-se à mente repleta de paixões como o suíno que vivia no corpo do faquir. Ao que consta, o faquir ficou curado com este método de choque...

40. PARA EXEMPLIFICAR A IRRACIONALIDADE e a cegueira das crenças populares em tudo o que respeitava à busca de Deus, Kabir narrou um dia aos seus ouvintes a história de um camponês que tinha um burro e ganhava a vida a lavar roupa aos vizinhos. O burro, dizia o dono, era fidelíssimo e irrepreensível no cumprimento dos seus deveres; excepto, acrescentava, quando o sacerdote do templo, ao cair da tarde, fazia soar o búzio. O burro parava então o que estava a fazer e começava invariavelmente a zurrar e a relinchar.

O camponês acabou por chegar à conclusão de que o animal, para responder assim ao chamamento do templo, devia ter sido um sadhu na vida anterior. E baptisou-o de... Shankheshwar Swami (em Português, nada menos que Criador Supremo do Senhor do Búzio).

41. ALGUNS ANOS PASSARAM, entretanto, e o celebrado Shankheshwar Swami chegou ao fim dos seus dias. Consternadíssimo, o dono pôs luto carregado no dia nefasto. A todos quantos lhe perguntavam o motivo do luto, respondia: Não sabes que Shankheshwar Swami deixou o corpo?

E assim a notícia se espalhou por toda a aldeia; e toda a aldeia, tão consternada como o dono do burro, se entregou a um pranto sincero; e toda a gente rapou cabeça, barba e bigode, em sinal de luto carregado. E a notícia correu, de aldeia em aldeia, até chegar à própria capital do reino; e o rei não quis ficar atrás e pôs luto carregado. Mas a rainha é

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que não achou graça nenhuma à ideia do marido, desfigurado que ficou com a rapadura da cabeça, barba e bigode; e pediu ao Primeiro Ministro que averiguasse quem era, afinal ou quem teria sido! esse tal Shankheshwar Swami.

De informação em informação, o Primeiro Ministro foi dar à aldeiazinha natal do defunto jerico, onde não teve qualquer dificuldade em chegar à fala com o nosso lavador de roupa. Ainda abalado com a morte do animal, o aldeão recebeu com naturalidade o interesse do Primeiro Ministro. Quem é esse Shankheshwar Swami por quem toda a gente está de luto?, quis saber o governante. É uma pena nunca o termos conhecido.

O quê? Então não conheceste Shankheshwar Swami?, estranhou o aldeão. Era o meu burro e costumava responder ao chamamento do búzio do templo.

"E é assim o mundo!", observava Kabir. "Facilmente vai atrás dum disparate; mas quando lhe falam do Caminho da Verdade, rejeita-o como falso."

42. NOUTRA OCASIÃO, Kabir contou outra história que realça o desatino generalizado do ser humano em matérias deste quilate:

Numa cidadezinha de província, havia um moço cujo nariz fora cortado por ter ele cometido qualquer falta grave. O povo costumava fazer troça dele pela falta do nariz, e o moço, naturalmente, sentia-se profundamente humilhado com os insultos; toda a gente o tratava com desprezo. Mas não se deixou abater. Ponderou maduramente o assunto e descobriu maneira de se fazer respeitar.

Mudou-se para outra cidade, vestiu-se como um sadhu, muniu-se do "equipamento" característico dos sadhus e sentou-se à sombra duma árvore, "em meditação".

Movidos pela curiosidade, homens e mulheres ajuntaram-se à volta dele. Após um silêncio conveniente, abriu os olhos. As pessoas perguntaram-lhe quem era e o que poderia fazer por elas.

Posso fazer muito por vós, disse ele. Posso revelar-vos Deus se aceitardes cortar o vosso nariz. Foi o que eu próprio fiz, e agora

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posso ver Deus com toda a clareza.

Da pequena multidão ali reunida, três pessoas houve que se deixaram convencer. O moço sadhu levou-as para junto de outra árvore, a uma certa distância, cortou-lhes os narizes, aplicou-lhes uma mezinha para estancar a hemorragia e bichanou-lhes aos ouvidos: Escuta, agora o que tens a fazer é ir ter com os outros e dizer-lhes que, assim que te cortaram o nariz, começaste logo a ver Deus.

Tão envergonhados se sentiam os desgraçados que não viram outra saída que não aceitar a sugestão do rapaz. E lá foram, clamando a quem quis ouvir que sim, senhor, agora posso ver Deus, posso ver Deus em todo o lado! com um entusiasmo tanto mais convincente quanto maior a dor de se verem assim, estupidamente desfigurados por um momento de desvario.

43. MAS O PIOR é que não houve ninguém na cidade que não enfiasse a mesma carapuça, e ao cabo de poucos dias já a população inteira alcançara a realização divina à custa do nariz decepado...

