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Silo - Mitos Raizes Universais

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Mitos Raízes Universais

 

 

 

Silo 

Mitos                             60

 

INTRODUÇÃO                             Há muito tempo existe o afã por definir o mito, a lenda e a fábula; por separar o conto e o relato pouco provável da descrição verdadeira. Foi realizado  um grande trabalho para demonstrar que os mitos são a roupagem simbólica de verdades fundamentais, ou melhor, transposições de forças cósmicas a seres com intenção. Foi dito que se trata de eumerismos nos que personagens vagamente históricos se elevam à categoria de heróis ou deuses. Chegou-se a teorizar para mostrar as realidades objetivas que contém na deformação da razão. Foi investigado para descobrir, nessas projeções, o conflito psicológico profundo. E, assim, essa enorme tarefa resultou útil porque nos ajudou a compreender, quase em laboratório, como os mitos novos lutam com os antigos para conquistar seu espaço. Não deve se entender isto que estamos dizendo como um sarcasmo no que rebaixamos as teorias ao nível de mito. Pelo contrário, quando as teorias se soltam do âmbito científico e começam a voar sem demonstração e,desse modo são tomadas como a própria verdade que se aceita sem crítica, é porque aquelas se instalaram ao nível de crença social e cobraram a força plástica da imagem tão importante como referência e tão decisiva para orientar condutas. E nesta nova imagem que se irrompe podemos ver os avatares de antigos mitos remoçados pela modificação da paisagem, não somente geográfica, senão social, à qual se deve dar resposta por exigência dos tempos.

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              O sistema de tensões vitais ao que está submetido um povo se traduz como imagem, mas isto não basta para explicá-lo inteiramente, a menos que se pense em termos de linha simples e resposta. É necessário compreender que em toda cultura, grupo e indivíduo, existe uma memória, uma acumulação histórica em base à qual se interpreta o mundo em que se vive. Essa interpretação é o que configura para nós a paisagem que, percebida como externa, está presa pelas tensões vitais que ocorrem nesse momento histórico ou que ocorreram há muito tempo e que, residualmente, formam parte do esquema interpretativo da realidade presente. Quando descobrimos as tensões históricas básicas de um determinado povo nos aproximamos da compreensão de seus ideais, apreensões e esperanças que não estão em seus horizontes como frias idéias senão como imagens dinâmicas que empurram condutas em uma ou outra direção. E, desde já, determinadas idéias serão aceitas com maior facilidade que outras na medida em que se relacionem mais estreitamente com a paisagem em questão. Essas idéias serão experimentadas com todo o sabor de compromisso e verdade que têm o amor e o ódio, porque seu registro interno é indubitável para quem o padece mesmo quando não esteja objetivamente justificado.               Exemplificando. Os temores de alguns povos se traduziram em imagens de um futuro mítico em que tudo vai se acabar: cairão os deuses, os céus, o arco-íris e as construções; o ar se tornará irrespirável e as águas poluídas; a grande árvore do mundo, responsável pelo equilíbrio universal morrerá e com ela os animais e os seres humanos. Em momentos críticos, esses povos traduziram suas tensões por meio de inquietantes imagens de contaminação e solapamento. Mas isso mesmo os impulsionou em seus melhores momentos a ‘construir’ com solidez em numerosos campos. Outros povos se formaram no penoso registro da exclusão e do abandono de paraísos perdidos, mas isto também os empurrou a melhorar e a se conhecer incansavelmente para chegar ao centro do saber. Alguns povos parecem marcados pela culpa de terem matado seus deuses e outros se sentem afetados por uma visão polifacética e mutante, mas isto levou uns a se redimirem pela ação e a outros à busca reflexiva de uma verdade permanente e transcendente. Com isto não estamos querendo transmitir estereotipias —porque estas observações fragmentárias não explicam a extraordinária riqueza do comportamento humano, queremos ampliar mais a visão que habitualmente se tem dos mitos e da função psicossocial que cumprem.               Mas hoje estão desaparecendo as culturas isoladas e, portanto, seus patrimônios míticos. Percebem-se modificações profundas nos membros de todas as comunidades da terra que recebem o impacto não somente da informação e da tecnologia, senão também de usos, costumes, valores, imagens e condutas sem importar muito o local de origem. A este fluxo não poderão subtrair-se as angústias, as esperanças e as propostas de solução que tomando expressão em teoria ou fórmulas mais ou menos científicas, levam em seu seio mitos antigos e desconhecidos para o cidadão do mundo atual.               Aproximar-se dos grandes mitos foi, para nós, reavaliar os povos desde um ponto de vista um tanto especial, desde a ótica da compreensão de suas crenças básicas. Não tocamos neste trabalho nos belos contos e lendas que descrevem os afãs dos semideuses e dos mortais extraordinários. Nos circunscrevemos aos mitos nos quais o núcleo é ocupado pelos deuses ainda que a humanidade desempenhe nesta trama um papel importante. No possível, não misturamos questões de culto, considerando que já se deixou de confundir a religião prática e cotidiana com as imagens plásticas da mitologia poética. Por outra parte, procuramos tomar como referência os textos originais de cada mitologia, pretensão que nos acarretou numerosos problemas. Com isso, e a modo de menção, digamos que a riqueza mitológica das civilizações Cretense e Micênica foram reduzida em um genérico capítulo de “Mitos greco-romanos” precisamente por não podermos contar com textos originais daquelas culturas. Outro tanto aconteceu com os mitos africanos, oceânicos e, de algum modo, americanos. De todas as maneiras, os avanços que estão realizando antropólogos e especialistas em mitos comparados nos faz pensar em um futuro trabalho que tenha por base seus descobrimentos.               O título deste livro, ‘Mitos Raízes Universais’, exige algumas aclarações. Consideramos ‘raiz’ a todo o mito que, passado de povo a povo, conservou uma certa perdularidade em seu argumento central, ainda quando se tenham produzido modificações através do tempo nos nomes

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dos personagens considerados, em seus atributos e na paisagem em que se insere a ação. O argumento central, aquele que designamos como ‘núcleo de ideação’, também experimenta mudanças, mas numa velocidade relativamente mais lenta que a dos elementos que podemos tomar como acessórios. Desta maneira, ao não ter em conta a variação do sistema de representação secundário, tampouco convertemos em decisiva a localização do mito no momento preciso em que este surgiu. Uma pretensão oposta à mencionada não poderia ser sustentada já que a origem do mito não pode filiar-se a um momento exato. Em todo caso, são os documentos e os distintos vestígios históricos que dão conta da existência do mito e que se encaixam dentro de um calendário mais ou menos preciso.               Por outra parte, a construção do mito não parece responder a um só autor, senão a sucessivas gerações de autores e de comentaristas que vão se baseando em um material por demais instável e dinâmico. As descobertas que atualmente são acrescentadas pela arqueologia, pela antropologia e pela filosofia  —atuando como auxiliares da mitologia comparada— nos mostram que certos mitos, que considerávamos como originários de uma certa cultura, na realidade pertencem a culturas anteriores ou a culturas contemporâneas àquela recebendo assim suas influências.               De acordo ao comentado, não colocamos interesse especial em precisar os mitos em ordem cronológica e sim em relação à importância que parecem ter adquirido em uma cultura determinada, ainda quando esta seja posterior a outra, na qual o mesmo núcleo de idéias já estava atuando. Fica claro, por outra parte, que o presente trabalho não pretende ser nem uma recompilação, nem uma comparação, nem uma classificação com base nas categorias prefixadas, senão uma colocação em evidência de núcleos de idéias perdulares e atuantes em distintas latitudes e momentos históricos. A isto se poderá objetar que a transformação dos contextos culturais faz variar também as expressões e os significados que se dão em seu seio. Mas precisamente por isso é que pegamos mitos que cobraram maior importância em uma cultura e momento, ainda que tenham existido em outras oportunidades mas sem cumprir com uma função psicossocial relevante.               Quanto a certos mitos que, aparecendo em pontos aparentemente desconectados guardam entre si importantes similaridades, se terá que revisar a fundo se tal desconexão histórica efetivamente ocorreu. Neste campo, os avanços são muito rápidos e hoje ninguém pode afirmar que, por exemplo, as culturas da América são totalmente alheias às da Ásia. Poderá se dizer que quando ocorreram as migrações através do estreito de Bering, há mais de vinte mil anos, os povos da Ásia não contavam com mitos desenvolvidos e que estes somente tomaram caráter quando as tribos se assentaram. Mas, em todo caso, a situação pré-mítica foi parecida nos povos que estamos mencionando e lá talvez se encontrem pautas que mesmo se desenvolvendo separadamente em suas diversas situações culturais tenham mantido alguns padrões comuns. Seja como for, esta discussão não está terminada e é prematuro aderir a qualquer uma das hipóteses hoje em confronto. No que se refere a nós pouco importa a originalidade do mito e sim, como observamos mais acima, a importância que este tem em uma determinada cultura.               Colocamos em letra diferente o texto original do texto de nossa autoria para que possa ser apreciado em toda sua riqueza. Em qualquer obra de reconstrução histórica (e esta, de algum modo é), se distingue claramente o original do agregado posteriormente e acreditamos que o expediente da letra ressaltada cumpre perfeitamente com esta função. Enquanto que em nosso texto se trata de conservar um certo estilo comum com o original, em nada perturba a obra, ou melhor, acreditamos que facilita sua compreensão. A citação de fontes consultadas e as notas que acompanham o texto servem à mesma idéia.                             Mendoza (Argentina) 17/12/90                              Este é o rapto daqueles seres não compreendidos em sua natureza íntima, grandes poderes que fizeram todo o conhecido e o ainda desconhecido.

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              Esta é a rapsódia da natureza externa dos deuses, da ação vista e cantada por humanos que puderam se situar no mirante do luminoso.

              Isto é o que apareceu como sinal fixado em tempo eterno capaz de alterar a ordem e as leis e a pobre candura (CORDURA). Aquilo que os mortais desejaram que os deuses fizessem; aquilo que os deuses falaram através dos homens.

 

I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS              

Gilgamesh (Poema do senhor de Kullab)              

              Gilgamesh e a criação de seu duplo.                             Aquele que tudo soube e que entendeu profundamente coisas. Aquele que tudo viu e que tudo ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi tua glória. Grande é tua glória divino Gilgamesh !               Ele construiu os muros de Uruk. Empreendeu uma grande viagem e soube tudo o que ocorreu antes do Diluvio. Ao regressar gravou todas as suas proezas em um papiro. Porque os grandes deuses o criaram, dois terços de seu corpo são de deus e um terço de homem.               Depois de ter lutado contra todos os países, regressou a Uruk, sua pátria. Mas os homens murmuraram com ódio porque Gilgamesh tomava o melhor da juventude para suas façanhas e governava ferreamente. Por isso, as pessoas foram levar suas queixas aos deuses e os deuses a Anu. Anu elevou o reclamo a Aruru e disse estas palavras: 1 “Tu Aruru, que criastes a humanidade, cria agora uma cópia de Gilgamesh: este homem em seu devido tempo o encontrará e enquanto lutem entre si Uruk viverá em paz”. A deusa Aruru, ao escutar este rogo, imaginou em si mesma uma imagem do deus Anu, umedeceu suas mãos, amassou um bloco de argila, modelou seus contornos e formou o valente Enkidu, o herói augusto, o campeão do deus Ninurta. Todo o seu corpo é veludo, seus cabelos estão penteados como os de uma mulher, são espessos como a trigo dos campos. 2 Está vestido como o deus Sumuqan e nada sabe dos homens nem das terras. Como as gazelas se nutrem de ervas, como o gado bebe água nas fontes. Sim, ele gosta de beber com os rebanhos.”               Com o tempo, um caçador encontrou a Enkidu e seu rosto se contraiu de temor. Se dirigiu a seu pai e lhe contou as proezas que viu este homem selvagem realizar. O velho, então, enviou seu filho a Uruk para pedir ajuda a Gilgamesh.               Quando Gilgamesh escutou a história da boca do caçador, recomendou a este que buscasse uma bela servente do templo, uma filha da alegria, e levando-a com ele, a colocasse ao alcance do intruso. “Deste modo, quando ele vir a moça, ficara aprisionado dela e esquecerá seus animais e seus animais não o reconhecerão’. Assim que o rei falou, o caçador procedeu segundo as indicações chegando em três dias ao lugar do encontro. Passaram um dia e mais outro até que os animais chegaram à fonte para beber água. Atrás deles apareceu o intruso que viu a servente sentada. Mas, quando esta se levantou e foi rápido até ele, Enkidu ficou encantado por sua beleza. Sete dias esteve com ela, até que decidiu ir com seu gado porém as gazelas e o rebanho do deserto se separaram dele. Enkidu não pode correr, mas sua inteligência se abriu, pensamentos de homem pesaram em seu coração.               Voltou a sentar-se ao lado da mulher e esta lhe disse: ‘Por que vives com o gado como um selvagem? Vem, te guiarei a Uruk ao santuário de Anu e a deusa Ishtar, até Gilgamesh a quem ninguém vence’. Disto Enkidu gostou porque seu coração procurava um amigo e por isso deixou que a jovem o guiasse até os férteis pastos onde se encontram os estábulos e os pastores. Mas o leite das bestas selvagens ele o mamava e eis que aqui que lhe oferecem pão e vinho. Despedaçou o pão, o olhou, o examinou, mas Enkidu não soube o que fazer com ele... A escrava sagrada tomou as palavra e disse a Enkidu: ‘Come pão, oh, Enkidu !, é fonte de vida; bebe o vinho, é o costume do

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país’. Então, Enkidu comeu o pão, comeu até saciar-se, bebeu o vinho, bebeu sete vezes... Um barbeiro raspou os pelos de seu corpo e Enkidu se untou com óleos, como fazem os homens, e vestiu roupas de homem e se mostrou como um jovem esposo. Tomou sua arma, atacou os leões e assim permitiu que os pastores repousassem à noite. Mas um homem chegou até Enkidu, abriu a boca e disse: ‘... Para Gilgamesh, rei de Uruk a bem cercada, se arrastam as pessoas ao cultivo ! As mulheres impostas pela sorte o homem fecunda, e depois, a morte! Por vontade dos deuses tal é o decreto: desde o seio materno à morte é nosso destino”. Enkidu enfurecido prometeu mudar a ordem das coisas.               Mas como Gilgamesh havia visto em sonhos o selvagem e havia compreendido que em combate haveriam de se entender, quando seu oponente lhe interrompeu o passo, este se jogou com a força do touro bravo. As pessoas se aglutinaram contemplando a feroz luta e celebraram como Enkidu se aparentava com o rei. Ante a casa da Assembléia lutaram. As portas converteram em farpas e demoliram os muros, e quando o rei logrou arrochar Enkidu ao solo este se apaziguou abalando  Gilgamesh. Por isto, ambos se abraçaram selando sua amizade.              

              O bosque dos cedros.               Gilgamesh teve um sonho e Enkidu disse: “Este é o significado de teu sonho. O pai dos deuses te deu o cetro, tal é teu destino, mas não a imortalidade. Te deu poder para submeter e para liderar... não abuses deste poder. Sê justo com teus servidores, sê justo ante Samash’. O rei Gilgamesh pensou então no país da vida, o rei Gilgamesh recordou o bosque dos Cedros. E disse a Enkidu: ‘Não gravei meu nome nas estrelas, como meu destino decreta, irei portando ao país onde se corta o cedro, me farei um nome lá onde estão escritos os de homens gloriosos”.               Enkidu entristeceu porque ele, como filho da montanha, conhecia os caminhos que levavam ao bosque. Pensou: “Dez mil léguas há desde o centro do bosque em qualquer direção de sua entrada. No coração vive Jumbaba (Cujo nome significa ‘Enormidade’). Ele sopra o vento de fogo e seu grito é a tempestade’. Mas Gilgamesh havia decidido ir ao bosque para acabar com o mal do mundo, o mal de Jumbaba. E, decidido como estava, Enkidu se preparou para guiá-lo, não sem antes explicar os perigos. “Um grande guerreiro que nunca dorme - disse - , guarda as entradas. Só os deuses são imortais e o homem não pode lograr a imortalidade, não pode lutar contra Jumbaba”.               Gilgamesh se encomendou a Samash, ao deus-sol. A ele pediu ajuda na empreitada. E Gilgamesh recordou os corpos dos homens que havia visto flutuar no rio ao olhar dos muros de Uruk. Os corpos de inimigos e amigos, de conhecidos e desconhecidos. Então intuiu seu próprio fim e levando ao templos dos cabritos, um branco sem mancha e outro marronzinho, disse à Samash: “Na cidade o homem morre, oprimido o coração o homem morre, não pode albergar esperança em seu coração... Ai ! largas jornadas levam até a mansão de Jumbaba. Se esta empreitada não pode ser levada até o fim por que, oh Samash, encheste meu coração com o impaciente desejo de realizá-la ?” ... e Samash aceitou a oferenda de suas lágrimas. Samash, o compassivo, lhe concedeu sua graça. Celebrou para Gilgamesh fortes alianças com todos os filhos da mesma mãe, que reuniu nas cavernas da montanha.               E logo os amigos deram ordens aos artesãos para que forjassem suas armas e os mestres trouxeram os dardos e as espadas, os arcos e os machados. As armas de cada um, pesavam dez vezes trinta shekels e a armadura outros noventa. Mas os heróis partiram e, em um dia caminharam cinqüenta léguas. Em três dias caminharam tanto quanto fazem os viajantes em um mês e três semanas. Ainda antes de chegarem a porta do bosque tiveram que cruzar sete montanhas. Feito o caminho, ali a encontraram, de setenta cotovelos de altura e quarenta e dois de largura. Assim era a deslumbrante porta que não destruíram por sua beleza. Foi Enkidu quem avançou empurrando sozinho com suas mãos até abri-la de par em par. Logo desceram para chegar até o pé da verde montanha.               Imóveis contemplaram a montanha de cedros, mansão dos deuses. Ali os arbustos cobriam a ladeira. Quarenta horas se extasiaram olhando o bosque e vendo o magnífico caminho, o que Jumbaba percorria para chegar a sua morada...

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              Entardeceu e Gilgamesh cavou um poço. Espalhando farinha pediu sonhos benéficos a montanha. Sentado sobre seus calcanhares, a cabeça sobre seus joelhos, Gilgamesh sonhou e Enkidu interpretou os sonhos auspiciosos. Na noite seguinte, Gilgamesh pediu sonhos favoráveis para Enkidu, mas os sonhos que teve na montanha foram omissos. Depois Gilgamesh não despertou e Enkidu com esforço conseguiu colocá-lo em pé. Coberto com suas armaduras cavalgaram a terra como se levassem leves vestimentas. Chegaram até o imenso cedro e, então, as mãos de Gilgamesh segurando o machado o derrubaram ! De longe Jumbaba os viu e gritou enfurecido: “Quem é este que violou meu bosque e cortou meu cedro?” . Gilgamesh respondeu: “Não voltarei à cidade não, não deixarei o caminho que me trouxe ao país da vida sem combater com este homem, se pertence a raça humana, sem combater com este deus, se é um deus... A barca da morte não navegará para mim, não há no mundo tecido do qual cortar um sudário para mim, nem meu povo conhecerá a desolação, nem meu lar verá arder a pira fúnebre, nem o fogo queimará minha casa”.               Jumbaba saiu de sua mansão e cravou o olho da morte em Gilgamesh. Mas o deus-sol Samash, levantou conta Jumbaba terríveis furacões: o ciclone, a turbulência . Os oito ventos tempestuosos se arrocharam contra Jumbaba de maneira que este não pode avançar nem retroceder enquanto Gilgamesh e Enkidu cortavam os cedros para entrar em seus domínios. Por isso, Jumbaba apresentou-se manso e temeroso ante os heróis. Ele prometeu as melhores honras e Gilgamesh estava por concordar em abandonar suas armas quando Enkidu interrompeu: ‘Não lhe dê ouvidos! Não, meu amigo, o mal fala por sua boca. Deve morrer nas nossas mãos. E graças a advertência de seu amigo, Gilgamesh se recobrou. Tomando o machado e desembainhando. a espada feriu Jumbaba no pescoço, enquanto Enkidu fazia outro tanto, até que na terceira vez Jumbaba caiu e morto ficou. Silencioso e morto. Então lhe separaram a cabeça do pescoço e neste instante se desatou o caos porque aquele que jazia era guardião do Bosque dos Cedros. Enkidu talhou as árvores do bosque e arrancou as raízes até as margens do Eufrates E, depois, colocando a cabeça do vencido em um sudário mostrou-a aos deuses. Quando Enlil, senhor da tormenta viu o corpo sem vida de Jumbaba, enfurecido retirou dos profanadores o poder e a glória que haviam sido deles, e os deu ao leão, ao bárbaro, ao deserto.               Gilgamesh lavou seu corpo e jogou longe suas vestes ensangüentada, vestindo outras sem mácula. Quando em sua cabeça brilhou a coroa real, a deusa Ishtar colocou nele seus olhos. Mas Gilgamesh a rechaçou porque ela havia perdido todos os seus esposos e os havia reduzido a servidão mais radical por meio do amor. Assim disse Gilgamesh: “És uma ruína que não dá ao homem qualquer abrigo contra o mau tempo, és uma porta traseira que não resiste a tempestade, és um palácio saqueado pelos heróis, és uma emboscada que dissimula suas armadilhas, és uma ferida inflamada que queima a quem a tem, és um pote cheio de água que inunda seu portador, és um pedaço de pedra branda que desmorona as muralhas, és um amuleto incapaz de proteger em país inimigo, és uma sandália que faz tropeçar a seu dono no caminho !”.              

              O Touro celeste, a morte de Enkidu e a descida aos infernos.

              Furiosa a princesa Ishtar se dirigiu a seu pai Anu e ameaçou romper as portas do inferno para fazer sair dele um exército de mortos mais numeroso que o dos vivos. Assim vociferou: ‘Se não atiras sobre Gilgamesh o Touro Celeste, eu farei isto’ Anu concordou com ela, a mudança da fertilidade dos campos por sete anos. E, de imediato criou o Touro Celeste que caiu sobre a terra. Na primeira investida, a besta matou trezentos homens. Na segunda outras centenas caíram. Na terceira carregou contra Enkidu mas este a reteve pelos cornos.               O Touro Celeste espumava pela boca e golpeava Enkidu furiosamente com seu rabo. Então Enkidu saltou sobre a besta e a derrubou quão larga era, retorcendo-lhe o rabo. E gritou: ‘Gilgamesh, meu amigo, prometemos deixar nomes duradouros. Crava-lhe agora tua espada entre a nuca e os cornos’. E Gilgamesh cravou sua espada entre a nuca e os cornos do Touro Celeste e o matou... Depois, arrancaram do Touro Celeste o coração, o oferendaram ao deus Samash... Então, a deusa Ishtar ascendeu a muralha de Uruk, a bem cercada, subiu ao mais alto da muralha e proferiu

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uma maldição: ‘Maldito seja Gilgamesh, pois me burlou matando o Touro Celeste!’ Olhou Enkidu estas palavras de Ishtar e arrancando as partes do Touro Celeste as atirou ao rosto.               Quando chegou o dia, Enkidu teve um sonho. Nele estavam os deuses reunidos em conselho: Anu, Enlil, Samash e Ea. Eles discutiram pela morte de Jumbaba e do Touro Celeste e decretaram que, dos dois amigos, Enkidu devia morrer. Logo, do sonho despertou e contou o visto. Voltou então a sonhar e isto é o que relatou:               ‘ A flauta e a harpa caíram na Grande mansão; Gilgamesh meteu sua mão nela, não pode alcança-las, meteu seu pé, não pode alcançá-las. Então Gilgamesh se sentou frente ao palácio dos deuses do mundo subterrâneo, derramou lágrimas e seu rosto ficou amarelo. Oh, minha flauta, oh, minha harpa! Minha flauta cujo poder era irresistível ! Minha flauta, quem as trará dos infernos ? Seu servidor Enkidu lhe disse: Meu senhor, por que choras ? Por que teu coração está triste ? Hoje irei buscar tua flauta nos infernos... Pode Enkidu voltar dos infernos!... (Então) o pai Ea se dirigiu ao valente herói Nergal: ‘Abre já o fosso que comunica com os infernos ! Que o espírito de Enkidu volte dos infernos e possa falar com seu irmão’... O espírito de Enkidu como um sopro saiu dos infernos e Gilgamesh e Enkidu falaram. - Diga-me meu amigo, diga-me meu amigo, diga-me a lei do mundo subterrâneo, tu a conheces... - Aquele que caiu na batalha, o vistes ? - O vi, seu pai e sua mãe lhe mantêm a cabeça alta e sua esposa o abraça. - Aquele cujo cadáver caiu abandonado no vale, o viste ? - O vi, seu espírito não tem descanso nos infernos. - Aquele cujo espírito não há ninguém que lhe faça uma oração, o tem visto ? - O vi, come os restos das panelas e os resíduos dos pratos que se tiram da rua’.(3)               Enkidu adoeceu e morreu. Gilgamesh disse então: ‘Sofrer. A vida não tem outro sentido que morrer ! Morrerei eu como Enkidu ? Hei de buscar a Utnapishtim a quem chamam ‘O longínquo’ para que explique como é que chegou a imortal. Primeiramente manifestou meu luto, logo vestirei a pele do leão e, invocando a Sin me porei a caminho’.               Gilgamesh havia percorrido todos os caminhos até chegar as montanhas, até as mesmas portas do sol. Ali se deteve frente aos homens escorpiões, os terríveis guardiães das portas do sol. Perguntou por Utnapishtim: ‘Desejo interrogá-lo sobre a morte e a vida’. Então os homems-escorpião trataram de dissuadi-lo da empreitada. ‘Ninguém que entre na montanha vê a luz’, disseram. Mas Gilgamesh pediu que lhe abrissem a porta da montanha e assim se fez por fim. Caminhando horas e horas duplas na profunda obscuridade viu à distância uma claridade a ao chegar a ela, saiu de frente ao Sol. E ali estava o jardim dos deuses. Seus olhos viram uma árvore e para ela se dirigiu: de seus ramos de lapislázuli, pendia como espesso fruto o rubi.               Vestido com a pele de leão e comendo carne de animais, Gilgamesh vagava pelo jardim sem saber em que direção ir, por isto, quando Samash o viu apiedado lhe disse: ‘Quando os deuses engendraram ao homem, reservaram para si a imortalidade. A vida que busca nunca a encontrarás’(4). Mas Gilgamesh chegou a praia, até o barqueiro de O Longínquo. Fatos além mar dividiram a terra, mas Utnapishtim que os viu chegar pediu explicações ao acompanhante de seu barqueiro. Gilgamesh deu seu nome e explicou o sentido da travessia.              

              O dilúvio universal.               E disse Utnapishtim: ‘ Te revelarei um grande segredo. Houve uma cidade antiga chamada Surupak, as margens do Eufrates. Era rica e soberana. Tudo ali se multiplicava, os bens e os seres humanos cresciam em abundância. Mas Enlil molestado pelo clamor, disse aos deuses que não era possível conciliar o sonho e exortou a por fim ao excesso desencadeando o dilúvio. Ea, então, em um sonho me revelou o desígnio de Enlil. ‘Abandona tua casa e salva tua vida, constrói uma barca que terá que ser telhada e de igual largura que comprimento. Logo, levarás a barca a semente de todo ser vivo. Se te perguntam por teu trabalho dirás que decidistes viver no golfo. Meus pequenos passavam graxa e os grandes faziam tudo o que era necessário. No quinto dia terminei a quilha e a armação. Em suas costelas com firmeza assegurei a entabladura. O piso, quatro vezes por dez áreas tinha por medida, cada lado do piso, formava um quadrado que media doze vezes dez cotovelos de comprimento, cada parede, desde o piso até o teto, media doze vezes dez cotovelos de altura. Abaixo ao teto, construi seis coberturas, com o piso, sete e dividi cada uma em nove partes com

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delgadas paredes... Trabalho cheio de dificuldades foi colocá-lo, pesado foi carregar os troncos de cima para baixo, até que rodando sobre eles, o barco estava submergido em seus dois terços. No sétimo dia o barco estava completo e carregado com todo o necessário. Minha família, parentes e artesãos carreguei na barca e logo fiz entrar aos animais domésticos e selvagens. Quando chegou a hora, esta tarde, Enlil enviou ao Cavaleiro da Tormenta. Entrei na barca e a fechei com graxa e asfalto e como tudo estava pronto dei o timão ao barqueiro Puzur-Amurri. Negral arrancou as comportas das águas inferiores e trovejando, os deuses, arrasaram campos e montanhas. Os juizes do inferno, os Anunnaki, lançaram suas teias e se fez da noite o dia. Dia após dia, aumentava a tempestade e parecia cobrar novo ímpeto de si mesma. Ao sétimo dia o dilúvio se deteve e o mar ficou calmo. Abri a escotilha e o sol me pegou em cheio. Em vão, procurei, tudo era mar. Chorei pelos homens e os seres vivos novamente convertidos em barro. Somente descobri uma montanha distante umas quatorze léguas. E lá, no monte Nisir, a barca se deteve. O monte Nisir a impediu de mover-se... Quando chegou o sétimo dia soltei uma pomba e a pomba se distanciou, mas regressou, como não havia lugar de repouso para ela, voltou. Então soltei uma andorinha, e a andorinha se distanciou mas regressou, como não havia lugar de repouso para ela, voltou. Então soltei um corvo, e o corvo se distanciou, viu que as águas haviam baixado, e comeu, revoou , grasnou e não regressou. Logo os deuses se reuniram em conselho e recriminaram a Enlil o castigo tão duro que havia dado as criaturas, assim é, que Enlil veio até a barca e fazendo ajoelhar a mim e a minha mulher , tocou nossas frentes ao tempo que dizia: ‘Nos tempos passados Utnapishtim era mortal, mas desde agora será um deus como nós e viverá longe, na boca dos rios, e sua mulher para sempre o acompanhará’. Enquanto a ti Gilgamesh, porque os deuses haviam de outorgar-se a imortalidade ?’.              

              O regresso.               Utnapishtim submeteu Gilgamesh a uma prova. Este devia tratar de não dormir durante seis dias e sete noites. Mas enquanto o herói se sentou sobre seus calcanhares uma neblina descontrolada da lã do sono caiu sobre ele. ‘Olha-o, olha quem busca a imortalidade !’, assim disse O Longínquo a sua mulher. Despertando, Gilgamesh se queixou amargamente pelo fracasso: ‘Onde irei ? A morte está em todos os meus caminhos’. Utnapishtim, contrariado, ordenou ao barqueiro que regressasse com o homem mas não sem piedade por ele decretou que suas vestimentas jamais envelheceram, assim novamente em sua pátria haveria de luzir esplêndido aos olhos mortais. Ao despedir-se O Longínquo sussurrou: ‘Há no fundo das águas uma planta, o lício espinhoso é similar pois fere como os espinhos de um roseiral, as mãos podes desgarrar: mas se tuas mãos se apoderam dela e a conservam, serás imortal !’.               Gilgamesh entrou nas águas atando a seus pés pesadas pedras. Se apoderou da planta e empreendeu o regresso enquanto disse a si mesmo: ‘Com ela darei de comer ao meu povo e eu também haverei de recuperar minha juventude’. Logo, caminhou horas e horas dentro da obscuridade da montanha até franquear a porta do mundo. Depois destes trabalhos viu uma fonte e se banhou, mas uma serpente saída das profundezas arrebatou a planta e submergiu-se fora do alcance de Gilgamesh.               Assim voltou o mortal com as mãos vazias, com o coração vazio. Assim voltou a Uruk a bem cercada.               O destino de Gilgamesh, que Enlil decretou, se cumpriu... Pan para Neti o guardião da Porta. Pan para Ningizzida o deus serpente, senhor da Arvore da Vida. Também para Dumuzi, o jovem pastor que a terra fertilizara.(5)               Aquele que tudo soube e que entendeu o fundo das coisas. Aquele que tudo o fez ver e tudo o ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi sua glória !               Ele, que construiu os muros de Uruk, que empreendeu uma grande viagem e que soube tudo o que ocorreu antes do Dilúvio, ao regressar gravou suas proezas em um rastro de estrela.  

