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Sinal de menos nº 6, dez. de 2010

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REVISTA SINAL DE MENOS Nº6, 2010

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2 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010

[-] Sumário # 6

EDITORIAL 3

ARTIGOS APROXIMAÇÕES D’O CASTELO DE KAFKA Cláudio R. Duarte 5 O VELHO MUNDO PRECISA SUCUMBIR Mito e história em “Berlin Alexanderplatz” Rapahel F. Alvarenga 17

A FRATURA DA FORMA Constituição e implicações da representação da metrópole em “Berlin Alexanderplatz” Gabriela Siqueira Bitencourt 69

LOUIS-FERDINAND CÉLINE “Voyage au bout de la nuit” e a crise do realismo Daniel Garroux 98

DA CENTRALIDADE DE CANUDOS César Takemoto 123

JOÃO TERNURA Um livro à revelia do próprio autor Helena Weisz 131

OTIMISMO E SEBASTIANISMO NA HISTÓRIA RECENTE DA TROPICÁLIA Carlos Pires 146

O DIA-A-DIA COLONIZADO Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos Nils Göran Skare 162

TRADUÇÕES LITERÁRIAS VARIANTE DA ABERTURA DE O CASTELO Franz Kafka 181

A BAILARINA E O CORPO Alfred Döblin 184

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Editorial

A edição nº 6 de Sinal de Menos gira em torno das seguintes questões: como a

literatura tem representado a cultura dos marginalizados na sociedade moderna? Como o

que está “à margem” da sociedade, incluindo aí o inconsciente de seus sujeitos, irrompe nas

relações sociais?

A seção de ARTIGOS abre com um ensaio de CLÁUDIO R. DUARTE sobre O Castelo

de Franz Kafka. O autor esboça as linhas fundamentais de sua construção e mostra por que

este é talvez o romance mais complexo de Kafka, sintetizando momentos fundamentais de

sua obra, pois além da dominação e da alienação, ele introduz de forma poderosa a

irredutível não-identidade da figura de K.

A seguir, temos dois ensaios sobre o romance Berlin Alexanderplatz de Alfred

Döblin. O primeiro, de RAPHAEL F. ALVARENGA, procura integrar à explicação

materialista a dimensão mítico-religiosa deste que é um “romance de formação” de um

marginal, inscrevendo a obra no conturbado contexto político e cultural da República de

Weimar, a cujo destino está enredado o de suas personagens. O texto de GABRIELA S.

BITENCOURT busca, a partir da análise de alguns elementos formais da representação do

espaço urbano no livro, discutir quais os desdobramentos do uso da montagem e como, por

meio dela, a configuração da “metrópole literária” afeta a forma do romance.

Em seguida, DANIEL GARROUX faz uma leitura de Voyage a la bout de la nuit, de

Louis-Ferdinand Céline, sob o ponto de vista da ruptura da forma realista tradicional. Ao

colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma consciência

cindida a narrativa subverte alguns dos pressupostos de que o gênero do romance havia se

servido até então. O ensaio desenha a experiência social de fundo sedimentada no romance.

No próximo artigo, CÉSAR TAKEMOTO tenta repensar a centralidade do evento da

guerra de Canudos para a configuração artística de duas obras importantes da literatura

brasileira do século XX: Os Sertões de Euclides da Cunha e Grande Sertão: Veredas de

Guimarães Rosa. Para tal, o autor se utiliza de uma crônica de Machado de Assis para daí

avançar alguns pontos na interpretação de uma determinada constelação histórica

brasileira.

Em seu artigo, HELENA WEISZ acompanha a trajetória do mais ambicioso projeto

do escritor brasileiro Aníbal Machado. Um livro que começou a ser escrito ainda no

primeiro Modernismo, acompanhou todos os percalços e contradições desse movimento e

só foi terminado em 1964.

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Fechando a “sessão brasileira”, CARLOS PIRES analisa um balanço histórico da

música popular e das transformações do Brasil, desde o final da década de 1960, feito por

Caetano Veloso, em 1993. Essa reconstrução da história recente do país reposiciona

o tropicalismo como um evento sem certas linhas de força, que são centrais para entendê-

lo. A análise busca compreender qual o sentido desses apagamentos pontuais, que

aparecem quase como sintomas no discurso de Veloso.

O último ensaio, da autoria de NILS GÖRAN SKARE, pensa a cotidianidade, no

sentido de Henri Lefebvre, sob o ponto de vista da teoria lacaniana do discurso, em suas

modalidades fundamentais (a do mestre, a do universitário, a da histérica, a do analista e,

por fim o “dialeto” do capitalista). Se o cotidiano é o lugar potencial do acontecimento, o

capitalismo, segundo o autor, seria um sistema que busca administrá-lo e, no limite,

evacuá-lo do cotidiano.

A seção de TRADUÇÕES LITERÁRIAS traz uma variante da abertura de O Castelo

de Kafka, que lança certa luz sobre o caráter da luta de K. no romance, e um pequeno conto

de ALFRED DÖBLIN (“A Bailarina e o corpo”), ambos traduzidos diretamente do alemão.

Lembramos que a revista vem aceitando contribuições. O próximo número trará uma

entrevista com Robert Kurz, repensando temas de seu livro seminal, O colapso da

modernização, após 20 anos de sua publicação.

DEZEMBRO de 2010

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Aproximações d’O Castelo de Kafka

Cláudio R. Duarte*

1. Como nas grandes obras, a abertura de Das Schloß (1922) nos põe imediatamente diante

de uma célula de seu princípio de construção:

“Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta [Schloßberg, colina do castelo] não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.”1

A primeira visão das terras do conde Westwest é esta: o vazio aparente na paisagem em

preto e branco. K. fica por longo tempo parado sobre a ponte observando a presença-

ausência da aldeia e do castelo, envoltos na bruma e na neve. Eles não só não se oferecem à

perspectiva enquanto paisagem, como K. parece nada saber sobre eles. O que aqui fica

pressuposto é a indistinção de aldeia e castelo.

2. Isto que nos põe imediatamente diante do enigma de K.: não só ele aparentemente

desconhece que chegou a seu destino, a uma aldeia e a um castelo (“Em que aldeia eu me

perdi? Então existe um castelo aqui?”, DS, 8/10), como ignora o tal conde e suas

propriedades – “o que torna impossível”, como já apontava Adorno, “que ele tenha sido

chamado até lá”, isto é, que ele seja de fato um agrimensor, com seus ajudantes, que tenha

se adiantado a eles durante a noite e tenha lhes confiado aparelhos de medição.2

Certamente é por isso que ele não reconhece os ajudantes, Artur e Jeremias, quando estes

chegam à hospedaria no dia seguinte, enviados pelo castelo (DS, 31/32). Quem é K., afinal?