E como as "boas novas" se propagam rapidamente, não tardou que aquela chegasse aos ouvidos do rei. Não menos lorpa que os súbditos, também o rei considerou vantajoso perder o nariz e ganhar a realização divina. Valeu-lhe na circunstância o Primeiro Ministro, homem avisado e previdente que não se fiava nas aparências. Um inquérito breve levou-o a desvendar facilmente o mistério, poupando assim o rei à humilhação do nariz cortado.

44. TRATA-SE DE EPISÓDIOS DIVERTIDOS, de cariz popular, próprios para desencorajar a crendice das massas, presa fácil dos charlatães que transaccionavam a espiritualidade a preços módicos no passado, como em nossos dias. Embora eventualmente possam estes métodos ter desagradado aos mais sofisticados, o facto é que foram concebidos para as massas e não para intelectuais. E não seria fácil descobrir maneira mais eficaz de chegar às massas que estas histórias pitorescas e cheias de humor, que dramatizavam factos correntes da religião da época.

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45. NENHUM OUTRO SANTO INDIANO revelou tal vigor de linguagem, tal vitalidade e poder de convicção como o tecelão de Benarès, na sua abordagem terra-a-terra dos factos e opiniões do seu tempo. Embora serena e introvertida, a sua personalidade não hesita em manifestar o desdém, a repugnância, o desgosto profundo provocado pelos aspectos mais marcantes da miséria humana. Kabir não tem pejo de chamar as coisas pelo nome que merecem; e exibe deliberadamente o seu olhar carrancudo, ou mesmo sarcástico, para despertar nos ouvintes os sentimentos convenientes.

Muçulmanos ou hindus, irão todos para o inferno,com os qazis e os brâmanes a abrir caminho...Nem uns nem outros merecem sorte melhor.

De que serve tingir de ocre a roupa que vestisse não haveis tingido a mentecom as cores de Naam?De que serve sentar-vos em frente dum ídoloe abandonar o Nome do Senhor,único culto capaz de vos conduzir a bom porto?Oh, sadhu, tu furaste as orelhase deixaste crescer longas tranças e a barba,à maneira dos yoguis.Mas se deixar crescer a barba pudesse de ti fazer um yogui, repara bem no bode barbudo...Isolando-te na floresta,pegaste fogo a tudo o que te rodeava;mas se isso te libertou das paixões,repara no eunuco:ele não se entrega ao sexo,mas fervilha de pensamentos de sexoaté à raiz dos cabelos!O fogo exterior é inútilpara reduzir a cinza as paixões interiores.Rapando a cabeça, tingindo as roupas,recitando o Gita31 em jeito de papagaio,

31. Bagavad Gita, um dos livros sagrados do hinduísmo.

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passas por ser um yogui erudito.Mas Kabir te adverte:escuta, irmão meu nesta demanda comum,esses imitadores são levados cativos,atados de pés e mãos, até às portas de Yama.

A ira, o sarcasmo, a mofa, não são, obviamente, componentes essenciais da sua santa personalidade, mas antes os processos, as armas psicológicas que considerou adequadas ao propósito sagrado que tinha em vista Ele, tão pleno de paz interior e infinita com-paixão pela humanidade sofredora.

46. UM DOS TRAÇOS MAIS PITORESCOS do estilo de Kabir é o recurso frequente a figuras de animais, os mais variados, para retratar tipos humanos. Burros, macacos, cães, raposas e lobos, serpentes, tigres e leões, peixes, camelos e elefantes, grous, garças e corvos, porcos e escorpiões desfilam ante os nossos olhos como representações de seres humanos, marcando-lhes a fronte com um labéu que não se desvanece tão cedo da memória do leitor. Especialidade sua (dele, Kabir) é a deflação ou esvaziamento do nosso ego inchado de si mesmo; ricos e poderosos são colocados no lugar próprio, tanto nesta terra como nos mundos inferiores.

A ironia fulminante do poeta santo reduz a pó aristocracia e realeza, nobres mansões e palácios majestosos; põe a descoberto o pretensiosismo dos falsos piedosos, abre brechas profundas na erudição dos estudiosos, atrofia as ambições dos ricos, desvela o rosto verdadeiro do orgulho da juventude e da beleza terrena, denuncia a insensatez dos altivos, o exibicionismo dos sadhus e faquires, e desvaloriza as realizações terrenas dos yoguis.

47. PREOCUPA-SE, ACIMA DE TUDO, com o homem comum, o que trabalha a terra dos outros, o camponês que nada possui, que labuta de sol a sol, lava as mãos com o suor do rosto e rapa frio nas noites frias, sem ter nada para confortar o estômago nem roupa bastante que lhe cubra o corpo quando chega a hora de o deixar. Sofre com a visão compassiva de quem vê e compreende a fundo o

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destino amargo do camponês, apertado nas tenazes impiedosas de quem lhe explora a força do braço, sugado na sua ingenuidade espiri-tual pelos dirigentes argutos da instituição religiosa. Pelos pobres e desprotegidos, Kabir não alimenta mais que uma grande, infinita compaixão.