 

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II.MITOS ASSÍRIO-BABILÔNICOS              

Enuma Elish (Poema da Criação) 1              

              O caos Original                Quando no alto o céu  nome não tinha e no baixo a terra não havia sido mencionada, do Abismo e da Impetuosidade  misturaram-se as águas . Nem os deuses, nem os mangues, nem os juncais existiam. Nesse caos foram engendradas duas serpentes que por muito tempo cresceram de tamanho dando lugar aos horizontes marinhos e terrestres. Elas separaram os espaços, elas foram os limites do céu e da terra. Desses limites nasceram os grandes deuses que foram se agrupando em distintas partes do que era o mundo. E estas divindades continuaram engendrando e perturbando, assim, os grandes formadores do caos original.               Então, o abismal Apsu se dirigiu a sua esposa Tiamat, mãe das águas oceânicas e lhe disse: “O comportamento dos deuses é insuportável, seu folguedo  não me deixa dormir, eles se alvoroçam  por conta própria sendo que nós não lhes marcamos nenhum destino”.               

              Os deuses e Marduk                Assim falou Apsu a Tiamat, a resplandecente. De tal modo isto foi dito que Tiamat, enfurecida, pôs-se a gritar: “Vamos destruir esses revoltosos, assim poderemos dormir”. E ela estava nervosa e se agitava em voz alta. Foi desse modo que um dos deuses, Ea, compreendendo o desígnio destrutivo estendeu sobre as águas um encantamento. E com ele deixou profundamente adormecido Apsu (este era seu desejo), prendendo-o com correntes. E, finalmente, o matou: desmembrou seu corpo e sobre ele estabeleceu sua moradia. Ali viveu Ea com sua esposa Damkina até que dessa união nasceu Marduk.               O coração de Ea exultou ao ver a perfeição de seu filho, coroada por sua dupla cabeça divina. A voz da criança ardia em labaredas enquanto seus quatro olhos e seus quatro ouvidos esquadrinhavam todas as coisas. Seu corpo enorme e seus membros incompreensíveis eram banhados por um fulgor que ficava extremamente forte quando os relâmpagos se juntavam sobre ele.               

              A guerra dos deuses                Enquanto Marduk crescia e ordenava o mundo, alguns deuses se aproximaram de Tiamat para recriminá-la pela sua falta de mérito, dizendo-lhe: “Mataram teu consorte e ficaste calada e agora tampouco nós podemos descansar. Tu te converterás em nossa força vingadora e nós caminharemos ao seu lado e iremos para o  combate”. Assim grunhiam e se amontoavam ao redor de Tiamat até que ela, matutando sem parar, afinal decidiu moldar armas para seus deuses. Irada, criou os monstros-serpentes de garras venenosas, os monstros-tempestade, os homens-escorpiões, os leões-demônios, os centauros e os dragões voadores. Onze monstros insuperáveis criou Tiamat e depois, dentre seus deuses, promoveu Qingu e o designou chefe de seu exército. 2               Ela exaltou Qingu e o constitui chefe deles para que ele fosse primeiro adiante de seu exército, para dirigir a tropa, para levar as armas e desencadear o ataque levando a direção suprema no combate. Ela confiou em suas mãos dele quando o fez sentar na assembléia: “Eu pronunciei o juramento em teu favor, te exaltando na assembléia dos deuses e te dei todo o poder para dirigir todos os deuses. Tu és magnífico, meu único esposo és tu! Que os Anunnaki exaltem teu nome acima de todos eles!”

Ela lhe deu as Tábuas do Destino, e colocou-as a seus pés: E quanto a ti, teu mandato não mudará, as palavras da tua boca permanecerão!” 3

              Mas Ea, ao conhecer novamente os perversos desígnios, procurou a ajuda dos outros deuses e proclamou: “Tiamat, nossa criadora, nos aborrece. Colocou do seu lado, e contra nós, os terríveis Anunnaki. Está confrontando a metade dos deuses com a outra metade, como poderemos

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fazê-la desistir? Peço que os Igigi se reunam em conselho e deliberem”. E, desse modo, as várias gerações de Igigi se reuniram mas ninguém pôde resolver a questão. Com o passar do tempo, e nem emissários nem valentes puderam mudar os desígnios de Tiamat, o ancião Anshar se levantou pedindo por Marduk. Então Ea foi a seu filho e rogou-lhe que ajudasse os deuses. Mas Marduk respondeu que, em tal situação, tinha de ser elevado a chefe. Marduk falou isso e foi até o conselho. (Os deuses)...comeram pão festivo e beberam vinho; encheram seus copos com o doce licor. Quando tomaram a forte bebida seus corpos se empanturraram; começaram a gritar quando seus corações se exaltaram e a Marduk, o seu vingador, outorgaram o destino.

Preparam para ele um trono principesco; na presença de seus pais, sentou-se para presidir...

“...Oh, Marduk, tu és realmente nosso vingador! A soberania sobre todo o universo te outorgamos. Quando sentares na assembléia tua palavra será suprema. Tuas armas não fracassarão; esmagará teus inimigos! Oh senhor, protege a vida dos que confiam em ti; mas deite fora a vida do deus que concebeu o mal!”

Colocaram no meio deles uma veste e se dirigiram a Marduk, o preferido deles: “Senhor, teu destino é o primeiro entre os deuses! Decida arruinar ou criar, diga uma palavra e assim será: abra a boca e a veste desaparecerá, abra de novo e a veste voltará intacta!” (com efeito), falou e a veste desapareceu, falou de novo e a veste restaurada ficou. Quando os deuses, seus pais, viram a eficácia da sua palavra se alegraram e renderam-lhe homenagens: “Marduk é rei!”. Entregaram-lhe o cetro, o trono e a flecha; e deram-lhe a arma sem igual que expulsa os inimigos: “Vai e tira a vida de Tiamat. Que os ventos levem o sangue dela a lugares secretos!” 4

O senhor fez um arco e o pendurou do lado de seu coldre. Fez uma rede para apanhar Tiamat. Levantou a maça e colocou na sua frente o relâmpago, ao mesmo tempo em que seu corpo encheu-se de fogo. Depois deteve os ventos para que nada de Tiamat pudesse escapar, mas criou os furacões e fez a tormenta diluvial surgir enquanto subiu no carro-tempestade. Nele ungiu a quadriga de nomes terríficos e como o raio foi de encontro a  Tiamat. Este sustinha em sua mão uma planta que jorrava veneno, mas o Senhor se aproximou para esquadrinhar o seu interior e captar as intenções dos Anunnaki e de Qingu. 5

-Será que és tão importante para que te eleves acima de mim como supremo deus? -Berrou raivosa Tiamat.

-Tu te exaltaste grandemente e elevaste Qingu como poder ilegítimo. Tu odeias teus filhos e queres o mal a eles. Agora levante-se e vamos ao combate! -Respondeu Marduk, ao mesmo tempo que os deuses afiavam suas armas.

Tiamat exorcizou e recitou suas fórmulas e os deuses saíram para a batalha. Então, o Senhor jogou sua rede e a terrível Tiamat abriu sua enorme boca. Neste momento, ele soltou os furacões que penetraram nela e lançou a flecha que atravessou seu ventre. Depois se encarregou de suas obscuras entranhas até deixá-la sem vida. O horrível exército debandou e na confusão as afiadas armas foram destroçadas. Presos na rede, os prisioneiro foram arrojados às cavernas dos espaços subterrâneos. O soberbo Qingu foi despojado das Tábuas do Destino, que não lhe pertenciam, e encarcerado junto com os Anunnaki. Assim, as onze criaturas que Tiamat havia criado, foram convertidas em estátuas para que nunca fosse esquecido o triunfo de Marduk.  

              A criação do mundo Após reforçar a prisão de seus inimigos e de selar e colocar em seu peito as Tábuas do Destino, o Senhor voltou ao corpo de Tiamat. Sem piedade esmagou seu crânio com a maça, separou os condutos de seu sangue, que o furacão levou a regiões secretas e, ao ver a carne monstruosa concebeu idéias artísticas. Por isso cortou ao longo do cadáver como se ele fosse um peixe, levantando uma de suas partes até o alto do céu. Prendeu-a lá e colocou um guardião para que impedisse a saída das águas. Depois, atravessando os espaços, inspecionou as regiões e medindo o abismo estabeleceu sua moradia nele. Assim criou o céu e a terra e estabeleceu seus limites. Então, construiu casas para os deuses iluminando-as com estrelas.

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Depois de criar o ano, determinou que nele houvesse doze meses por meio das figuras 6. A estas dividiu até definir os dias. Nos lados reforçou os ferrolhos da esquerda e da direita, colocando entre ambos a zênite. Destacou para Samash 7 a divisão do dia e da noite e colocou a brilhante estrela de seu arco 8 à vista de todos. Encarregou Nebiru 9 da divisão das duas seções celeste ao norte e ao sul. Em meio a escuridão encarregou Sin de iluminar, ordenando os dias e as noites.

“Para cada mês, sem cessar, darás a forma de uma coroa. No início do mês, para brilhar sobre o país, tu mostrarás os cornos para determinar seis dias; no sétimo dia serás meia coroa. No dia quatorze colocar-te-ás de frente ao sol. No meio do mês, quando o sol te alcançar na base dos céus, diminui tua coroa e faça minguar a luz. E, quando desapareceres, aproxima-te do curso do sol. No dia vinte e nove tu te colocarás novamente em oposição ao sol”. 10

Depois, voltando à Tiamat, pegou sua saliva e com ela formou as nuvens. Com sua cabeça produziu os montes e de seus olhos fez fluir  o Tigre e o Eufrates. E, finalmente, de suas tetas criou as grandes montanhas e perfurou os mananciais para que os poços dessem água.

Por fim, Marduk solidificou o solo levantando sua luxuosa morada e seu templo, oferecendo-os aos deuses para que lá se alojassem quando participassem das assembléias nas que deviam determinar os destinos do mundo. Conseqüentemente, a estas construções chamou “Babilônia”, que significa a casa dos grandes deuses”. 11  

              A criação do ser humano. Ao finalizar sua obra, o Senhor foi exaltado pelos deuses e, então, como reconhecimento a eles, disse: “Vou amassar meu sangue e formar ossos. Vou fazer com que surja um homem...que se encarregue do culto dos deuses para que possam se satisfazer! Eu astutamente modificarei os caminhos dos deuses. Ainda que sejam igualmente reverenciados, se dividirão em dois grupos”. 12

Ea lhe respondeu, dirigindo-lhe uma palavra para contar-lhe um plano que aliviaria os deuses: “que um de seus irmãos seja entregue; somente ele perecerá para que a humanidade possa ser modelada. Que os grandes deuses estejam aqui na assembléia; que o culpado seja entregado para que eles possam permanecer”. 13

Marduk fez com que os prisioneiros Anunnaki fossem trazidos e lhes perguntou, sob juramento, do culpado pela insurreição prometendo a vida para quem declarasse a verdade. Então os deuses acusaram Qingu.

“Foi Qingu quem planejou a insurreição e fez com que Tiamat se rebelasse e deu início à batalha”. Amarraram-no, colocando-o diante de Ea. Cobraram-lhe sua culpa e retiraram seu sangue. Com seu sangue modelaram a humanidade. Ea obrigou que o culto fosse aceito e deixou os deuses livres. Depois Ea, o sábio, criou a humanidade; impôs a ela o culto aos deuses. Esta obra foi incompreensível. 14

E assim, o Senhor deixou os deuses livres e os dividiu em trezentos para cima e trezentos para baixo e os constituiu como guardiões do mundo. Agradecidos, os Anunnaki edificaram um santuário e o elevaram acima do Esagila e, depois de terem levantado uma torre com escadarias, nela estabeleceram uma nova morada para Marduk. 15

Quando os grandes deuses se reuniram e exaltaram o destino de Marduk, eles se inclinaram para baixo e pronunciaram entre eles uma maldição jurando pela água e pelo azeite entregar suas vidas. 16

“...que os ‘cabeças negras’ esperem em seus deuses. Quanto a nós, ainda que se o possa chamar (a Marduk) de muitos nomes, ele é nosso deus! Proclamemos, pois, seus cinqüenta nomes”. 17

              E as estrelas brilharam e todos os seres criados pelos deuses se alegraram. Também a humanidade se reconheceu no Senhor. Que exista, por isso, memória de tudo o que aconteceu. Que os filhos aprendam de seus pais este ensinamento. Que os  sábios pesquisem cuidadosamente  o  sentido d’O canto de Marduk que  venceu  Tiamat  e conseguiu o reinado. 18  

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III. MITOS EGÍPCIOS                             

              Ptah e a criação 1               Havia somente um mar infinito, sem vida e em absoluto silêncio. Então chegou Ptah com as formas dos abismos e as distâncias, das solidões e das forças. Por isso Ptah via e ouvia, olhava e percebia —em seu coração, a existência. Mas o que percebia tinha idealizado antes em seu interior. Assim, tomou a forma de Atum e, devorando sua própria semente, pariu o vento e a umidade, os quais expulsou de sua boca criando Nut, o céu, e Geb, a terra. Atum, o não existente, foi uma manifestação de Ptah. Assim, inexistentes foram antes de Ptah as nove formas fundamentais e o universo com todos os seres que Ptah concebeu dentro de si e que, somente com sua palavra, colocou na existência. Depois de ter criado tudo de sua boca, descansou. Por isto, até o final dos tempos, será invocado: Imenso, imenso Ptah, espírito fecundador do mundo. 2               As formas dos deuses são formas de Ptah e, somente por conveniência humana, Ptah é adorado com muitos nomes e seus nomes mudam e são esquecidos; novos deuses substituem os antigos mas Ptah permanece alheio a isto. Ele criou o céu como condutor e a terra circundou de mar; também criou o inferno para que os mortos se apaziguassem. Fixou rumo à Rá de horizonte a horizonte nos céus, e fez com que o homem tivesse seu tempo e seu domínio; assim fez também com o faraó e com cada reino.               Rá, no seu caminho pelos céus, reformou o estabelecido e apaziguou os deuses que estavam descontentes. Amava a criação e deu amor aos animais para que ficassem felizes, lutando contra o caos que punha em perigo suas vidas. Deu limites para noite e para o dia e fixou as estações. Colocou ritmo no Nilo para que regasse o território e depois se recolhesse para que todos pudessem viver do  fruto de suas águas. Ele subjugou as forças da obscuridade. Por ser quem trouxe a luz foi chamado de Amon-Rá, por quem acreditou que Amon nasceu de um ovo que ao quebrar num estalo deu lugar às estrelas e outras luminárias.               Mas a genealogia dos deuses começa em Atum que é o pai-mãe dos deuses. Ele engendrou a Shu (o vento) e Tefnut (a umidade) e de ambos nasceram Nut ( o céu) e Geb (a terra). Estes irmãos se uniram e procriaram Osíris, Seth, Neftis e Ísis. Esta é a Enéida divina da que deriva tudo.               

              Morte e ressurreição de Osíris               Os pais de Osíris viram que este era forte e bondoso; por isso o encarregaram de governar os territórios férteis e cuidar da vida de plantas, animais e seres humanos. A seu irmão Seth deram os amplos territórios desérticos e estrangeiros. Todo o selvagem e forte, os rebanhos e as feras foram postos sob seu cuidado. Osíris e Ísis formavam o resplandecente casal do amor. Mas a névoa do ciúme turvou Seth, por isso este confabulou e com a ajuda de setenta e dois membros de seu séquito organizou uma festa para aniquilar seu irmão. Nessa noite chegaram os conjurados e Osíris. Seth presenteou os convidados com um magnífico sarcófago prometendo dá-lo a quem, ao ocupá-lo, correspondessem melhor as medidas . Assim, uns e outros entravam e saíam  até que chegou a vez de Osíris fazer sua prova. De imediato baixaram a tampa e a lacraram. Osíris, aprisionado, foi levado até o Nilo e lançado em suas águas com a intenção de que sumisse nas profundezas. Não obstante, o sarcófago flutuou e chegando ao mar se afastou do Egito. Muito tempo passou até que um dia a caixa chegou na Fenícia 3 e as ondas o depositaram ao pé de uma árvore. Esta cresceu até uma altura gigantesca envolvendo com seu tronco o sarcófago. Admirado com a imponência do exemplar o rei local fez com que o derrubassem e levou o grande tronco a seu palácio a fim de utilizá-lo como coluna central. Entretanto, a Ísis foi revelado o ocorrido; por isso se dirigiu à Fenícia e, entrando no serviço da rainha, pode estar próximo ao corpo de seu marido. Mas a rainha, compreendendo que sua serva era Ísis entregou-lhe o tronco para que dispusesse dele conforme seu desejo. Ísis, partindo o invólucro de madeira, extraiu o ataúde e regressou ao Egito

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com sua carga. Mas Seth já estava inteirado do ocorrido e, temendo que Ísis reanimasse seu marido, roubou o corpo. Velozmente deu-se a tarefa de despedaçá-lo em quatorze partes que depois espalhou por todas as terras. Por isso começou a peregrinação de Ísis recolhendo pedaços do cadáver.                Já fazia tempo que a obscuridade reinava devido a morte de Osíris. Ninguém cuidava dos animais, nem das plantações, nem dos homens. A disputa e a morte substituíram para sempre a concórdia.                Quando Ísis conseguiu recuperar as distintas partes do corpo, ela as uniu e, juntando-as fortemente com bandagens realizou  seus conjuros. 4 Depois construiu um forno enorme, uma pirâmide sagrada 5, e em suas profundezas colocou a múmia. Abraçada a ela insuflou-lhe seu alento. Fez entrar o ar como o fole faz para aumentar o calor do fogo da vida...                Ele despertou, ele conheceu o sono mortal, ele quis manter seu verde rosto vegetal. 6 Quis conservar a coroa branca e sua plumagem para recordar claramente quais eram suas terras do Nilo. 7 Também recolheu o espanador e o cajado para separar e reconciliar, como fazem os pastores com seu bastão curvo. 8 Mas, quando Osíris erguido viu a morte ao redor, deixou seu duplo, seu Ka 9, encarregando-o de custodiar seu corpo para que ninguém voltasse a profaná-lo. Pegou a cruz da vida, a Ankh 10 da ressurreição, e com ela em seu Ba 11 se dirigiu para salvar e proteger a todos os que sozinhos e aterrorizados penetram o Amenti. 12 Por isso foi viver no oeste esperando os que, desvalidos, são exilados do reino da vida. Graças ao seu sacrifício, a natureza ressurge cada vez e os seres humanos criados pelo fole divino 13 são algo mais que barro animado. Desde então, invoca-se  ao deus de muitas maneiras e também desde então a exalação final é um canto de esperança.               ‘Bom Osíris! Envia Thot 14 para que nos guie até o sicômoro 15 sagrado, até a árvore da vida, até a porta da Dama do Ocidente 16; para que nos faça eludir as quatorze mansões rodeadas de estupor e angústia nas que os perversos sofrem terrífica condenação. Envia Thot, o íbis sábio, o escriba infalível dos feitos humanos gravados no papiro de memória inapagável. Bom Osíris! Em ti espera a ressurreição o vitorioso, depois do julgamento em que suas ações são pesadas por Anúbis, o chacal justo. 17 Bom Osíris! Permite que nosso Ba aborde a barca celeste e separado do Ka deixe este como custódia dos amuletos 18 em nossa tumba. Assim navegaremos para as regiões do esplendor do novo dia.”               

              Hórus, a vingança divina 19                Quando Ísis colaborou na ressurreição de Osíris, deu a luz ao filho de ambos. Pegou o recém nascido e o ocultou nas cavernas do Nilo para protegê-lo da fúria de Seth, de Min 20 e dos atacantes do deserto. Ele foi a criança que surgiu radiante na flor de lótus e que, referenciado como falcão, pôs seus olhos em todos os cantos do mundo. Ele foi, como Hórus Haredontes, o vingador de seu pai quando chegou o tempo. Ele é Hórus, deus de todas as terras, filho do amor e da ressurreição.               O menino foi crescendo e sua mãe preparou-o para reivindicar os domínios dos que Seth havia se apoderado porque a este correspondia por direito somente os desertos e os países estrangeiros, e no entanto, se aventurava pelo Nilo. Osíris, em sua viagem ao oeste, às terras de Amenti que agora dominava, deixou para Ísis o mandato de recuperar todo o Nilo para seu filho. Por isto, participaram ante a assembléia da Enéida os disputantes. Hórus disse: “Um indigno fratricida usurpa os direitos que meu pai deixara, apoiado numa força cega que os deuses não consagram...” Mas o discurso foi interrompido por Seth que, num grito irado, desprezou o pedido proveniente de uma criança incapaz de exercer tais demandas. Então, arrojando suas armas, em singular combate acometeram um contra o outro e em sua luta rodaram montes e as águas espantadas saíram de seus cursos. Oitenta longos anos durou tal disputa até que Seth arrancou os olhos de Hórus e este pulverizou as partes vitais de seu adversário. Tanta fúria chegou a seu fim quando ambos desfalecentes caíram pelos solos. Então, Thot curou as feridas e restabeleceu fragilmente a paz que o mundo, desatendido, reclamava.

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              Ante os deuses se pediu o veredicto. Ra (sempre ajudado por Seth em sua luta contra a mortal Apófis 21) inclinava a balança contra Hórus, enquanto Ísis com brio a seu filho defendia. Os deuses, afinal, restabeleceram ao menino seus direitos, mas Ra, murmurando irritado, se afastou da assembléia. Assim, os deuses foram divididos em número e poder sem que aquela discussão tivesse fim. Ísis, então, com ardis, fez com que Seth pronunciasse um discurso no qual a razão ficava para aquele que impedira o estrangeiro de ocupar os tronos, e por esse erro o próprio Seth ficou afastado das terras que pedia. Então Ra exigiu uma nova prova para que nela se decidisse tudo.                Transformados em fortes hipopótamos recomeçaram a luta, mas Ísis desde a margem das águas disparou um arpão que por erro foi acertar Hórus. Este, vociferando, se lançou sobre sua mãe, e lhe arrancou a cabeça. 22 Os deuses deram como substituto uma cabeça de vaca a Ísis e ela, posta em batalha novamente com seu arpão, deu fim a Seth, que, rugindo, saiu das águas. Assim é que uma nova prova foi aconselhada., deixando o resto dos deuses alheios ao conflito. Em barcos de pedra deviam ambos navegar.  Seth talhou a sua em pedra e se afundou, mas Hórus somente na aparência mostrou seu barco, conforme todos haviam concordado, porque em madeira coberta com estuque apresentou seu engenho. Navegava Hórus reivindicando o triunfo, mas Seth como novo hipopótamo fê-lo naufragar e, assim, somente na praia a merecida revanche conseguiu Hórus descarregando sua  maça sobre Seth prendendo seus membros. Assim o arrastou ao tribunal onde os deuses esperavam. E somente ante a ameaça de matar Seth na frente de toda a assembléia, Ra preferiu dar razão a Hórus e os deuses regozijados coroaram como senhor supremo o menino-falcão enquanto este pisava a cervical do vencido, o qual, prometendo solene obediência, deu por terminada a contenda, afastando-se para sempre a seus domínios nos desertos e entre os estrangeiros. Thot, sabiamente organizou as novas responsabilidades, e Hórus ajudando Ra destruiu a desleal serpente Apófis que até esse momento havia ameaçado seu radiante barco.               Com o sangue da antiga besta se tingem, às vezes, de vermelho os céus, e Ra, navegando em seu barco celeste despeja a sucassão de ondas que vão para o ocidente.               

              O Antimito de Amenófis IV               Houve um faraó bondoso e sábio que compreendeu a origem de Ptah e a mudança de seus nomes. Ele restabeleceu o princípio quando viu que os homens oprimiam os homens fazendo com que acreditassem que eram eles a voz dos deuses. Numa manhã viu como um vassalo era julgado no templo por não pagar tributos aos sacerdotes, por não pagar aos deuses. Então, saiu de Tebas para On 24 e lá perguntou aos teólogos mais sábios qual era a verdadeira justiça. Esta foi a resposta: “Amenófis, bom é teu fígado e as intenções que dele partem, e a verdade mais bondosa trará mal para ti e para nosso povo. Como homem será o mais justo. Como rei será a perdição...mas teu exemplo não será esquecido e muitos séculos depois de ti será reconhecido o que hoje será visto logo como loucura.”  De volta de Tebas olhou para sua mulher como quem esquadrinha o amanhecer, viu sua formosura e para ela e para seu povo cantou um belo hino. Nefertiti chorou pela piedade do poeta e soube de sua glória e de seu trágico futuro. Ela, com a voz entrecortada, o aclamou como verdadeiro filho do Sol. “Aknaton !”, disse, e depois se calou. E, nesse momento, lançaram seu destino aceitando o justo porém impossível. Assim foi a rebelião de Aknaton e o breve respiro dos filhos do Nilo, quando um mundo com o peso de milênios cambaleou por um instante. Assim se retirou o poder daqueles que faziam com que os deuses falassem suas próprias intenções.               Amenófis lançou-se na luta contra os funcionários e sacerdotes que dominavam o império. Os senhores do Alto Nilo se aliaram com os sacerdotes acossados. O povo começou a ocupar posições antes vedadas e foi resgatando para si o poder que deles fora retirado. Foram abertos os silos e distribuídos os bens. Mas os inimigos do novo mundo pegaram em armas e fizeram o fantasma da fome mostrar seu rosto. Morto Aknaton, todos seus feitos se tornaram conhecidos entre todos e se tentou apagar esta memória para sempre. Não obstante, Áton conservou sua palavra.               

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              Este foi o poema que iniciou o incêndio...25                Toda a terra se entrega ao trabalho...porque cada caminho se abre quando tu surges. Tu, que procuras o germe fecundo para as mulheres, tu que fazes a semente nos homens, tu que fazes viver o filho no ventre da mãe, que o acalma para que não chore; tu nutres o que há no ventre, dás o ar para fazer com que viva tudo o que criaste. Quando rompe o ventre no dia do nascimento, tu lhe abres a boca para que fale, lhe provê em suas necessidades. Quando o galo está no ovo, tu lhe dás o ar para que viva. Tu lhe ajudas para que quebre o ovo, e saia e pie e caminhe sobre seus pés logo quando nascido. Quantas são tuas obras ! Teu rosto é desconhecido, oh, deus único!, além do qual nenhum existe. Tu criaste a terra com teu desejo quando estavas só; com os homens, as bestas e cada animal selvagem, e tudo o que existe sobre a terra e caminha sobre seus pés, e tudo o que existe no céu e voa com suas asas. E os países estrangeiros, Siris, Nubia e a terra do Egito; tu colocaste cada homem em seu lugar, provieste suas necessidades; cada um com seu pão e é contada a duração de sua vida. Suas línguas são diferentes em palavras, e também seus caracteres e suas peles; diferenciaste os povos estrangeiros. E fizeste  um Nilo no Duat e o levas onde queres para dar vida às pessoas, assim como tu as criaste. Tu, senhor de todos eles, tu muito te empenhas por eles, oh, Áton do dia ! Grande em dignidade ! E todos os países estrangeiros e longínquos, fazes tu que também eles vivam; puseste um Nilo no céu que desce para eles e que faz ondas sobre os montes como um mar e banha seus campos e suas comarcas. Que perfeitos são teus conselhos ! Oh, senhor da eternidade ! O Nilo do Céu é teu dom para os estrangeiros e para todos os animais do deserto que caminham sobre seus pés. Mas o Nilo vem do Duat para o Egito. E teus raios nutrem todas as plantas; quando tu resplandeces elas vivem e crescem por ti. Tu fazes as estações para que se desenvolva todo o criado; o inverno para refrescá-lo, o verão porque te agrada. Tu fizeste o céu afastado para  resplandecer  nele e para ver tudo, tu, único, que resplandeces em tua forma de Áton vivo, surgido e luminoso, distante e vizinho. Tu fazes para ti milhões de formas, tu, único; cidades, povos, campos, caminhos, rios, cada olho te vê diante de si e tu és Áton do Dia. Quando te vais e cada olho por ti criado dorme seu olhar para não te ver só, e não se vê mais   aquilo que criaste, tu estás todavia em meu coração... A terra está em tua mão como tu a criaste. Se tu resplandeces ela vive, se te ocultas ela morre. Tu és a própria duração da vida, e se vive de ti!    

IV-MITOS HEBRAICOS                            

A árvore da Ciência e a árvore da Vida               E Jeová Deus fez nascer da terra toda árvore deliciosa para os olhos e boa para comer; também a árvore da vida no meio do bosque, e a árvore da ciência do bem e do mal...E mandou Jeová Deus no homem, dizendo: de toda árvore do bosque poderás comer; mas da árvore da ciência do bem e do mal  não comerás, porque o dia em que dela comeres, certamente morrerás. 1               E assim, Adão e Eva viviam no Éden, aquele lugar do qual saia um rio que regava todo o bosque. Essa corrente se dividia em quatro braços. O nome do primeiro, o que rodeava a terra de Havila onde havia ouro, era Pisão. O do segundo, que rodeava a terra de Cus, era Gihon. O do terceiro, escondido e sombrio, que ia ao oriente da Assíria, era Hydekel e o quarto, de boas e rumorosas palavras, era o Eufrates. Mas o Éden era completo em plantas e animais, por isso nossos pais foram ali os nomeadores de todos os seres viventes. Como dar um nome para a árvore da vida e a da ciência do bem e do mal sem saber delas, sem se aproximar delas? Por isto, sem temer a ciência, desejaram tê-la e não souberam como. Assim, Eva, perturbada pela pergunta, dormiu à noite e dormindo sonhou e sonhando viu a árvore da ciência que resplandecia na escuridão. Deste modo, Eva se aproximou da árvore e, num instante, se apresentou diante dela uma inquietante figura alada. Seu porte era formoso, mas na escuridão não conseguia distinguir seu rosto que, talvez, fosse de Adão. De seus cabelos úmidos de orvalho saia uma fragrância que exaltava ao amor. E Eva queria vê-la. A figura, enquanto contemplava a árvore, disse: “Ó formosa planta de abundante fruto!