Um impostor? Um comediante (“Chega de comédia”, diz ele, DS, 9/11)? O que veio fazer

ali? O que ele quer? Como a personagem se desenvolve na trama desde o início obscura?

* Bolsista CNPq, doutorando DG-FFLCH/USP. 1 KAFKA, Franz. Das Schloß [1922]. (Kritische Ausgabe. Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt a. M.: S.

Fischer, 1982, p. 7. (Trad. Modesto Carone: O Castelo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 9). Doravante, cito o texto diretamente no corpo do texto sob a abreviação DS, seguido do número das páginas em alemão e em português, respectivamente.

2 ADORNO, Theodor W. “Anotações sobre Kafka” [1953] in:__. Prismas. (Crítica cultural e sociedade) [1955]. São Paulo: Ática, 1998, p. 242. Marthe ROBERT também apontou a impostura deste início (“Simbolismo y crítica de los símbolos” in:__. Acerca de Kafka/Acerca de Freud [1967]. Barcelona: Anagrama, 1970, p. 42-3).

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3. Como se sabe, longe de responder claramente tais questões, o romance de Kafka constrói

um mundo cerrado e enigmático, que tende a suscitar múltiplas interpretações. O narrador

em terceira pessoa baixa ao horizonte das personagens e tende a se reduzir à visão de fora,

com um acesso limitado ao seu mundo interior. Ele se centra na ótica de K.: o texto se

condensa e se fecha nos primeiros dias de sua permanência na aldeia e opera como uma

contínua apresentação, multiplicação e destruição de aparências e de imagens positivas. Daí

a vulnerabilidade e a fragilidade de muitas interpretações da obra, que somente ganham

alguma consistência quando se dispõem pacientemente a ler os detalhes do ponto de vista

da totalidade da composição (mesmo inacabada).

4. Se K. não é simplesmente um estrangeiro, mas um falso agrimensor (Landvermesser) (o

qual, Schwarzer pretende reduzir a “um reles e mentiroso vagabundo [Landstreicher]”, em

um momento de fúria, DS, 12/13) – um intruso que se vê nitidamente como um “agressor”

–, o castelo aceita e alimenta a luta com outra impostura. De fato, após o primeiro

telefonema de Schwarzer, que dava sinal negativo ao suposto agrimensor, K. espera apenas

que os aldeões se atirem sobre si e o expulsem do território do conde. Mas, após o

inesperado segundo telefonema que o confirma como agrimensor (o próprio “chefe do

escritório” é quem telefona), ele reflete o seguinte:

“Então o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorável a ele, pois indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relações de força tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo.” (DS, 12/14, grifos meus).

Se os camponeses levam as leis e as tradições à risca, o castelo sustenta a impostura de K. e

indiretamente confirma-se também como farsa. Por isso, na seqüência deste mesmo trecho,

K. sente também certa liberdade e certo destemor em relação a seu adversário:

“Mas por outro lado isso também era propício, pois a seu ver provava que o subestimavam e que ele teria mais liberdade do que de início podia esperar. E se acreditavam com esse seu reconhecimento [Anerkennung] como agrimensor – do ponto de vista moral, sem dúvida superior – conservá-lo num estado de medo contínuo, então eles se enganavam: isso lhe dava um leve tremor, mas era tudo.” (DS, 12-3/14)

Nessa chave, novos problemas se colocam: onde a lei tem sua verdadeira sede ou ponto de

sustentação? Qual é a diferença entre a aldeia e o castelo? O que há por trás daquele “vazio

aparente”?

5. Como no conto “Diante da lei”, estamos o tempo todo “Diante do castelo”, mas o castelo

– a lei ou a sede da lei – não está simplesmente ausente. Muito pelo contrário, o castelo está

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presente demais lá embaixo, na aldeia. O paradoxo inicial de O Castelo é que apesar de seu

título ele se passa o tempo todo na aldeia. Talvez porque o castelo é, de certa forma, nada

mais que a aldeia. Como ensina o professor da aldeia: “Não há diferença entre os

camponeses e o castelo” (DS, 20/21). “As autoridades judiciais” – escreve Wilhelm Emrich

– “não estão fora, mas habitam em pleno centro da vida terrena, ou mais ainda, elas são a

vida mesma. (...) A lei desconhecida segue sendo desconhecida ainda que incessantemente

esteja presente e opera em todas as relações da vida e do pensamento.”3 A fantasmagoria do

castelo manifesta-se na aldeia, na vida dos aldeões, na sua consciência e na sua prática

reificadas; no limite, ele se confunde com eles e é idêntico a eles. “Em lugar nenhum K.

tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal

maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham

trocado de lugar” (DS, 94/92-3).

6. Kafka nos insere num mundo ficcional em que há e não há distinção entre as coisas e os

seres. Pensando na dona do albergue (Gardena = guardiã) e talvez em Frieda e nos

ajudantes, K. se pergunta: “o que significava, por exemplo, o poder até agora apenas formal

que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o poder que Klamm tinha em toda

a sua efetividade no quarto de dormir de K.?” (DS, 94/93). Essa indistinção entre as ordens

do mesmo e do outro – a coerção da identidade que aliena e esmaga as particularidades –

tende a ser a forma predominante do livro. Como ruína desse mesmo processo social

efetivo, ele próprio restou como torso monumental de exposição do problema da reificação

e do poder alienado, na sociedade moderna.

7. O romance foi lido diversas vezes como uma espécie de metafísica da ausência, de busca

impossível do santo Graal ou da morada do deus absconditus, ou mais simplesmente como

a busca da integração na vida da aldeia ou do castelo (K. sendo o protótipo do judeu,

segundo alguns, para outros uma espécie de “messias”), nesse caso, vale dizer, uma

integração no seio da mais completa alienação. Na versão alucinada de Günter Anders, por

exemplo, a vida de K. consistiria nas “tentativas e esforços mil vezes repetidos para ser

3 EMRICH, Wilhelm. Protesta y promesa [1960]. Barcelona/Caracas: Alfa, 1985, p. 128-9. Este ponto foi reforçado

por ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 187. Para análises específicas de O Castelo, beneficiei-me de comentários de: ROBERT, Marthe. “Le dernier messager” in:__. L‟ ancien et le nouveau. De Don Quichotte à Franz Kafka. Paris: Grasset, 1963; EMRICH, Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟” in:__. Franz Kafka. Frankfurt a. M./Bonn: Athenäum, 1958; KRAFT, Herbert. “Being There Still: K., Land Surveyor, Stable-Hand, ...” in:__. Someone like K. (Kafka‟s Novels). (Trad.: R. J. Kavanagh e H. Kraft). Würsburg: Königshausen & Neumann, 1991; BOA, Elizabeth. “The Castle” in: Preece, J. (ed.). The Cambridge Companion to Kafka. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