Todavia, a mera compaixão não contribui para abolir na prática a sujeição espiritual. Daí as histórias em que o poeta santo descreve as figuras de camponeses, os simplórios que eles são, o modo como são levados à certa por charlatães e vendedores de benesses espirituais; escarnecidos e iludidos pelos guardiães dos templos; ludibriados e espoliados por tugues e rufiões; defraudados e mistificados pelos altos dignitários das religiões oficializadas. São histórias simples e ingénuas como os seus protagonistas, mas muito fáceis de entender e reter na memória. Os intelectuais presumidos não lhes dão muito valor, mas o facto é que ficam na memória e trespassam o coração como setas.

48. AS CANÇÕES DE KABIR não buscam a aprovação de ninguém. Não pedem sanções, não pedem consentimento, não almejam a popularidade ou o aplauso, nem um simples cumprimento. São independentes de considerações deste tipo e constituem, assim, a literatura mais desinibida e libertária jamais produzida por um santo. Sacudindo os próprios alicerces da religião institucionalizada e os auto-nomeados guardiães alfandegários dos Portões do Céu, são canções de quem não teme porque não tem nada a temer.

Kabir maneja o bisturi e o forceps com a destreza de um cirurgião experimentado, pondo a descoberto a matéria fétida e a putrefacção que se acoitam no íntimo dos seres humanos.

Serás tu um ancião respeitável?, pergunta. E logo responde: Mas a tua lascívia agudizou-se com a idade, em vez de diminuir, e dificilmente faz de ti uma pessoa respeitável...

Já abandonaste o mundo?, pergunta, para logo responder: Mas a tua mente agarra-se à escória do mundo com uma ambição rapace e um egoísmo nauseante!

Kabir despoja o ser humano de toda a sua afectação, despe-lhe as virtudes fingidas, põe a nu o seu charlatanismo de raiz, expõe a

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fealdade repelente da sua armadura moral para trazer à luz do dia a beleza interior, oculta pelas chagas antigas.

49. AS CANÇÕES MAIS OUSADAS DE KABIR são as que descobrem a verdadeira natureza dos deuses que a população venera e serve. Quem são estes deuses?, pergunta ele. E responde: O seu propósito primordial é manter-nos afastados do Senhor; e vocês vão ter com eles em busca de salvação! E evoca os episódios das suas (dos deuses!) histéricas manifestações temperamentais, indignas de qualquer cavalheiro civilizado; as suas maquinações ambiciosas, que ultrapassam as campanhas publicitárias mais desonestas e criminosas dos tempos modernos; o seu ego insaciável, que faria corar de vergonha os maiores ditadores e conquistadores da história; os seus crimes de luxúria raptos, adultérios, incestos que numa sociedade civilizada dariam lugar às sentenças mais pesadas do respectivo código penal...

Como é que podem estes deuses, eles próprios chafurdando nas paixões, libertar-vos da sua fúria?, pergunta o poeta. Como podem estes deuses, eles próprios mergulhados em sofrimento, redimir-vos dessa angústia? Como podem estes deuses, eles próprios presas duma ansiedade mortificante, libertar-vos das distracções? Como podem estes deuses, eles próprios assediados pelo medo, libertar-vos das suas tenazes? Como podem estes deuses, de mãos e pés atados pela dualidade, libertar-vos da grande ilusão? Como podem estes deuses, eles próprios enredados na transmigração, libertar-vos do eterno retorno?

50. PARA REALÇAR o facto de os próprios deuses da trindade hinduísta (Brahma, Vishnu e Shiva) não se acharem livres das garras de Maya (ilusão) e das paixões, Kabir refere:

A mulher (Maya) conquistou os três reinos;Compôs os dezóito PuranasE é adorada nos locais de peregrinação;Trespassou o coração de Brahma, Vishnu e ShivaE incendiou o coração de grandes reis e soberanos.

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Kabir declara que os próprios Brahma, Vishnu e Shiva não estão livres da reencarnação:

Houve algum homem que não tivesse morrido?Mortos estão Brahma, Vishnu, Mahesha (Shiva);Morto está Ganesh, o filho de Parvati (esposa de Shiva);Morto está Krishna, morto o Criador (Kal);Só um é que não morreu: o Senhor.Diz Kabir: só não morreAquele que não está sujeito ao ir e voltar.

51. NUMA SÓ PENADA, Kabir reduz a escombros todo o conjunto de práticas devocionais do hinduísmo e condena os Vedas e o Alcorão como "mantos de falsidade". Nenhum modernista se atreveu a classificar os Vedas e o Alcorão nestes termos:

Cerimonial devoto, sacrifício, rosário,piedade, peregrinação, jejum e esmolas,as nove bhaktis (devoções), os Vedas, o Livro(Alcorão) Tudo são mantos de falsidade.