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Não há quem se digne de aliviar-te o peso e provar de sua doçura? Tão depreciada é a ciência? Será acaso a inveja ou alguma injusta reserva o que nos proíbe de tocá-la? Proíba-o quem queira, ninguém me privará mais tempo dos bens que ofereces; senão, por que estás aqui?”. Assim disse, e não se deteve mais; e com mão temerária arrancou o fruto e o provou. Um horror glacial paralisou Eva em seu sonho por causa da audácia da figura alada, mas de imediato esta exclamou: “Ó fruto divino, doce por si só, e muito mais doce colhido deste modo, estando proibido, ao que parece, como que reservado unicamente para os deuses. E sendo, sem dúvida, capaz de converter em deuses os homens! E por que não haveriam de sê-lo? O bem aumenta quanto mais se o comunica, e seu autor, longe de perdê-lo, adquirirá mais elogios. Aproxime-se alegre criatura, bela e angelical Eva; compartilha desse fruto comigo!” 2. Eva despertou sobressaltada e contou o sonho a seu companheiro. Adão, então, se perguntou: “Não fala Deus pelos sonhos? Se de dia proíbe e à noite convida, à qual incitação haverei de responder já que não tenho ciência suficiente? Haveremos de conseguir essa ciência para determinar nossos destinos, já que Jeová Deus nos criou mas não disse como haveríamos de fazermos a nós mesmos.” Então comunicou a Eva seu plano para apoderar-se da fruta, para correr com ela chegando até a árvore da vida a fim de ficarem imunes ao veneno da ciência. Depois esperaram que Jeová Deus passasse pelo bosque no ar do dia e, em sua ausência, foram até a árvore. Então, ao ver uma serpente que entre os galhos deslizava pelos frutos, pensaram que seu veneno era retirado desse alimento. Por isso duvidaram e, ao duvidarem o tempo passou e Jeová Deus empreendeu seu regresso. Então acreditaram ouvir que a serpente lhes sussurrava: “Não morrereis, mas bem sabe Deus que o dia em que comerdes esses frutos serão abertos vossos  olhos e sereis como Deus conhecendo o bem e o mal”. 3 Não mentia a serpente, mas queria evitar que comessem da outra árvore, da árvore da vida. 4 Sendo já muito tarde, Adão e Eva provaram do fruto e seus olhos se abriram, mas quando quiseram chegar até a árvore da imortalidade, Jeová Deus lhes fechou a passagem, impedindo que alcançassem seu objetivo.               E disse Jeová Deus: Eis que aqui então o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; agora, pois, que não estique sua mão, e também pegue da árvore da vida e coma, e viva para sempre. E o tirou Jeová do bosque de Éden, para que lavrasse a terra da qual foi retirado. Lançou, então, para fora o homem, e colocou a oriente do bosque do Éden querubins e uma espada em fogo que se movia para todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida. 5               Adão e Eva se afastaram do Éden e sempre esteve seu olhar posto na direção do Paraíso do qual só o esplendor noturno e a fumaça da espada de fogo denunciavam seu rastro. E já não voltaram, já não puderam voltar, mas começaram a oferecer a Jeová Deus sacrifícios de fogo e fumaça porque acreditavam que lhe agradava. E muitos povos, com o tempo, pensaram que os deuses gostavam dos altos montes e dos vulcões porque estes são a ponte entre a terra e os céus. Assim, quando chegou o momento, Jeová Deus lhes entregou do fogo, do monte, a Lei que os homens procuravam para determinar seu Destino. 6               

              Abraão e a obediência                Muitos gerações passaram desde os primeiros pais até o Dilúvio. Depois dele, quando Jeová estendeu no céu o arco-íris para selar seu pacto com os homens, continuou se reproduzindo toda semente. E assim, em Ur de caldéia, Taré pegou seu filho Abrão e Sarai sua nora e foram todos ao Egito. Tempos depois regressaram para Hebron. O ganho e os bens de Abrão cresceram, mas seu coração foi tomado pela tristeza porque na sua idade não havia conseguido descendência.               Abrão era já velho quando fez com que sua serva Agar concebesse. Mas Agar e Sarai se tornaram inimigas. Por isso Agar saiu para o deserto e levou com ela sua aflição. Então, um anjo apresentou-se a ela e lhe disse: “Tens concebido e ao dar a luz chamarás teu filho de Ismael porque Jeová escutou suas preces. Ismael, portanto, significará “Deus ouve” e sua descendência será numerosa e os povos dele habitarão os desertos não adorando a Deus porque o olho vê, senão porque o escuta o ouvido. Assim rogarão a Deus e Deus os ouvirá”. Muito depois Sarai concebeu sendo já anciã, mas seus descendentes e os de Agar mantiveram a disputa que começara entre suas mães mesmo sendo Abrão o pai de todos e a todos quis ele como seus filhos.

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               Nesse momento, Deus disse: “Daqui por diante não te chamarás Abrão senão Abraão, porque serás pai de uma multidão e Sarai será chamada Sara, como princesa de nações. Quanto ao filho teu e de Sara, o chamarás  Isaac.”                Aconteceu depois destas coisas, com as que Deus provou Abraão, e lhe disse: Abraão. E ele lhe respondeu: Eis-me aqui. E disse: Pega agora teu filho Isaac a quem amas, e vá a terra de Moriah e oferece-o lá em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei. E Abraão levantou-se bem de manhã. E selou seu asno, e trouxe consigo dois de seus servos e a Issac, seu filho; e cortou lenha para o holocausto, e se levantou e foi ao lugar que Deus lhe disse. No terceiro dia, levantou Abraão seus olhos e viu o lugar ao longe. Então Abraão disse a seus servos: Esperem-me aqui com o asno, e eu e o menino iremos até ali e adoraremos e voltaremos até vocês...E pegou Abraão a lenha do Holocausto e a colocou sobre Isaac, seu filho, e pegou em suas mãos o fogo e o facão; e foram ambos juntos. Então falou Isaac a Abraão, seu pai, e disse: Meu pai. E ele respondeu: Eis-me aqui, meu filho. E ele lhe disse: Aqui está o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? E respondeu Abraão: Deus proverá o cordeiro para o holocausto, filho meu. E juntos iam. E quando chegaram ao lugar que Deus lhe havia  dito, edificou ali Abraão um altar, e dispôs a lenha. E estendeu Abraão sua mão e pegou o facão para degolar seu filho. Então o anjo de Jeová lhes deu vozes do céu, e disse: Abraão, Abraão. E ele respondeu: eis-me aqui. E disse: não estenda sua mãos sobre o menino, nem lhe faça nada; porque reconheço que temes a Deus, porquanto não recusaste teu filho... Então, levantou Abraão seus olhos e olhou, e eis que às suas costas um carneiro estava preso num arbusto pelos chifres; e Abraão foi e pegou o carneiro, e o ofereceu em holocausto no lugar de seu filho. E deu Abraão o nome daquele lugar: Jeová proverá. 7               Talvez até sua morte, ficou presente no coração de Abraão a angústia da terrível prova. Por isso às vezes se diz: “Jeová repudia o sacrifício humano e mais ainda do próprio filho. Se ordena o holocausto não devo acatá-lo porque seria desobedecer sua proibição. Mas rejeitar o que ele manda é pecar contra ele. Devo obedecer algo que meu deus repudia? Sim, se ele o exige. Mas minha torpe razão atormentada luta, ademais, com um coração de um pobre ancião que ama aquele impossível que Jeová lhe deu tardiamente. Não será esta prova a devolução do riso que contive quando me foi anunciado que nasceria meu filho? 8 Não será o riso que ocultou Sara quando escutou tal vaticínio? 9 Por algum motivo Jeová indicou o nome de “Isaac” que significa “riso”. Eu e minha mulher éramos já velhos quando nos foi dito que teríamos este filho e não podíamos crer que isto fosse possível. Será que Jeová brinca com suas criaturas como uma criança com areia? Ou será que, conhecendo sua ira e seu castigo, não consideramos que ele também nos prove e nos ensine com a brincadeira divina? “. 10               

              O homem que lutou contra um deus 11               E levantou-se naquela noite e pegou suas duas mulheres, e suas duas servas e seus onze filhos, e passou o expediente de Jacó. Pegou-lhes, então, e colocou a eles e a tudo o que possuía para fora da casa. Assim ficou Jacó sozinho; e lutou com ele um varão até que raiava a aurora. E quando o varão viu que não podia com ele, tocou no lugar de encaixe de seu músculo, e desconjuntou o músculo de Jacó enquanto com ele lutava. E disse: “Deixa-me porque raia a aurora. E Jacó lhe respondeu: Não te deixarei se não me bendizeres. E o varão lhe disse: Qual é teu nome? E ele respondeu: Jacó. E o varão lhe disse: Não mais será dito Jacó, senão Israel, 12 porque lutaste com Deus e com os homens e venceste. Então Jacó lhe perguntou e disse: Declare-me agora teu nome. E o varão respondeu: Por que me perguntas meu nome? E o bendisse aí. E chamou Jacó o nome daquele lugar de Peniel 13, porque disse: Vi Deus cara a cara e foi liberta minha alma. E quando havia passado Peniel, saiu o sol e mancava nas cadeiras. 14 Por isto não comem os filhos de Israel, até os dias de hoje, do seu tendão que se contraiu, o qual está no encaixe do músculo, porque tocou Jacó esta parte de seu músculo no tendão que se contraiu. 15               

              Moisés e a Lei Divina 16

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               Aconteceu que, passado já muito tempo, os filhos de Israel alojados no Egito foram crescendo em número e poder. E apoiaram com júbilo as mudanças que introduziu um sábio faraó que quis a igualdade para todos os povos. E o bom rei morreu no meio da grande agitação que haviam promovido seus inimigos. E os israelitas passaram de uma pacífica   existência a serem perseguidos e humilhados. Quando decidiram abandonar essas terras, o novo faraó os impediu. Também nesses anos sombrios numerosos partidários do rei justo foram assassinados. Outros terminaram no cárcere e nas pedreiras, condenados a terminar suas vidas ali. E aconteceu que entre esses últimos se encontrava um jovem que quando criança fora resgatado das águas do Nilo pelas mulheres do bom faraó. Educado na corte, aprendeu a língua de Israel ainda que sempre a tenha falado com dificuldade.               Moisés, o “resgatado das águas”, fugiu das pedreiras e foi se refugiar nos campos, na casa de um sacerdote de Madiã. E eis então que o sacerdote era dos perseguidos e partidário do rei justo. Por isto, acolheu Moisés quando veio a ele se refugiar e quando contou sua história do resgate das águas que tanto se assemelhava às lendas de Osíris e de Sargon (este que foi salvado da Babilônia, segundo diziam os vindos com Abraão de Ur da Caldéia). E é aqui que Moisés tomou por esposa a filha do sacerdote. E um dia, pastoreando as ovelhas de seu sogro, chegou até Horeb, monte de Deus.               E apareceu-lhe o Anjo de Jeová numa chama de fogo no meio de um arbusto; e ele olhou e viu que o arbusto ardia em fogo, e que o arbusto não se consumia. Então Moisés disse: Irei eu agora e verei esta grande visão, por que motivo o arbusto não se consome. Vendo Jeová que ele o ia ver, o chamou Deus do meio do arbusto e disse: Moisés, Moisés! E ele respondeu: Eis-me aqui. E disse: Não te aproximes; tira o calçado de teus pés, porque o lugar onde tu estás, terra santa é. E disse: Eu sou o Deus de teu pai. Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó. Então Moisés cobriu seu rosto, porque teve medo de olhar Deus. Disse então Jeová: Bem tenho visto a aflição de meu povo que está no Egito, e tenho escutado seu clamor por causa de seus exatores; pois tenho conhecimento de suas angústias, e desci para livrá-los da mão dos egípcios, e tirar-lhes daquela terra para uma terra boa e ampla, a terra onde flui leite e mel...Disse Moisés a Deus: Eis aqui que chego eu aos filhos de Israel e lhe digo: O Deus de vossos pais me enviou a vós. Se eles me perguntarem: Qual é teu nome?, o que lhes responderei? E respondeu Deus a Moisés:     EU SOU AQUELE QUE SOU. E disse: Assim dirá aos filhos de Israel: EU SOU me envia a vós. Além disto, disse Deus a Moisés: Assim dirá aos filhos de Israel: Jeová, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, me enviou a vós. Este é meu nome para sempre; com ele serei recordado por todos os séculos. 17               Assim que Moisés regressava para o Egito, foi ao seu encontro Aarão da tribo sacerdotal de Levi e que havia tido sonhos nos quais Moisés recebia a missão divina.  Então Aarão ajudou Moisés a usar a palavra entre os israelitas e, chegando até o faraó, o ameaçou dizendo: “Deixa que meu povo saia do Egito”. Mas como o Faraó era indolente, Aarão , que era sacerdote, fez com seu bastão grandes prodígios aos olhos de todos. Mas chamou o Faraó seus sábios e sacerdotes que também demonstraram seu poder, e o Faraó endureceu seu coração. Então, Jeová por meio de Moisés e Aarão converteu a água do rio em vermelho sangue e os peixes morreram e também as rãs saíram dali invadindo tudo. Mas Faraó não deu valor a esses sinais. Por isto, pragas de piolhos e de moscas, pragas de gado e praga de úlceras, praga de granizo e de caranguejos caíram sobre os homens e as bestas. Mas Faraó não quis libertar os filhos de Israel, dizendo que a corrente do rio que havia transbordado arrastando limo  vermelho do alto Nilo, provocava periodicamente esses desastres. Mas uma grande escuridão baixou e se manteve por três dias. E os sábios do Faraó também explicaram como as nuvens de água que se elevavam do rio escureciam o céu...                Então Jeová mandou Moisés advertir o Faraó da morte dos primogênitos dos egípcios se não deixasse em liberdade o povo de Israel. E o Faraó não deu ouvidos e os filhos dos egípcios foram mortos nessa noite por um anjo do Senhor. E a partir daí esse mês foi o primeiro dos meses do ano, porque o sinal do sangue do cordeiro pascal com que os israelitas marcaram suas portas, os protegeu do anjo da morte. E Faraó permitiu a saída da povo de Israel e de todos os

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egípcios perseguidos. Partiram os filhos de Israel de Ramsés a Sucot, em torno de seiscentos mil homens a pé, sem contar as crianças. Também subiu com eles uma multidão de toda a classe de pessoas. 18                O povo cruzou o leito seco do Mar Vermelho, porque à direita e à esquerda estavam contidas as águas, nessa zona que havia mandado canalizar Amenófis. Mas eis que então o Faraó despachou seus soldados para destruir os que fugiam e, então, foram derrubadas as pesadas carruagens e o exército caiu. E sobre eles veio a água matando os perseguidores. E, mais uma vez, Jeová salvou Moisés das águas e com ele salvou a multidão que se afastava do Egito. 19               E as águas amargas 20 foram adocicadas pela árvore que Moisés nelas colocou. E Jeová ao povo deu o-que-é-isto 21 para comer e com isto o povo se sustentou e não morreu no deserto e assim chegou ao sagrado monte Sinai.               O monte inteiro do Sinai fumegava porque Jeová em fogo havia descido nele; e a fumaça subia como a fumaça de um forno e o monte inteiro tremia em grandes proporções. O som da corneta ia aumentando ao máximo; Moisés falava, e Deus lhe respondia com voz de trovão. E desceu Jeová no monte Sinai, no cume do monte, e Moisés subiu. 22               Todo o povo observava o estrondo e os relâmpagos, e o som da corneta e o monte que fumegava; e vendo isto o povo, tremeram e se afastaram para longe. 23                E então Jeová Deus entregou aos homens a Lei que procuravam desde seus primeiros pais. Em duas tábuas de pedra gravou Deus os dez Mandamentos que os homens deviam seguir para se aproximarem dele. E também lhes deu leis que serviram para formá-los em sua História. Assim conduziu Moisés a Israel até a terra prometida pelo senhor. E subiu desde o monte de Moab ao monte Nebo, no cume do Pisga que está em frente de Jericó. Então Moisés viu. E lhe disse Jeová: Esta é a terra que prometi a Abraão, a Isaac e a Jacó, dizendo: Para tua descendência a darei. Permiti a ti vê-la com teus olhos, mas não chegarás até lá. E morreu ali Moisés, servo de Jeová, na terra de Moab, conforme disse Jeová. E o enterrou no vale, na terra de Moab, em frente de Bet-Peor; e ninguém conhece o lugar de sua sepultura até hoje. 24               E nunca mais surgiu um profeta em Israel igual a Moisés, que tinha conhecido Jeová frente a frente; ninguém como ele em todos os sinais e prodígios que Jeová lhe enviou para que os fizesse na terra do Egito, ao Faraó e a todos os seus servos e a toda a sua terra, e no grande poder e nos feitos grandiosos e terríveis que Moisés fez diante dos olhos de todos. 25  

V - MITOS CHINESES                             

              O vazio central 1               O Tao é um recipiente oco, difícil de encher. Mesmo sendo freqüentemente usado ele nunca se enche. É tão profundo e insondável que parece anterior a todas as coisas. Não se sabe de quem é filho. Parece anterior aos deuses. 2               Trinta raios convergem até o centro de uma roda, mas é o vazio do centro que torna útil a roda. 3 Com argila se molda um recipiente, mas é o espaço que não contém argila que usamos como recipiente. Abrimos portas e janelas em uma casa, mas é por seus espaços vazios que podemos utilizá-la. Assim, da existência provém as coisas e da não-existência sua utilidade.               Tudo era vazio e Pangu dormia no interior do que estava unido, por isto que foi chamado “infinita profundidade”. 4 Então despertou. De imediato, rompeu com seu machado o ovo que o envolvia. E ele rapidamente se dividiu em milhares de pedaços. As coisas mais leves e as mais pesadas foram em diferentes direções. Para evitar que novamente se juntassem, Pangu colocou-se no centro vazio solidificando o céu e a terra. Ele foi como uma coluna que deu equilíbrio à criação. Depois descansou e dormiu novamente até que seu corpo deu lugar a numerosos seres. 5 De um olho saiu o sol e do outro a lua. Com seu sangue formaram-se os rios e os lagos. Os animais saíram de sua pele. O cabelo se transformou em ervas e seus ossos em minerais.                Nestes primeiros tempos viviam na terra deuses, gigantes e monstros. A deusa mãe Nuwa, era na sua metade superior muito formosa e em sua metade inferior se assemelhava a

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um dragão. Percorria e visitava todos os lugares, mas finalmente descobriu que faltavam seres mais perfeitos e inteligentes que os gigantes.               Então, foi até o rio Amarelo e modelou com argila os primitivos seres humanos. E os fez parecidos a ela, mas em lugar de rabo de dragão colocou pernas para que caminhassem erguidos. Vendo-os graciosos, decidiu fazer muitos. Para isto, tomou um junco (embarcação oriental) e foi lançando gotas de barro sobre a terra. Estas —ao cair sobre ela— se converteram em mulheres e homens. Deste modo, quando eles começaram a se reproduzir por si só, a mãe celestial se dedicou à criação de outros seres.               Fushi, companheiro da deusa, viu que os homens aprendiam e então ocupou-se em ensiná-los a fazer fogo esfregando madeiras. Logo deu-lhes cordas e mostrou a eles como se protegeriam da fome e da intempérie. Finalmente, os outorgou a arte dos hexagramas ao que chamou I Ching. Com o tempo este foi conhecido como o livro das transformações e da adivinhação.               Chegou o dia em que os imortais discutiram e, entrando em guerra, puseram em perigo o Universo. Dilúvios e catástrofes assolaram a terra. Até que, por último, o Deus do fogo prevaleceu sobre as águas. Todavia os gigantes quiseram disputar o poder com os eternos, mas os deuses em indizível cólera cortaram suas cabeças, fazendo-as rolar até o fundo dos abismos obscuros.               

              O Dragão e o Fênix 6                Quando ainda as águas não estavam controladas e os rios transbordavam arrasando os campos, a deusa mãe procriou bons descendentes que terminaram ordenado este caos diluvial. Trabalhando no controle dos rios, dos lagos, do mar e das nuvens, os dragões cintilantes navegaram pelas águas e pelo céu. Com unhas de tigre e garras de águia, rasgavam as cortinas do alto com um tremendo estrondo que, ao faiscar ante o embate descomunal, deixavam as chuvas em liberdade. Eles deram leito aos rios, contenção aos lagos e profundidade aos mares. Fizeram as cavernas das que brotavam a água por dutos subterrâneos que levaram muito longe para que surgisse em seguida, sem que o assalto abrasador do sol as detivesse. Traçaram as linhas que se vê nas montanhas para que a energia da terra fluísse, equilibrando a saúde deste corpo gigantesco. Freqüentemente, tiveram que lutar com os bloqueios que provocavam os deuses e os homens ocupados em seus trabalhos irresponsáveis. De suas gargantas brotava como fumaça a neve, vivificante e úmida, criadora de mundos irreais. Com seus escamosos corpos serpentinos cortavam as tempestades e dividiam os furacões. Com seus poderosos chifres e com seus dentes afiados, nenhum obstáculo era suficiente, nenhum ardil podia permanecer. E gostavam de aparecer aos mortais. Às vezes nos sonhos, às vezes nas grutas, às vezes na borda dos lagos porque nestes podiam ter moradas de cristal escondidas nas quais belos jardins eram decorados com frutos brilhantes e com as pedras mais preciosas.                O Long imortal, o dragão celeste, sempre colocou sua atividade (seu Yang) a serviço do Tao e o Tao o reconheceu permitindo que estivesse em todos as coisas, desde o maior até o menor, desde o universo até a partícula insignificante. Tudo viveu graças ao Long. Nada permaneceu imutável salvo o Tao inominável, porque ainda o Tao nominável mudou e se transforma graças a atividade do Long. E nem mesmo os que crêem no Céu e no Inferno podem assegurar sua permanência. 7                Mas o Long ama o Feng, a ave Fênix que concentra o germe das coisas, que contrai aquilo que o Long expande. E quando o Long e o Feng se equilibram o Tao resplandece como uma pérola banhada na luz mais pura. O Long não luta com o Feng porque se amam e se buscam fazendo resplandecer a pérola. Por isto, o sábio regula sua vida conforme o equilíbrio entre o Dragão e o Fênix que são as imagens dos princípios sagrados do Yang e o Yin. O sábio se refugia num lugar vazio buscando o equilíbrio. O sábio compreende que a noção gera a ação e a ação gera a não ação. Que o coração dos viventes, que as águas do mar, que o dia e a noite, que o inverno e verão, se sucedem em um ritmo que para eles marca o Tao.

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              No final desta idade, quando o universo tenha chegado a sua grande expansão ele voltará a se contrair como pedra que cai. Tudo —até o tempo, se inverterá voltando ao princípio. O Dragão e o Fênix se reencontrarão. O Yang e o Yin se compenetrarão, e será tão grande a atração que absorverá todo o germe vazio do Tao. O céu é alto, a terra é baixa; com isto estão determinados o criativo e o receptivo... com isto se revelam as mudanças e as transformações. 8                Mas ninguém pode saber realmente como eram nem como serão as coisas; se alguém o soubesse não poderia explicar.               O que sabe que não sabe é o maior; o que pensa que sabe mas não sabe, tem a mente doente. O que reconhece a mente doente como estando doente, não tem a mente doente. O sábio não tem a mente doente porque reconhece a mente doente como a mente doente. 9      

              VI. MITOS HINDUS                            

              Fogo, Fomenta e Exaltação 1.               Aqui estão os primeiros, os que logo tomaram outras formas —tantas que não as posso reconhecer. Aqui estão o Fogo 2 e a Tormenta 3 que dirigem a criação. O Fogo não é nada mais que fogo e a Tormenta é somente vento, água e trovão, sem a Exaltação 4 do poeta em quem habita a palavra.               1. - Agni, merecidamente louvado pelos cantores antigos e digno de o ser pelos atuais, que reuna ele aqui os deuses 5. Tu, oh Agni, primeiro. Angiras por excelência, poeta, dos deuses circunda as ações, onipresente a toda criatura, sábio, filho de duas mães, que te apresenta de várias formas ao homem 6. Ereto, defendendo-nos do perigo com teu sinal luminoso; queima todo demônio. Coloca-nos eretos para correr, para viver; outorga-nos a honra entre os deuses. Dispersando-os em todas as direções com uma arma mortífera, mata os inimigos, oh deus de mandíbula abrasadora. O nosso inimigo, o homem que afia sua espada durante a noite, que este inimigo não consiga se apoderar de nós... Protege-nos do ofensor, daquele que deseja nos matar, oh deus brilhante, oh o mais jovem dos deuses 7. Um novo hino de louvor que saiu de nosso interior, de nós mesmos, alcance a Agni de língua de mel, uma vez nascido 8... A ti elogia com seu canto Gotama, desejoso de riqueza 9... Quando me ponderaram a enorme força do deus devorador de madeira, ele manifestou sua cor como o fez para os Usij: este Agni brilha alegremente com luz resplandecente, como quem tendo  envelhecido, de repente se faz jovem. Agni, que ilumina os bosques como se estivesse sedento, que ressoa em seu caminho como a água, como as rodas de um carro. Agni de negro caminho, ardente, brincalhão, brilha como o céu sorrindo entre as nuvens. Agni, que se estendeu  abrasando ao longo da terra ampla, caminha como um animal livre, sem pastor; Agni, inflamado, abrasando os matagais, deus de rosto enegrecido que saboreou a terra 10.               2. - Quero, pois, proclamar as façanhas de Indra, as que fez em primeiro lugar o deus do raio; ele matou a serpente, atravessou a grandeza das águas, abriu o ventre das montanhas. Matou a serpente que havia se fixado na montanha; Tvastar havia modelado para ele o raio que ecoa. Como as vacas que mugindo se dispersam, as águas desceram diretas ao oceano. Cuidadosíssimo elegeu o Soma; bebeu do Soma preso nos três cântaros; deus generoso, tomou a arma temida; matou esta serpente, a primeira nascida das serpentes. Quando tu mataste, Indra, a primeira serpente nascida das serpentes, aniquilastes as arteiras ações dos demônios arteiros; então, gerando o sol, o céu, a aurora, em verdade já não encontraste mais inimigos... Como um mau guerreiro embriagado por nefasta bebedeira, Vrtra desafiou o grande lutador, deus que rejeita com poder, bebedor de Soma; não pôde resistir ao choque das armas mortíferas de Indra; foi aniquilado ficando sem rosto Urtra, que tinha a Indra por inimigo. Sem pés, sem mãos, havia combatido contra Indra e este o golpeou com o raio em suas costas. Boi que pretendia ser a réplica do touro, Vrtra dispersou-se em mil lugares. Como jazia de tal maneira, tal qual boi despedaçado,

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as águas avançaram sobre ele se espalhando em direção ao homem. As que Vrtra havia assediado com força aos pés delas a serpente ficou desde então pendurada. Acabou a força daquela a que Vrtra era filho. Indra descarregou sobre ela sua arma mortífera; acima estava sua mãe, abaixo estava o filho; o demônio-fêmea jazia como uma vaca com seu bezerro. Em meio das correntes de águas que nunca cessam, o corpo de Vrta jazia oculto; as águas circulavam através do esconderijo de Vrtra; em duradoura treva jazia aquele cujo inimigo foi Indra. As águas que tinham por dono o aborígene, que tinham por guardiã a serpente, haviam ficado imóveis, bloqueadas, como as vacas encurraladas. O orifício das águas, que havia sido obstruído, Indra o descobriu quando matou Vrtra 11... Quando tu nasceste, neste dia bebeste com desejo deste Soma, o suco da planta do Soma, que reside na montanha; tua mãe, a jovem geradora, o derramou, em primeiro lugar, na casa do grande pai. Aproximando de sua mãe pediu alimento; olhou até o Soma concentrado como em direção a uma úbere; o deus rapidamente correu afugentando os outros; fez grandes coisas este deus de múltiplos rostos. Poderoso, vencedor dos fortes, de força suprema, este deus fez para si um corpo de acordo a seu próprio desejo; Indra, tendo superado por sua natureza a Tvastar, arrebatando-o, bebeu o Soma nos cálices. Invoquemos a Indra, o magnânimo, para prosperar neste combate, o mais viril, para a obtenção do despojo, deus que escuta, terrível, para a ajuda nos combates, destruidor dos inimigos, ganhador dos despojos 12.               3- Para ti caminhamos; tu és nossa meta dia à dia; oh suco de Soma, em ti estão postas nossas esperanças. A filha do sol purifica o Soma que flui ao redor mediante o filtro de pelos de ovelha, ininterruptamente. As dez ternas mulheres o tomam (com os dedos), na assembléia ritual, as dez irmãs no ponto extremo do céu. Essas virgens o fazem fluir, fazem soar, soprando, a gaita. Fazem sair o licor triplamente protetor. As vacas, as vacas produtoras de leite mediante a mescla de leite deixam no ponto esta criatura, o Soma, para que Indra o beba. Indra golpeia todos os inimigos na embriaguez deste Soma, e este herói distribui sua generosidade ...13 A teu deus rosado, nós te adoçamos misturando com leite das vacas para a embriaguez. Abra-nos as portas para a riqueza. O Soma ultrapassou o filtro como o cavalo vencedor ultrapassa o sinal na corrida. O suco do Soma é o senhor entre os deuses. Os amigos têm cantado junto ao Soma que pula na vasilha de madeira através do filtro de pelos de ovelha. As preces dirigiram gritos de alegria ao Soma... 14 A águia de vôo seguro te traiu. Para que todo ser humano possa ver o sol, a este Soma, bem comum, que atravessa o espaço, guardião da ordem, a ave o traiu. Quando foi enviado para cá, obteve o poder supremo de Indra, o Soma que proporciona auxílio, o muito ativo... 15 Tuas forças, oh Soma, surgem como o bramido da onda do rio... 16 Tuas correntes de incomparável abundância avançam com as chuvas do céu para conseguir um despojo que vale mil. Contemplando todas as amadas obras poéticas, o Soma se derrama, o corcel, agita as armas. Purificado intensamente pelos Ayus, como um rei com vassalos, zeloso protetor da lei, se assentou, como uma ave de presa, nas vasilhas de madeira. Todos os bens do céu e da terra, uma vez purificado, oh suco de Soma, confere-os a nós. 17               

              O tempo e os deuses.               Então não havia o existente e o não existente; não havia o reino do céu e do ar. O que havia dentro e onde? O que protegia? Acaso havia água nesta insondável profundidade? Não havia a morte, não havia algo imortal, não havia divisão entre o dia e a noite. Este algo, sem alento, respirava por sua própria natureza; aparte deste algo não havia nada... Quem o sabe verdadeiramente, quem pode afirmar onde nasceu e de onde veio a criação? Os deuses são posteriores à criação do mundo. Quem sabe, então, de onde o mundo procedeu? A origem da criação talvez tenha formado tudo, ou talvez não. Quem cujos olhos controlam o mundo, ele verdadeiramente o sabe, ou talvez não 18.               Mas os deuses e os homens foram criados e têm seu tempo. Sim, têm seu tempo.               Um dia dos deuses é igual a um ano dos mortais. Portanto, um ano dos deuses é o mesmo que 360 anos mortais. Existem quatro Eras (Yugas) que formam uma grande Era (Mahayuga) de 12 mil anos divinos, correspondente a 4.320.000.000 anos ordinários ou um dia de Brahma. Mas, ao terminar seu dia, o deus descansa e, então, ocorre um colapso no Universo.

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Enquanto Brahma dorme sobre sua grande serpente tudo começa ser absorvido por ele. Os mundos desabitados se chocam entre si; a terra toda se liqüefaz, todo líquido se evapora, todo vapor se converte em energia e esta energia cai dentro do poder da noite de Brahma. E quando o deus desperta se abre uma grande lótus; a luz escapa e começa um novo dia. Neste dia se sucedem 14 ritmos (Manvantaras) nos quais são criados os deuses e os mundos; os peixes; as aves; os insetos; os animais e os homens. Cerca de 71 séries de Grandes Eras se sucedem para cada um dos 14 ritmos. Cada ritmo, então, compreende 852.000 anos divinos ou 306.790.000 anos mortais nos que a energia divina vai se distanciando de seu centro. Assim, a história da presente humanidade se encontra num ritmo e dentro deste numa das 71 séries de Grandes Eras. Como cada grande era está dividida em 4 Eras desiguais, na primeira (Krita Yuga) transcorrem 4.800 anos divinos ou 1.728.000 anos ordinários; na segunda (Treta Yuga) 3.600 ou 1.296.000; na terceira (Dvapara Yuga) 2.400 ou 864.000, e na quarta (Kali Yuga) 1.200 ou 432.000. Por conseguinte, o ser humano tem que estar em todo este ciclo, 4.320.000 anos. Mas, como já se encontram na quarta Era, desde sua criação transcorreram pelo menos 3.888.000 de seus anos.               Distanciando-se da criação original todos os seres decaem e, certamente, também o ser humano segue essa tendência. A Krita é esta Era na que a justiça é eterna. Nesta Era, a melhor das Yugas, tudo foi (Krita) e nada fica por fazer. Os deveres não se descuidam nem declina a moral. Depois, com o passar do tempo, esta Yuga cai num estado inferior. Nesta Era não havia deuses; não havia compras nem vendas, não se tinha que fazer esforço.               O fruto da terra se obtinha pelo mero desejo e prevaleciam a justiça e o desapego do mundo. Não existiam enfermidades, nem involuções dos órgãos do sentido com o passar dos anos; não existiam a malícia, o pranto, o orgulho nem o engano; nem tampouco disputas, ódio, crueldade, medo, aflição, ciúmes ou inveja. De tal forma que o supremo Brahma era o recurso transcendente destes seres perfeitos. Nesta época todos os humanos eram semelhantes no objeto de sua fé e no seu conhecimento. Somente se usava uma fórmula (mantra) e um ritual. Somente havia um Veda. Mas na Era seguinte, Treta Yuga, começaram os sacrifícios. A justiça decresceu em um quarto. Os homens aderiram à verdade e estavam dedicados a uma justa dependência das cerimônias. Prevaleceram os sacrifícios, juntamente com as artes sagradas e uma grande variedade de ritos. Se começou a atuar com fins tangíveis, buscando recompensa pelos rituais e doações e já não se preocupavam com a austeridade e a simples generosidade. Mais adiante, na Dvapara Yuga, a justiça diminuiu duas quartas partes. O Veda se quadruplicou. Alguns estudaram quatro Vedas, outros três, outros dois e outros absolutamente nenhum. Dividindo-se deste modo as escrituras, as cerimônias eram celebradas de forma muito diversa. As pessoas ocupadas na prática de austeridade e donativos encheram-se de paixão. Devido à ignorância do único Veda, os Vedas se multiplicaram. E com o declínio do bem, somente uns poucos permaneceram fiéis à verdade. Quando o homem se separou do bem, na sua queda se viu atacado por muitas enfermidades, desejos e calamidades causadas pelo destino, sofrendo muitas aflições, e foram motivados a praticar austeridade. Outros perseguiram os gozos, a dita celestial e ofereceram sacrifícios. Assim, o homem desistiu por sua iniqüidade. E no Kali Yuga, a justiça conservou-se somente em uma quarta parte. Nesta era de obscuridade cessaram os rituais e os sacrifícios. Prevaleceram diversas calamidades, enfermidades, fadigas e pecados como a ira. Propagou-se a miséria, a ansiedade, a fome e o medo. As práticas geradas pela degradação dos Yugas frustaram os propósitos do homem. Assim é o Kali Yuga que vem existindo a alguns séculos 19.               Mas a pequenez da história do homem não teria sentido se nele não existisse o Brahma. Porque, o que são as 71 séries de Mahayugas nas que se cria e se destrói o homem se não um só dos 14 Manvantaras, e o que são estes se não um Kalpa, um só dia de Brahma. Em incontáveis reencarnações, a essência humana irá se purificando. Retrocedendo e avançando de acordo às suas ações, irá preparando suas vidas seguintes respondendo à lei universal do Karma. Mas dentro de cada ser humano, na profundidade mais profunda está seu Atman. Assim, quando o homem chega ao Atman se encontra com o que nele é Brahma. Entretanto, esta equivalência desconcertante somente será clara no dia em que se renunciando a feliz contemplação chegue aos homens a compaixão do ser vivente e liberado, conhecido pelos séculos como o Iluminado 20.