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aceito” na aldeia do castelo, em que se esforçaria para “atender a todas as prescrições,

apropriar-se „interiormente‟ delas e justificar até mesmo as pretensões „imorais‟ dos

governantes”! Kafka se torna, assim, um “moralista do nivelamento” e da “obediência”.4 No

entanto, desde o início K. confessa que não é poderoso e que seu respeito pelos poderosos é

uma estratégia ou artimanha (DS, 16/17). Por certo, trata-se de uma busca obstinada, mas

com um sinal desde o início negativo: é impossível imaginar que K. leve realmente “a sério”

o que se passa no castelo a partir da admissão de sua impostura, muito menos que ele

atribua um caráter natural ou divino a ele ou um sinal positivo à sua busca, às prescrições

do castelo etc. Mediante o estranhamento deliberado, Kafka cria um universo que escapa à

clareza, à coerência, à previsibilidade e à distinção precisa, ao mesmo tempo em que busca

trilhar o que escapa aos poderes obscuros – o caminho aporético e circular de K. entre a

aldeia e o castelo. Numa variante do início do romance, K. diz que veio para “lutar” (“Zum

Kampf bin ich ja hier”) e, segundo uma camareira, todos na aldeia estariam cientes da

chegada de um forasteiro.5 Dessa perspectiva, salvo engano não continuada e não

incorporada pelas diversas outras passagens da versão final do romance, trata-se de forma

ainda mais explícita de uma luta radical entre o “sistema” e um “indivíduo”, o seu “resíduo”.

8. Um equívoco comum da crítica é julgar que a obra de Kafka não contém qualquer espécie

de desenvolvimento em seu núcleo, como se o autor fizesse um finca-pé arbitrário numa

simples “paralisação do tempo”, em que os “acontecimentos consistem em imagens

isoladas”, por onde ele se torna o “glorificador do compromisso e do ritualismo em geral”,

isto é, o apologista da mera repetição de formas sociais vazias.6 Contudo, um

desenvolvimento bloqueado e interrompido não é absolutamente um não-desenvolvimento.

É preciso aqui distinguir, no plano analítico, o movimento da forma e o do conteúdo. Em

certo sentido, temos um “movimento” de reiteração da forma e um movimento de

diferenciação e de decomposição do conteúdo. Pode-se pensar esse duplo movimento em O

Castelo como imposição coercitiva da identidade, sempre pressuposta na aldeia; mas uma

identidade nunca realizada até o fim, pois negada precisamente pela ação e a interação de

K. com as outras personagens. Esse desdobramento leva de estranhamento a

estranhamento, destruindo as suposições do “herói” (e do leitor). O estranhamento

4 ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra – Os autos do processo [1951]. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 26 e

33. 5 KAFKA, Franz. Das Schloß. Apparatband. (Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt am Maim: S. Fischer,

2002, p. 116. 6 “Onde só há repetição, não há progresso do tempo. Todas as situações do romance de Kafka são, de fato, imagens

paralisadas.” (ANDERS, op. cit., p. 30, 83 e 39.)

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funciona como desnaturalização das referências realistas tradicionais e, ao mesmo tempo,

como apresentação das contradições sociais reais: as deformações da perspectiva realista

não são uma mania do autor nem de uma mera figura de estilo, mas se tratam precisamente

de traços produzidos pela violência social da identidade. Esta é conduzida pelo escritor até

o absurdo a fim de poder nomeá-la de modo mais radical, ao mesmo tempo em que expõe,

assim, o sofrimento e as deformações sociais por ela produzidos.

9. Se K. sofre de certa ingenuidade nos primeiros dias, esta vai sendo minada pelos

acontecimentos e é transformada num processo crítico que esclarece não obviamente o

castelo, desde o início fechado e inacessível à interpretação, mas alguns pressupostos cegos

e absurdos de sua autoridade, na aldeia. Em contraste com o ritualismo burocrático mais

estrito que zela pela identidade, a não-identidade ganha relevo. Ela fica sob permanente

controle e ao final tem ser neutralizada. Os aldeões sempre estão vigiando o forasteiro K.,

que não pode pernoitar no albergue dos senhores; Momus o inquire e registra todos os seus

passos; os ajudantes são enviados por um funcionário do castelo (Galater) em nome de

Klamm, supostamente para diverti-lo (e confundi-lo); o prefeito o rebaixa a servente da

escola; os professores da escola o vigiam e humilham; ele é expulso do corredor do albergue

dos senhores etc. O ponto máximo desse poder panóptico é quando Erlanger ordena o

retorno de Frieda à sua função de atendente no balcão: “é nosso dever vigiar o bem-estar de

Klamm”, diz o secretário, “de tal forma que mesmo incômodos que não são nada para ele –

e é provável que não exista absolutamente nenhum – nós os eliminamos quando nos

chamam a atenção como possíveis perturbações” (DS, 428/402). A “normalidade” do

tempo social se realiza pelo rígido controle do espaço da aldeia. É nesse sentido que todas

as autoridades do castelo, segundo o prefeito da aldeia, são nada mais que “autoridades de

controle” (DS, 104/103). Um sistema que, em sua fantasia, funciona como uma máquina

impessoal sem falhas.

10. As relações impessoais de dominação se materializam em relações interpessoais e,

como tais, estão sujeitas a toda ordem de contingências e arbitrariedades. É o que aparece,

por exemplo, na forma de relações de propriedade sobre as coisas, os lugares e as próprias

pessoas. Se em Der Prozeß “tudo pertence ao tribunal”, no condado, de maneira análoga,

tudo é propriedade do conde Westwest. Como logo informa Schwarzer a K.: “Esta aldeia é

propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no

castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde” (DS, 8/10). O caso mais extremo

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deste poder coisificador é a propriedade exercida sobre as mulheres da aldeia. “Na verdade”

– diz Olga, tendo em mente o episódio da carta de Sortini a Amália – “consta que todos nós

pertencemos ao castelo, que não existe distância e portanto nada para transpor” (DS,

309/293). Deste modo, “Klamm é sem dúvida como um comandante sobre um exército de

mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir até ele.” (ib.). A própria Frieda também

concebe sua relação com K. como sendo uma relação de “propriedade” (DS, 245/235) e não

deixa nunca de se subordinar às injunções do castelo. E assim o abandona no final.