Se a união com Deus fosse conseguidasó por se andar por aí todo nu,todos os animais da floresta se haviam de salvar.Se a perfeição se consegue rapando a cabeça,porque é que os carneiros não hão-de obter a salvação?

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Os Vedas, os Smritis32 e os Puranas estão expostos num verso curto e simples, como obras que não sabem nada do Senhor Supremo:

Indra e Brahma não conhecem os Teus atributos;os quatro Vedas, os Smritis e os Puranas,Vishnu e Lakshmi não os conhecem.

Os brâmanes são denunciados em termos que dificilmente podem esquecer:

Se nascer de um brâmane faz de ti brâmane,porque é que não vieste por outra via?Se nascer de um turco faz de ti turco,porque é que não foste circuncisado no ventre?

É prática corrente na índia a repetição constante de "Ram, Ram" (Deus) como processo de salvação. Kabir revela a ineficácia de tal processo com uma simples comparação em dois versos:

Se, pela repetição do nome de Ram, o mundo fica salvo,nesse caso, repetindo a palavra "açúcar", a boca fica doce.

52. KABIR EMPREGA A LINGUAGEM do homem comum uma linguagem vernácula, simples, concisa e sem rodeios. As imagens e metáforas que vai buscar ao quotidiano do camponês fluem com um encanto e uma beleza que deslumbram o leitor. As suas figuras de estilo, simples e directas, são mais convincentes do que páginas e páginas de argumentação cerrada. E como na época encontramos, no vocabulário corrente do dia a dia, muitas palavras de origem árabe e turca, também nos poemas de Kabir tais palavras ocorrem com a frequência e a naturalidade de quem se dirige ao seu semelhante. Por vezes até, Kabir chega a empregar termos e frases inteiras que só o homem comum da região de Benarès era capaz de entender integralmente. Com efeito, Kabir não é propriamente um purista da linguagem; interessa-lhe acima de tudo levar a água ao seu moinho, sejam quais forem os caminhos e os meios ao alcance.

53. ANALFABETO COMO A MAIORIA, não escreveu uma

32. Escrituras hindus.

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única linha, apesar de ser autor de milhares de versos. Nunca levei a tinta ao papel! ele mesmo confessa. Todas as suas canções foram reduzidas a escrito pelos seguidores imediatos, algumas durante a sua vida, talvez a maioria um pouco mais tarde.

Kabir recorria à forma poética sempre que lhe era dirigida alguma questão sobre a espiritualidade. Este método era mais eficaz do que a simples explicação em prosa o ritmo, a clareza e a sobriedade da linguagem facilitam a memorização dos ensinamentos.

Mas ele não era propriamente um poeta no sentido que se vai vulgarizando entre nós. Não se lhe conhece uma intenção manifesta, nem tácita, de escrever poemas sobre isto ou aquilo. As suas com-posições são peças de ocasião, que surgem nos contextos do quotidiano real e nele se integram. Não se lhe conhece qualquer preocupação de seguir ou respeitar esta ou aquela técnica de composição poética. Inventava a sua própria métrica: uma variedade de metros que se adaptavam às circunstâncias de momento.

54. KABIR FOI PIONEIRO no emprego do Hindi, em vez do Sânscrito, para transmitir o conhecimento espiritual, o que lhe valeu, como a outros do seu tempo, uma oposição cerrada. Tal como na Europa medieval era o Latim a linguagem da igreja católica, dos serviços religiosos e dos livros espirituais, na Índia era o Sânscrito que desfrutava essa dignidade. E tal como a igreja protestante teve de travar a sua luta para introduzir na liturgia as línguas nacionais e regionais dos vários países, outrotanto sucedeu na Índia com os santos e reformadores religiosos. Mas também neste particular ocupa Kabir uma posição "sui generis"; não sendo nenhum anti-sanscritista, a não utilização do Sânscrito resulta para ele de uma consideração eminentemente pragmática, muito ao seu jeito de ir direito ao coração das coisas: é que as massas não sabiam Sânscrito, nem ele tão-pouco.

55. KABIR ABORDA OS SEUS TEMAS de uma forma directa e sem rodeios. Especulação e abstracções não passam, para ele, de um rematado disparate. Imaginaram alguns que ele teria sido um vedantista especializado nas filosofias hinduístas, ou um panteísta, ou

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um transcendentalista... ou que sofrera a influência dos místicos árabes e persas. O facto é que se manteve independente de todos eles, jamais lhe tendo passado pela cabeça "conciliar o misticismo pessoal e intenso do Islão com a teologia tradicional do Bramanismo". Não há em toda a sua poesia um só verso que nos deixe perceber uma intenção de conciliar hinduísmo e islamismo, seja qual for o sentido em que se entenderem estes termos (comum, social, político). Con-seguir um compromisso entre "a simplicidade da prática islâmica e as complicações do cerimonialismo bramanista" era algo que também não o preocupava minimamente. Como fantástico seria imaginar que ele teria sido influenciado no seu magistério pelo pensamento escrito de Jesus. Um santo pode citar qualquer outro santo, qualquer livro sagrado, para melhor transmitir a sua mensagem a quem o escuta, mas essa mensagem não tem de ser aprendida nos livros. Os santos ensinam o que eles próprios viram com a sua visão espiritual.