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               Glória à Brahma, que é chamado pela palavra mística (Om) 21 associada eternamente com o universo tríplice (terra, céu e paraíso) e que é único com os quatro Vedas. Glória ao Brahma que é considerado como a causa maior e misteriosa do princípio intelectual, sem limites de espaço ou tempo e isento de diminuição ou queda... Brahma é invisível e imorredouro, variável na forma, invariável na substância; o princípio primário, criado por si mesmo, de quem se diz que ilumina as cavernas do coração e que é indivisível, radiante, não decadente e multiforme. Que sempre se adore este Supremo Brahma! 22               

              As formas da beleza e o horror. 23               Por que os deuses haveriam de conceder seus dons à súplica dos insignificantes mortais? Por que tão grandiosos seres iriam se interessar por assuntos banais, pelas rixas e penas, esperanças e devoções? Por que será que tão grandes poderes estão designados a uma pequena região do Universo insondável? ;  Será porque em cada ponto em que brilha uma estrela dançam outros deuses de quem jamais se conheceu o destino?  Seja como for, os deuses mais próximos andam entre nós e se transformam para que os possamos ver. Também encarnam-se em mortais e em suas mil transformações percorrem a existência. Os antigos pais diziam que suas graças às oblações e a nossa ação reta os deuses aumentam seu poder. Isto explica porque às vezes recebemos favores deles e que de vez em quando tomem partido por uma causa justa, como retribuição à força que lhe damos. Opostamente, os demônios desejam crescer alimentando-se com a natureza torta das coisas e, crescendo, pretendem obscurecer o próprio céu. Os grandes poderes ajudam, também, o pequeno criado luminosamente, porque ainda no pequeno está sua própria essência. Não é estranho que em uma apózema, quase imperceptível pelo olho, nos arrisque se nela está o veneno ou nos ponha de pé se nela está a cura; assim ocorre com a apózema das ações humanas oferecidas aos bondosos deuses .               Mas algumas vezes os olhos puderam ver, se é que tal coisa em verdade pode ser vista com os olhos do corpo, ao grande deus do Todo. Assim apareceu ante Arjuna 24 em sua forma augusta e suprema...                Com multidão de olhos e bocas, com grande número de prodigiosos aspectos, com grande profusão de ornamentos divinos e agitando numerosas armas resplandecente; adornado com colares esplêndidos e ostentosas vestes; perfumados com aromas celestes; transbordando maravilhas; divino, resplandecente, infinito, com a face voltada a todas as direções. Se a luz deslumbrante de mil sóis surgiu uma vez no firmamento, poderia comparar-se ao resplendor daquele ser magnânimo. Ali, no corpo do Deus de deuses, Arjuna contemplou reunido o Cosmos inteiro na sua imensa variedade de seres. Surpreso de estupor e assombro, com o cabelo eriçado, o herói inclinou sua cabeça e, juntando no alto as mãos, falou assim à divindade: “Em ti, oh meu Deus, contemplo os deuses todos e as inúmeras variedades de seres; vejo assim mesmo a Brahma em seu trono de lótus e a todos os sábios e serpentes divinas. Por onde quer que seja contemplo tua infinitude; o poder de teus inumeráveis braços, a visão de teus inumeráveis olhos, a palavra de tua inumeráveis bocas, e o fogo vital de teus inumeráveis corpos. Em parte alguma veio o princípio, nem o meio, nem o fim, oh Senhor de forma infinita! Te olho com a fronte enrugada com a tiara e armado com a clava e o disco, espalhando por onde quiser, qual enorme ingente de luz, vivíssimos fulgores. Minha vista pode abarcar apenas tua imensidade, sem resistir a teu brilho, pois resplandeces como o fogo que ofusca e o sol que muito brilha.”               Mas Deus foi mudando de aspecto, mostrando sua face transformadora.               ...Os mundos, que nem eu, se amedrontam diante de sua forma monstruosa, com tal profusão de bocas e olhos, de braços, pernas e pés, de peitos e ameaçadores caninos. Pois ao ver-te alcançando o céu e resplandecendo com tal variedade de matizes; ao contemplar tuas bocas desmesuradamente abertas e teus enormes olhos fulgurantes, estremece minha alma... Ante tuas enormes mandíbulas armadas com dentes ameaçadores e ardentes como o fogo devorador do fim do mundo, meu ânimo se conturba e a alegria me abandona... Os príncipes e senhores da Terra correm atropeladamente a precipitar-se em tuas bocas horrendas eriçadas de formidáveis dentes. Alguns destes infelizes, com a cabeça triturada, vêem-se agarrados entre teus caninos agudos. Meu

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coração transborda de gozo diante da maravilha até agora oculta a toda vista humana, mas por sua vez se sobressalta de temor. Mostra-te, pois, oh meu Senhor, em tua outra forma... Anseio ver-te como antes, coroado com a tiara e empunhando a massa e o disco. Assume de novo tua forma de quatro braços; oh tu, que estás dotado de mil braços e de formas sem conta.               E novamente Deus voltou a sua forma humana.               ...Ao ver-te novamente em sua atraente figura humana, Krishna, serena-se minha razão e a calma renasce em meu peito. 25                O velho livro de Skanda Purana conta que um demônio chamado Durg que, havendo feito sacrifícios para oferecer a Brahma, recebeu deste sua benção. Com tal poder, desalojou os deuses do céu e enviando-os aos bosques obrigou-os a que o reverenciassem, inclinando a cabeça em sua presença. Logo aboliu as cerimônias religiosas e os deuses, debilitados por isto, discutiram uma possível solução ao transe em que estavam presos. Ganesa (filho de Shiva e de Parvati), sábio protetor dos empreendimentos humanos, balançando sua cabeça de elefante agitou os quatro braços e sugeriu que era necessário chegar até seus pais. De imediato, designou-se o rei delicado Hanuman, o astuto e veloz conquistador de territórios para que, chegando ao Himalaia, entregasse a súplica ao casal celestial... E ali nas alturas, eles meditavam em harmonia e paz. Hanuman explicou seus motivos. Então Shiva, apiedado pelas dificuldades que sofriam os jovens deuses, pediu à delicada Parvati que se encarregasse do problema. Parvati, em primeiro lugar, tranqüilizou a Hanuman e depois enviou a Noite para que em seu nome exigisse do demônio que restabelecesse a ordem nos mundos. Mas Durg, inundado de fúria mandou prender a Noite. Entretanto, ao gritar a ordem, com o alento de sua voz queimou seus próprios soldados. Recuperado, despachou seus guardas para prendê-la mas a Noite, escapando, procurou refúgio com sua protetora. Na maior escuridão, Durg, inflamado de ira,  subiu em seu carro de combate. Um exército de gigantes, cavalos alados, elefantes e homens arremeteu-se fulgurante e rubro contra as neves eternas do Himalaia. Com horroroso estrondo a ousada invasão pisou os sagrados domínios de Parvati mas ela, com um movimento gracioso, agitou com seus quatro braços as mortíferas armas dos deuses. Então, aconteceu que as tropas do arrogante Durg dispararam suas flechas contra a impassível figura que de pé no Himalaia se destacava a grande distância. Tão densa era a chuva de dardos que  se assemelhava a uma cortina de gotas de água de uma forte tormenta. Mas ela freiou o ataque com seus invisíveis escudos. Os agressores, partindo árvores e montes, se arrojavam contra a deusa... Até que esta respondeu. Ao lançar uma só de suas armas escutou-se um assobio aterrador; os cavalos alados relinchavam ao serem arrastados pelo furacão que sucedeu a lança de Parvati. De repente, seu ferrão arrancou os braços de milhares de gigantes, enquanto se chocavam, num espantoso impacto, quadrúpedes e cavaleiros. Flechas, estacas, massas e lanças que Durg lançava, a deusa repelia em fragmentos que destroçavam os invasores mais próximos. Durg, então, assumindo a forma de um enorme elefante lançou-se contra Parvati mas ela enlaçou as patas da besta e com suas unhas de cimitarra a cortou em pedaços. Do sangue caído emergiu um abominável búfalo que ao lançar sua investida ficou espetado no tridente de Parvati. Fugindo um pouco ferido Durg tomou então sua verdadeira forma, mas então a deusa já o havia levantado pelo ar e, ao jogá-lo contra o solo, a terra retumbou com voz de trovão. De imediato, Parvati afundou um braço nas faces do demônio e por elas retirou as palpitantes vísceras. Implacável, num poderoso abraço fez com que o corpo expulsasse o sangue a golfadas ao mesmo tempo em que o absorvia até que se esgotasse. Por último, para que Durg não renascesse devorou seus restos e, juntando os ossos pressionou-os tão fortemente numa mão que reduzidos a pó se incendiaram. E ao afrouxar os dedos, o vento gelado dos cumes somente levou como recordação uma minúscula porção de cinzas. Depois, descendo dos montes recebeu as oferendas dos deuses e  regressou ligeira para junto a seu amado Shiva. Assim, belíssima e terna, se deitou com ele na mais suave música e no mais delicado resplendor da imortalidade.    

              VII. MITOS PERSAS

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              O clamor de Zarathustra. 1               Quando Zarathustra fez trinta anos, abandonou sua terra e foi a um lugar distante. 2 Ali viveu numa caverna por muito tempo. Só se alimentava com um queijo que nunca diminuía e tomava a água pura da montanha. À noite o fogo falava com ele e assim, compreendeu o rumo das estrelas. Durante o dia, o sol lhe falava e assim, compreendeu o significado da luz. 3 Mas numa manhã muito cedo, chegou até sua caverna o clamor de animais da terra... Porque as vacas e os rebanhos tem alma, Zarathustra escutou esta grande alma, a Kine, pedir a Deus suas bênçãos. Elevando seu lamento, que era como um grande mugido, Kine disse: “Minha alma padece, Ahura Mazda. 4 Para quem me criaste? À imagem de quem me modelaste? Outorga-me o bem, impede que as tribos saqueadoras levem do vencido sua morte. Sinto que estou rodeada pela ira, pela violência, pelo açoite da desolação, uma insolência audaz e um impulso arrebatador. Salva meus animais, oh Ahura Mazda, tu que proporcionas os verdes pastos!”               Então, Zarathustra, na entrada de sua caverna olhou o dia e pediu a Ahura Mazda: “Permita que a Boa Mente de Zarathustra guie os que trabalham a terra para que esta dê bons pastos e fortaleça os rebanhos; para que as vacas dêem leite, e o leite, queijo, e o queijo nutra aos homens que lavram; para que nunca mais o saqueador destrua o povo e em troca converta-se em amigo que aprende a trabalhar e compartilhar. Assim, quero agradecer teus ensinamentos e o alimento que me destes. Recordo minhas perguntas inicias, quando em total candura as formulara faz já muito tempo e tu, benevolente, me fostes respondendo. Assim, eu te dizia: ‘Quem foi o primeiro pai?... Quem fixou o sol e as estrelas que todos os dias nos iluminam, seus caminhos invariáveis?... Quem fixou as leis mediante às quais cresce e míngua a lua? 5... Quem sustenta a Terra abaixo e quem sustenta as nuvens acima para que não caiam?... Quem fez as águas e as plantas?... Quem submeteu os ventos às nuvens de tormenta para que se movam a grande velocidade?... Quem, oh grande criador, é que inspira os bons pensamentos dentro de nossas almas? 6... Quem, como hábil artesão, fez a luz e as trevas?... Quem foi o autor do sonho e do deleite que se procura, às vezes, nas horas de vigília?... Quem fez nascer e difundiu as auroras, os meios-dias e as meias-noites, monitores para o homem e verdadeiros guias do dever? 7... Aumenta em realidade a piedade que amamos na ordem sagrada dentro de nossas almas? Para quem foi criada a mãe Kine produtora de gozos e benefícios, sem a qual nossa vida seria angustiosa? 8... E explicaste, oh Senhor da Luz, como o pai Yima foi o primeiro homem que falou contigo. 9 Assim disseste: ‘Pois eu te falei, oh Zarathustra, eu que sou Ahura Mazda’, e te disse: ‘Sede submisso, oh formoso Yima, pois tu és quem deve meditar e levar minha lei’. Então Yima, o formoso, me respondeu neste momento: ‘Eu não posso ser o que ensina, o que medita e o que leva a lei’. Então eu disse: ‘Se tu não queres obedecer-me, Yima, e chegar a ser o que ensina e leva a lei, então vele pelos mundos que são meus: torne meus mundos férteis. Obedeça-me em tua qualidade de protetor dos mundos: alimente-os e vele pro eles... Pois eu, que te levei as armas para a vitória, eu que sou Ahura Mazda. Uma lança de ouro e uma faca fabricada também com ouro...’ Então Yima se elevou até as estrelas, até o meio-dia, pela rota que segue o sol. E feriu esta terra com sua lança de ouro. E a rendeu com sua faca. E falou desta forma: ‘Oh Spenta Armaiti, oh, mãe Terra, primeira mãe... Executa com amor o que vou te dizer: marche em frente, caminha de lado de acordo com minha ordem. Tu que levas em teu seio gados, animais e homens’ E Yima caminhou depois sobre esta Terra que havia tornado fértil e que era em um terço mais apreciável do que antes. E sobre esta terça parte nova se espalharam os ganhos, os animais e os homens. 10 E os homens disseram: ‘Eu celebro a Ahura Mazda, o criador da criação pura. Eu celebro a Mithra que tem um vasto império. 11 Eu combato a Indra. 12 E aquele que dá a um ser impuro e mal, Haoma purificado, não faz uma obra melhor que a de matar mil cavalos. 13 E o primeiro pecado que existe entre os homens é quando alguém fala com palavras depreciativas de um homem puro a um homem que tem outra fé 14’”.               “Eu perguntei e tu respondeste a todas as minhas perguntas”, disse Zarathustra. “Porque o pai Yima não quis dar sabedoria, senão cuidar e estender seus domínios, é hora de que eu faça o que corresponde a teu ensinamento”.               

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              Luz e Trevas               Veja que se trata dos espíritos primitivos que foram conhecidos e declarados desde antigamente, como um casal que combina seus esforços opostos e, entretanto, cada um é independente em suas obras. Os dois são um melhor e outro pior, tanto em pensamentos como em palavras e obras. 15 Quando se reuniram os dois espíritos no princípio das coisas para criar a vida e a essência da vida e para determinar como deveria ordenar-se o fim do mundo, destinaram a pior vida, o Inferno, para os maus e o melhor estado Mental, o Céu, para os bons. 16 Quando cada um terminou sua parte na obra da criação, cada um deles escolheu o modo de formar seu reino, perfeitamente separado e distinto do outro. Dos dois, o mau escolheu o mal, retirando disto e obtendo disto o pior resultado possível, enquanto que o espírito mais bondoso escolheu a justiça. De tal modo escolheu aquele que se veste empregando como manto as pedras sólidas do céu. e escolheu, também, quantos agradam a ele, Ahura Mazda. 17 E entre estes dois espíritos, os demônios-deuses e aqueles que os adoram, são incapazes de escolher retamente, posto que ficaram como que enganados. Enquanto se formulavam perguntas e se debatiam em conselho, o Espírito Mal personificado se aproximou deles para que o escolhessem e fosse sua comitiva. Com isso tomaram uma decisão fatal. E feito isto, se lançaram juntos do demônio da fúria, para com ele e sua ajuda desonrar a vida dos mortais. 18 E as criações do Bem e do Mal lhes deu um corpo estável, permanente e sempre capaz e esforçado... E quando se houver enfrentado a grande batalha, que começou quando os Daevas 19 tomaram pela primeira vez o Demônio da Ira como aliado, e quando se houver cumprido a justa vingança sobre estes desventurados, então, oh Mazda!, tua Santa Mente dominando já dentro de teu povo, haverá ganho o reino para ti. 20 Dos dois primeiros espíritos do mundo, o mais bondoso disse assim ao daninho: “Nem nossos pensamentos, nem nossos mandamentos, nem nossa inteligência, nem nossas crenças, nem nossas obras, nem nossa consciência, nem nossas almas estão de acordo em nada! 21”               

              Os anjos e o Salvador. Fim do mundo, ressurreição e juízo.

              Mas agora a Luz de Ormuz (Aura Mazda) e a obscuridade de Ahriman (o Espírito da Mentira) lutam em cada coisa. Portanto, todos os seres tem sua parte boa e sua parte impura. Assim, é dever do santo (em quem predomina a luz), iluminar os homens fazendo retroceder a obscuridade. Mas no fim do mundo, a maldade aparentará seu triunfo ao confundir as mentes. Os bons serão perseguidos e a eles serão atribuídos todos os defeitos de que padecem os perversos, simulando estes a maior retidão. Mas será o momento em que Ormuz enviará seu filho Saoshiant para salvar o mundo. 22 Ele será ajudado pelos espíritos alados da luz que são os anjos e os arcanjos, assim como o tenebroso será auxiliado pelas hierarquias dos demônios. Tudo ficará enfileirado para a batalha final, e então, em cataclismo universal Ormuz derrotará Ahriman. Mas surgirá por império de Ormuz um mundo novo e puro. Os mortos ressuscitarão revestidos de um corpo glorioso. Os anjos e os arcanjos se voltarão ao poente... E resultará igualmente vitorioso no verdadeiro Poente do Juízo, pois a consciência do homem justo esmagará, não há  dúvida, o espírito do malvado, enquanto que a alma deste receberá repulsa e padecerá cheia de desespero no poente aberto de Kinvat, enquanto se esforçará em vão mediante obras e palavras maledicentes da língua por alcançar e contaminar as veredas de Asha pelas que chegam as almas fiéis. 23 O poente será firme e esplêndido ao passo do justo, mas começará a fechar-se ante o passo do réprobo e este cairá. No que se refere às almas dos que morreram em pecado, estas se reunirão com aqueles maus, que servem a seus também maus governantes, aos que falam com palavras más e aos que abrigam em seu interior más consciências. Tais almas sairão no inferno a dar a eles boas vindas e maus alimentos. E sua morada estará sempre na mansão da mentira. 24 ... Em troca, eis aqui a recompensa que Zarathustra anunciou ante todos seus amigos, os que seguem os conselho de Asha e são aptos para causa: Ahura Mazda virá, em primeiro lugar, a sua Mansão de Canções, Garodmán, e depois, à Boa Mente que está dentro de cada um os dará dons ao mesmo tempo em que os bendizerá. 25  

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              VIII. MITOS GRECO-ROMANOS 1

                            A luta das gerações de imortais.

              Do eterno Urano (Céu) e da mãe Gea (Terra) nasceram seis titãs que, com suas irmãs titânicas, engendraram uma geração de deuses. Mas é a partir do grande Cronos (Tempo), o mais jovem titã, que tudo começou a fluir de maneira que o seguinte sucede o anterior. Antes dele os tempos corriam aos pulos e em todas as direções: o passado sucedia o futuro e, às vezes, todos os instantes transcorriam num tropel concentrado. Na realidade, os mortais nada podem dizer de algo anterior ao começo das coisas (por isto é que alguns derivam de Cronos todo o pensável).               ... Pois bem, dos quantos que nasceram de Gea e Urano os mais terríveis de seus filhos estavam irritados com seus pais desde o começo, pois, cada vez que um deles ia nascer, Urano o ocultava no ventre de Gea sem deixá-lo sair e se deleitava com sua má ação. A monstruosa Gea, oprimida, se lamentava em seu íntimo e tramou uma malvada artimanha. Após haver criado uma espécie de aço branco fabricou uma foice e explicou o plano a seus filhos. Dirigiu-se a eles valente mas aflita em seu coração: “Filhos meus e de pai orgulhoso. Se quiserdes obedecer-me, vingaremos o malvado ultraje de vosso pai, pois foi ele quem começou a maquinar obras indignas”. Assim falou e todos foram tomados pelo temor, de modo que ninguém se atreveu a responder; mas o poderoso Cronos, astuto e cobrando ânimo, de imediato respondeu a sua respeitável mãe: “Mãe, eu te prometo que posso realizar esse trabalho, posto que não sinto preocupação nenhuma por nosso odiado pai, já que foi ele o primeiro a maquinar obras indignas”. Deste modo se expressou e a monstruosa Gea muito se alegrou em sua mente. Após ocultá-lo, colocou-lhe pronto para a emboscada; pôs em sua mão a foice de dentes afiados e ensinou-lhe toda a artimanha. Veio o poderoso Urano trazendo a noite e, desejoso de amor, lançou-se sobre Gea e espalhou-se por todas as suas partes. Seu filho, desde o esconderijo, o alcançou com a mão esquerda ao mesmo tempo que, com direita, pegava a monstruosa foice, larga, de dentes afiados e, com toda a destreza, ceifou a genitália de seu pai e jogou-a para trás. 2               Assim, Cronos substituiu seu pai no reinado do Universo. Depois se uniu a sua irmã Réia e com ela começou a engendrar filhos, mas os devorava quando chegavam do sagrado ventre da mãe aos joelhos, tramando isto para que nenhum outro nobre descendente obtivesse a dignidade real entre os imortais, porque através de Gea e do estrelado Urano havia se inteirado que tinha como destino morrer nas mãos de seu filho. Por isto não descuidava da vigilância mas, sempre à espreita, devorava seus filhos e Réia sofria terrivelmente. Mas quando ia dar a luz a Zeus, pai de deuses e homens, suplicou a seus pais (aos dela —a Gea e ao estrelado Urano) que a ajudassem no seu plano para que, sem que fosse percebido, parisse seu filho e vingasse a Erinias 3 de seu pai (e dos filhos tragados pelo grande Cronos de mente aguda). 4               Eles muito escutaram e obedeceram sua filha, ao mesmo tempo que contaram o que estava marcado pelo destino a respeito do que aconteceria ao rei Cronos e a seu valoroso filho, e a enviaram a Licto, um rico povoado de Creta, quando estava por dar a luz ao último de seus filhos, o grande Zeus. Este foi recolhido pela monstruosa Gea para alimentá-lo e educá-lo na grande Creta. Para lá foi, levando-o ao longo da rápida grande noite, primeiramente a Licto; pegando-o em seus braços,  o escondeu numa caverna escarpada, nas entranhas da divina terra, no monte Egeu, povoado de árvores. E envolvendo em lençóis uma grande pedra, colocou-a nas mãos do grande soberano Urânia, rei dos primeiros deuses. Aquele, então, agarrando-a com suas mãos, a colocou em seu triste ventre ! E não percebeu que, por trás, em lugar de uma pedra permanecia seu invencível e imperturbável filho que, de repente, submetendo-o com a violência de suas mãos, ia despojá-lo de seus atributos e ia governar entre os imortais. Rapidamente cresceu a força e os gloriosos membros do soberano e, ao chegar o momento oportuno, enganado pelas espertas

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sugestões de Gea, o grande e astuto Cronos vomitou seus filhos. Mas primeiro colocou para fora a pedra, posto que foi a última coisa que tragou. Zeus a fincou na terra de longos caminhos na sagradíssima Pitó, nas cavidades do Parnaso, para que fosse um símbolo para a posteridade, maravilha dos homens mortais. 5               A luta inevitável aconteceu entre o bando de Zeus, seus irmãos e aliados, e o de Cronos e os titãs. Já não continha Zeus sua força e num instante se encheram de cólera sua entranhas e mostrou toda sua violência; ao mesmo tempo, desde o céu e do Olimpo, avançava lançando raios de modo contínuo, e os raios, juntamente com o trovão e o relâmpago, revoluteavam em sua sagrada mão, fazendo dançar a sagrada chama. 6                De um lado e de outro a nutritiva terra ressoava ao se queimar e crepitava fortemente com o fogo a imensa selva; ferviam toda a terra e as correntes do Oceano e o estéril ponto. Uma ardente labareda envolveu os atônitos Titãs e uma chama imensa alcançou o divino ar e, mesmo sendo muito fortes, seus dois olhos ficavam cegos quando resplandecia o brilho do relâmpago e do raio. 7 Assim continuou a formidável luta até que os deuses, pegando os Titãs... enviaram-nos para baixo da terra de amplos caminhos e os acorrentaram com dolorosas correntes depois de tê-los vencido com suas mãos. 8 Ali estão ocultos, por decisão de Zeus, aquele que amontoa as nuvens, os deuses Titãs numa zona úmida, nos limites da imensa terra. 9               

              Prometeu e o despertar dos mortais               Salvei os mortais do dilúvio quando encarreguei Endimon e Pirra a construção de uma barca e depois expliquei-lhes como restabelecer o devastado, quando aquela desceu suavemente nos montes Tessálios. Amigo do conhecimento e da paz, num momento crítico e decisivo estou para alcançar meu objetivo: para isto beneficiei os mortais com a sabedoria. Às vezes acontece que essa mesma ciência é tornada vil pelos sonhos de domínio que os deuses infundem nos homens para que se percam, fazendo com que voltem às épocas obscuras das quais eu os resgatei. Mas, que haja fé no progresso! E quando os bandos se enfrentem repitam comigo esta depreciativa invocação que não por que seja vulgar é menos verdadeira: “Façam a guerra, mortais imbecis. Destrocem os campos e as cidades. Violem os templos, os sepulcros, e torturem os vencidos. Agindo assim, se arrebentarão todos! ” 10 E que sirva para algo esta advertência.               Assim como Zeus, eu, Prometeu, sou filho de Titãs. Ele nunca olhou com bons olhos que na luta divina me mantivesse à margem. E assim foi. Não por malignos que fossem os Titãs, melhor era Zeus e seus desígnios e altivez. Quando os olímpicos, por fim se apoderaram do governo do mundo, quiseram manter seu tirânico poder e, com sua crueldade, mutilaram o corpo e a mente dos frágeis humanos enxergando neles futuros inimigos. Encheram-lhes de superstição e de ignomínia e até hoje se respeita a mentira dessa tribo de imortais opressores. Que outro se não eu repartiu entre esses novos deuses todas suas preeminências? Mas silenciemos isto, que seria contar algo àqueles que sabem, e ouça os males dos homens e como de rudes que antes, os fiz atentos e reflexivos. O qual direi eu, não como queixa contra os homens, e sim para que vejas o quanto lhes foi dado pela minha boa vontade. Eles, a principio vendo, viam em vão; ouvindo, não ouviam. Semelhante aos fantasmas dos sonhos, ao longo dos séculos ainda não havia coisa que por ventura não confundissem. Nem sabiam como laborar com o ladrilho e a madeira as casas inundadas de sol. Debaixo da terra habitavam do mesmo modo que ágeis formigas no mais escondido dos antros onde jamais chega a luz. Não havia para eles estação certa, nem inverno, nem a florida primavera, nem o verão abundante em frutos. Faziam tudo sem atinar, até que não lhes tivesse eu ensinado os intrincados movimentos dos astros. Por eles inventei os números, ciência entre todas eminente, e a composição da letras, e a memória, mãe das musas, universal fazedora. Eu fui o primeiro que ungiu o jugo das bestas selvagens, que agora dobram o pescoço, para que substituíssem com seus corpos os mais fatigantes labores. E pus no carro os cavalos humildes com freio, ufania da opulenta pompa. E ninguém mais do que eu inventou esses carros de asas de linho que singram nos mares. 11 Aos homens tudo acontecia sem possibilidade que escolhessem por sua falta de conhecimento. Caíam doentes? pois não havia nenhum remédio, nem manjar, nem poção, nem bálsamo, senão que se consumiam com a falta de medicinas, antes que eu lhes ensinasse os

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saudáveis preparados com que agora se defendem de todas as enfermidades... Tal foi a minha obra. Então  as preciosidades, ocultas aos homens no seio da terra: o cobre, o ferro, a prata e o ouro, quem podia dizer que foram encontrados antes de mim? Ninguém, que eu o saiba, se já não quisesse jactar-se temerário. Como conclusão, ouvindo tudo em conjunto, é por Prometeu que têm os homens todas as artes. 12 E, por certo, deixarei que alguns, por obséquio aos olímpicos, contem ainda hoje sua falsa história...               “Quando os deuses e os mortais disputavam em Mecona, Prometeu, tratando de enganar o inteligente Zeus, com redobrado entusiasmo lhe ofereceu um enorme boi que havia dividido. Por uma parte colocou, na pele, a carne e as entranhas ricas em gordura, ocultando-as no estômago do boi; por outro lado, dispondo os ossos brancos com enganosa arte,   com eles o presenteou, depois de tê-los coberto com gordura branca. Diante disto, o pai dos deuses e dos homens lhe disse: ‘Japetônida, 13 famoso entre todos os soberanos, meu bom amigo, quão desigualmente fizeste as partes’. Assim falou em tom mordaz Zeus, conhecedor de imortais desígnios. Respondeu-lhe, por sua parte, o astuto Prometeu, com um leve sorriso, sem esquecer-se de seu enganoso artifício: ‘Zeus, gloriosíssimo, o maior dos sempiternos deuses, escolhe destas a que em teu peito o ânimo indique’. Falou com sinceridade, com mente enganosa, e Zeus, conhecedor de imortais desígnios, se deu conta e não ignorou a artimanha, porém em seu coração projetou contra os mortais homens males que, realmente, ia impor. Levantou com ambas as mãos a gordura branca; irritou-se do âmago de suas entranhas e a cólera contaminou seu humor quando viu os brancos ossos do boi na pérfida trapaça. Desde então, na terra as estirpes de homens queimam para os imortais brancos ossos sobre altares em brasa. E aquele Zeus, que amontoa as nuvens, muito irritado lhe disse: ‘Japetônida, conhecedor dos desígnios que se referem a todas as coisas, meu bom amigo, não esqueceste, de fato, da pérfida arte”. Desse modo se expressou, cheio de irritação, Zeus, sabedor de imortais desígnios, e a partir desse momento, lembrando-se da trapaça a cada instante, não outorgava aos freixos a força do incansável fogo para os mortais que habitam a terra. Mas zombou dele Prometeu, roubando num bambu oco a luz do incansável fogo que se vê de longe. E assim, atingiu profundamente, mais uma vez, o ânimo do altitonante Zeus, e seu coração se irritou quando viu entre os homens o brilho do fogo que de longe é percebido. Em troca, de imediato tramou males para os homens... Assim, não é possível enganar nem transgredir a vontade de Zeus, pois nem sequer Japetônida, o benfeitor Prometeu, escapou de sua pesada cólera, e sim pela força de uma grande corrente o reteve, apesar dele ser muito sábio.” 14               “Prometeu, de astutas decisões, foi atado (por Zeus) com ligaduras das quais não pôde se soltar, dolorosas corrente que foram colocadas em volta de uma coluna, e Zeus contra ele lançou uma águia de longas asas. Esta comia seu imenso fígado, mas este crescia de noite o mesmo tanto que a ave de veloz vôo tinha devorado de dia.” 15 Um mortal, Heracles, com sua flecha deu cabo da águia devoradora. Então Zeus, reconhecendo o feito, se conformou com o fato de eu carregar parte da corrente e da rocha que arranquei com a ajuda do herói. Com torpeza Zeus não quis ouvir as condições que eu tinha para benefício de ambas as partes. Somente quando lhe adverti sobre seu futuro ele viu o perigo e a contragosto compensou com minha liberdade o meu conselho do qual necessitava. E ainda obstinado, pensou que mesmo livre se esgotava meu tempo porque a imortalidade não me havia sido concedida. Mas Quiron, o bom amigo e educador dos mortais, trocou comigo o seu sino e escolhendo ele descer a Hades, deixou a eternidade em minhas mãos. Agora, depois de penúrias e fadigas, estimulando sempre a esperança, atraio os humanos para que também conquistem a liberdade e seu imortal destino.               