11. Ao contrário do que geralmente se afirma, O Castelo não analisa “o poder de um

despotismo arcaico a exemplo da monarquia austro-húngara”.7 Como apontou Löwy, a

alienação burocrática moderna é o metro fundamental das relações sociais no romance,

ganhando até mesmo, numa fala do prefeito da aldeia (DS, 110/107-8), a forma metafórica

de uma “máquina autônoma”, que “dispensa a participação humana”.8 É possível ver na

base social, porém, algo como uma “economia mercantil simples”, típica de uma sociedade

agrária9, subordinada à burocracia de uma grande empresa ou de um Estado tipicamente

modernos. O aparelho administrativo do castelo cobra os seus tributos, os aldeões têm os

seus negócios isolados ou funções particulares, como camponeses, artesãos, hospedeiros e

funcionários, enquanto K. espera tornar-se, de início, uma espécie de assalariado

contratado pelo castelo. Assim, Kafka parece mesclar no romance as formas de dominação

mais modernas e abstratas e as mais tradicionais e imediatas. O interesse estético dessa

mescla é a ênfase no poder social reificado da identidade e de sua reprodução. A dominação

social se infiltra e se dissemina desde a família patriarcal camponesa tradicional até os

grupos mais amplos e abstratos, nos albergues e nos escritórios da maquinaria burocrática.

12. A marca histórica do romance pode parecer apagada e diluída, mas não é indefinida.

Em um ponto da construção ela é central: é a forma burocrática que em geral molda a

“linguagem protocolar” (Anders) do romance, principalmente dos discursos dos

funcionários (Prefeito, Brügel, Momus, Erlanger, Professor). Desde o início, com

Schwarzer, K. comprova a “formação de certo modo diplomática” da “gente miúda” do

castelo (DS, 11/13). Mas esse estilo protocolar se espraia também pela fala de Gardena

(dona do Albergue da Ponte), de Olga, de Pepi e do próprio K.10

7 Cf. a boa leitura de: LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. São Paulo: Azougue, 2005, Cap. 5 (“O

castelo – despotismo burocrático e servidão voluntária”), p. 163. 8 Idem, ibidem, p. 165. 9 ADORNO, op. cit., p. 254. 10 Cf. CARONE, Modesto. “Pósfácio” in: O Castelo, op. cit., p. 479.

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13. A forma histórica torna-se inteligível também na descrição da arquitetura do castelo,

que frustra toda expectativa do leitor. Depois de seus contatos telefônicos, somente o

agrimensor K. não se espanta com a aparência prosaica do suposto castelo, tão parecida

com a morfologia da aldeia e de sua própria cidade natal, em algum lugar da Europa do

início do século XX. O imaginário feudal desaba:

“No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distância, correspondia às expectativas de K. Não era nem um burgo feudal nem uma residência nova e suntuosa, mas uma extensa construção que consistia de poucos edifícios de dois andares e de muitos outros mais baixos estreitamente unidos entre si; se não se soubesse que era um castelo seria possível considerá-lo uma cidadezinha.” (DS, 17/18)

De fato, quando chega mais perto o agrimensor se decepciona: “na verdade era só uma

cidadezinha miserável, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas

talvez de pedra, mas a pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar”

(ib.). Kafka toma o processo de destruição da imagem ao pé da letra.

14. A modernidade do romance kafkiano vem indicado ainda no nome do conde – algo

como “Oesteoeste” –, o qual sugere a onipotência mundial do ocidente capitalista, bem

como a decadência da sociedade que o suporta (é no extremo ocidente o ponto de ocaso do

sol, daí o ambiente frio e tenebroso do romance). O contexto imediato da obra, o pós-

Primeira Guerra Mundial, não é outro que o do mundo dominado de ponta a ponta pela

ordem do capital, segundo o modelo mesclado já referido (§ 11).

15. O nome Westwest sugere também a contigüidade e a identidade forçada do “Castelo-

aldeia” – um nome que é apenas o início de uma longa série de duplos que moldam o

romance (dois albergues, dois ajudantes, duas garçonetes, dois professores, castelões e

subcastelões, senhores e seus secretários, Sordini e Sortini, Klamm e K. etc.). O molde

estrutural destas duplicidades é a contraposição entre o castelo e a aldeia, ou ainda, a lei e a

ordem e o seu avesso obsceno – a desordem e a contradição imanentes.

16. O núcleo dialético do romance é a mediação de campos opostos: a ordem que aparece

como desordem, o sistema como contradição, a exceção como regra, a essência (Wesen)

como monstruosidade (Unwesen). Assim, o segredo da mais rígida burocracia é algo da

ordem do capricho, da incoerência e da loucura – a “ridícula embrulhada [lächerliche

Gewirre] que, conforme as circunstâncias, decide sobre a existência de uma pessoa” (DS,

102/101). Esse movimento é irônico e produz o humor corrosivo do livro, que adentra no

reino do inverossímil. Os criados dos senhores do castelo são tão selvagens e dominados

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por “impulsos insaciáveis” (DS, 348/328) quanto os seus senhores. A noite no albergue dos

senhores transforma-se numa espécie de prostíbulo. A verdade do bom funcionário Sordini

é o obsceno Sortini; ou ainda, por trás da seriedade funesta do castelo esconde-se a

infantilidade, o escárnio e a impostura. O clima de comédia domina o subtexto. Assim, já no

início, Schwarzer aparece com “trajes de cidade, rosto de ator” (DS, 7/9).

17. O figurino tipicamente burguês de Klamm (gorducho, dorminhoco, casaca preta,

fumando charuto, com tudo a seu dispor) se contrapõe aos farrapos de K., tal como as

excelentes e modernas instalações do albergue dos senhores contrastam com a pobreza e a

doença nas casas campesinas. Porém, não se trata apenas da desigualdade social entre as

condições de vida de senhores, funcionários e aldeões, mas sobretudo da igualdade de um

sistema que captura a todos na mesma hierarquia cega e coisificada de sua dominação. Para

além da desigualdade, trata-se de reconhecer o sistema que articula todos os sujeitos como

carcaças mortas – como suportes de sua identidade fundamental. Nesse sentido, o romance

parece criar um mundo que mimetiza as contradições da forma do valor e da cisão de

gêneros da sociedade moderna. É nesse sentido, ainda, que a dona do Albergue da Ponte é

tanto objeto “feminino” de Klamm, quanto se corporifica como sujeito da dominação

patriarcal de Frieda. Nesse núcleo de contradições, ficam postas ou pelo menos

pressupostas, ainda, formas irredutíveis de negação nas figuras de K. e de Amália (a firme

recusa da proposta indecente de Sortini) e até certo ponto de Olga e Barnabás (a sua

abnegação em favor da família, apesar de seu lamentável conformismo diante da

autoridade), de Pepi (a menina sonhadora que pensa em incendiar o castelo!) e do menino

Hans (que parece se contrapor ao professor e ao pai).