56. NÃO SENDO ESSENCIALMENTE UM POETA, também não era essencialmente um músico a forma poética dos seus ensinamentos era puramente circunstancial, e é duvidoso que alguma vez tenha cantado as suas canções. Por maior que seja a originalidade e a beleza dos seus poemas, musicados ou não pelos trovadores que se lhe seguiram, não podemos esquecer que tais poemas foram apenas e sempre um meio de alcançar um fim determinado: convencer os ouvintes a procurar um Mestre Perfeito que os encaminhe de regresso à morada do Pai Celestial.

O Senhor, Esse que nem o grande Brahma nem os suras,nem os munis e os deuses conseguiram encontrar,não obstante a sua busca exaustiva,esse está ao alcance dos vulgares mortaispela graça de um Mestre.Por isso diz Kabir: oh meu irmão ansioso!,pratica a devoção a um Mestre,que é o Senhor reencarnado.

Oh! Vinde comigo, é Kabir que vos diz, para aquela regiãoque está para além da velhice e da morte,

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que é a região onde o Senhor em pessoase ocupa de vós.

Nativo eu sou desse país maravilhosoem que tremula a bandeira do Senhor Todo-Poderoso,onde o sofrimento é desconhecidoe os dias todos cheios de paz e bem-aventurança.

Nativo eu sou desse país maravilhosoem que a bem-aventurança reina, eterna, pelos anos fora,e uma torrente de amor brota, inconsumível,do coração de lótus espiritual;onde jamais a luz perpétua projecta sombranem o deleite finda em desespero.

57. O FIM ESTAVA PRÓXIMO. Kabir envelhecera e esgotara-se numa vida inteiramente dedicada ao serviço do Senhor. Tinha desdenhado das práticas religiosas a que se entregavam classes sociais inteiras, grandes massas populacionais; tinha exposto ao ridículo a credulidade duma sociedade minada pelo charlatanismo religioso. Combatera ideias e concepções erróneas cujos defensores esperavam, desse modo, ganhar alívio na terra e bem-aventurança no além, mas que na realidade os sujeitavam, aqui, ao medo e à fraude, e no além, ao infortúnio e à miséria. E agora, ao aproximar-se a hora de deixar o mundo e regressar ao plano de beatitude que lhe pertencia, Kabir decidiu vibrar o seu último golpe na superstição, aproveitando a própria morte para abrir os olhos aos que persistiam na cegueira.

58. BENARÈS É UMA CIDADE SAGRADA. Diz-se que aqueles que lá se finam vão direitinhos para o céu. Mesmo que jamais, ao longo da vida toda, se tenham lembrado do Criador uma única vez; mesmo que tenham desperdiçado o tempo todo no vício e na degradação; mesmo que tenham maltratado ou torturado os próprios pais que lhes deram o ser; mesmo que tenham explorado os pobres, os inocentes, as viúvas, os órfãos; mesmo que tenham desencaminhado a juventude e cometido adultério... Mesmo assim, com esses pecados todos acumulados numa só vida, dizia-se que os portões do céu se abririam de par em par se o moribundo tivesse a sorte de chegar a

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Benarès e morrer aí. Este era um aspecto importante da crendice popular daqueles tempos. Kabir contava com isso.

59. POR OUTRO LADO, e em manifesta oposição, diz-se que, mesmo que se leve uma vida disciplinada e virtuosa; mesmo que se tenha um carácter nobre e compassivo; mesmo que a castidade seja palavra de ordem e a honestidade princípio intocável; mesmo que o coração se compadeça ante a visão da miséria de viúvas e órfãos; mesmo que a pessoa se negue a si própria por amor do semelhante; mesmo que se defendam incondicionalmente os fracos e oprimidos contra as injustiças e prepotências do mundo; mesmo que se passe a vida toda em busca do Senhor e se chegue aos pés de um verdadeiro santo; mesmo que pasme-se! já se seja um santo em carne e osso... mesmo assim, a pessoa tem de renascer novamente, e com o corpo de um burro!, se tiver o azar de deixar o corpo numa al-deiazinha chamada Maghar, a 240 km de Benarès.

Que isto não faça qualquer sentido, não custa muito a perceber. Mas naquele tempo não era bem assim, e o facto é que milhões e milhões de pessoas acreditavam piamente neste monstruoso disparate. E Kabir também contava com isso.

60. SABENDO APROXIMAR-SE O FIM, Kabir pegou nos seus magros pertences e partiu para o último lugar do mundo que um grande santo deveria escolher como derradeira morada do corpo: Maghar, nem mais, nem menos!