              Deméter e Perséfone. Morte e ressurreição da natureza 16

              Para Deméter canto, para ela e sua filha Perséfone, que foi raptada quando nos prados colhia flores. Cem botões brotaram da mesma raiz e ela, admirada, estendeu os braços para colher o formoso brinquedo; mas a terra se abriu em profundas fendas e surgiu o soberano Hades, carregado por corcéis imortais. E pegando-a contra sua vontade levou-a num carro de ouro

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enquanto esta chorava e gritava com voz aguda. Mas nenhum dos imortais nem dos homens mortais escutou sua voz... Contra sua vontade, então, por conselho de Zeus, a levou seu tio paterno nos cavalos imortais. Deméter procurou sua filha e durante nove dias e em suas noites não provou nem uma vez a ambrosia nem o delicado néctar dos deuses. Por todas as partes procurou seu rastro e ninguém pode lhe ajudar até que o Sol lhe disse: “Nenhum dos imortais é culpado senão Zeus, que amontoa as nuvens, que a deu a Hades, seu próprio irmão, para que a chamasse de sua florescente esposa; e Hades, raptando-a, a levou em seu carro na escuridão tenebrosa, enquanto ela proferia fortes gritos. Mas, oh deusa, cesse teu grande pranto: necessidade nenhuma tens de sentir sem motivo essa cólera insaciável, pois não é um genro indigno de ti”. Vermelha de furor a deusa abandonou a ágora dos deuses e o vasto Olimpo e desceu às cidades aos campos dos homens enfeando seu aspecto para que não fosse reconhecida. Mas os bens que Deméter distribuía ficaram presos em seu ânimo e, portanto, nada germinava nem dava frutos. Zeus, então, mandou chamar a ofendida deusa; mas esta recusou, desejosa que estava de reencontrar sua filha. Deste modo, o pai dos deuses mandou Hermes, o dos pés alados, para parlamentar com o infernal Hades, e aquele lhe disse: “Hades de celeste cabeleira, que reina sobre os mortos! O pai Zeus mandou-me para tirar de teus domínios a divina Perséfone a fim de que sua mãe, vendo-a, perca a ira contra os imortais. Porque ela maquina este grave propósito: destruir a débil raça dos terrígenas homens, escondendo a semente dentro da terra e acabando assim com as honras dos imortais. E, presa de terrível cólera, não se junta com os deuses”. Hades recomendou de imediato que Perséfone partisse. Esta pulou de alegria; mas ele, atraindo-a para si, deu-lhe de comer misteriosamente um doce grão de romã, para que não ficasse sempre para lá, ao lado da venerada Deméter. Depois Hades entregou seu carro a Hermes e este, acompanhado pela Perséfone, iniciou o regresso.  O reencontro da mãe com a filha comoveu os deuses e o grande vidente Zeus mandou estar com elas a mão Réia, de maneira que no encontro esta lhe disse:  “Vem cá filha! Chama o tonante Zeus para que vá às famílias das deidades; prometeu dar-te as honras que quisesse entre os imortais deuses; e assentiu com a cabeça para que, no transcurso do ano, tua filha passe um terço do tempo na escuridão tenebrosa e os outros dois contigo e com os demais imortais. Assim disse que se cumpriria e ratificou com um movimento de sua cabeça. Porém olha, filha minha, e obedece. Não te irrites em demasia e faz crescer rapidamente os frutos de que vivem os homens.” Assim disse; e não desobedeceu Deméter, a da bela coroa, que em seguida fez com que saísse fruto dos férteis campos. Toda a vasta terra se encheu de folhas e flores e a deusa foi mostrar aos reis que administram justiça, o mistério das coisas sagradas; e a todos eles explicou os venerados mistérios, dos quais não é lícito descuidar, nem esquadrinhar, nem revelar, pois o grande respeito à deusa tira a voz. Feliz, entre os homens terrestres, o que os contemplou; pois o não iniciado nesses mistérios, o dos quais não participa, não alcança jamais uma sorte como a do outro, nem mesmo depois de morto, na escuridão tenebrosa. Mas, depois que a divina entre as deidades deu a conhecer todas estas coisas, ambas partiram em direção ao Olimpo para se juntar com os demais deuses.               

              Dionísio, a loucura divina               Nenhum de nós sabe nada de nada; nem sequer isto mesmo de nós sabemos ou não sabemos, nem se sabemos que sabemos ou que não sabemos; nem se em suma existe algo ou não existe. Porque as coisas são o que cada um crê delas. 17 Portanto, a razão deve ser movida e abrir outro horizonte para que os deuses falem.               Começo cantando ao buliçoso Dionísio, coroado de hera, ilustre filho de Zeus e da gloriosa Semele, criada pelas ninfas de formosas tranças, depois de recebê-lo em seu seio das mãos do soberano pai; e por vontade de seu pai cresceu numa perfumada caverna, figurando no número dos imortais. Criado pelas deusas aquele que devia ser objeto de tantos hinos, costumava freqüentar os despenhadeiros selvagens, coroado de hera e de louros; as ninfas o seguiam e ele as guiava; o estrépito enchia a imensa selva. Assim, salve, oh Dionísio. O de muitos cachos! 18                Duvidando Semele que seu amante fosse mesmo Zeus, pediu que ele se manifestasse em todo seu poder. Quando o olímpico a satisfez, sua aparição foi tão grandiosa e terrível que ela morreu fulminada. Seu filho sem nascer foi arrancado de seu seio pelo deus, mas

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faltando-lhe tempo suficiente para a gestação, Zeus cortou seu próprio músculo e enxertando-o ali logo costurou a ferida. Quando chegou o tempo, seu pai o extraiu vivo; por isso é chamado “Dionísio”, “Zeus jovem”, ou também “o nascido duas vezes”. Mas Hera enciumada de Zeus por seus amores com Semele, procurou a criança recém nascida para acabar com ela. Por isto, Dionísio teve que ser levado ao Egito e educado em profundas cavernas e, para maior segurança, o pai Zeus o transformou num cabrito. Era já um jovem quando Dionísio fabricou o vinho da uva. E lá foi descoberto pela vingativa Hera que, enlouquecendo-o, fez com que vagasse por muitos países até que a asiática Cibeles, Grande Mãe de muitos povos, o purificou lhe devolvendo a razão através de misteriosos procedimentos. Rodeado de bacantes, foi levado à parreira de povo em povo. Em um deles, um tirano quis destruir a planta sagrada, mas enlouquecido cortou sua próprias pernas e seus súditos o esquartejaram para afastar a maldição do deus. Chegando na Índia submeteu os povos com sua embriaguez e seus ritos e depois voltou para a Grécia. Ali seu culto sofreu a resistência de outro governante que, em conseqüência, foi despedaçado por mulheres tomadas de delírio báquico. De região em região, quis chegar às ilhas gregas e, para isso, ficou nas praias esperando que passasse algum navio. E isto finalmente aconteceu, mas os marinheiros tiveram a idéia de fazê-lo prisioneiro para vendê-lo como escravo. Foi assim que a tripulação viu crescer parreiras por todo o barco enquanto jorros de vinho brotavam das coberturas e Dionísio, transformado em leão, rugia ameaçador. Enlouquecidos, se jogaram ao mar, ficando transformados nesses delfins que até hoje rodeiam as embarcações, sempre tratando de explicar aos navegante seu confuso destino. Mas Dionísio continuo sua obra missionária...Encontrando a cretense Ariadne (aquela que com seu fio conseguiu desvendar os labirintos do Minotauro), redimiu sua amorosa pena. Continuou em frente o deus em seu carro puxado por panteras, cingida sua fronte com folhas de parreira e hera, tomando em suas mãos o tirso divino. Em cada povoado que chegava instituía seu culto, e nas noites, ao fogo de fogueiras, seus devotos embriagados dançaram ao som de pandeiros, chifres e flautas. Em êxtase divino os bacantes abatiam as pretensões da razão e quando voltava o juízo duvidavam do visto antes e depois. Por isto, ao celebrar o obscuro Dionísio no luminoso Apolo, a fusão de seus ensinamentos a alma humana cedeu a ferocidade de seu instinto desatado, e a razão afastada baixou a compreensão de sua profundezas. E assim, quando a vingativa Hera reconheceu o mérito de Dionísio, este pode regressar ao Olimpo. No entanto, desceu antes aos infernos e daí resgatou para vida a triste sombra de sua mãe Semele.  

              IX. MITOS NÓRDICOS. 1

                            Yggdrasil, a árvore do mundo.

              Nos horizontes de gelo, nos frios invernais do Grande Norte, o que pode haver de mais querido que a árvore, germe do fogo, pele quente e protetora da horda guerreira, corpo de serpente que nos leva na incursão viking, ferramenta do campo fértil, testemunha do compromisso que celebramos ante ela! Amamos a planta e ainda que o sol seja de ouro sentimo-lo vegetal. Por isso sempre sonhamos que o fim deste mundo ocorrerá quando o Lobo devorar o sol, quando uma camada escura pousar na terra, quando as plantas morrerem. Descendemos de Ask (“freixo”) e Embla (“olmo”) dos formosos troncos caídos que, pela vontade dos deuses —dos Ases formadores— voltaram à vida como seres humanos.               Mas depois, já em casa, potentes e afáveis, três Ases vieram daquela família; por terra encontraram, com pouco vigor, a Ask e a Embla ambos sem sorte. Nem ânimo, então, nem gênio tinham, nem vida ou palavra, nem boa cor: Odim deu-lhes ânimo, Honir deu-lhes gênio, Lódur deu-lhes palavra e boa cor. 2               Ases e Asíneas também amam a árvore, por isso ali se reúnem e deliberam. Mas melhor é que dialoguem sobre estas coisas aquele que sabem fazê-lo:                Então Gangleri disse: “Qual é a cidade principal ou o lugar sagrado dos deuses?” Har responde: “É o freixo Yggdrasil; ali tem seu tribunal todos os dias”. Então Gangleri

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disse : “O que pode contar-se desse lugar?” Então Jafnhár disse: “Este freixo é a maior e melhor de todas as árvores: seus ramos se estendem por todos os mundos e vão mais além do que o céu. Sustentam a árvore três raízes que se estendem dilatadamente: uma chega onde os Ases 3, e outra onde os gigantes do gelo, onde em tempos antigos esteve o Ginnungagap; 4 e a terceira está sobre o Niflheim 5, e abaixo desta raiz esta Hvergelmir 6; Nidhogg 7 mordendo as raízes. E abaixo da raiz que vai até os gigantes do gelo esta a fonte de Mímir 8, e nela estão ocultas a sabedoria e o conhecimento; Mímir se chama o dono dessa fonte e está cheia de ciência porque bebe desta fonte com o Gjallarhorn. Para lá foi Allfödr (Odin) e pediu que lhe deixassem beber da fonte, mas não o conseguiu até que deixou o seu olho em troca 9. Alguns dizem que Odin, grande viajante, buscando sempre a sabedoria foi a outros países. Ali desceu às profundezas das minas e apoderando-se do anão Alberico (dizem), o fez entregar o elmo que tornava-o invisível, e o anel possuidor do grande segredo do ouro de Rin que o gnomo havia roubado da custódia ondina. Também os gigantes Fafnes e Otr disputaram por isso com Odin. Um com o crânio quebrado ficou desfalecido e o outro transformado em dragão viveu defendendo o tesouro dos Nibelungos; até que Sigfrido (nosso Sigurd) matou-o apoderando-se do anel criador de tantos males, males que continuaram e que finalmente acabaram com todos aqueles que com que ele haviam tido contato. Porque somente a sabedoria de Odin pode manipular essas forcas. Odin, que consulta às vezes os abandonados e que se lança a toda missão por essa “sede” que o invadiu, como não tinha que ir até as Nornas para tomar a água do conhecimento ?               “Odin suplicou às três Nornas, e estas deixaram-no beber a água desse manancial. As nornas ironizaram: nada de água do vereno se Odin não lhes desse um de seus olhos, símbolo de sua lucidez. Fascinado pelo manancial, Odin aceitou o trato. Malditas foram as três mulheres que lancearam seu rosto para colher seu bem.” 10.                A terceira raiz do freixo está no céu, e abaixo dessa raiz há uma fonte muito sagrada que se chama fonte de Urd: Lá os deuses têm seu tribunal. Todos os dias por lá cavalgam os deuses cruzando o Bifröst, que também se chama ponte dos Ases. Os cavalos dos Ases são mais de dez. O cavalo de Balder foi queimado com ele. De todos eles... Sleipnir é o melhor, é o de Odin, e tem oito patas.                Então Gangleri disse: “Há fogo ardendo no Bifröst?” Har disse: “O que vês trovejar no arco-íris é um fogo; os gigantes do gelo e os gigantes dos montes subiriam ao céu se pudessem cruzar o Bifröst todos os que quisessem fazê-lo. No céu há muitos lugares formosos, e todos eles gozam da proteção divina. Existe lá uma bonita sala abaixo do freixo , junto à fonte e dela vem três donzelas que se chamam assim: Urd 11, Verdandi 12, Skuld 13. Estas donzelas modelam os dias dos homens e as chamamos Nornas e existem ainda outras Nornas que vem a cada homem ao nascer para modelar seus dias e são de linhagem divina: outras são da linhagem dos elfos, e três da linhagem dos gnomos...” São, pois, de origem muito diferente porque algumas são dos Ases, outras dos elfos, outras dos gnomos e, como sabemos, outras são dos homens.               Então, disse Gangleri: “Se as Nornas regem o destino dos homens, o fazem de maneira muito desigual, pois alguns têm vida boa e próspera, outros são pobres ou pouco ilustres, uns têm longa vida e outros, breve”. Hár, disse: “As Nornas  boas e de boa linhagem modelam a vida boa. Mas os maus destinos dos homens estão regidos pelas más Nornas”.               Então, disse Gangleri: “Que outras maravilhas podem ser ditas do freixo?” Hár, diz: “Muito há para se dizer. Uma águia se senta nos ramos do freixo e é muito sábia: entre seus olhos senta-se um falcão que se chama Vedrfölnir. Uma esquilo, chamada Ratatosk, sobe e desce correndo pelo freixo , e leva fofocas...E quatro cervos correm pelos ramos do freixo e mordiscvam o borralho; chamam-se assim: Dáinn, Dvalinn, Duneyr, Durathrór...Diz-se, também, que as Nornas que vivem na fonte de Urd tomam água da fonte todos os dias, e o lodo que existe em torno da fonte, e humedecem o freixo para que não se resseque ou apodreçam seus ramos. Mas a água é tão sagrada que todas as coisas que chegam à fonte voltam tão brancas como isso que chamamos clara, que está dentro da casca do ovo. O orvalho que dele cai sobre a terra o chamam os homens de orvalho de mel e dele se alimentam as abelhas. Duas aves se alimentam na fonte de Urd, chama-se Cisnes, e dessas aves vem a espécie de aves que assim é chamada” .14

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              Thor, as valquírias e o Valhala. O guerreiro e seu céu.

              De todos os Ases, Thor é o mais forte. Em seu reino existe a maior moradia que se conhece. O deus se desloca em seu carro puxado por dois grandes cabritos e leva consigo seus três poderes: o martelo Mjöllnir, que é como o trovão e que conhece bem os crânios dos trols de gelo e dos gigantes dos montes. Seu outro poder reside no cinturão com que aumenta sua força quando ele o ajusta. Por último, com o poder de suas luvas de ferro pega seu martelo e graças a eles não escapa dele o mango quando dá violentos golpes. Tremenda é a força de Thor, mas ele não está sozinho nos campos de batalha. Quando a batalha começa, as valquírias cavalgam e escolhem os que serão destinados a morrer com valor. Elas arrebatam os heróis e fazem com que cheguem até o Valhala 15. E eles dispõe das enormes portas e das salas construídas com escudos; lá estão as mesas e as jarras, lá comem javali e bebem 16. E a cada dia, quando já se vestiram, pegam suas armas e vão aos campos e lutam e um derruba o outro; este é seu entretenimento. E quando chega a hora da refeição do dia, voltam em seus cavalos ao Valhala e sentam-se para beber. Entrelaçam seus braços numa longa corrente e como que movidos pelo vento do céu ou pelas ondas do mar, se agitam para a direita e esquerda enquanto cantam com estrondo. Depois, amigos entre si, comem.               

              Ragnarók, o Destino dos deuses 17.                Virá aquele inverno que se chama o Terrível Inverno. Nevará de todo lado. Grande será a geada e fortes serão os ventos, não haverá poder algum no sol. Três invernos se sucederão e não haverá estio entre eles. Antes haverá outros três invernos e em toda a terra haverá grandes batalhas. Naquele tempo, o irmão motivado pela cobiça, matará o irmão e os nomes de pai e filho se esquecerão na matança e no incesto. 18                E a velha Adivinha, fechando os olhos disse em sua canção, em seu Völuspá: “Feroz late o cachorro guardião do inferno; vai quebrar a corrente, vai libertar-se a fera; muito sei eu, mais longe vejo: a hora fatal dos fortes deuses. 19 Surgirão entre irmãos lutas e mortes, parente próximos discórdias terão; um tempo de horrores, de muito adultério, de machados, de espadas, de ventos, de lobos; anúncio será da queda do mundo”. 20               Acontecerão, então, grandes coisas: O Lobo devorará o sol e isto será um grande mal para os homens. O outro Lobo devorará a lua e isto produzirá grandes males. Não restarão estrelas no céu. Serão cumpridas também estas novas: toda a terra tremerá e os penhascos, de tal modo que as árvores se desenraizarão da terra e cairão nos penhascos, e serão rompidas todas as ataduras e correntes. Soltar-se-á de suas correntes o lobo Fenris. O mar inundará a terra porque a Serpente que rodeia a Terra agitará o mar e avançará com uma fúria gigante sobre a terra. Também a nave Naglfar irá ao mar. (A nave que leva este nome é feita com unhas dos mortos. Por isso convém advertir que se alguém morre e não lhe cortam as unhas, é aumentado o material para a construção de Naglfar, o que os deuses e os homens querem retardar). Sobre essa alta maré, Naglfar navegará. O gigante que conduz a nave se chama Hrymir. O lobo Fenris avançará com as mandíbulas abertas e sua mandíbula inferior tocará a terra e a superior o céu. E a abriria mais se houvesse lugar. Soltará fogo pelos olhos e pelas narinas. A Serpente que Rodeia a Terra irá lançar um veneno que infestará toda a terra e toda a água, e será terrível e estará ao lado do lobo. Nesse fragor o céu se partirá e os filhos de Múspel cavalgarão até aí...Odin cavalgará para o poço de Mimir e pegará conselho de Mimir sobre ele e seu exército. O freixo Yggdrasil tremerá e não haverá nada que não tenha medo no céu ou na terra. Os Ases e todos os guerreiros colocarão as armaduras e avançarão para o campo. Primeiro cavalgará Odin com um elmo de ouro e uma bela armadura e a lança chamada Gungnir. Avançará sobre o lobo Fenris e Thor estará a seu lado mas não poderá servir-lhe de nada porque suas mãos estarão atarefadas na luta com a Serpente...Thor matará a Serpente e caminhará nove passos a partir desse ponto. Cairá morto depois por obra do veneno que nele verteu a Serpente. O Lobo devorará Odin, este será seu fim. Em seguida, Vitharr avançará e colocará o pé na mandíbula do lobo. Com uma mão pegará a mandíbula superior do

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Lobo e lhe romperá o paladar e esta será a morte do Lobo. Loki batalhará com Heimdallr e um matará o outro. Em seguida Surtr lançará fogo sobre o solo e queimará todo o mundo. 21               O que restará, então, do céu e da terra? O que será dos deuses? Eu, a Adivinha, digo: as imagens dos deuses e da terra e da antiga gente terão se evaporado como uma alucinação, igual àquela que Thor padeceu quando acreditou que o venciam. Terá evaporado a ilusão de um mundo e dos deuses correspondentes a esse mundo. Então, os homens que estavam escondidos terão como alimento o orvalho da manhã. A terra será formosa e verde; dará frutos sem que seja semeada e serão feitos palácios no ar. Todos se reunirão e conversarão e recordarão sua antiga sabedoria e falarão dos fatos que aconteceram, da Serpente que Rodeia a Terra e do Lobo Fenris. Também encontrarão no pasto essas peças de ouro com as que jogavam os ases em seus tabuleiros. A humanidade estará pronta para aprender e por isso caminhará entre os deuses. Mas agora nada mais tenho a acrescentar porque essas coisas todavia não se cumpriram. Eu, a Adivinha, silencio sobre os tempos vindouros e em meu silêncio compreendo o que sente o último viking...               De Haki escutou-se a voz, enquanto sua longa serpente se dirigia para o mar. De Haki escutaram-se as frases que a seu filho dirigia, enquanto a bruma em denso manto se  fechava em suas costas. Um vermelho esplendor queimou a névoa e o rugir das ondas beijou o rumor de suas palavras:               “Que não lhes confundam essas fábulas com as que tornamos inocente o saber que recebemos. Por agora vocês terão que se dirigir a estranhas pessoas, intolerantes pessoas que apagam a memória de outros povos. A eles agradará escutar que o Yggdrasil vai ficando murcho porque Odin cortou um de seus ramos para fazer sua lança. Eles irão mover sua língua com deleite porque Odin perdeu um olho. Eles se regozijarão porque nosso céu cai com espantoso rugido e lhes parecerá que isso prediz sua alvorada. Desta forma contamos nossas coisas, mas eles nada sabem...O Yggdrasil levanta-se imenso e nas noites refulge; todo o céu gira em torno do eixo de seu Grande Norte enquanto seu ápice toca a estrela fixa e o sol gira débil nos horizontes gelados. Eles celebrarão seu mais importante dia com nossa árvore nevada e em sua cúspide estará a estrela fixa, e nessa noite lhes enviaremos presentes descendo do céu num trenó dourado puxado por renas. Em seus sonhos e contos habitarão nossos duendes, trols, gigantes e anéis encantados. Nossos bosques os chamarão e quando virarem a cabeça muito rápido chegarão a ver um elfo; escutarão o canto da ondina nos riachos rumorosos e procurarão o pote de ouro que deixam o gnomo atrás do arco-íris...Mas já vamos! Em nossos ventisqueros e geleiras irrompe o vulcão e o géiser projeta seu calor. Ajusta sua mão ao timão, filho e amigo! Já deixamos os Fiordes conhecidos. Nas auroras boreais os deuses, dançando, mudam de cor, enquanto nós aqui embaixo cavalgamos as ondas do mar furioso”. 22  

X. MITOS AMERICANOS                             Popol Vuh (Livro do povo Quichés) 1              

              A história perdida               Já não se vê o assim chamado Popol Vuh onde se via claramente a vinda do outro lado do mar 2, a narração de nossa escuridão e se via claramente a vida. Este livro é o primeiro livro, pintado outrora 3, mas sua face esta oculta hoje ao que vê, ao pensador. Grande era a descrição e o relato de como se terminou de formar todo o céu e a terra, como foi formado e repartido em quatro partes, como foi marcado e o céu foi medido e se trouxe a corda de medir e foi estendida nos três quadrados: o do céu, o da terra e o do mundo subterrâneo.               

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              As gerações humanas: o homem animal, o homem de barro, o homem de madeira e o homem de milho.

               1- Enquanto os Formadores trabalhavam, pensaram que quando fosse feita a claridade, tinha que aparecer um ser que os invocasse e para isso devia saber falar, nomear. E havia de comer, beber e respirar. Para o futuro ser, criaram um mundo adequado que tinha terra, água, ar, plantas e animais. E estando terminada a criação, disseram aos animais: “Falem e louvem-nos. Mas não se pôde conseguir que falassem como os homens; somente chiavam, cacarejavam e grasnavam; não se manifestou a forma de sua linguagem e cada um gritava de maneira diferente. Quando o Criador e o Formador viram que não era possível que falassem, disseram entre si: “Não foi possível que eles dissessem nosso nome, o nosso, o de seus criadores e formadores. Isto não está bem.” Disseram entre si os Progenitores. Então disseram-lhes: “Serão modificados porque não se conseguiu que falassem. Mudamos de parecer: seu alimento, seu pasto, sua habitação e seus ninhos os terão: serão os barrancos e os bosques, porque não se pôde conseguir que nos adorassem nem nos invocassem... Aceitem vocês seu destino: suas carnes serão trituradas.” E os animais serviram de alimento uns dos outros.               2- Então, ao se aproximar a aurora, disseram entre si que deviam se apressar e realizar outra tentativa. De terra, de lodo fizeram a carne do homem. Mas viram que não estava bem porque se desfazia, estava mole, não tinha movimento, não tinha força, caia sozinho, estava aguado, não mexia a cabeça, a face caia para um lado, tinha a vista escurecida, não podia olhar para trás. No princípio falava mas não tinha entendimento. Rapidamente se umedeceu dentro da água e não pôde se sustentar. Então desfizeram sua obra e discutiram em conselho.                3- Decidiram fazer um homem de madeira e assim procederam. Num instante foram feitos os bonecos lavrados na madeira. Se pareciam com o homem, falavam como o homem e povoaram a superfície da terra. Existiram e se multiplicaram; tiveram filhas, tiveram filhos os bonecos de pau, mas não tinham alma nem entendimento, não se lembravam de seu Criador, de seu Formador; caminhavam sem rumo e andavam de quatro. Já não se lembravam do Coração do Céu e por isso caíram em desgraça. Foi somente um ensaio, uma tentativa de fazer homens. Falavam ao princípio, mas sua face estava seca; seus pés e suas mãos não tinham consistência; não tinham sangue nem substância, nem umidade, nem gordura; suas faces estavam secas, secos seus pés e suas mãos... Em seguida foram aniquilados, destruídos e desfeitos os bonecos de pau e receberam a morte. Uma inundação foi produzida pelo Coração do Céu; um grande dilúvio se formou e caiu sobre as cabeças dos bonecos de pau... Chegaram, então, os animais pequenos e os animais grandes, e os paus e as pedras bateram-lhes na cara. E se puseram todos a falar; suas tigelas, seus pratos, suas panelas, seus cachorros, suas pedras de moer, todos se levantaram e lhes bateram na cara. “Muito mal nos faziam; nos comiam e nos agora os morderemos,” disseram-lhes seus cães e seus pássaros de gaiola... E por sua vez suas panelas falaram a eles assim: “Dor e sofrimento nos causavam. Nossa boca e nossos rostos estavam enegrecidos, sempre estávamos colocados sobre o fogo e nos queimavam como se não sentíssemos dor. Agora provarão vocês, os queimaremos”, disseram as panelas. Desesperados, corriam de um lado para o outro; queriam subir sobre as casas e as casa caiam e os lançavam ao solo; queriam subir nas árvores, mas as árvores os atiravam longe; queriam entrar nas cavernas e as cavernas se fechavam diante deles. Assim foi a ruína dos homens que haviam sido criados e formados, dos homens feitos para serem destruídos e aniquilados: de todos foram destroçadas as bocas e as caras. E dizem que a descendência daqueles são os macacos que existem agora nos bosques... E por esta razão o macaco se parece com o homem, é a prova de uma geração de homens criados, de homens formados que eram somente bonecos e feitos somente de madeira.               4- Os Formadores debateram e decidiram colocar alimento e bebida saudável no interior do ser humano, por isso de milho branco e amarelo formaram sua carne e prepararam líquidos com os quais fizeram seu sangue, produzindo sua gordura e vigor. E como tinham aparência de homens, homens foram; falaram, conversaram, olharam e ouviram, caminharam,

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pegavam as coisas; eram homens bons e formosos. Foram dotados de inteligência; olharam e prontamente se estendeu sua visão, chegaram a ver, chegaram a conhecer tudo que existe no mundo... As coisas ocultas pela distancia as viam todas sem ter primeiro que se mover; em seguida viam o mundo e, assim mesmo do lugar onde estavam, o viam... E em seguida acabaram de ver o quanto existia no mundo. Depois deram graças ao Criador e ao Formador: “Em verdade lhes damos graças duas ou três vezes! Fomos criados, nos foi dada uma boca e uma cara, falamos , ouvimos, pensamos e andamos; sentimos perfeitamente e conhecemos o que está longe e o que está perto. Vemos também o grande e o pequeno no céu e na terra...” Acabaram de conhecê-lo todo e examinaram os quatro cantos e os quatro pontos da abóbada do céu e da face da terra. Mas o Criador e o Formador não escutaram isso com gosto. “Não está bem o que dizem nossas criaturas, nossas obras; tudo sabem, o grande e o pequeno, disseram”. E assim se reuniram em conselho novamente os progenitores: “O que faremos agora com eles? Que sua vista alcance somente o que está perto, que somente vejam um pouco da face da terra! Não está bom o que dizem: Acaso não são pela sua própria natureza simples formas e criaturas nossas? Terão de ser eles também deuses? E se não procriam e se multiplicam quando saia o sol? E se não se propagam?” Assim disseram... Assim falaram e em seguida modificaram a natureza de suas obras, de suas criaturas. Então o Coração do Céu lançou-lhes um vapor sobre os olhos, os quais se embaçaram como quando se sopra sobre a superfície de um espelho. Seus olhos se escureceram e só puderam ver o que estava perto, só isto era claro para eles. Assim foi destruída sua sabedoria e todos os conhecimentos dos homens, origem e princípio da raça Quiché... Aí estavam suas mulheres quando despertaram, e num instante se encheram de alegria seus corações por causa de suas esposas. 4               

              Destruição do falso Principal Guacamayo pelas mãos de Mestre Mago e Bruxinho 5.