18. Para além do inalcançável Klamm e do etéreo conde Westwest deve haver um rei –

jamais dito e muito menos nomeado no romance – uma sugestão da instância totalmente

abstrata, impessoal e fetichista da lei. Mas o vazio do poder opera plenamente na aldeia, em

cada funcionário, posto ou cargo desejado e ocupado pelo mais simples e indiferente

aldeão, que sonha em obter alguma distinção social ou compensação imaginária galgando

os degraus irrisórios da hierarquia social do condado.

19. O castelo não tem nada de divino ou de diabólico em si, mas é o pleno resultado do

processo social moderno – encantado por uma aura sagrada. Nesse sentido, o moderno

entrelaça-se ao mítico, mas não deixa de dar sinais de sua obsolescência e decomposição,

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embora se sustente no ar com uma gargalhada diabólica. Klamm não lê nenhum protocolo,

a eficiência administrativa dos funcionários é mais que duvidosa, só os dominados

sustentam a sua legitimidade quase sagrada. As interpretações teológicas forçam o texto

para materializar o “metafísico”.11 Mais válido seria dizer que o romance trata da dominação

moderna recoberta pelo terror e pela mística das prerrogativas senhoriais. Tal como a

ordem se entrelaça à desordem, o moderno se entrelaça ao arcaico e o histórico ao

metafísico.

20. O trabalho compulsivo dos funcionários do castelo é potencialmente idêntico à

petrificação do movimento da vida na aldeia. Ao mesmo tempo, o movimento petrificado de

funcionários e aldeões para resguardar a identidade de seu modo de vida, comandado pelos

senhores do castelo, é idêntico ao sono, à negligência e ao desprezo de Klamm em relação

ao empenho burocrático ou “erótico” de seus subordinados.

21. Em vez do uso autônomo do tempo, o tempo dos camponeses se subordina ao do

castelo e, por isso mesmo, em vez de referidos aos valores de uso, eles se subordinam às

tarefas terrivelmente abstratas do aparelho administrativo. Isso é iluminado pelo caso de

Barnabás, que, apesar de excelente sapateiro, torna-se um mensageiro do absurdo social, só

podendo se dedicar residualmente à sua atividade.

22. Esta a distinção fundamental dos camponeses em relação a K.: o seu objetivo declarado

não é ocupar um cargo superior no condado ou simplesmente se alojar na aldeia, mas de

início distinguir-se como trabalhador livre e independente do castelo. Nessa chave, K. pode

ser lido como alegoria do proletariado moderno. O agrimensor tem por volta de trinta anos

e aparece como um homem “bastante esfarrapado”, com uma “minúscula mochila”,

empunhando um cajado cheio de nós (DS, 11/12), que, é claro, se apresenta como

agrimensor, trocando o seu tempo por dinheiro e aparentemente só desejando trabalhar no

condado. Seu confronto com o castelo, que o coloca como “agressor”, visa multiplicar a sua

relação com “outras forças que não conhecia” (DS, 92-3/92). Por isso ele apoia-se em

Frieda e em Barnabás e na experiência de Olga, Amália, Hans e Pepi. De forma ardilosa, ele

gere e executa o poder contra o poder existente. É como se podem compreender todas as

11 As interpretações gnósticas, como a de Erich Heller, são tão insustentáveis quanto as teológicas: “O castelo do

romance de Kafka é, por assim dizer, a guarnição muito bem armada de uma companhia de demônios gnósticos que sustentam com êxito um posto avançado contra as manobras de uma alma impaciente. Nenhuma idéia concebível de divindade pode justificar os intérpretes, que vêem no Castelo a residência da „lei e da graça divinas”” (HELLER, Erich. Kafka. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 116).

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suas relações. Mas como mantém a luta de forma isolada, ele inevitavelmente cai na

condição de miséria e abandono.

23. K. representa o “homem abstrato”, anônimo, arrancado de referências históricas e da

plenitude de uma existência cotidiana.12 No percurso de sua luta contra o castelo, ele recebe

uma série de determinações, que em parte são máscaras (usadas de forma estratégica):

segundo o resumo de Gardena, ele não é do castelo nem da aldeia, é um “nada” que “está

sobrando e fica no meio do caminho” e que traz “aborrecimento” à comunidade (DS,

80/80), um estrangeiro que ignora e perturba os costumes do condado. Seu desejo de

aproximação de Frieda é o desejo de permanecer na aldeia – até ser rebaixado ao posto

insignificante de servente da escola. Nessa luta, ele pode se passar casualmente por pai de

família (num diálogo inicial com o dono do albergue a respeito do pagamento dos serviços

no condado, mas uma referência abandonada) ou por antigo ajudante do agrimensor

(“Josef”, num telefonema para o castelo) e, é claro, por amante e noivo de Frieda, que, tudo

indica, não passaria de uma tática para se aproximar de Klamm e do castelo. Fica claro na

trama que seu objetivo ao se unir a Frieda não é Klamm, “mas sim passar por ele, ir em

frente rumo ao castelo” (DS, 176/169).

24. Há aqui o sentido social fundamental do protagonista, muito pouco observado pela

crítica standard, nesta série de atributos negativos: de forma objetiva e segundo a letra do

romance, K. é menos o estrangeiro em geral que o moderno indivíduo sem propriedade, um

“sujeito sem objeto”, i.e., um proletário mobilizável pelo castelo.13 Nessa luta em plena

areia movediça, ele degringola para a condição de pária social e é mantido à margem – mais

que exilado, um homo sacer exterminável, como ele mesmo diz, em “situação de

emergência” (“Notlage”, DS, 198/191). Mas K. é também, justamente por causa desta

condição negativa, o homem capaz de dizer “não” (DS, 84/84). Por isso temos aqui um

indivíduo proletarizado contraposto à comunidade tradicional dos aldeões, fixados à

propriedade e anexados ao castelo. O seu “não” é reforçado pelo “não” dado por Amália à

proposta sórdida de Sortini.

12 Neste ponto podemos seguir ANDERS, op. cit., p. 50. Cf. também ROSENFELD, Anatol. Letras e leituras. São

Paulo: Perspectiva, 1994, p. 47-51. 13 “Na sociedade burguesa, o trabalhador, p. ex., existe de um modo puramente não objetivo, subjetivo; mas a coisa

que se põe diante dele se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora.” (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politschen Ökonomie (1857-1858). Berlin: Dietz, 1953, p. 396.)