Todos aqueles que o rodeavam, amigos e familiares, discípulos e admiradores, as multidões que costumavam juntar-se à sua volta para o ouvir denunciar o fanatismo e a superstição todos eles se levantaram unanimemente contra a decisão do Mestre. Aconselharam-no, advertiram-no, protestaram, choraram, arrepelaram os cabelos: como aceitar que o bem amado Instrutor das almas, no final duma existência exemplar, se deixasse "perverter" ao ponto de recorrer a um estratagema daquele calibre?

Verdadeiro escândalo, diríamos hoje...

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61. MAS COMO INTERPRETAR a reacção daquela gente? Será que o longo magistério do grande santo cerca de 50 anos não deixara na consciência dos seus seguidores mais que uma impressão ténue, sem consistência para resistir àquele "golpe"? Será que os seguidores de Kabir punham reservas nos seus ensinamentos? Será que os aceitavam apenas na parte que lhes convinha, fingindo aceitar o que, no fundo, lhes parecia tão chocante como inadmissível?

Podem ter pensado deste modo: afinal de contas, Kabir é um grande santo e os santos são criaturas estranhas. Têm opiniões desusadas, costumes singulares, comportamentos esquisitos... Mas há que tolerar tudo isso com um sorriso de benevolência, pois se trata de seres metade homem, metade Deus...

E poderão até ter ido mais longe nas suas conjecturas íntimas: se Kabir diz que as águas do Ganges já não são santas, ou que são tão santas como as águas de qualquer outro rio; se diz que Benarès é uma cidade tão sagrada como qualquer outra; que a circuncisão e as cerimónias do cordão, os sinais de casta, as cabeças rapadas, a adoração dos ídolos, não têm nenhuma relevância espiritual bom, devemos escutá-lo com o devido respeito, mas as suas opiniões podem ser sensatamente ignoradas... Afinal, Kabir não é um "homem prático" como nós, que temos de viver no mundo. E como gente prática que somos, temos de continuar a frequentar Benarès, a mergulhar no Ganges, a venerar os nossos velhos ídolos, a exercitar a nossa devoçãozinha saudável por aqueles mesmos deuses que Kabir denunciou toda a vida. Vendo bem as coisas, quem vai sofrer as consequências do abandono das velhas crenças seremos nós, eviden-temente, não Kabir. Portanto, deixemo-nos cá de inovações perigosas e continuemos, pacatamente, a trilhar o velho caminho que já conhecemos.

62. É POSSÍVEL QUE a maior parte daquela gente não tivesse entendido que Kabir não estava a expor meras opiniões ou pontos de vista, ou a propor novos dogmas e teorias. Assim, que ele revelava o que experimentara por si mesmo, o que vira com os próprios olhos devia ser, com efeito, convicção segura de muito poucos, tal como em

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nossos dias. Ontem como hoje, parece que as pessoas tinham o hábito de prestar tributo exterior aos santos, continuando entretanto a cultivar o seu apego às velhas ilusões e dogmas estafados.

Seja qual for o caso, é certo que Kabir discutiu o assunto com os seus discípulos mais chegados:

Diz, Senhor Rama, qual é agora a minha condição?O povo acha que fui pouco sensato em sair de Benarès.Toda a minha vida foi passada em Sivpuri (Benarès).Ao aproximar-se a morte ergui-me e vim para Maghar.

Se o duro de coração morrer em Benarès,não se salva do inferno.Se o santo de Hari morrer em Haramba,salva toda a parentela.Se Kabir deixar o corpo em Benarès,que obrigação tem ele para com Deus?Diz Kabir: escutai, gentes, que ninguém se iluda:que diferença há entre Benarès e a árida Maghar,se Deus estiver no coração?

63. E KABIR, MAIS UMA VEZ, enfrentou o risco e lá foi para Maghar. Lá viveu alguns dias num casebre de sadhu, e quando chegou a hora de deixar o corpo pediu aos discípulos que saíssem do quarto. Horas depois, quando voltaram, já ele "partira".

Nasceu então a dúvida: a quem competia cuidar do corpo? Os muçulmanos queriam enterrá-lo, os hindus insistiam em cremá-lo. E a disputa arrastou-se, até que alguém sugeriu que começassem por tirar o lençol que cobria o corpo do santo. Assim fizeram, e para espanto geral deparou-se-lhes um monte de flores; do corpo, porém, nem vestígios.

As flores foram então distribuídas igualmente por hindus e muçul-manos, que celebraram os ritos mortuários de acordo com a fé de cada um.

Assim passou um grande santo.