              Não havia, então, mais do que uma luz confusa na superfície da terra, não havia sol. E um, chamado Principal Guacamayo, se orgulhava. No princípio havia o céu,  a terra, mas ocultas estavam as faces do sol, da lua. Ele, então, dizia: “Em verdade, a posteridade desses homens abandonados é extraordinária”.               Principal Guacamayo dizia isso porque haviam ocorrido grandes dilúvios de água e também de uma substância como resina escura que caiu dos céus 6. Durante muito tempo os homens tiveram que caminhar por lugares desconhecidos fugindo do frio e procurando alimento. 7 Usavam o fogo mas quando este se apagou tiveram que inventá-lo friccionando madeiras. No princípio se encontraram com o mar e caminhando sobre ele no meio de imenso frio, chegaram em outras terras. E o sol e a lua não eram vistos. As tribos tinham se separado tanto ao longo do tempo que quando um grupo se encontrava com outro já não se entendiam. Era o tempo em que se procurava o sol que esquenta e os bosques e os animais. Não haviam casas e somente as peles de algumas feras serviam de abrigo. Mas quando os povoadores primeiro chegaram às terras cheias de selvas e rios e vulcões, Principal guacamayo todavia queria fazer com que acreditassem que ele era o sol e a riqueza.               “Eu sou, pois, grande acima do homem construído, do homem formado. Eu o sol, eu a luz, eu a lua. Que assim seja. Grande é a minha luz. Por mim andam, caminham os homens. Meus olhos, em metais preciosos resplandecem, de gemas, de verdes esmeraldas. Meus dentes brilham com seu esmalte como a face do céu. Meu nariz resplandece ao longe como a lua...Assim dizia Principal Guacamayo mas, na verdade, Principal Guacamayo não era o sol.                Dois deuses, dois engendrados que se chamavam Mestre Mago e Bruxinho, espiavam Principal Guacamayo quando trepava numa árvore para comer suas frutas. Depois, Principal Guacamayo foi alvejado com zarabatanas por Mestre Mago, que lhe colocou a bala da zarabatana na mandíbula; gritou a voz na garganta ao cair da árvore no solo. Mestre Mago correu com a intenção de ir matá-lo mas, ao chegar até ele, foi agarrado violentamente, foi sacudido, até que Principal Guacamayo arrancou um de seus braços fugindo com ele. Chegando em sua casa, colocou o braço no fogo para que seu dono viesse buscá-lo. Por sua parte, os dois engendrados

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partiram em busca de seu avô Grande Cerdo da Aurora e de sua avó Grande Tapir da Aurora e com eles tramaram um ardil. Convertidos em duas crianças, os dois engendrados acompanharam seus avós à casa de Principal Guacamayo. Vendo-os chegar, o chefe Guacamayo estava tão extenuado pela dor de sua mandíbula que se dirigiu aos estranhos: “Que fazeis? O que curais ?”, disse o chefe. “Somente tiramos os dentes dos animais, curamos os olhos, compomos somente os ossos, Tu Chefe”, responderam. “Muito bem. Curai-me agora, eu vos suplico, meus dentes verdadeiramente me fazem sofrer. A cada dia que passa não tenho repouso, não tenho sono, por causa deles e de meus olhos. Dois trapaceiros me acertaram com zarabatana, assim foi o começo. Por causa disso já não como. Tenhais, pois, piedade de meu rosto, pois tudo se move, minha mandíbula, meus dentes”. “Pois bem, Tu, Chefe. Um animal te faz sofrer. Não há mais o que fazer a não ser arrancar os dentes”. “Será bom arrancar-me os dentes? Por isso sou chefe; meus ornamentos: meus dentes, meus olhos”. “Colocaremos ao mesmo tempo outros no lugar: ossos claros e puros entrarão”. Naquela hora, então, esses ossos claros e puros  não eram mais do que milho branco. “Muito bem. Retirai-os, pois, e vinde em minha ajuda”, respondeu ele. Então arrancaram os dentes de Principal Guacamayo e não colocou-se no lugar mais que milho branco; de início, esse milho brilhou muito em sua boca. E, em seguida, sua face perdeu o brilho; já não parecia o chefe. Acabaram de tirar-lhe os dentes em pedras que, brilhantes, ornavam sua boca. Enquanto cuidavam dos olhos de Principal Guacamayo arrancaram seus olhos e terminaraam por retirar seus metais preciosos. Mas ele não podia já senti-lo; todavia ainda enxergava quando aquilo do que se orgulhava acabou de ser-lhe tirado por Mestre Mago, Bruxinho. Assim morreu Principal Guacamayo quando Mestre Mago veio recuperar seu braço...O braço foi recolocado; recolocado ficou bom. Eles não quiseram obrar assim mais do que para matar Principal Guacamayo; achavam ruim que ele se orgulhasse. Em seguida os dois engendrados caminharam, tendo executado as Palavras do Céu. Depois, os engendrados se dirigiram prontos para cumprir o mandato que lhes foi encomendado pelas potências do Céu, as Palavras do Céu, que são; Mestre Gigante (Relâmpago), Pegada do Relâmpago, Esplendor do Relâmpago. E eles lhes haviam ordenado também que destruíssem os descendentes de Principal Guacamayo: um filho chamado Sábio Pez-Terra e outro filho, chamado Gigante da Terra. Eles assolavam a vida e foram mortos pelos engendrados. Assim, muitas foram suas obras, mas lhes restava encerrar o mal em seu território, porque estava disseminado por todas as partes e misturado em todas as coisas.               

O jogo de bola nos infernos: descida, morte, ressurreição e ascensão de Mestre Mago e Bruxinho

              O reino de Xibalbá é um mundo subterrâneo onde estão todos os danos dos quais pedece a humanidade. De lá saem as doenças, os rancores e as lutas fratricidas. E para lá são arrastados unicamente aqueles que fizeram o mal, porque antes que Mestre Mago e Bruxinho baixassem à Xibalbá todos os humanos, e não só os maus, eram conduzidos para lá. Desde logo, houve um tempo em que os pais de Mestre Mago e de Bruxinho, chamados Supremo Mestre Mago, Principal Mestre Mago, andavam pela superfície do mundo. Quando eles pegavam seus escudos de couro, seus anéis, suas luvas, suas coroas,  seus capacetes e sua bola, os de Xibalbá se irritavam muito. E quando jogando, faziam a terra tremer, toda Xibalbá se encolerizava. Até que um dia, os-de-baixo, mandaram até eles seus embaixadores com a proposta de disputar o jogo de bola. Mas os de Xibalbá os traíram e os sacrificaram. E assim ficou sem vingança esse ultraje feito ao Céu.               Então Mestre Mago, Bruxinho se regozijaram de ir jogar o jogo de bola. Foram longe para jogarem sozinhos; terminaram o jogo de bola de seu pai. Então os chefes de Xibalbá os ouviram. “Quem são esses que começam agora a jogar sobre nossas cabeças, que não se envergonham de fazer a terra tremer? Supremo Mestre Mago, Principal Mestre Mago, que quiseram se engrandecer diante de nós, não estão mortos? Que se vá, então, chamar esses”, disseram Supremo Morto, Principal Morto, a todos os chefes. Então enviaram e disseram a seus

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mensageiros: “Ide dizer-lhes que venham. Queremos aqui jogar com eles; dentro de sete dias jogaremos”, disseram os chefes.               Recebida a mensagem, Mestre Mago, Bruxinho recordaram a traição que aqueles de Xibalbá haviam feito com Supremo Mestre Mago, Principal Mestre Mago. Então se dirigiram ao mundo subterrâneo, aceitando o desafio. Desceram a rápida pendente e atravessaram os rios encantados e os barrancos; chegaram às encruzilhadas malditas e foram até onde estavam os de Xibalbá. Os chefes tinham colocado em seu lugar bonecos de madeira para que ninguém visse seus verdadeiros rostos (e também ocultaram seus nomes para serem mais eficazes). Mas os visitantes de tudo sabiam e disseram; “Saudações, Supremo Morto. Saudações, Principal Morto. Saudações, Tolhido Estendido. Saudações, Reúne Sangue. Saudações, O do Abscesso. Saudações, O da Icterícia. Saudações, Vara de Ossos. Saudações, Vara de Crânios. Saudações, Gavião de Sangue. Saudações, Dentes Sangrentos. Saudações, Garras Sangrentas”. De todos descobriram o rosto e chamaram pelo nome; não ficou nenhum nome omitido.                Os chefes, resmungando, convidaram-nos para sentar num banco, mas eles recusaram porque era uma pedra queimante. Por isso os de Xibalbá lhes ofereceram acomodações na Mansão Tenebrosa e lhes deram pinho aceso para iluminar e tabaco para fumar. Após essa noite, foram buscá-los para que jogassem e os engendrados ganharam dos de Xibalbá. Os chefes os enviaram para que descansassem na Mansão de Obsidiana, repleta de guerreiros, mas saíram ilesos e pronto para um novo jogo de bola que também venceram. Foram presenteados, então, com um descanso na Mansão do Frio Imensurável, na que o denso granizo se juntou como homenagem. Saindo dali, passaram pela Mansão dos Jaguares onde as bestas ferozes fugiram espantadas. E assim, passaram pela Mansão do Fogo e pela dos Morcegos, para irem jogar novamente e concluir o jogo com a derrota dos de Xibalbá. Então os chefes ordenaram que fosse feita uma pedra ardente como um braseiro e pediram aos engendrados que mostrassem seu poder atirando-se nela. Estes concordaram e se queimaram, se reduziram, ficaram seus ossos brancos. E então os de Xibalbá gritaram: “Nós os vencemos!”. Depois moeram os ossos e foram espalhá-los pelo rio.                No dia seguinte, os engendrados regressaram na forma de dois homens muito pobres e dançaram na porta de Xibalbá. Levados ante os chefes, os mendigos mostraram muitos prodígios: incendiavam algo que depois se regenerava; destruíam algo que se recompunha e então, animados com esta magia, os chefes lhes pediram: “Matem um homem e depois o revivam!” Assim foi feito. Depois pediram: Agora se despedacem entre si e juntem suas partes! “Assim foi feito. Estas palavras foram ditas por Supremo Morto, Principal Morto: “Façam o mesmo conosco, sacrifiquem-nos!” Assim disseram Supremo Morto, Principal Morto a Mestre Mago e Bruxinho. “Muito Bem, vossos corações reviverão. A morte existe para vós? Devemos nos regozijar, oh chefes, de vossos filhos, de vossos engendrados”, foi o que responderam aos chefes. Eis então que sacrificaram primeiro o chefe supremo chamado Supremo Morto, chefe de Xibalbá. Tendo matado Supremo Morto, se apoderaram de Principal Morto e o imolaram sem fazer seu rosto reviver. Então, vendo seus chefes mortos, abertos, os de Xibalbá fugiram. Num instante estavam abertos, de dois em dois, como castigo seus rostos...Todos os seus filhos, sua prole, foram para um grande barranco, enchendo como um só bloco o grande abismo. Ali estavam, amontoados...Assim foi vencido o governo de Xibalbá; somente os prodígios dos engendrados, somente suas metamorfoses, fizeram isto. Os engendrados se fizeram conhecer pelos seus verdadeiros nomes e proclamaram a vingança de seus pais, Supremo Mestre Mago e Principal Mestre Mago. “Posto que já não é grande vossa glória, posto que vossa potência já não existe e, ainda que sem grande direito à piedade, vosso sangue todavia dominará um pouco...Todos os filhos de Alba, a prole de Alba, não serão vosso; somente os grandes faladores serão abandonados a vós. Os do Mal, Os da Guerra, Os da Tristeza, Os da Miséria, vós, que fizestes o mal, chorai. Já não agarrareis todos os homens subitamente como vós o fazíeis”. E se dirigiram a seus pais que tinham sido sacrificados em Xibalbá, em outros tempos: “Somos os vingadores de vossa morte, dos tormentos que fizeram que vós sofreis”. Assim ordenaram os que haviam vencido, a toda Xibalbá. Se elevaram em seguida por aqui —no meio da luz subiram de repente aos céus. E um foi o sol, o outro a lua, e iluminaram a abóbada celeste, a face da terra.

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NOTAS

 

 

I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS

1.              O texto em negrito corresponde às XII tábuas assírias, que são recopilação de outras anteriores aquéias derivadas, por sua vez, das sumérias, como demonstram os mais recentes descobrimentos. A tradução para o espanhol foi realizada com base nas traduções do material original de R. Campbell Thompson “The Epic of Gilgamesh. Universidade de Oxford, 1930, e de G. Contenau “L’Epopée de Gilgamesh”, L’Ártisan du livre, Paris, 1939. Também participaram dos trabalhos de Speiser e Bauer. A tradução dos últimos fragmentos deveu-se a Kramer, Heidel, Langdm, Schott e Ungnad. O texto que utilizamos tem como fonte o “Canto de Gilgamesh”, G. Blanco, ed. Galerna, Buenos Aires, 1978. 2.              Supõe-se que o poema de Gilgamesh foi composto entre o final do terceiro milênio e início do segundo, com base em materiais muito mais antigos. Concordamos com esta hipótese baseando-nos no desenvolvimento da cerâmica. Com efeito, até a época da primeira redação, já tinha sido inventado em Uruk o primeiro torno de olaria do mundo (H. 3500 A.C.). O instrumento era uma roda cerâmica de 90 centímetros de diâmetro por 12 de espessura o qual girava-se com a mão esquerda enquanto trabalhava-se o PEÇA com a mão direita. Dado o peso do volante, este continuava girando por vários minutos, o que permitia aperfeiçoar a obra com as duas mãos livres. Posteriormente é inventado (também na Mesopotâmia) o torno de pé. E, sem dúvida, no poema a deusa Aruru cria o homem de barro sem maiores expedientes que suas mãos umedecidas. Este não é um detalhe sem importância, já que ao se comparar a criação do homem com o mito egípcio percebe-se que o deus Khnum dá forma ao corpo de barro no grande torno de oleiro (instrumento surgido no Nilo na época dinástica). No poema sumério é feita alusão à criação do herói Enkidu com “duplo”, como cópia de Gilgamesh , depois que Aruru imagina dentro de si mesma a imagem de Anu. É possível que isto se refira à técnica de fabricação de figuras cerâmicas humanas que são feitas com cópias de moldes ( “dentro de si” ) de um original previamente confeccionado. O feto de Enkidu nascer de veludo ( “Todo seu corpo é de veludo, seus cabelos são espessos com a cevada dos campos” ) pode se referir à presença visível de antiplásticos (cascas de cereais, palha, etc.) que se misturava na argila para evitar que se desmanchasse, do mesmo modo que se faz em alguns lugares para preparar adubos. O comentado anteriormente corresponde a uma etapa anterior à da fabricação de cerâmicas e da utilização da roda de oleiro. A história, portanto, seria anterior à época de al’Ubaid e muito anterior à aparição do mito de Marduk em que este queria criar o homem através de seu sangue e de seus ossos, embora depois decida fazê-lo com o sangue de seu inimigo Qingu. Neste caso, já estamos em presença da técnica de engobo ou de esmalte cerâmico da qual há numerosos exemplos na Babilônia da época. E além disso, no British Museum está uma pequena tábua  em que aparece uma fórmula de esmalte, baseada em chumbo  e cobre, escrita pelo mestre babilônico Liballit possivelmente contemporâneo da redação do mito de Marduk. Poder-se-ia objetar que, tanto no Gêneses hebreu como no Popol Vuh Quiche não se faz nenhuma alusão mesmo quando ele existia. Quanto ao Gêneses, Deus cria Adão do barro e depois cria Eva de sua costela (como no caso do homem de Marduk, com base no sangue e no osso) e lhe dá vida com um sopro. Não há alusão ao torno, mas o sopro é sugestivo porque já pertence à época da cerâmica de fole para elevar altas temperaturas no cozimento (cocção) que de outra forma não ultrapassavam os 800 graus dependendo das calorias da lenha de acordo às resinas que contivesse segundo a região. Também pode-se dizer que a invenção do forno de tiro ascendente permitiu a elevação das temperaturas chegando

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próximo de 1000 graus, mas a injeção de ar é resultado de ma técnica posterior. Quanto ao mito Quiche o primeiro homem foi feito de barro pelos deuses, mas ele se deformava com o tempo (etapa anterior à cerâmica da argila endurecida); depois os deuses fizeram o homem com madeira mas também não ficou bom e foi destruído até que, finalmente, se conseguiu fazer o ser humano de milho. Com isso se denota que o mito fica encravado na etapa instrumental neolítica (pedra, ossos, madeira), anterior à revolução da cerâmica. Por outra parte, na América não se conheceu o torno nem a roda, por isso não existe nenhuma alusão a esse instrumento. É certo que nas três traduções clássicas do Popol-Vuh (Arciniegas, Recinos e Chávez) há descrições de instrumentos e peças cerâmicas que coexistem com o mito da criação do homem mas, pelo que parece, o mito é anterior à ao ambiente textual. Em síntese, no que se refere à criação do ser humano por um deus oleiro, o mito mais antigo é o sumério. No entanto, poder-se-ia objetar alguma afirmação a respeito da antigüidade de certas cerâmicas baseando-se na temperatura de cozimento (cocção). Mas, afortunadamente, muitos problemas deste tipo tem sido solucionados a partir dos trabalhos de Wedgwood sobre os vasos etruscos. O pirômetro que este pesquisador desenhou ( permitiu(apesar da imperfeição de sua escala) já possibilitou que fosse determinada a quantidade de calor absorvida por uma argila. Ao se conhecer a composição dela e submeter uma réplica à cocção  controlada pôde-se observar sua contração de acordo aos critérios estabelecidos na escala. O critério utilizado foi que quanto maior o calor, maior a contração que não muda uma vez que o corpo esfrie.  Outro método consistiu em submeter um pedaço da amostra a temperatura crescente até que se produzisse contração. Nesse momento, determina-se o ponto em que foi ultrapassado o aquecimento original.  Mas, atualmente a precisão da análise pirométrica é tal que se pode chegar a determinar décimos de grau. 3.              “Os fragmentos ‘Morte de Gilgamesh’ e ‘A descida ao Inferno’ são provenientes de tabuletas sumérias encontradas em Nippur e que têm sido datadas como sendo da primeira metade do segundo milênio A.C. Não se articulam com a estrutura atual do Poema, ainda que o segundo se ache traduzido literalmente na Tabuleta XII assíria, última desta versão”. Canto de Gilgamesh (O.C. p. 95?). Na tradução de A. Schott, o texto que aparece referindo-se ao parlamento de Enkidu com Gilgamesh é este: “ -Veja, meu corpo que com ternura abraçavas, os vermes o carcomem como roupa velha. Se a meu corpo que alegremente tu tocavas a putrefação o invade, enchendo-o de pó da terra!...Viste um que morreu queimado em combate? -Vi-o bem, estava na noite silenciosa deitado em seu leito e bebendo água pura. Viste um que caiu na batalha? Vi-o bem, seus pais queridos seguravam-lhe a fronte e a esposa sobre ele se inclinou. Viste um cujos restos à estepe foram jogados? Ai de mim! Também este eu vi. Não encontra paz sua sombra na terra! Viste um de cuja alma ninguém cuida? Vi-o bem, o resto de comida na panela e as migalhas de pão na rua tem que comer...”O país dos sumérios. H. Schmökel. Ed. Eudeba. p. 210. Buenos Aires, 1984. 4.              A visão do Paraíso adornado de jóias parece estar relacionada com a sabedoria e, às vezes, com a vida eterna. Esta última tem seus guardiões que, freqüentemente, são serpentes. No mito cretense citado por Apolodoro as serpentes possuem a erva da imortalidade. No de Gilgamesh, a serpente rouba a planta da vida que o herói já tinha conseguido. Sobre esses assuntos, Graves diz: O paraíso celestial é desfrutado num transe esquizofrênico induzido pelo ascetismo, a perturbação glandular ou o uso de drogas alucinógenas. Nem sempre é possível julgar qual destas causas produziu as visões místicas de, por exemplo: Ezequiel, ‘Enoc’, Jacob Boehme, Thomas Traherne e William Blake. Mas os jardins de deleito adornados normalmente se relacionam no mito com a ingestão de alguma ambrosia proibida aos mortais; e isto indica uma droga alucinógena reservada para um pequeno círculo de adeptos e que causava neles sensações de glória e sabedoria divinas. A referência de Gilgamesh ao espinho cerval tem que ser, no entanto, um disfarce, porque o espinho cerval era comido pelos antigos místicos não como algo iluminante e sim como um purgante preliminar... Todos os jardins de deleite são governados originalmente por deusas; quando se passou do matriarcado ao patriarcado foram usurpados por deuses varões... O paraíso de Gilgamesh pertencia a Siduri, deusa da Sabedoria,

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que havia designado o deus Sol Samash seu guardião; em versões posteriores da epopéia, Samash foi degradando a Siduri, convertendo-a em mera taberneira”. Los Mitos Hebreus (Os Mitos Hebraicos), R. Graves e R. Patai. Alianza, p. 73. Madri 1988. Quanto à relação entre a imortalidade, serpentes e o ato de roubar, Wilkins na sua Mitologia Hindu observa que quando Garuda trouxe algo de ambrosia da Lua para o Nagas ou deidades serpentes, como preço a pagar para liberar sua mãe da escravidão, Indra tentou persuadi-lo para que desse a ele a ambrosia evitando desse modo que os Nagas chegassem a ser imortais. Mas Garuda persistiu com seu projeto e fez a entrega da substância (numa vasilha) aos seqüestradores. Enquanto os Nagas estavam se banhando, Indra roubou a substância. Estes, acreditando que ambrosia devia ter se derramado sobre a erva Kusa (poa Cynosuroides), a lamberam. Os afiados espinhos da erva rasgaram suas línguas; por isso é que as serpentes a têm bifurcadas. 5.              Do fragmento chamado “Morte de Gilgamesh”.

2. MITOS ASSÍRIO-BABILÔNICOS

1.              O poema, escrito na Babilônia com base em material sumério, foi depois encontrado na biblioteca real de Assurbanipal (s. VII A.C.). 2.              Os onze monstros, mais seu chefe Qingu, são as doze constelações zodiacais que, como estátuas (imagens fixas), colocará Marduk no céu. 3.              O destacado por nós em itálico corresponde ao poema. Neste caso, trata-se da Tábua I de Enuma Elish (Quando no Alto), v. 147 a 157. Poema babilônico da Criação. E. L. Peinado e M. G. Cordero. Ed. Nacional. P. 98. Madri, 1981. 4.              Tábua III, v. 134 a 138. Tábua IV v. 1 a 32. 5.              A planta associada a Tamati e Qingu pode ter sido de uma espécie aquática e de propriedades venenosas, que em pequenas doses seria curativa (o “sangue” de Qingu como doador de vida). Tal idéia, aparentemente contraditória, não é estranha. Assim a lemos em Pausanias VIII, 17, 6 ss, que a água de Estígio tinha propriedades perniciosas, quebrando o ferro, os metais e a cerâmica. Inversamente, estas águas possuíam qualidades de elixir da vida, como é o caso da invulnerabilidade de Aquiles obtida através da imersão do herói nelas. Recorde-mo-nos do Hesíodo: “Tal juramento fizeram em verdade os deuses, pela antiga água imortal do Estígio, que por uma escarpada  região corre”.(Teogonia. v. 805). 6.              O zodíaco. 7.              O Sol. 8.              A estrela Sírio. 9.              O planeta Júpiter. 10.              Tábua V, v. 14 a 22. 11.              Bab-El, significa “Porta de Deus”. 12.              Tábua VI. v. 5 a 10. Os Igigi e os Anunnaki, entidades respectivamente dos céus e das profundezas infernais. 13.              Tábua VI. v. 11 a 16. 14.              Tábua VI. v. 29 a 37. O sacrifício de Qingu permite que seja obtido seu sangue. Desse modo ficam limpos de sua culpa os deuses e pode ser transmitida vida à humanidade. A frase: “Esta obra foi incompreensível”, talvez revele a perplexidade do poeta babilônico, ou a falta de indícios, frente a uma explicação insatisfatória que, possivelmente, em contexto mais completo, tenha trabalhado a favor dos sumérios (dos quais deriva este mito). Na tradição caldéia foram Marduk e Aruru os progenitores do homem. Esta deusa, no poema de Gilgamesh, é a que cria o homem e depois o duplo do rei, a Enkidu, umedecendo suas mãos e modelando-o com argila. Outra versão (transmitida pelo sacerdote Beroso) assinala que a humanidade foi modelada com argila à qual se misturou o sangue de um deus. 15.              Trata-se da pirâmide incompleta com degraus (zigurate), em cuja cúspide sempre havia um pequeno templo que também era lugar de observação astronômica. O complexo de Esagila compreendia outras torres, residências e muralhas fortificadas. As escadarias

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freqüentemente eram substituídas por rampas. Nos espaços subterrâneos da pirâmide encontravam-se câmaras funerárias ou rituais nas quais, para as festividades de Ano Novo (Akiture), “repousava” ou “morria” Marduk. Posteriormente, este era resgatado da “montanha da morte” e através de complexas cerimônias eram determinados os destinos do Ano Novo. É certo que o mito da morte e ressurreição já havia tomado forma muito tempo antes em Sumé. A esse respeito, Schmökel comenta: “Sabemos hoje que a problemática da vida, morte e ressurreição, expressada no mistério de Inana e Dumuzi, era uma pergunta nuclear da antiga religião suméria... cabe perguntar se as sombrias descrições do além nas epopéias de Gilgamesh, não deve ser considerada como uma reação contra esperanças demasiado efusivas nesse sentido. Quem se entregava integralmente na fé de Inana como geradora da vida e seu amado Dumuzi, que anualmente no outono descia ao inferno, acompanhado pelas lamentações dos homens, sendo recebido com júbilo em seu regresso na primavera seguinte, podia participar talvez nesse retorno, e chegar a ser ele mesmo um elo da eterna corrente do morrer e nascer... E já vimos que, pelo menos na primeira dinastia de Ur, a crença no rei convertido em Dumuzi surtiu efeitos dos mais estranhos: grupos inteiros de homens tomavam cicuta na tumba do extinto soberano ou da defunta sacerdotisa, para desse modo acompanhar seu deus e reviver junto com ele. Passemos por cima da questão do grau de espontaneidade em cada caso; o fato de que esses homens e mulheres punham fim a suas vidas sem nenhuma coação visível, parece seguro”. O país dos sumérios. O.C., p. 211. 16.              Tábua VI v. 95 a 98. Parece que se trata de uma referência ao Dilúvio. 17.              Tábua VII v. 120 a 123. “Cabeças Negras” é uma designação para os seres humanos. Por outra parte, a redução de numerosos nomes de deus a Marduk mostra a face monoteísta da religião babilônica, depois que sua divindade local se expandiu pela baixa e alta Mesopotâmia, pela Ásia Menor pelo Mediterrâneo oriental. Outro tanto farão os assírios com Assur. 18.              Tábua VII v. 161 a 162. São as palavras finais do Enuma Elish.

3. MITOS EGÍPCIOS

1.              O formato que demos ao mito da criação corresponde ao da mitologia menfita e está de acordo com a inscrição que mandou fazer em pedra basalto o faraó Shabaka, por volta de 700 A.C. Esta, por sua vez, é a transcrição de um papiro consideravelmente mais antigo. No Velho Império, Átom era o deus principal —que às vezes foi relacionado com Rá, o disco solar, porém, no Império Novo, Rá ocupa o lugar central com a degeneração de Atom e outros deuses. A fonte que usamos mostra Ptah como o criador de tudo o que existe. Na mitologia egípcia existem sempre dificuldades para acompanhar o processo de transformação de uma entidade divina. É muito freqüente que um deus, totalmente desconhecido numa época, comece a surgir timidamente no cenário histórico de épocas posteriores. Depois, sua figura toma corpo e às vezes ameaça absorver toda a vida religiosa ou mítica de um longo período. O caso do Egito é exemplar neste ponto, dado o longo período em que sua cultura se desenvolveu. De acordo com a Aigyptiaka (mencionada por Flavio Josefo), a primeira dinastia começa por volta de 3000 A.C. (época tinita). Até a dominação persa, grega  romana, o Egito continua ativo e, portanto, em franca transformação. Com efeito, mesmo na época dos Tolomeos, a mitologia continua desenvolvendo novas formas que nessa época influem no mundo helenístico, como havia feito antes nos rudimentos da cultura grega. Estamos falando, então, de 3000 anos de desenvolvimento contínuo e é claro que em semelhante período o aparecimento e transformação de mitos provoca desconcerto, pelo excesso. Deste modo, uma divindade pode ter características (muitas vezes opostas) a ela mesma no transcorrer de um milênio ou mais. 2.              O texto em itálico, neste caso, é o do primeiro Ato, segunda cena, de Aída, segundo o libreto de Antonio Ghislanzoni. A fala do sumo sacerdote é esta: “Inmenso, inmenso Ftah, del mondo spirto fecondator, ah!... ah... Noi t’invochiamo!”.

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3.              Uma lenda menciona especificamente Biblos. Fenícia era uma região da Ásia Anterior na costa acidental da Síria  que estando entre o Líbano e o Mediterrâneo chegava ao Monte Carmelo pelo sul. Suas cidades principais eram: Biblos, Beirut, Tiro e Acca. Durante a dominação romana foi anexado o território da Celesiria ou Fenícia do Líbano, passando a ser designada de Fenícia Marítima a nação antiga. Usamos “Fenícia”, no relato, para ressaltar a mesma raiz de “Fênix”, fabulosa ave que morria numa fogueira e renascia de sua cinzas. Em todo o caso, não ignoramos que “Fenícia” deriva do grego Phoenika, ou seja, “país das palmeiras” e que os habitantes dessa região se denominavam “cananeus” e não “fenícios”. 4.              Alusão à preparação da múmia, de acordo ao comentado por Heródoto (História, II, LXXXVI e seguintes). 5.              Já se propôs fazer derivar a palavra “pirâmide” de um termo grego que significa “pastel de trigo”, porque egípcios e gregos davam essa forma a certos pastéis (derivados, talvez, de outros que serviam à prática cerimonial teofágica). Existem aqueles que opinam que os pastéis se tratavam apenas de simples ornamentos graciosamente adornados. Pirâmide, do grego piramís, tem a mesma raiz que pira, pyrá, e que fogo, pyr. “Pira” tem sido usado como a “fogueira” na qual era queimado o corpo dos mortos, ou os corpos do sacrifício ritual. Não conservamos na antiga língua egípcia o vocábulo que exatamente se refere à pirâmide em sentido geométrico. De todas as maneiras, o nome grego desse corpo, e os estudos matemáticos iniciais em torno dele, bem podem ser provenientes do ensinamento egípcio pelo fato deste ser comentado no Timeo de Platão —onde o autor menciona os primeiros conhecimentos científicos de seu povo considerando-os de origem egípcia. Estas considerações nos permitiram fazer um jogo de palavras no que a pirâmide em questão acaba identificada com o torno de oleiro. Por sua parte, Heródoto (Ib. II, C e CI) conta uma história a respeito do motivo da construção das pirâmides que as aproxima do tema osiríaco. Recordando, além disso, a antigüidade do mito próprio da cultura cerâmica primitiva (na qual o nascimento do homem se deve ao deus-oleiro), se pôde compor aceitavelmente o parágrafo comentado ainda que com a licença do caso em questão. De sua parte , as pirâmides mesopotâmicas (zigurates) também nos aproximam de uma concepção segundo a qual essas construções não eram somente templos e lugares de observação astronômica, mas também “montanhas sagradas” nas quais Marduk era sepultado e depois resgatado. Quanto às pirâmides escalonadas e cobertas ou semi revestidas do México e da América Central (Xochicalco, Chichém Itzá, Cholula, Teotihuacán, p. ex.), não temos elementos para afirmar que, além de construções dedicadas ao culto e à observação astronômica, era-lhes dada função de sepulcro. E no que se refere ao seu desenvolvimento histórico, as pirâmides do Egito evoluem das mastabas que já na III dinastia estavam ligadas ao culto ao Sol em Heliópolis. 6.              De acordo ao que se pode observar, p ex., no Papyrus of Ani, (Brit. Mus. N. 10, 470, sheets 3 and 4). 7.              A coroa branca e alta do alto Nilo e a vermelha e chata do baixo Nilo representavam a procedência do faraó e seu poder sobre essas regiões. Ambas as coroas às vezes eram combinadas para formar uma coroa dupla. Na época do Novo Império começou a ser usada a coroa azul de guerra. Ao redor era colocado, freqüentemente, o Ureus, a cobra sagrada, que representava o poder sobre as duas terras, ou então, as plumas de avestruz, que combinavam com a coroa alta. No caso de Osíris a coroa toma caráter sacerdotal nos moldes da tiara—como ocorre com o tocado papal (mas no qual se observa  coroa de três níveis). Neste caso, se deriva a tiara pontifícia da mitra dos bispos, mas seu estilo é mais exatamente egípcio. 8.              O espanador e o cajado ou báculo, freqüentemente aparecem cruzando o peito dos faraós. Nas representações de Osíris cumprem com uma função sacerdotal, tal como ocorre com o cajado dos bispos cristãos. 9.              O Ká não era o espírito e sim o veículo que visitava o corpo mumificado. Tinha algumas propriedades físicas e era representado como “duplo”. Aparece assim nas distintas épocas do Livro dos Mortos. Quando se representava o Ká do faraó costumava-se pintar ou esculpir duas figuras iguais de mãos dadas.