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25. Entre as alternativas do contrato de trabalho ou da simples anexação à aldeia/castelo,

K. não hesita em escolher a primeira condição: “Só como trabalhador da aldeia, o mais

distante possível dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa lá” (DS,

42/43). Neste momento de afirmação, K. não quer “favores” e parece exigir apenas os seu

“direito” (DS, 119/116): estabelecer-se na aldeia para se tornar um trabalhador. Mas isso faz

parte de seu jogo com o castelo. O seu objetivo não é simplesmente “trabalhar”, mas

confrontar as autoridades do castelo. E é menos penetrá-lo – que afinal parecia um “alvo

fácil” (DS, 50/51) durante o dia, período em que se tornava supostamente um local de

trabalho frenético, tal como sondado no Albergue dos Senhores –, do que desmascarar o

seu encanto e a sua impostura. Nas palavras de K., ao pensar no comportamento do prefeito

e do professor, tudo ali não passa de um “embuste oficial” (DS, 235/225).

26. Como a crítica já observou, a profissão de K. é alegórica. “A agrimensura seria, assim,

uma investigação sobre o significado das relações de propriedade e da propriedade da terra.

Seria um ato revolucionário”.14 “Ele é o Agrimensor, aquele que mede a terra, mas o

Agrimensor de um mundo que não quer deixar repor em causa as suas medidas, o

Agrimensor de um mundo sem medida. Por isso a sua qualidade de agrimensor não é

reconhecida por ninguém. (...) O seu olhar, unicamente, faz voltar as coisas à sua medida.

Desde que aparece, o cenário rasga-se e por detrás do fausto das aparências e da lenda

revela-se a realidade irrisória.”15 A fragilidade do poder é assim exposta por K., tanto

quanto isso é tolerado pelo castelo como uma espécie de jogo cômico (segundo, por

exemplo, as duas cartas de Klamm).

27. O agrimensor alegórico questiona a propriedade, as leis, os poderes do castelo. Ao

mesmo tempo é capaz de medir a deformação da particularidade de cada um frente à

coação da identidade. Kafka assinala literalmente o peso deste domínio: nas costas

curvadas dos funcionários, na doença e no envelhecimento que grassa por todos os lados,

tal como nos “rostos literalmente torturados” dos camponeses, cujos “crânios pareciam ter

sido achatados em cima e os traços da face formados na dor da pancada” (DS, 39/40). Os

aldeões são como animais domesticados pela lei do castelo. A própria escola fica ao lado do

celeiro e Frieda começou no posto mais baixo, como “criada de estrebaria no Albergue da

Ponte”. Por isso, também, ela manda literalmente os servidores do castelo para a estrebaria,

no albergue dos senhores, a golpes de chicote. K. percebe esse poder como histórico-natural

14 EMRICH, Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟”, op. cit., p. 300. 15 GARAUDY, Roger. Um realismo sem fronteiras [1963]. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 173-4.

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e em parte como uma espécie de servidão voluntária: “A reverência diante da autoridade é

inata em vocês, continuará a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e

por todos os lados; até vocês ajudam nisso como podem” (DS, 288/274).

28. É nesse sentido também que K. assume o caráter de um mestre para Hans, para Olga e

para Pepi. Ele mesmo se oferece como “médico” para a mãe de Hans. Se os aldeões e os

funcionários aparecem na posição de objeto ou de “instrumento” do Castelo (tal como

Momus, DS, 183/176: “Werkzeug”) –, então, no fundo, a sua função é virtualmente o de

encarnar uma lei simbólica que barra o gozo desse Outro absoluto e impostor.

29. Dessa perspectiva, K. busca a ruptura não só do pacto mítico que subordina os aldeões

como servos dos senhores do castelo – partes anexadas à propriedade do conde, mas

também tenta romper a força concreta da idéia de contrato moderno, desnaturalizar a

própria categoria do ser como mero trabalhador de uma potência alienada. Ele percebe

criticamente a carta jocosa de Klamm, que não só o admitia como agrimensor, como dizia

que lhe interessava “ter trabalhadores satisfeitos” (DS, 40/41). Ele percebe que sua

admissão como simples trabalhador abstrato era um sinal de “perigo” – com isso, pensa ele,

o castelo o punha “alegremente” no seu devido lugar, numa condição aparentemente

“inelutável”: “Se K. queria ser trabalhador, podia fazê-lo, mas tão-somente com a mais

completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que não se ameaçava com

uma coerção real, essa ele não temia e aqui muito menos” (DS, 43/43). O que K. vê como

maior problema é o “ambiente desencorajador” dos aldeões. Eles representam o principal

suporte do poder do castelo. Em sua reificação, eles são o verdadeiro castelo.

30. A forma social da identidade prevalece: o fim da obra projetado por Kafka (segundo

Brod) era irônico: K. morreria de extenuação, enquanto o castelo admitiria, por fim, a sua

permanência condicional na aldeia, territorializando-o no posto que o poder moderno,

enfim, pode melhor “administrar” os homens: o posto de meros trabalhadores.

(Novembro/Dezembro de 2010)

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O velho mundo precisa sucumbir

Mito e história em Berlin Alexanderplatz

Raphael F. Alvarenga*

“[…] wenn die Welt so finster wird, daß man mit den Händen an ihr herumtappen muß, daß man meint, sie verrinnt wie Spinnengewebe. Ach, wenn was is‟ und doch nicht is‟! […] Wenn alles dunkel is‟, und nur noch ein roter Schein im Westen, wie von einer Esse: an was soll man sich da halten?”1

A que deve se agarrar o indivíduo quando colapsam ao seu redor todos os

referenciais, quando tudo lhe parece turvo, obscuro, confuso? Haverá saída, ou uma

qualquer esperança de salvação, para aquele que tudo perdeu, que se perdeu a si mesmo no

seio da desumana e impessoal cidade grande? E poderá nos tempos modernos, num

universo completamente dessacralizado, um homem arruinado ser dotado de

exemplaridade trágica? Do ponto de vista da produção artística, como organizar, traduzir

em forma, o estado de generalizadas desorientação, cegueira, confusão? Como expor, em

seu conjunto, relações e dinâmicas que parecem se dar à revelia dos homens, que em geral

não as compreendem? Berlin Alexanderplatz2, a grande obra épica de Alfred Döblin (1878-

1957), cuja intenção de essencializar questões e matérias históricas é por assim dizer

manifesta desde o prólogo – “valerá a pena para muitos que [...] habitam uma pele

humana”3 –, a princípio parece ter sido composta para responder a perguntas como as

acima. Se, quando publicado em 1929, o livro causou rebuliço nos meios literários e

militantes alemães, suscitando, à esquerda e à direita, de ataques veementes a elogios

* Pós-doutorando, bolsista da Faperj. 1 Wozzeck, Libretto von Oper in 3 Akten, 15 Szenen, Musik von Alban Berg [1922], Text von Georg Büchner [1837],

Bruxelles, La Monnaie, 2008, ato I, cena 4. Em tradução livre: “[...] quando o mundo fica sombrio a ponto d‟a gente ter que tateá-lo com as mãos, d‟a gente achar que ele desmorona feito teia de aranha. Ah, quando algo é e no entanto não é! [...] Quando ‟tá tudo escuro, e só resta no poente um luzir rubro, como que saído duma fornalha: a que deve a gente se agarrar?”