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64. OS SEUS ENSINAMENTOS relativos a todas as formas externas de devoção e a sua condenação frontal da credulidade foram tão racionais que permitem considerá-lo como um grande racionalista. Aliás, nesse como noutros pontos, Kabir não fez mais que reeditar o ensinamento de todos os Mestres Perfeitos. A sua personalidade peculiar agigantou-se na luta sem tréguas que moveu contra a irracionalidade e a estupidez, contra a condição daqueles que se comportam como cabeças de gado, seguindo cegamente os seus carrascos a caminho do matadouro.

É de salientar que, ao referir-se à sua experiência pessoal das regiões interiores, Kabir não pretende levar o ouvinte a acreditar incondicionalmente na sua palavra. Ele diz: Vai e vê por ti mesmo! no que revela uma afinidade perfeita com todos os outros Mestres que o antecederam e lhe sucederam. Eles não pedem ao discípulo mais fé, mais confiança, do que aquela que precisamos quando metemos uma carta no receptáculo do correio, ou quando depositamos dinheiro num banco, ou quando compramos uma passagem de avião ou de combóio. Nada neste mundo, aliás, se consegue sem uma dose mínima de fé. O estudante não aprende nada se não fizer fé no professor.

Quanto ao resto, os ensinamentos de Kabir seguem um padrão estritamente científico, com experiências levadas a cabo no laboratório do corpo sob a supervisão do próprio Mestre.

65. KABIR OFERECE UM EXEMPLO PESSOAL em tudo aquilo que exige dos discípulos. Embora fosse um Mestre Perfeito, tornou-se discípulo de um Guru; e pede-nos que façamos o mesmo. Nunca se entregou a práticas rituais, à idolatria, nunca se banhou nos rios sagrados (a não ser, porventura, por uma questão de higiene...) isto num ambiente generalizado de ortodoxia fanática. E recomenda igual procedimento. Tratou todas as raças, castas e confissões religiosas da mesma maneira, ignorando todas as diferenças; e pediu que procedêssemos do mesmo modo. Não reconheceu a autoridade dos Vedas, dos Shastras, dos Puranas, numa época em que ninguém ousava desafiar a autoridade desses livros; e pediu-nos essa mesma coragem. Procurou Deus no interior de si mesmo e encontrou-O e

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convida-nos a seguir o mesmo itinerário. Bem podemos dizer que o maior ensinamento de Kabir foi a vida que ele próprio levou.

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Nas páginas que seguem encontrará o leitor

uma pequena selecção de poemas de Kabir.

Entre os que tínhamos em mãos, foram estes

os que entendemos mais ajustados

à índole das notas antecedentes.

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Rio-me quando ouço dizerque o peixe morre de sedena água...Não vês que a realidadeestá na tua própria casae que vagueias pelo bosquede um lado para outrodesnorteado?A realidade é aqui!Vai para onde queiras...para Benarès ou Mathura...Mas enquanto a própria almanão descobriresser-te-á o mundo sempreirreal

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Kabir, procura a companhia dos Santos,que destrói as maleitas todas do espíritoe faz de ti, afinal, um ser divino.A companhia das gentes mundanas, ao contrário,não passa de maldição, causa de infortúnio sem fim.

Kabir, procura a companhia dos Santos,pois mesmo que tenhas de viver de pão seco,essa companhia é mais preciosa que tudo o mais.Só vem mal das companhias mundanas.Por isso, mesmo que à tua frente se estendam lautos

banquetes,vê se te afastas bem deles e nem sequer os provas.

Kabir, procura a companhia dos Santos.É como visitar uma loja de perfumes:mesmo que o dono não te dê perfume nenhum,é inevitável sentires a fragrânciaque enche a loja com o seu aroma encantador.

Kabir, procura a companhia dos Santos,que o tempo que passas com eles nunca é tempo

perdido.Como sabes, a árvore "nim" torna-se aromáticaquando cresce ao lado do sândalo fragrante.Assim acontece com a companhia de um Santo Perfeito:faz de ti igualmente um Santo.

Quando, por boa sorte, te é dado ver um Santo,esse momento é o maior, e por elenão é demais sacrificares a vida inteira;pois é o Santo que te dá a Verdade

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e pelo seu poder muda toda a tua vida,do pecado para a inocência,da demência para a Sabedoria verdadeira.

Foram dias perdidos, completamente,aqueles em que não tiveste a companhia dos Santos,pois sem o divino amor deles,a vida é tal qual a dos animais.E, mais ainda, o Senhor não se conquistasem o amor infindável dos Santos.

Uma vez te digo, e torno a repetir:casa em que não há devoção pelo Mestree onde os Santos jamais são convidados de honra,é casa em que a morte habita em sua tenda,embora pareça que as pessoas estão vivas.

Não procures a companhia dessa gente do mundo,que não tem devoção pelo Nome do Senhor;podem ser reis, ou príncipes, até imperadores,mas sem o Nome do Senhor estão arruinados.

Kabir, a mente é como uma ave amante da liberdade,que voa para onde lhe apraz.Come o fruto daqueles com quem faz o ninho:os males do mundo em companhia mundana,a beatitude do Senhor na companhia dos Santos.