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10.              A cruz de braços iguais era o símbolo de Anu, dos caldeus-babilônicos. A cruz Ankh ou Ânsata  era uma Tau com círculo e asa, símbolo do triunfo da morte e atributo próprio de Skhet. Esta cruz foi adotada depois pelos cristãos coptas. 11.              A Bá era o espírito não submetido às vicissitudes materiais. Costumava-se representá-lo como um pássaro com rosto humano. 12.              Amenti ara o inferno, o reino dos mortos. 13.              Khnum, representado amiúde com corpo humano e cabeça de carneiro, era a divindade principal da tríade de Elefantina do alto Egito. Esta divindade fez o corpo humano com barro e deu-lhe forma com sua roda de oleiro. Esta, ao girar, tomava o caráter de roda da fortuna que determinava o destino das pessoas desde o momento de seu nascimento. Beltz, citando E. Naville, The Temple of Deir el Bahri, II, tablas 47-52, põe na boca de Khnum estas palavras quando este cria uma importante rainha: “Quero obsequiar-te com o corpo de uma deusa. Serás perfeita como todos os deuses e receberás de mim felicidade e saúde e as coroas de ambos os países e estarás no ápice de todos os seres viventes por ser rainha do alto e do baixo Egito”. W. Beltz, Los mitos egípcios. Losada. Pp. 97 e 98. Buenos Aires, 1986. 14.              Thot, deus de Hermópolis. Era representado com corpo humano e cabeça de íbis. Foi criador da cultura. Também assumia o papel de conduzir as almas para o Amenti. A equivalência com o Hermes grego deu lugar à figura Hermes-Thot. Posteriormente, até o s. III D.C. os neoplatônicos e outras seitas gnósticas produziram os Livros Herméticos (Poimadres, La llave—A Chave—, Asclepios, La tabla de Esmeralda—A Tábua de Esmeralda—, etc.) que atribuíram a um lendário Hermes Trimegisto (O “três vezes grande”) criador da ciência, das artes e das leis. 15.              O sicômoro era uma espécie de figueira de madeira muito durável que se utilizava na confecção de sarcófagos. Aqui também se faz alusão à árvore Djed, um tronco morto do qual saíam brotos e que representava a ressurreição de Osíris. 16.              ‘Dama do ocidente”, nome que nas invocações mortuárias usava a deusa mãe Hator, situada na região ocidental da Líbia onde estava o reino dos mortos. 17.              Anubis, com o corpo de homem e cabeça de chacal era o acusador na julgamento dos mortos. Era conhecido, às vezes, como o “O Embalsamador” ou o “Guardião das Tumbas”. Atribuía-se que Anubis tivesse ajudado no embalsamento de Osíris. Também surgia como “O que está sobre sua montanha”, ou seja, a cargo da pirâmide funerária. 18.              Os amuletos (ushabtis ou “os que respondem”) eram figurinhas de argila que eram colocadas nas tumbas para acompanhar o morto ao país de Amenti, onde adquiriam tamanho e características humanas, substituindo o defunto nos trabalhos mais pesados. 19.              Hórus, com seus pais Osíris e Ísis, formava parte da trindade de Abidos. Era representado com a cabeça de falcão e um disco solar sobre a fronte. Era considerado em seu aspecto solar nascente. 20.              Era um deus local de Coptos, Panápolis e de certas regiões desérticas. Era representado como Príapo com o falo ereto. Era uma divindade regeneradora da corte de Seth. Foi chamado “Touro de sua mãe”, filho e esposo de uma divindade que presidia o Oriente. Pode ter-se produzido alguma troca com Seth, já que em algumas lendas ele é mostrado como um touro assassinando Osíris. Por outro lado, bem pode existir uma relação estreita entre este antiquíssimo Min e o legendário Minos de Creta representado também como um touro. 21.              Apófis era uma serpente monstruosa que espreitava a barca do Sol. Com o tempo ficou sendo identificada com Seth em seu aspecto demoníaco. Em algum Livro dos Mortos se fazem invocações para que a barca na qual vai o defunto não se torne presa desta serpente. 22.              A perda da cabeça dos deuses não significa sua morte e sim, mais exatamente uma substituição de atributos. Muitas divindades, por sua vez, podem ser facilmente identificadas devido a que levam na cabeça o totem do povoado ou região da qual saem. 23.              Pareceu-nos ter importância marcar a história de Aknaton sob um subtítulo que faz referência ao “antimito”. Na verdade se trata de outro mito raiz: o do deus único que como forma de pensamento entra em forte colisão com panteões superpovoados. Se bem que na

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Mesopotâmia tenham se observado algumas colocações monoteístas, é com o Egito e Aknaton (de 1364 a 1347 A.C.) que essa forma religiosa adquire vigor. A reforma de Aknaton dura tanto quanto seu reinado. Segundo Beltz, as castas sacerdotais que concederam ao clero de Amon de Tebas uma primazia honorífica, se entendiam freqüentemente com o tesouro e a salvaguarda das tradições nacionais. Sua vitoriosa resistência às reformas de Aknaton não teve só um caráter religioso mas também nacional. Depois que eles conseguir anular as reformas deste soberano herege sua influência e força se tornaram mais fortes do que nunca. “Os templos converteram-se na maior potência econômica do país. Os reis da vigésima dinastia eram marionetes nas mãos dos sumos sacerdotes tebanos cuja função era, antigamente, hereditária”(Tókarev). Opostamente ao que aconteceu com o cristianismo e o islamismo, a religião egípcia regressou à formas autóctones. Tendo progredido a reforma política e religiosa de Aknaton, provavelmente, haveria surgido uma religião universal com bastante anterioridade às hoje conhecidas. De todo modo, ainda que tenha sido apagados oficialmente os rastros da heresia, sua influência transcendeu o Egito. 24.              Heliópolis. 25.              As traduções do Hino de Áton são numerosas. De nossa parte, fragmentamos a transcrição de Estela Dos Santos, baseada, por sua vez, na Storia delle leterattura antica egizziana, de Donadoni.

4. MITOS HEBRAICOS

1.              Gênese 2, 9 e 2, 16-17. 2.              Com base no livro V de O Paraíso Perdido, de J. Milton. 3.              Gênese, 3, 4-5. 4.              Neste relato à serpente interessa que o homem adquira a ciência mas impede que aconteça o mesmo com a imortalidade, seguindo a tônica do mito de Gilgamesh “aquele que tudo soube”, mas que regressou para morrer em Uruk. 5.              Gênese, 3, 22-24. 6.              Anúncio da Lei Mosaica. 7.              Gênese 22, 1-14. 8.              “Disse também Deus à Abraão: Tua mulher, Sarai, não a chamarás Sarai, mas Sara será seu nome. E a bendizerei, e dela te darei um filho; sim, a bendizerei e virá a ser mãe de nações; reis de povo virão dela. Então Abraão se curvou abaixando o rosto, e riu, e disse para seu coração: De um homem de cem anos há de nascer um filho? E Sara, de noventa anos há de conceber?” (Ib. 17, 15-18) 9.              “Então, disse: De certo voltarei a ti; e com seu tempo de vida eis que Sara, sua mulher, terá um filho. E Sara escutava à porta da tenda da qual ele estava atrás. E Abraão e Sara eram velhos, de idade avançada; e em Sara já havia cessado as regras das mulheres. Riu-se, pois, Sara para si, dizendo: Depois de ter envelhecido terei deleite, e também meu senhor já velho? Então Jeová disse a Abraão: por que riu Sara dizendo: será verdade que eu hei de dar a luz sendo já tão velha? Há par Deus alguma coisa difícil? No tempo determinado voltarei a ti, e com seu tempo de vida, Sara terá um filho. Então Sara negou, dizendo: Eu não ri porque tive medo. E ele disse: Isso não foi assim, tu riste sim.”(Ib. 18, 10-16). 10.              A questão de Abraão foi tratada dramaticamente por Kierkegaard em Temor e Calafrio. Num dos possíveis libretos sobre o tema do holocausto diz: “Era bem de manhã; Abraão levantou-se, abraçou Sara, companheira na velhice, e Sara deu um beijo em Isaac, que a preservara do escárnio, e era seu orgulho e esperança para a posteridade. Andaram em silêncio; o olhar de Abraão permaneceu fixo no chão até o quarto dia; e então, levantando os olhos viu no horizonte as montanhas de Morija; e baixou novamente o olhar. Em silêncio preparou o holocausto e amarrou Isaac; em silêncio tirou a faca; então, viu o carneiro que Deus proveu. Sacrifico-o e regressou...A partir desse dia, Abraão tornou-se velho; não pôde esquecer quanto Deus tinha exigido dele. Isaac continuou crescendo; mas os olhos de Abraão embaçaram; e não

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viu mais a alegria”. (O.C. p. 15. Losada. Buenos Aires, 1979). De nossa parte, em vez de insistir na culpa como um motivo da existência, destacamos certos aspectos retributivos do mito no que se refere à burla divina frente ao riso motivado pela incredulidade. 11.              Este é o tema de Jacó, mas também Moisés luta contra Deus. Assim é dito para nós: “E aconteceu no caminho, que numa pousada Jeová saiu ao seu encontro e quis matá-lo”. Êxodo, 4, 24. 12.              Israel, isto é “o que luta com Deus”, ou “Deus luta”. 13.              Peniel, isto é “o rosto de Deus”. 14.              Os lexicógrafos árabes explicam que a natureza do aleijão produzido pela lesão no tendão femural da articulação do músculo, obriga uma pessoa a andar na ponta dos dedos. Este deslocamento da cadeira é comum entre os lutadores e o descreveu pela primeira vez Harpócrates. O deslocamento da cabeça do fêmur alonga a perna, aperta os tendões do músculo e produz espasmo nos músculos, o que obriga a caminhar mancando, com o calcanhar constantemente elevado, como o alijamento que atribui Homero ao deus Hefestos. A crença que o contato com os jinn traz como conseqüência uma maneira de andar frouxa e algo desconjuntada é encontrada entre os árabes, talvez como recordação da dança requebrada que bailam os devotos que acreditavam estar possuídos divinamente, como os profetas de Baal no monte Carmelo (Reis XVIII, 26). Beth Hogláh, próxima a Jericó, pode ter sido chamada assim por esta razão, porque hajala significa em árabe requebrar ou saltar, e tanto Jerônimo com Eusébio chamam Beth Hoglán ‘o lugar da dança do anel’. Os tírios bailam essa dança pela honra de Hércules Melkart. É possível, em conseqüência, que o mito de Peniel originalmente se explique como uma cerimônia de requebros que comemora a entrada triunfal de Jacó em Canaã.” Os Mitos Hebraicos. Op. Cit., p. 200, nota 7. 15.              O tema do aleijão divino muito se estende na mitologia universal. Desde o Hefesto coxo que é jogado do Olimpo até os nativos Tereno e os da ilha de Vancouver. Os Ute de Whiterocks, em Utah, praticavam “danças requebrantes”; isto também se lê num texto talmúdico que faz referência à dança claudicante celebrada até o século II D. C. com o objetivo de propiciar chuvas. Esta idéia do aleijamento divina também aparece na China arcaica. O fundador da dinastia Yin, Tang, que lutou contra a Séqui e Yu, o Grande, fundador da dinastia Chang, eram hemiplégicos e coxeavam. Comentários sobre isto em particular os encontramos em Frazer (O Ramo Dourado, 4, vol. 7) e em C. Lévi-Strauss (Mitológicas II, Do Mel às Cinzas, F.C.E. México, 1972, Pp. 383-386). Neste ponto das danças claudicantes ou das atitudes de mancar realizadas com o objetivo de propiciar chuvas opinamos que o ou os que realizavam o ofício do ritual simulam o mal estar de algumas pessoas que, quando se aproximam as tempestades, sentem dores artríticas. Nesses casos se trata de “tapear” o céu e, dentro dessa lógica, quando se manca é porque a chuva vem, portanto esta não tem mais que ser produzida. No caso de Jacó, de sua luta e o aleijamento emergente, acreditamos que mesmo podendo se tratar de um rito, este não estaria relacionado com a questão das chuvas, e sim à mudança de estado do protagonista, que se confirma devido à permutação de seu nome, para nada menos que o de Israel. Lembremos que no outro caso de luta com Jeová, Moisés não ficou coxo mas se produz de imediato a circuncisão e tudo isto ocorre no trajeto de volta ao Egito seguindo o mandato de Deus para resgatar seu povo da prisão do faraó. Portanto, a anedota da “tentativa” de Jeová “matar” Moisés reflete também uma possível cerimônia de mudança de estado. 16.              Não podemos fazer menos do que transcrever alguns parágrafos do curioso estudo de Freud a respeito de Moisés e do monoteísmo. Ainda que seus argumentos não estejam de todo avalizados pela certeza histórica, são dignos de se ter em conta em alguns aspectos. Desde já, não reproduziremos aqui os temas psicoanalíticos da tese. O trabalho de costura sob o título Moisés e o monoteísmo (O. C. Volume XXIII. Amorrortu. Buenos Aires, 1980), trata de demonstrar no primeiro capítulo que Moisés foi um Egípcio, e para isso cita um documento de Sargão de Agadé (fundador da Babilônia, c. 2800 A.C.) no qual aparece a lenda do resgate das águas que circulava em todo o mundo cultural da Mesopotâmia e, portanto, era conhecido pelos

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semitas nascidos na Babilônia ou, como Abraão, em Ur da Caldéia. O escrito diz: “Eu sou Sargão, o rei poderoso, o rei de Agadé. Mina mãe foi uma vestal; meu pai não conheci, tanto que o irmão de meu pai morava na montanha. Na minha cidade, Azupirani, situada no vale do Eufrates, minha mãe ficou grávida de mim, a vestal. Pariu-me escondido. Colocou-me num cesto de bambus, tapou os orifícios com betume e abandonou-me na correnteza do rio, mas não me afogou a correnteza. O rio me levou até Akki, o que retira a água. Akki, o que retira a água, com a bondade de seu coração me recolheu. Akki, o que retira a água, me criou como se eu fosse seu próprio filho...”, etc. Mas adiante (terceira parte, p. 57 e seguintes), Freud diz: “... a religião de Áton foi abolida e a residência do faraó apontado como herético foi vítima de destruição e saque. Até o ano de 1350 A.C. foi extinta a décima-oitava dinastia; a ela se sucedeu uma época de anarquia, na qual restabeleceu a ordem o general Haremhab, que governou até 1315 A.C. A reforma de Akhnaton parecia um episódio destinado ao esquecimento. Até aqui comprovado historicamente; o que segue é nossa continuação hipotética. Entre as pessoas próximas a Akhnaton encontrava-se um homem que talvez se chamasse Thotnés, como muitos outros dessa época; o nome não importa muito, mas apenas que seu segundo componente devia ser “nose”. Ocupava um alto posto, era um sequaz convencido da religião de Áton, mas, por oposição ao excessivamente pensativo rei, era um homem enérgico e apaixonado. Para ele o final de Akhnaton e a apostasia de sua religião significava o fim de todas as suas expectativas...No apremio do desengano   e da solidão voltou-se a esses estrangeiros, procurou neles o ressarcimento de suas perdas. Escolheu-os como seu povo, tentou realizar através deles seus ideais. Depois de ser acompanhado pelas pessoas do seu séquito, abandonou com eles o Egito, os santificou mediante o signo da circuncisão, distribui-lhes leis, introduziu-os na religião de Áton que os egípcios acabaram de abolir”. E até aqui, Freud. No que se refere à circuncisão, sabemos que ela já avia sido estabelecida antes de Moisés e, quanto a seu uso por diversos povos, inclusive o egípcio, pode ser comprovada historicamente sem por isso derivá-la exclusivamente dos habitantes do Nilo. Moisés pode ter sido egípcio, isso não nos parece de especial importância. O tema  de interesse encontra-se em que a influência cultural egípcia se fez sentir nessa porção do povo judeu fixada na terra dos faraós. Os acontecimentos desencadeados por Akhnaton foram muito próximos à época do Êxodo e as teses religiosas que Moisés sustentou também coincidiram com as do reformador egípcio. Quanto ao interesse histórico experimentado por Freud, devemos recordar que até 1934 circulavam numerosas hipóteses sobre a origem egípcia de Moisés, entre outras as de Breasted e de Eduard Meyer que nosso autor freqüentemente cita fazendo eco na discussão proposta. Desde logo que para Freud não era indiferente o tema da fundação religiosa já desde o seu Tótem e Tabu, de 1913. Quiando no Moisés e o monoteísmoI se conclui que Moisés foi assassinado por um grupo dos seus liderados, todos os antecedentes da questão, e especialmente a relação pai e filho, não podem ser passadas superficialmente, pelo menos dentro da lógica psicoanalítica ou da tradição antropológica representada por J. G. Frazer, de quem Freud era tributário. Aquele que sustentava que o assassino dos chefes era uma tendência marcante ou encoberta, mas existente em numerosas sociedades. Como por sua vez os chefes sabem ou intuem isto, as pessoas têm que cuidar deles e cuidar-se deles (“He must not only be guarded, he also must be guarded against”). 17.              Êxodo 3, 2-16. Ver também: êxodo 6, 2-3. 18.              Ib. 12, 37-38. 19.              Segundo Eusébio e Julio Africano, Amenófis fez com que se construísse um canal que, começando no Nilo na altura de Coptos, abaixo ainda de Tebas, penetrava por Cosseir no Mar Vermelho. Este canal foi obstruído durante a invasão de Cambises. Por sua vez, Aristóteles comenta que Ramsés II ou Sesostris, abriu um canal pelo istmo. Os trabalhos foram interrompidos e depois retomados por Necos até que a obra ficou acabada com Dario. O canal começava em Pátmos no Mar Vermelho e terminava no Nilo, indo até Bubasto. Os Ptolomeus o melhoraram e Estrabão conta tê-lo visto sendo usado. Foi conservado pelos romanos até um século e meio depois da conquista árabe. Ao que parece, o canal foi fechado e reconstruído por

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Omar, voltando a ser navegável até 765, data em que Almazor decidiu inutilizá-lo para evitar que Mohamed-Ben-Abula recebesse víveres de seus companheiros insurrectos. Para obter mais detalhes sobre a história das canalizações egípcias, ver Rompimento do Istmo de Suez, de Cipriano S. Montesinos. No relacionado à passagem dos israelitas por um lugar seco do Mar Vermelho tudo leva a pensar que, com efeito, existia um sistemas de eclusas num ramal conectado com o Nilo, ou então (já que faltam os dados históricos sobre este ponto), que estavam secos por obras de canalização dois setores que depois haveriam de se ligar pela água. Se foi esse o caso, as paredes como represa de contenção provisória permitiam terminar o trabalho de canalização. Provavelmente por uma dessas paredes se deslocou a pesada equipe dos egípcios e bem pode ter-se produzido um desmoronamento. Se esta explicação resulta difícil de acreditar, devemos recordar o projeto de traçado indireto do canal de Suez, de acordo a Stephenson, Negrelli e Paulin Talabot. De acordo com esse plano, conhecido como Linant-Bey, tratava-se de construir 24 eclusas comunicando o Mar Vermelho com o Nilo. Por outra parte, na inauguração oficial do canal de Suez em 17 de novembro de 1869 numerosos trechos chegavam escassamente aos 22 metros de largura e a profundidade era de 8,5 a 9 metros. Não estamos, pois, falando de trechos tão gigantescos nem de eclusas tão altas. 20.              “E chegaram a Mara, e não puderam beber as águas de Mara porque eram amargas; por isso puseram o nome de Mara”, Êxodo 15, 23. 21.              “E na casa de Israel o chamou Maná; e era como semente de culantro, branco, e seu sabor como de folhinhas com mel”, Ib. 16, 31. Aqui Maná quer dizer “O que é isto? “, em referência à surpresa que mostraram os israelitas ao comerem as sementes que dava de presente Moisés. 22.              Êxodo 19, 18-21. 23.              Ib. 20, 18. 24.              Deuteronômio 33, 4-7. 25.              Ib. 33, 10-12.

5. MITOS CHINESES

1.              A doutrina do Tao é muito anterior a Lao Tsé e Confúcio (ambos viveram no séc. VI A.C.). Existem rudimentos desta idéia na origem da cultura Hoang Ho. Por outro lado, no I Ching ou Livro das Transformações (possivelmente anterior ao século X A.C.), se recorre àqueles elementos que logo serão um antecedente importante na elaboração do Confucionismo e o Tao Te. Se deve o I Ching ao legendário Fu Jtsi ou a Vem, antecessor da dinastia Chou, ou a uma sucessão de autores e corretores. O certo é que sua influência foi grande na formação de numerosas escolas de pensamentos, dando lugar também, a uma série de técnicas adivinhatórias e outras superstições que chegam até nossos dias. 2.              Tao Te Ching, Lao Tse. C. IV. Andrómeda, Buenos Aires, 1976 (tradução de J. Fernandes. O). 3.              Ibid. C. XI. Na tradução que faz Lin Yutang do chinês ao inglês (E daí se volta ao castelhano por obra da A. Jwhitelow), se lê: “Trinta partes se unem circundando a nave; de sua não existência surge a utilidade da roda....” (?). Sabedoria Chinesa. pag. 35. Nova, Buenos Aires, 1945. 4.              “Profundidade é uma interpretação da palavra chinesa Hsuan que significa o “infinitamente pequeno do Universo não descoberto pelo homem” (literalmente uma coisa pequena coberta por um homem). A “infinita profundidade”, em chinês, literalmente significa “ a profundidade da profundidade” ou “ a infinita pequenez da infinita pequenez”. (Tao Te Ching, chamada 4 do tradutor ao capítulo 1). 5.              Nesta versão livre, a volta ao sonho quer significar a contração ou o esfriamento de todas as coisas depois da primeira expansão. O grande turbilhão segue ampliando-se, segundo o taoísmo, mas em cada coisa começa a contradição que equilibra a união universal.

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6.              O Yin tem sido interpretado como uma força passiva, complementária ao Yang. Mas o Yang, aparece como força posterior ao Yin. Isto suscitou não poucas discussões antropológicas as que, associando-se o Yin ao feminino e o Yang ao masculino, se pretendeu que a anterioridade daquela força é histórica e não conceitual. A conclusão que derivou é que trata-se da supremacia feminina na época matriarcal, logo deslocada pelo patriarcado no que o Yang impõe sua atividade, tal como aparece no Imperador Dragão (Yang) e na Imperatriz Feng (Yin). 7.              Alusão aos mitos de pós-morte. No fragmento que acompanhamos se refletem algumas destas crenças populares ainda que de distintas épocas, como o caso dos Oito Imortais que aparecem recentemente no século XIII d.c. (durante a dinastia Yuan), ao lado de figuras temidas ou veneradas nos séculos XI a II A.C. (período clássico da dinastia Chou). De todas as formas, trata-se de um trabalho meritório que também dá certas pautas rituais. “ - Sabes que farão de ti? -perguntou Tcheng-Kuang olhando-o atentamente! “ Depenar-te-ão vivo, arrancar-te-ão as unhas, os dentes e os olhos, tirar-te-ão a carne por faixas e a jogarão aos abutres. Depois, os cachorros roeram seus ossos. E quando transcorreram os cento e cinco dias do solstício de Yin, teus familiares não poderiam ir a teu túmulo oferecer-te sacrifícios na festa da morte. Os garotos de tua aldeia lançarão ao ar seus cometas, com legendas ilustradas dos oitos Sábios Imortais, e suspenderão suas campanhias e suas lanternas. Milhões de lanternas se ascenderão neste dia na China, mas nenhuma delas ascenderá por ti ... Nem queimarás enxofre nem folhas de artemísia em meio do pátio para expulsar os demônios. Ching, o grande demônio que leva o registro da Vida e da Morte, terá escrito já teu nome a porta do inferno, sobre o Magno oceano, no caminho que conduz a Fontes Amarelas, onde habitam os mortos... Sung-Ti, a majestade infernal que habita a Estância das cordas Negras, e o Senhor dos Cinco Sentidos, o temível Yen-lo e o implacável Ping- Tang, senhor dos Infernos, te farão recorrer, uma a uma, suas câmaras de tortura numa infinita roda de suplícios. Não irás ao Paraiso Kwng Sung, onde a Rainha Mãe do Oeste passeia entre seus pessegueiros, nem verás mais o sol, Pai Yang, bela constelação de ouro, recorrer ao céu em seu carro de chamas. “A Flor do Tao. A. Quiroga. Cárcamo, pp. 13 y ss. da edição bilingüe. Madrid. 1982. Com relação às lendas chinesas, pode-se consultar algumas das fontes que dá Tao Tao Liu Sanders no final de seu livro Dragões, Deuses e Espíritos. Anaya, Madrid. 1984. 8.              I Ching. Dissertação de Ta Chuan. Tradução de A. Martinez B. Ed. Tao. Quindio. Colombia. 1974. 9.              Tao Te Ching. Op. Cit. LXXI

6. MITOS HINDUS

1.              A literatura mística da Índia é com segurança a mais extensa do mundo. Por outro lado, nela encontram-se concepções científicas, filosóficas e artísticas de grande interesse. Com freqüência, essa enorme produção foi ordenada de maneira simples . Seguindo um esquema elementar podemos dizer que os Vedas (quatro no total), foram seguidos por obras de exegese como os Bramanas, Aranyakas e Upanishads. Os Vedas podem ficar em seu substrato mais antigo, até o sec. XV A.C.; os Bramanas até o sec. VI a.C. e muitos dos Aranyankas, mais recentes em geral, têm seu esboço quase contemporâneo aos Bramanas. Os Upanishads são os últimos escritos que, ao fechar o ciclo védico, tomam o nome de “Vedanta”. O ciclo védico foi composto na língua que portavam os invasores da Índia, conhecidos como “indu-europeus”, ou “indórios”. Esta língua foi tornando-se irreconhecível a medida que transcorria o tempo até que se sistematizou a forma de expressão clássica que conhecemos como Sânscrito, hoje em dia fora de uso mas que constitui algo assim como o grego antigo para os ocidentais. De acordo a Max Muller, os Vedas foram produzidos entre 1200 ao 800 a.C.; os Bramanas do 800 ao 600 e resto do 600 ao 200, mas o certo é que não há nada nestes textos que indique em que data foram escritos e, no entanto, sua transmissão foi durante muitos séculos de tipo oral. No que se refere à moderna mitologia hindu, podemos mencionar as grandes epopéias (Ramayana e

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Mahabharata), aos Puranas (histórias tradicionais, no número de dezoito) e os Tantras (uns cinco importantes). nesta primeira separação que temos chamado “Fogo, Tormenta e exaltação”, nos limitamos a transcrever alguns dos hinos dedicados às três mais importantes divindades do Rig Veda. Autores como Yaska, possivelmente uma das autoridades mais antigas no comentário dos Vedas, considera que Agni, Indra e Surya (o sol) constituem a trilogia fundamental do monumento literário que nos ocupa. Nos parece, entretanto, que a suplantação de soma nesta trilogia, responde a uma troca importante na perspectiva mítica dos autores posteriores, em relação a etapa védica original. 2.              Fogo como figura de Agni. Em Agni se reconhecem distintos tipos de fogo: na terra (incêndio, fogo doméstico e sacrifical); no ar (raio e relâmpago) e no céu (sol). Deve-se chamar “comedor de madeira” e de gordura, este último em alusão a graça sacrificial que se derrama sobre ele. Nasce por fricção das duas varetas sagradas e não tem pés, mãos, nem cabeça; em troca possui numerosas línguas e cabeleiras de chamas. Sua voz é o crepitar. São consagrados a ele mais de duzentos hinos do Rig Veda. Foi adorado também pela ramificação ária que deslocou-se até o Irã. Lá tomou grande relevância na religião anterior a Zarathustra, continuou depois do reformador e chegou até o atual culto dos Parsis (estes, depois do embate mulçumano mantém-se no Irã em reduzido número de trinta mil, havendo emigrado a Bombaim um grupo que hoje representa a maioria desta religião. Ao que parece muitos dos atributos de Agni terminaram absorvidos por |ndra, mas em seu carácter sacrificial continua envolvendo a maior parte das divindades hindus. 3.              Tormenta como figura de Indra. A rigor, a imagem de Indra é o raio mas aqui aparece como condutor das águas após as haver liberado ao triunfar sobre Vrta, demônio fêmea  que as mantinha aprisionadas. Este Vrta pode ter sido um deus dos nativos contra os quais lutaram os ários durante sua invasão à India ao penetrar pelo Punjab. Os povoadores que foram deslocados até o sul, possivelmente canalizaram a água até seus campos de cultivo, encontrando-se em um estágio de civilização mais avançado que os estrangeiros, mas não contavam com as armas de ferro que possuiam as hordas invasoras. Os nativos são chamados “Dasyw” no rig Veda tratando-se seguramente de grupos drávidas. Também se viu em Indra o deus que luta contra a seca e que libera as águas benéficas do céu. Para este deus consagram-se ao redor de duzentos e cinquenta hinos do Rig Veda (um quarto do total) o que mostra a importância que teve por estas épocas. Posteriormente, foi perdendo força e muitos de seus atributos terminaram absorvidos por outros deuses. 4.              Exaltação como figura do deus embriagador Soma. Esta bebida corresponde ao Haoma dos ários que invadiram o Irã. Até hoje se discute as características da planta produtora do Soma. Parece possível que a bebida fora, com o tempo, obtida de distintos vegetais daí a confusão que envolveu o tema. Segundo W. Wilkins em sua Mitologia Hindu, a planta em questão é a Asclepias ácida de Roxburgh. Cresce nas colinas do Punjab, no Paso Bolan, nos arredores de Pooma, etc. Mas já nas épocas em que foi escrito o Vishmu Purama, os intoxicantes estavam estritamente proibidos, por isto o Soma não era exaltado como tal. Em todo caso, ali é relacionado difusamente com a lua. Portanto, a pista se perde quase completamente. Segundo outros autores, a planta não é senão uma variedade da zigophullacea. Poderia tratar-se das sementes do vegetal conhecido como arruda assíria (Pegorum harmala) que foi usado pelos mesopotâmicos queimando-os nas defumações sacrificiais. Não faltaram os que viram no Soma uma bebida fermentada do tipo da cerveja, como a consumida pelos indu-europeus. Mas a teoria mais interessante partiu de A. Hofmann. Este estudioso (descobridor do L.S.D.), afirma que se trata de um fungo: a Amanita muscaria. Segundo ele, o que foi um enigma etno-botânico por mais de dois mil anos foi descoberto em 1968. Em Plantas dos Deuses, ( em colaboração com R. Evans. F.C.E.México, 1982), Hofmann comenta que a Amanita se conhece como alucinógeno desde 1730 por comunicaçao de um oficial sueco prisioneiro na Sibéria. Este informou que os xamãs a dissecavam acrescentando depois leite de rena e procediam a ingerí-la mostrando os mesmos sintomas que se observou entre os nativos do lago superior, do norte e centro América, afeitos às mesmas práticas. No laboratório se

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comprovou que o princípio ativo não era a mescalina, como se pensava, senão que conseguiu-se ilhar o ácido ibotênoco e finalmente, o bioquímico Takamoto obteve o alcalóide chamado muscimole. Em toda essa investigação soube-se que no processo de secar o fungo ocorre toda a transformação e o ácido se converte em muscimole. Outra observação importante foi proporcionada também por aquele oficial que mencionamos antes. Ao que parece os xamãs siberianos, depois procediam com o beber da urina e mostravam efeitos parecidos aos evidenciados anteriormente. Os autores de Plantas dos Deuses, comentam que isto era possível, porque os princípios psicoativos passavam à urina sem serem metabolizados, ou bem em forma de metabolítos que ainda tinham atividade, o que é pouco usual em relação aos compostos alucinógenos das plantas. Por outro lado, os Vedas fazem menção a que a urina de algum dos participantes da cerimônia do Soma era recolhida em recipientes especiais, o que permite estabelecer curiosas relações. Atualmente na India é conhecida a uroterapia na base da bebida, em jejuns, da própria urina. Este não é exatamente o caso descrito mais acima, mas este costume bem poderia ter suas raízes mais distantes na época védica da “medicina” do Soma. Com relação a Amanita uma mistura românica da capela de Plkaincourault (final do sec. XII), mostra-a como a árvore do Éden, enroscando-se ao redor da famosa serpente. No que diz respeito a substâncias tóxicas usadas em cerimônias religiosas, os assírios já conheciam a cannabis no primeiro milênio a. C. que, desde então, também era utilizava no Tibet e India com fins idênticos. Marco Polo mostra em suas viagens o caso de Al-Hasan Ibn-al-Sabha, conhecido como “o velho da montanha”que usava o haxixe (cujo nome deriva de “aschissim” ou “asesin”, que foi derivado como assassino), no qual relata que Al-Hasan submetia um grupo de jovens por meio do tóxico e, depois, os lançava contra seus inimigos. Seguramente, numerosos aromatizantes tiveram sua origem na aspiração de fumaças de plantas alucinógenas queimadas com finalidade ritual. Dada a toxidade observada é possível que, com o tempo, tais vegetais foram substituídas por resinas que hoje vemos utilizadas na prática de muitas religiões, isto é: o incenso, a mirra e o estoraque, além de madeiras aromáticas como o sândalo. Pode-se seguir uma pista similar na origem de certos perfumes que com o tempo foram desaparecendo. Quanto a amplitude de uso , digamos que da enorme quantidade de espécies vegetais terrestres, só cento e cinquenta foram empregados por suas propriedades alucinantes. Destas, umas vinte no oriente e ao redor de cento e trinta no hemisfério ocidental, correspondendo uma quantidade importante no centro e norte da América. Na origem das religiões universais, observam-se alguns traços que não deixavam de sugerir a presença de substâncias alucinógenas. O Soma, pela abundante referência que nós dá o Rig (ao redor de cento e vinte hinos), nos apresenta como o terceiro deus importante da Índia na época védica, mas não podemos desconhecer que, em tempos e lugares distintos, numerosas manifestações religiosas estiveram relacionadas com a ação de tóxicos. Sobre a anormalidades da percepção e da representação ver nosso Contribuições ao Pensamento (Psicologia da imagem - Variaçes do espaço de representação nos estados alterados de consciência. Planeta, Buenos Aires, 1990). 5.              Rig Veda I, 1, 2. Na tradução de F. Villar Liebana. ed. Nacional.Madrid, 1975. 6.              Ibid. I, 31, 2. 7.              Ibid. I, 36, 14 e ss. 8.              Ibid. I, 60, 3. 9.              Ibid. I, 78, 2. Possivelmente de uma ramificação da família destes gotama descendia o Buda histórico. No Rig Veda menciona-se os Ruhuganas como pertencentes a este grupo ( I, 78, 5) 10.              Ibid. II. 4, 5, e ss. 11.              Ibid. I, 32, 1 e ss. 12.              Ibid. Iii, 48, 1 e ss. 13.              Ibid.Ix, 1, 5 e ss. 14.              Ibid. Ix, 45, 3 e ss. 15.              Ibid. IX, 48, 3 e ss. 16.              Ibid. IX, 50, 1.