2 Faremos uso da seguinte edição: Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte vom Franz Biberkopf (1929), München, Deutscher Tachenbuch, 2009, doravante BA. A tradução citada no corpo do texto é a mais recente, de Irene Aron (São Paulo, Matins Fontes, 2009), cujas páginas em nota seguirão sempre as do original. Tratando-se de um alemão um tanto especial, o do livro, que mistura com frequência num mesmo parágrafo, às vezes numa mesma frase, norma culta e citações poético-literárias clássicas com linguagem coloquial popular, dialeto, gíria de rua etc., achamos melhor, para uma maior apreciação e para evitar leituras enviesadas de certos trechos, reproduzir em pé-de-página as citações no original.

3 BA, 12/10: “wird sich für viele lohnen [...] in einer Menschenhaut wohnen”.

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entusiasmados – um pouco como aconteceria na França, três anos depois, com a publicação

do Voyage au bout de la nuit de Céline –, a principal razão reside no fato de, como nas

maiores criações da arte moderna, ser forte neste romance, se ainda for possível chamá-lo

assim, a dissonância produzida pela tensão entre a forma estética avançada e o material

deteriorado, decadente, atrasado, quando não arcaico, captado no turbilhão da metrópole

moderna, mais precisamente no bairro proletário em torno da “Alex”, a famosa praça do

leste de Berlin, símbolo maior da modernização da cidade, não muito longe da qual o Dr.

Döblin mantivera durante muitos anos um consultório médico. Tal tensão, que não se pode

eliminar da obra sem que se perca em qualidade artística, é reveladora tanto do estado da

sociedade em seu conjunto como da situação – diga-se já: monológica, demandando

tratamento épico – dos sujeitos, no livro condensada na figura de uma personagem

“protagonista” marginal e, por assim dizer, irredimível. Uma e outra, personagem e

sociedade, no caso, a berlinense e de modo mais geral a alemã dos anos 1920, por sua vez

inseridas no contexto global do capitalismo em crise, aparecem no livro como que à deriva,

sem rumo definido, atravessando sucessivas crises sem no entanto se desenvolverem, não

logrando atingir níveis mais elevados de consciência, maturidade e autonomia; impotentes,

dependem de circunstâncias e fatores externos sobre os quais não têm controle.

Em Berlin Alexanderplatz, então, embora mediante um sem número de referências

mítico-religiosas o processo sócio-histórico seja algo ofuscado, veremos que longe de ser ou

servir de mero pano de fundo para as ações das personagens, por detrás de tais referências,

e como que camuflado por elas, o conturbado contexto social e político da República de

Weimar, quando não aparece de forma explícita no entrecho, está o tempo todo

pressuposto, os altos e baixos do anti-herói coincidindo, pode-se dizer, com os trâmites da

nação alemã. Tudo se passa como se Döblin, na época próximo de Brecht e Piscator, tivesse,

de certa maneira, intentado epicizar o período pós-revolucionário, os tempestuosos anos

iniciais (ocupação franco-belga da Ruhr, hiperinflação, miséria, insurreições operárias,

tentativa de putsch delinquente etc.) e principalmente os de falsa bonança (estabilização

monetária e modernização recuperadora proporcionadas pelo Plano Dawes) e que

antecedem o que viria a ser a verdadeira tempestade (crise financeira global e resistível

ascenção de Hitler ao poder), que já se anunciava no horizonte. Mais precisamente, apesar

da forma fragmentada, nota-se no livro como que um movimento totalizante, abarcando

um período que, forçando um pouco a nota, poderíamos denominar, por um lado, pós-

pseudo-revolucionário, por outro, à vista do que viria a se produzir, pseudo-pré-

revolucionário, ou seja, os anos que sucedem à revolução traída e malograda de 1918-1919 –

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que deu origem à República sem que se alterassem, fundamentalmente, as relações de

poder oligárquicas pré-existentes – e que precedem o grande desastre, mas durante os

quais, sob a luz da recente experiência soviética, então ainda muito intensa e (aos olhos dos

donos do poder) ameaçadora, pressentia-se, premente, a possibilidade de um novo

despertar revolucionário, da instauração, para falar como Benjamin, de um “verdadeiro

estado de emergência”.

Sem perder de vista a tensão entre forma e material, tentaremos recompor e, até

onde for possível, expor, por um lado, as constelações formadas pelas matérias,

experiências e configurações extra-artísticas, vale dizer, tanto as históricas, sociais e

políticas como também as subjetivas, e por outro, a passagem na mediação literária.

***

Uma rápida recuperação, o homem está outra vez lá onde estava, nada aprendeu, nada assimilou.4

Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem altura de um andar e crava as estacas no chão como se nada fossem. [...] Na avenida, estão pondo tudo abaixo, põem abaixo prédios inteiros junto à linha urbana [...] Demoliram Loeser e Wolff com a placa de mosaicos, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do outro lado, diante da estação, já existe outro.5

Você não perdeu tanto quanto Jó de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem lentamente sobre você. [...] Você suspira: onde buscar abrigo, a desgraça se abate sobre mim, onde me agarrar? [...] Você não perderá riqueza, Franz, você mesmo será queimado até o fundo da alma! Veja como a prostituta já se regozija! A prostituta Babilônia! [...] A mulher está embriagada do sangue dos santos. Agora você a percebe, sente-a. Você será forte, não se perderá?6

O tempo é outonal, no cinema Tauentzienpalast passa o filme Os últimos dias de Francisco, cinquenta belas bailarinas estão no salão de dança Jägerkasino, podes beijar-me por um buquê de lilases. Ali, Franz conclui: minha vida acabou, estou liquidado, para mim chega. / Os elétricos percorrem as ruas, cada um vai numa direção, não sei para onde devo ir. O 51, Nordend, Schillerstrasse, Pankow, Breite-strasse, Bahnhof Schönhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrasse, Bahnhof Schmargendorf, Grune-wald, vamos lá. Bom dia, aqui estou eu, podem me levar para onde quiserem. E Franz começa a observar a cidade como um cão que perdeu o rastro. Que cidade é esta, que cidade gigantesca, e que vida já levou nesta cidade. Desce na Stettiner Bahnhof, segue ao longo da Invalidenstrasse, lá está o Rosenthaler Tor. Confecção Fabish, já fiquei parado ali, apregoando prendedores de gravatas, Natal passado. Em direção a Tegel,

4 BA, 163/183: “Eine rasche Erholung, der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts

erkannt.” 5 BA, 165-66/185-86: “Rumm rumm wuchtet vor Aschinger auf dem Alex die Dampframme. Sie ist ein Stock hoch,

und die Schienen haut sie wie nichts in den Boden. […] Über den Damm, si legen alles hin, die ganzen Häuser an der Stadtbahn legen sie hin […] Loeser und Wolff mit dem Mosaikschild haben sie abgerissen, 20 Meter weiter steht er schon wieder auf, und drüben vor dem Bahnhof steht er nochmal.”