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Diz Kabir, com toda a seriedade e sem rodeios:não te aproximes daquele que abandonouo caminho do "satsang" e de "bhajan"e segue agora os ínvios caminhos do mundo.

Diz Kabir, com toda a seriedade e sem rodeios:não regateies o amor àquele devoto abençoadoque segue o caminho do "satsang" e de "bhajan",dia e noite, sem uma única quebra.

Diz Kabir, com toda a seriedade e sem rodeios:contente serei se for o pó dos pés de lótusde alguém que passe o tempo todo, dia e noite,em "satsang" e em "bhajan" incessante,para quem esta seja a tarefa primordial.Que esse é um Santo, quanto a isso não há dúvida.

Aceita o meu conselho, imploro-te, diz Kabir,e dia e noite, de sol a sol,escuta o falar do Senhor e fala dEle com amor;e põe termo, resoluto, às tuas conversas de sexo e de bens mundanos.

Aceita o meu conselho, imploro-te, diz Kabir,não fales, não queiras ouvir falar de sexo,não queiras saber de histórias de bens mundanos,para não seres engolido no fogo das paixõese não esqueceres o Nome precioso do Senhor.

Deixa os tagarelas cavaquear do que lhes der gosto,ignora-os por completo; ao teu coraçãodá apenas ensinamentos ao serviço do Mestre;não respondas, imploro-te, à gente de espírito mundano,

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nem prestes atenção ao ladrar dos cães.

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O mundo vive na treva e não sabeque a dama de alta roda,enfeitada e cheia de véus,voltará como prostituta,se não der ouvidosàs instruções de um Mestre.É que o seu espírito,absorvido no sexo,só como prostituta poderá satisfazer-lheo lúbrico propósito,nascido do ócio.

Afirma Kabir o mundo ignora que um imperador poderoso que não tenha um Mestrevoltará como burro,e toda a vida há-de transportaros carregamentos de barro do oleiro.Mas depois das tarefas do dianão há-de ter para comernem uma mão-cheia de feno:é que ele vai ter de pagar o que comeu à conta do trabalho dos outros,e é como burro que melhor o pode fazer.

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Tão breve é esta vida aqui na terra,oh Kabir!mas quão elaborada a vossa preparação para ela!Toda a gente, desde o príncipe ao pedinte,arde em ânsiaspelo que vai ser no mundo.Como é estranho que ninguém pareça importar-secom o seu futuro,um futuro que é Vida Eterna!

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A morada do Senhor é num só lugar, o corpo,e tu procura-Lo em tantos outros lugares,em templos, livros, lugares santos...Como é que podes encontrá-Lo?Só O encontrarás, diz Kabir,quando buscares o Conhecedor do Segredo.Trouxe comigo o Conhecedor do Segredoe Ele revelou-me o Senhor num simples momento;o caminho que demoraria a percorrer um bilião de vidas,

percorri-o com o meu Mestre num segundo.Consoante a qualidade da água,tal é a qualidade do peixe;consoante a linhagem,assim o nível da inteligência;consoante a condição espiritual de um Mestre,tal é a condição espiritual do discípulo.Este corpo é um recipiente cheio de paixões venenosas;o Mestre é o reservatório de ambrósiaque neutraliza toda a casta de venenos.Assim, mesmo que tenhas de dar a própria cabeçapara chegares ao Mestre,o negócio é muito barato, muito; é, na verdade, uma pechincha.

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Inexplicável é o conhecimento nascido da realização.Será o mudo capaz de explicaro gosto do açúcar?A realização cerra os lábios do devoto.

Tal como só um mudo é capaz de entenderos gestos de outro mudo,também a beatitude da realizaçãosó pode ser entendida por quem alcançouo mesmo conhecimento.

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NOTAS

3. Homens santos de santidade questionável.

4. Pessoas que praticam o desapego mundano.

5. Certa classe de sadhus.

6. Adeptos do jainismo, uma das grandes correntes religiosas da Índia, actualmente em acentuado declínio.

7. A sua preocupação de não matar estende-se aos próprios germes aéreos que eventualmente absorvemos na respiração.

11. Intelectuais eruditos.

12. Celibatários por razões de carácter espiritual.

13. Santo e Mestre Espiritual Perfeito.

14. Yogui famoso que deixou o seu nome ligado à sistematização do Hatha-Yoga.

15. Mestre de Kabir.

17. Nome de Deus.

18. Herege.

19. Dignitário muçulmano.

20. Antiga tradição védica.

21. Escrituras sikhs.

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22. Loi significa cobertor.

23. "Deixaram-nos na penúria", queria ela dizer.

24. Devoto de Vishnu.

25. Pessoa que pratica o desapego.

26. A Ilusão.

27. Funcionários religiosos muçulmanos.

28. Homens santos.

29. Kabir joga aqui com o significado do próprio nome.

30. Deus.