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17.              Ibid. IX, 57, 1 e ss. 18.              Ibid. X, 129, 1 e ss. da tradução inglesa de R. Griffith. 19.              Tendo como base a tradução de W. Wilkins do Mahabharata. Mitologia Hindu. Visão, Barcelona, 1980. 20.              Alusão ao ensinamento do Buda (500 A. C.) segundo esta doutrina, o ser humano pode liberar-se da roda das encarnações e chegar ao Nirvana, espécie de dissolução desde o ponto de vista das características sensíveis que configuram o Eu. A doutrina budista (a rigor uma filosofia e não uma religião), foi convertida paulatinamente numa crença religiosa dando lugar, por sua vez, a uma nutrida mitologia. 21.              Freqüentemente, “Om” se pronuncia no começo de orações e cerimônias religiosas. Originalmente, as letras que formavam esta palavra (a u m) representavam os Vedas. Com o tempo, começou a denotar as três divindades principais do ciclo purânico, a saber: Brahma, Vishnu e Shiva. 22.              A oração foi tomada do Vishmu Purana. Em relação ao nome de Brahma, Monier Williams diz: “Somente uns poucos hinos dos Vedas parecem conter a simples concepção da existência de um ser divino e onipresente. Inclusive nestes, a idéia de um deus presente em toda a natureza é um pouco difusa e indefinida. No Purushma Sukta do Rig Veda, o espírito único se chama Purushna. Já o nome mais comum no sistema posterior é Brahman, neutro (nominativo, Brahma) derivado da raiz Brih, ‘espandir-se’ e denota a unidade da essência expansiva, ou a substância universalmente difusa do universo. Brahma é o neutro, sendo o simples ser infinito (a única essência real e eterna) que, quando passa à essência manifesta se chama Brahman; quando se desenvolve a si mesma no mundo se chama Vishnu e quando de novo se dissolve em si mesmo num ser único recebe o nome de Shiva; todos os restantes e inumeráveis deuses e semideuses são também novas manisfestaçoes do Brahman neutro, que é eterno”. Indiam Wisdom, pag. 12. Citada por Wilkins O.C. pag. 106). 23.              O título deste parágrafo, “As formas da beleza e o horror”, sintetiza essa sensação contraditória que muito freqüentemente apresentam as divindades nas que se adverte sua dupla face benéfica e sinistra. O primeiro caso que se apresenta é a transformação de Krishna frente ao herói Arjuna. O segundo é o radiante Parvati capaz de triturar um monstro, absorver seu sangue e devorar os restos para voltar ao lado de seu amado Shiva com a beleza e mansidão de sempre. Impressionado por este estado contraditório que provoca seu amante, Baudelaire terminará escrevendo seu Hino à Beleza que bem pode ser dedicado a estes deuses ambivalentes: “De um negro abismo vem ou baixa dos astros? O destino, como um cão, te segue fiel e cego; vais espalhando ao acaso felicidades e desventuras, governas tudo ainda sem responder a nada... Oh Beleza, caminhas entre mortos e deles te escarnece! Entre tuas jóias o Horror não é a menos apreciada... O que importa que venhas do céu ou do inferno, oh Beleza, monstro enorme, ingênuo, espantoso, se teu olhar, teu sorriso, teus pés, me abrem a porta do infinito que amo e me é desconhecido?” 24.              Arjuna, um dos heróis da epopéia Mahabharata. 25.              D’O Bhagavad Gjita, na tradução de J. Roviralta Borrell. Canto XI. Diana, México, 1974. O Bhagavad Gita é um episodio do Mahabharata, redatado até o século III A. C.

7. MITOS PERSAS

1.              Zarathustra ou Zoroastro, viveu aproximadamente entre o 660 e 580 a.C. Sua prédica começou no remoto distrito do Irã oriental. Do ponto de vista religioso sua figura é das mais importantes. Quanto a sua existência pessoal é tão provada como a de Maomé p. ex., coisa que não ocorre com muitos outros fundadores. Apesar de contar com elementos indo-iranianos e outros primitivos, o profeta inaugura uma religião universal nova que se choca poderosamente com outras. Sua cosmologia e sua cosmogonia, seu apocalipsismo e suas idéias de salvação iniciam um ciclo religioso que junto a Isaías, Malaquias e Daniel (na Bíblia), terá enorme influência em vastas regiões do Oriente e Ocidente. Mais adiante, o Zoroastrismo convertido

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em Mitraísmo avançará novamente, desta vez na direção do Império Romano. Numa competição ferrenha com o Cristianismo influirá sobre ele mas, mesmo quando aquela nova religião se impôs em aliança com o poder político romano, os germens do mitrísmo cresceram em seu seio até se expressarem como sérias heresias. O mesmo ocorrerá depois no Irã onde a invasão muçulmana terminará erradicando quase totalmente o Zoroastrismo, mas muitas de suas idéias produzirão a heresia Xiita dentro do Islã. Já no s. XIX, o Ba e a fé Bahai, constituirão uma nova transformação no ensinamento de Zarathustra. Quanto ao aspecto doutrinal, atribui-se a Zarathustra a redação do Avesta ou Zend-Avesta, mas ao que parece o profeta somente escreveu o Yasna (talvez somente 17 de seus hinos ou Gathas). O Avesta (livro sagrado dos parsís) é constituído pelo Yasna (72 capítulos de liturgia Parsí); pelo Vispared (24 capítulos de invocações); pelo Vendidad (outros 22 capítulos); os Yashts (21 capítulos com invocações aos anjos e que constituem o Avesta propriamente sacerdotal) e o Khordah Avestya ou Pequeno Avesta (livro de devoções sacerdotais e privadas). Para nossas citações do Avesta, tomamos somente os Gathas e o chamado Vendidad-Sade. Os Gathas foram escritos no Avestin, que era a língua da antiga Bactriana, mas os textos originais sofreram numerosas vicissitudes desde a passagem de Alexandre pela Pérsia. Assim o material chegou até nós: em língua Pehlevi, com grandes lacunas e, seguramente, interpolações de todo tipo. No que se refere à certas divindades ou espíritos comuns na sua origem entre os ramos arianos que se bifurcaram até Índia e Irã, devemos ter em conta que tomam um caráter oposto devido, provavelmente, às guerras ou disputas que ocorreram entre aquelas tribos primitivas. Assim, Indra e os Devas são dignos de devoção nos Vedas hindus, tomando um caráter sinistro no Avesta. Outro tanto, ocorre com o legendário Yima do Avesta (“Djimchid, chefe de povos e rebanhos” para Anquetil-Duperron, de acordo com a citação de Bergua), que nos Vedas aparece como Yama, divindade da morte (Rig-Veda 1,38,5). Mas o Haoma (Soma para os Vedas) e Mithra (Mitra védico), permanecem com características benéficas.

2.              Alusão ao começo do Assim falou Zaratustra. Quando Zaratustra cumpriu os trinta anos, abandonou sua pátria e os lagos de sua pátria e se retirou para a montanha. F. Nietzche O.C. Vol. III pág. 243. Aguilar, Buenos Aires, 1961. Pelo que parece, a preocupação de Nietzche pelo profeta persa começou, quando muito jovem, o viu em seus sonhos. Em correspondência com sua irmã Elizabeth e com Lou Andreas Salomé, além de comentários a Peter Gast e a E. Rhode, Nietzche descreve Zaratustra como alguém capaz de fundamentar uma nova moral e, portanto, como um destruidor ou transmudador dos valores estabelecidos.

3.              Referência ao sistema cosmológico e cosmogônico de Zaratustra, desenvolvido pelos magos persas.

4.              Kine, alma dos seres viventes e particularmente do ganho. Ahura Mazda, divindade da Luz, chamado também Ormuz.

5.              Yasna XLIV, 3. O Avesta. Tradução de J. Bergúa. Madrid. 1974.

6.              Ibid, XLIV, 4.

7.              Ibid, XLIV, 5.

8.              Ibid, XLIV, 6.

9.              Segundo Fargard, 2 e ss. O Vendidad-Sade. Op. Cit.

10.              Ibid. Segundo Fargard, 7 e ss.

11.              Ibid. Décimo nono Fargard, 52.

12.              Ibid. Décimo Fargard, 17.

13.              Ibid. Décimo oitavo Fargard, 29 e 31.

14.              Ibid. Décimo quinto Fargard, 5 e 6.

15.              Yasna XXX, 3.

16.              Ibid. XXX, 4.

17.              Ibid. XXX, 5.

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18.              Ibid. XXX, 6.

19.              Ibid. XXX, 8. Refere-se à aliança dos espíritos Daevas com Ahriman, deus das Trevas e o Mal.

20.              Ibid. XXX, 8.

21.              Ibid. XLV, 2.

22.              Ibid. LIII, 2.

23.              Ibid. LI, 13.

24.              Ibid. XLIX, 11.

25.              Ibid. LI, 15.

8. MITOS GRECO-ROMANOS

1.-              Sob este título englobamos uma quantidade de mitos dos que participavam não somente gregos e romanos, mas também outros (povos) próprios do mundo creto-micênico que, desde já, requereriam tratamento à parte. Se observará que os sujeitos tratados possuem nomes gregos e, em nenhum caso romanos, já que os filhos de Rômulo absorvem seus mais proeminentes mitos da cultura grega, usando apenas o expediente de mudar nomes e lugares em que se desenvolvem alguns acontecimentos. De nenhum modo estamos dizendo que a cultura romana não tenha dado lugar a lendas e mitos próprios, já que as sucessivas ondas de invasores sobre essas terras tiveram que enfrentar nativos mais antigos e estes, desde já, contavam com formas míticas e religiosas mais ou menos diferenciadas das novas contribuições. Por outro lado, a influencia cultural grega sobre a romana não e o único fator que influi, já que numerosas “histórias” derivam de egípcios, frígios, hititas, etc. Se vamos ao caso, na própria mitologia grega são muitos os nomes de deuses de origem estrangeira. Por outro lado, uma coisa é a coleção (e muitas vezes transformação) de lendas e mitos devidos a pena dos mitógrafos antigos e outra o papel que deuses, semideuses e outras entidades exerciam no culto pessoal e coletivo. Na verdade, é aí que deve ser buscada a verdadeira importância dos mitos, mais próximos do sistema de crenças que da simples expressão poética, plástica e as vezes filosófica, como no caso do Platão —criador de “mitos” (Banquete, Fedon, República, etc.), através dos quais explica sua doutrina. De nossa parte, temos utilizado os textos de Homero, Píndaro, Eurípedes, Sófocles e Ésquilo por sua grande beleza expressiva e, desde já, a Teogonia e os Trabalhos e Dias de Hesíodo que, sem o vôo poético das obras daqueles autores, constituem verdadeiras peças de recopilação e “classificação”. Historicamente, os mitos que nos ocupam circularam pelos países de língua grega desde o s. X A.C. até aproximadamente o IV da era atual. Neste sentido, obras como as de Hecateo escritas no VI A.C. teriam sido de inestimável valor mas, desafortunadamente chegaram até nós fragmentos duvidosos de seus quatro livros de Genealogias. Não obstante, a obra daquele autor parece ter influído decisivamente em Ferecides, que escreve sobre os primeiros mitos atenienses. Por certo que os autores posteriores não são desprezíveis (e isto vale também para os romanos) mas, a medida que avança o tempo, o emaranhado informativo cresce de tal maneira que tende a confundir-se a fonte original com a criação recente. Os seres mais importantes mencionados neste capitulo de “Mitos greco-romanos” são: Cronus=Saturno romano; Zeus=Júpiter; Hera=Juno: Rea=Cibeles; Hermes=Mercúrio; Deméter=Ceres; Perséfone=Proserpina; Dionísio=Baco e Heracles=Hércules.

2-              Teogonia. Hesíodo. v. 154 a181. Alianza. Madri, 1986. Hesiodo de Ascra, primeira metade do s. VII A.C.(?)

3-              As Erinias são três: Tisífone (“destruição vingadora”); Alecteo (“repugnante, hostil) e Megera (“rabugenta”). Segundo A. Garibay, trata-se de personificações da idéia de reparação da ordem destruída pelo crime. Têm, entre outras missões, o mandato de reprimir a rebelião do jovem contra o velho. Vivem no Érebo e são anteriores a Zeus. Para A. Bartra são espíritos do

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castigo e da vingança de sangue. Por ultimo, P. Grimal as considera nascidas de gotas de sangue com o qual impregnou-se a terra quando da castração de Urano. Foram também chamadas “Euménides” e “Fúrias” pelos romanos.

4-              Teogonia. 460 a 474.

5-              Ibid. v. 470 a 501.

6-              Ibid. v. 686 a 692.

7-              Ibid. v. 693 a 699.

8-              Ibid. v. 717 a 720.

9-              Ibid. v. 730 a 732.

10-              As Troyanas. Eurípedes. Fim da cena XI na adaptação de J. P. Sartre. Losada. Buenos Aires. 1967. Todo o citado em itálico corresponde à fala de Possêidon, mas nós nos permitimos colocá-la na boca de Prometeu dado que se ajusta bem ao seu caráter e ao contexto geral no qual o Titã desenvolve seu relato. Em todo o caso, a surpresa que produz a introdução de construções como: “Fazei a guerra, mortais imbecis”, ou “fazendo-a então, arrebentareis todos!” é explicável porque rompe o estilo épico e grave com uma dissonância zombeteira, quase vulgar, própria de meados do século XX. Por outra lado, as constroções mencionadas não estão no original de Eurípedes e correspondem à adaptação sartreana. Com respeito a Eurípedes, este nasceu em Salamina em 480 e morreu em 406 A.C.

11-              Prometeu Acorrentado. Ésquilo. Episódio II. Losada. Buenos Aires, 1984. Ésquilo nasceu em Eleusis em 525 e morreu em 456 A.C.

12-              Ibid. Episódio II, depois do primeiro Coro.

13-              “Japetônida”, filho de Japeto. Japeto é, por sua vez, filho de Urano e Gea, e irmão de Cronos e dos outros titãs (Oceano, Ceo, Hiperion e Crio) e titânides (Tetis, Rea, Temis, Mnemosine, Febe, Dione e Tia). Os titãs e titânides pertencem à primeira geração de deuses (chamados “deuses titãs”). Da linha de Japeto e Climene derivam Atlante, Menecio, Prometeu e Epimeteo; assim como da linha de Cronos e Rea derivam Hestia, Deméter, Hera, Hades, Possêidon e Zeus. Mas é a linha de Cronos (a dos chamados “crônidas”) a que se impõe. Epimeteo, irmão de Prometeu (e seu inverso dada sua torpeza e falta de gênio) aceita como presente a Pandora da qual se serve Zeus para arruinar os homens mais uma vez. De Epimeteo e Pandora nasce Pirra e de Prometeu e Climene nasce Deucalion. Estes dois formam o casal povoador do mundo depois do Diluvio que enviou Zeus num novo castigo. É graças a outra intervenção de Prometeu que o ser humano chega a se salvar. Com efeito, Prometeu instrui a Deucalion e Pirra para que construam a Arca. Depois, os sobreviventes da catástrofe fazem os humanos ressurgir atirando pedras para trás (por cima do ombro), enquanto caminhavam pelos campos. Produto desta “semeadura”, vão nascendo as mulheres e os homens. Todo o anterior ressalta a linha dos Japetônidas como promotora da propagação humana.

14-              Teogonia, v. 535 a 570 e 615 a 618.

15 -              Ibid. v. 521 a 525.

16-              Hinos Homéricos. II. A Deméter (em Ilíada II) Losada. Buenos Aires, 1982. A letra em itálico de todo este parágrafo corresponde às distintas passagens do mesmo hino.

17-              Sobre a Natureza. I e II. Metrodoro de Kio.

18-              Hinos Homéricos. XXVI. A Dionísio.

9. MITOS NÓRDICOS 1-              Sobre os antecedentes da literatura nórdica relacionada com os mitos, F. Durand faz a seguinte revisão histórica: “Em 1643, o bispo irlandês de Skàlholt descobriu um manuscrito que deu de presente ao rei da Dinamarca Frederico III. O Codex Regius continha a transcrição que nos princípios do séc. XIII fez Snorri de um conjunto de poemas muito antigos, aos quais

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pôs o título genérico de Edda. Mais tarde havia de ser encontrado o manuscrito de outro erudito, Saemund, onde figuravam as mesmas obras, o que explicaria o plural: os Edda. Estes poemas foram concebidos em época pré-literária; a maior parte parecia datar-se dos séc. VII e VIII, mas certos filólogos tendem a datar os poemas mais arcaicos no séc. VI. É evidente que estes poemas começaram a ser recitados na Noruega e também foram transmitidos de geração em geração até que os colonos o levaram até a ilha de “gelo e fogo” e os escritores medievais o salvaram do esquecimento assentando-os sobre VITELA. O resto da Escandinávia também participou na elaboração desta obra. Assim, nos Gesta Danorum de Saxo Grammaticus figura a tradução latina de poemas que podem ser qualificados como proto-éddicos. O grandioso poema danés do s. X, o Bjarkemál, que Olaf cantou diante de seus homens em formação em Stiklestad, apenas se difere de certas estrofes éddicas”. Los Vikingos, págs. 108 e 109. Eudeba. Buenos Aires, 1975. Deste modo, resgata-se uma tradição que começou na época das migrações (entre os séculos III e IV) que foi se estendendo por todo o mundo germânico. Mas a literatura mítica fica restrita ao ambiente escandinavo. Se falamos de grupos de lendas ou escritos nórdicos mais ou menos épicos, podemos achar produções tanto na Inglaterra como na Alemanha e em outros países. Mas aqui estamos nos referindo a um tipo de literatura que se concentra preferentemente na Islândia. Isto é deste modo devido a complexas situações , onde teve importância também o fator geográfico. Desde o descobrimento e colonização da Islândia pelos noruegueses (até 874), até a primeira geração de islandeses cristãos (ao redor de 1020), ocorrem numerosos fenômenos no mundo escandinavo que bem podemos fazer coincidir com o “ciclo viking”. Época turbulenta, de expansão e conflito contínuos, tem o seu revés com o avanço das potências continentais e do Cristianismo. Neste período, valiosa documentação é eliminada ou perdida na Suécia, Noruega e Dinamarca. Na Islândia se conserva uma enorme produção que continua, ademais, até já bem iniciado o século XIII; tal é o caso da Edda Mayor, da que nós pegamos os cantos de temas mitológicos, deixando de lado os temas épicos. Afortunadamente para as letras, surge a colossal figura de Snorri Sturluson (1179-1241), que compõe numerosas sagas e resgata a mitologia nórdica, particularmente em seu Gyufaginning (O Engano de Gulfi) e, em alguma medida, em seu Skhaldskaparmal (Discurso para a preparação de poetas). A Edda Mayor em verso, e a chamada Edda Menor (ou Edda em Prosa, ou Edda de Snorri), constituem as fontes mais seguras sobre a mitologia nórdica devida aos islandeses.

2.-              Edda Mayor. Völuspá. 17 e 18. Alianza. Madri, 1986.

3.-              Forma genérica de designar os deuses. Quando se fala de alguma deusa em particular, a chamam Asinia.

4.-              Espaço cheio de energia. Esse lugar se encheu e afundou pelo peso dos gelos quando estes deixaram de fluir mas depois, quando em alguns lugares lutaram o gelo e o fogo vulcânico, a escarcha das geleiras se fundiu e das gotas começou a se formar Ymir, o primeiro gigante de gelo que tem em seu interior o calor vulcânico e algo da energia de Ginnungagap.

5.-              É o lugar de gelo ao norte em oposição a Múspel, região mítica cálida do sul. Nesta vive um gigante que defende o lugar brandindo uma espada de fogo e que sairá daí no final dos tempos para incendiar o mundo.

6.-              Uma fonte.

7.-              A serpente que rói as raízes.

8.-              Um dos Ases.

9.-              Todo o citado é de Gylfaginning (O Engano de Gylfi), Texto mitológico dos Eddas. Snorri Sturluson. XV. Miraguano. Madri, 1987. A perda de um olho em troca de um bem maior também aparece espelhada em outras lendas e histórias como a seguinte que, ademais, nos ilustra sobre o comportamento belicoso dos vikings: “Quando chegou à instância onde dormia Armónd, sua mulher e sua filha, Egil abriu a porta e foi à cama de Armód. Puxou a espada e com a outra mão pegou a barba de Amód e atirou-o ao pé da cama. Mas a mulher e a filha de Armód se levantaram apressadamente e pediram a Egil que não matasse Armód. Egil falou que assim o faria por elas ‘mas ele fez por merecer que eu o mate’. Então, Egil cortou-lhe a barba

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desde o queixo; depois, lhe arrancou o olho com o dedo, de forma que o deixou pendurado sobre a bochecha; depois, Egil e seus companheiros marcharam”. Saga de Egil Skallagrimsson. Snorri Sturluson. Pág. 270 e 271. Miraguano. Madri, 1988.

10.-              A Canção dos Nibelungos. C. Mettra. Pág. 29. F.C.E. México, 1986.

11.-              A entidade do passado. Deve considerar-se às nornas gravando em suas tábuas, quer dizer, imprimindo suas runas mágicas nas que fixam o destino das pessoas. Não se trata, portanto, de “fiandeiras” no estilo das Parcas romanas ou das Moiras gregas.

12.-              A entidade do presente.

13.-              A entidade do futuro.

14.-              As citações correspondem a Gylfaginning. Op. Cit. XV e XVI.

15.-              A mansão dos heróis. As valquírias, escolhem os valentes que morrem, mas também decidem as batalhas. Estas mulheres guerreiras lembram ligeiramente às amazonas, mas sua ação é um tanto indireta. Contamos com uma pista histórica na que as mulheres dos primitivos germânicos já “participavam” e às vezes contribuíam para decidir as batalhas. É possível que esses costumes contribuíram posteriormente à mitificação das valquírias vikings. Tácito (55 a 120 D. C.) em seu Dos Costumes, Localização e povos da Germânia, nos diz: “E ao entrar na batalha tem suas prendas mais queridas, para que possam ouvir os alaridos das mulheres e os gritos das crianças; e estes são os fiéis testemunhos dos fatos, e os que mais os louvam e engrandecem. Quando se vem feridos, vão mostrar as feridas a suas mães e a suas mulheres, e elas não tem pavor de contá-las nem de chupá-las e no meio das batalhas lhes levam refresco e os vão animando. De maneira que algumas vezes, segundo eles contam, restauraram as mulheres batalhas já quase perdidas fazendo voltar os esquadrões que se inclinavam a fugir com a constância de seus rogos, e ao colocá-los diante de seus peitos, e representar-lhes o próximo cativeiro a que isto se seguiria, o qual temem muito mais impacientemente por causa delas, tanto, que se pode ter maior confiança das cidade que entre seus reféns estão algumas donzelas nobres. Porque ainda se persuadem que há nelas um não sei quê de santidade e prudência, e por isso não menosprezam seus conselhos, nem têm pouca estima por suas respostas”. Incluído em As Histórias de Caio Cornélio Tácito, pág. 335 e 336. Sucessores de Hernando. Madri, 1913.

16.-              Tácito (op. cit. pág. 346), referindo-se à bebida embriagante (cerveja), e aos hábitos alimentícios dos primitivos germânicos diz: “Fazem uma bebida de cevada e trigo, que quer se parecer em algo com o vinho. Os que habitam próximo à ribeira de Rhin compram esta. Suas comidas são simples: maçãs selvagens, veado fresco e leite qualhado. Sem mais aparatos, curiosidades, nem presentes matam a fome; mas não usam da mesma temperança contra a sede. E se lhes fosse dito para beber o quanto queiram, não seria menos fácil vencê-los com o vinho que com as armas”. Nas Eddas se fala da hidromel que é uma bebida própria dos deuses e que não deve ser confundida com a cerveja ainda que às vezes, figurativamente, sejam identificadas de modo similar.

17.-              A tradução que se tem dado de “Ragnarök” desde Wagner em diante é “Crepúsculo dos Deuses”. Sem dúvida, a mais correta é “Destino dos Deuses”, que nós pegamos para intitular toda esta cena.

18.-              A Alucinação de Gylfi. Snorri Sturluson. 51. Na tradução de J. L. Borges. Alianza. Buenos Aires, 1984.

19.-              Völuspá, 58. op. cit.

20.-              Ibid. 45.

21.-              A Alucinação de Gylfi. op. cit. 51.

22.-              Este parlamento final de Haki rememora ligeiramente à descrição de Snorri no Ynglingasaga, a raiz da batalha de Fyrisvellir (na que Haki ficou gravemente ferido). “... Então fez com que trouxessem sua nave, fez com que a carregassem com os homens mortos e suas

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armas, fez com que a colocassem para flutuar, fez com que endereçassem o timão até o mar e içassem a vela e acendessem uma pira de madeira seca sobre a coberta. O vento soprava da terra. Haki estava em agonia ou já morto quando foi posto sobre a pira. A nave em chamas desapareceu então no horizonte, e isto ficou por muito tempo gravado na memória”. Nas palavras que colocamos na boca de Haki se reflete a amargura de um mundo que morre. Haki não é um viking que se converte ao Cristianismo, pelo contrário. Mais bem dá a entender que a derrota frente à religião que avança (à das “estranhas pessoas”) é na realidade um parênteses no que numerosas imagens e mitos nórdicos invadem o vencedor.

10. MITOS AMERICANOS

1-              O livro dos Quichés da Guatemala foi traduzido com distintos nomes: “Popol Vuh. Las antiguas historias del Quiche”, por A. Recinos (publicado pela F.C.E. Mexico Em nossas mãos, a sexta reedição de 1970, ainda que tenha sido escrito em 1947); “Popol Vuh o Libro del Consejo de los Indios Quiche”, para M. Asturias e J. M. Gonzalez de Mendoza (publicado por Losada, Buenos Aires. Em nossas mãos, a segunda edição de 1969, ainda que tenha sido escrito em 1927); “Popol Wuj. Poema Mito-histórico Ki-ché”, para Adrian. I. Chavez (publicado pelo Centro Editorial vile, Quetzaltenango, Guatemala. Em nossas mãos a primeira edição de 1981, ainda que tenha sido escrito em 1979). A tradução de Recinos se baseou no manuscrito intitulado Arte das Três Línguas, composto no principio do s. XVIII por frei Francisco Ximenez. O documento fonte passou para a coleção Brasseur e depois às mãos de A. Pinart que, por sua vez, o vendeu a E. Aller e daí chegou à Biblioteca Newberry, de onde Recinos fez uma cópia fotostática. O trabalho de Arciniegas foi traduzido para o castelhano a partir da versão francesa de P. Reynaud entitulada “Les dieux, les heros, et les hommes de l’ancien Guatemala d’apres de livre du Conseil”. Reynaud utilizou o manuscrito Ximenez. Por ultimo, a tradução de Chavez também se baseou no manuscrito Ximenez ainda com o cuidado de considerar as duas colunas que o frei havia composto.  Ximenez colocou na primeira a transcrição quiché ainda que castelhanizada e na segunda, a tradução ao castelhano. Chavez reatualizou o original Quiche transcrito por Ximenez e esse material foi o que voltou para o castelhano. Em 1927 foi publicada na Guatemala uma tradução feita por Villacorta e Rodas com base no texto francês de Brasseur, mas o livro não chegou até nós. O mesmo aconteceu com outra tradução de Brasseur que se deve a J. Arriola e que foi publicada na Guatemala em 1972. Em todos os casos, o documento fonte é o de Ximenez. Entre 1701 e 1703, chegou em suas mãos, no real patronato do povo de São Tomas (hoje Chichicastenango), um manuscrito redigido em língua quiché mas representado em caracteres latinos. O documento datava aproximadamente da metade do s. XVI. Desafortunadamente, o original se extraviou mas Ximenez teve o cuidado de copiá-lo ainda que com algumas alterações.

2-              Chavez considera que esta frase alude à passagem dos povoadores do norte da América a partir da Ásia, quer dizer, desde o oeste para eles.

3-              Chavez afirma que as “pinturas” eram verdadeiros livros ou tábuas unidas em forma dobradiça e não simplesmente gravados isolados impressos em pedra, osso e madeira. Sustentando seu ponto de vista, cita a “Relacion de las cosas de Yucatan” do frei Diego de Landa no qual esse autor diz: “Encontramos grande numero de livros destas, suas letras e, porque não tinham coisa que não tivesse superstição e falsidade do demônio, os queimamos todos, O QUAL sentiram a maravilha e lhes deu muita pena”.

4-              O texto em itálico corresponde até aqui à tradução de Recinos (Op. Cit).

5-              A partir daqui, e até o final, a tradução que usamos é a de Arciniegas (Op. Cit).

6-              Chavez opina que se trata de uma espécie de óleo devido a um cataclismo cósmico. Mas talvez, possa se dever a expulsão de petróleo inflamado pela ruptura de alguma camada quando da explosão de um vulcão.

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7-              Alude a um longo peregrinar “descendo” desde regiões muito frias até chegar a lugares de assentamento mais permanentes.