6 BA, 380/436-37: “Du hast nicht soviel verloren wie Hiob aus Uz, Franz Biberkopf, es fährt auch langsam auf dich herab. […] Du seufzt: wo krieg ich Schutz her, das Unglück fährt über mich, woran kann mich festhalten. […] Du wirst keine Gelder verlieren, Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden! Sieh, wie die Hure schon frohlockt! Hure Babylon! […] Das Weib ist trunken vom Blut der Heiligen. Du ahnst sie jetzt, du fühlst sie. Und ob du stark sein wirst, ob du nicht verloren gehst.”

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pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, os pesados portões de ferro, Franz fica mais calmo. Isto faz parte da minha vida e preciso observar, observar.7

Quem é esse que está aqui na Alexanderstrasse e move devagarinho uma perna atrás da outra? Seu nome é Franz Biberkopf, o que ele andou aprontando, vocês já sabem. Vagabundo, criminoso da pesada, pobre-diabo, homem derrotado, agora é a vez dele. Malditos punhos que o abatem! Punho terrível que o atingiu! Os outros punhos bateram e soltaram, ficou uma ferida, só ficou ele, a ferida sarou, Franz ficou do jeito que era e pôde seguir em frente. Agora, o punho não larga, o punho é incrivelmente grande, envolve-o de corpo e alma, Franz anda a passos pequenos e sabe: minha vida não me pertence. Não sei o que devo fazer agora, mas acabou-se para Franz Biberkopf e fim.8

As passagens acima, escolhidas mais ou menos ao acaso, dão uma ideia geral,

embora ainda um pouco vaga, do que se pode encontrar no grande romance de Döblin, o

qual, como indica o subtítulo, conta a história de Franz Biberkopf, um homem do povo, pau

para toda obra, a bem dizer um brutamontes infantil, inocente e bonachão, mas que em

determinadas situações sói perder a cabeça, tornando-se violento como uma fera. Foi assim

que, num acesso de raiva e ciúmes, matou acidentalmente a noiva, Ida, de quem era cáften,

a pancadas, indo parar atrás das grades. Num breve prólogo, o narrador resume o que

acontecerá com aquele homem, anunciando que no fim da história, após muito apanhar da

vida, o encontraremos “muito mudado, maltratado, mas enfim endireitado”9. Trata-se de

um procedimento épico, anti-ilusionista, propositalmente “alienante”, reiterado em seguida

nas prolepses que abrem cada uma das nove seções (ou “livros”), e que visa a anular no

leitor, de antemão, a criação de expectativas, a fim de que se mantenha atento a motivações,

relações e movimentos mais amplos, sem deixar-se levar aleatoriamente pelo drama

individual de uma personagem particular, “como se o curso da mundo ainda fosse em

essência o da individuação, como se o indivíduo alcançasse o destino com suas emoções e

7 BA, 387/444-45: “Es ist herbstlich, im Tauentzienpalast spielen sie die ‚Letzten Tage von Franzisko‟, fünfzig

Tanzschönheiten sind im Jägerkasino, für einen Fliederstrauß darfst du mich küssen. Da findet Franz: Mein Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug. / Die Elektrischen fahren die Straßen entlang, sie fahren alle wohin, ich weiß nicht, wo ich hinfahren soll. Die 51 Nordend, Schillerstraße, Pankow, Breitestraße, Bahnhof Schönhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstraße, Bahnhof Schmargendorf, Grunewald, mal rin. Guten Tag, da sitz ick, die können mir hinfahren, wo sie wollen. Und Franz fängt an, die Stadt zu betrachten, wie ein Hund, der eine Fußspur verloren hat. Was ist das für eine Stadt, welche riesengroße Stadt, und welches Leben, welche Leben hat er schon in ihr geführt. Am Stettiner Bahnhof steigt er aus, dann zieht er die Invalidenstraße lang, da ist das Rosentaler Tor. Fabisch Konfektion, da hab ick gestanden, ausgerufen, Schlipshalter vorige Weihnachten. Nach Tegel roten Mauern, die schweren Eisentore, ist Franz stiller. Da ist von meinem Leben, und das muß ich betrachten, betrachten.”

8 BA, 398/456: “Wer ist es, der hier auf der Alexanderstraße steht und ganz langsam ein Bein nach dem andern bewegt? Sein Name ist Franz Biberkopf, was er betrieben hat, ihr wißt es schon. Ein Ludewig, ein Schwerverbrecher, ein armer Kerl, ein geschlagener Mann, er ist jetzt dran. Verfluchte Fäuste, die ihn geschlagen haben! Schreckliche Faust, die ihn ergriffen hat! Die andern Fäuste schlugen und ließen ihn los, da war eine Wunde, da war er bloß, die konnte heilen, Franz blieb, wie er war, und konnte weitereilen. Jetzt, die Faust läßt nicht los, die Faust ist ungeheuer groß, sie wiegt ihn mit Leib und Seele ein, Franz geht mit kleinen Schritten und weiß: mein Leben ist nicht mehr mein. Ich weiß nicht, was ich jetzt tun muß, aber mit Franz Biberkopf ist es aus und Schluß.”

9 BA, 11/9: “Wir sehen am Schluß den Mann wieder am Alexanderplatz stehen, sehr verändert, ramponiert, aber doch zurechtgebogen.”

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sentimentos, como se o íntimo do indivíduo ainda pudesse alguma coisa sem mediação”10.

Ao mesmo tempo, a narrativa visa a anular, ou a quebrar, a tranquilidade contemplativa do

leitor, a possibilidade de uma observação totalmente desinteressada do curso catastrófico

do mundo, que haviam tornado-se escárnio com a Primeira Guerra. A distância estética é,

como já em Proust e em Kafka, o tempo todo encurtada a fim de que o plano superficial e

naturalizado dos acontecimentos quotidianos seja atravessado e, para além dele, apareça,

nua e crua, a negatividade subjacente à positividade dos fatos: “ora o leitor é deixado de

fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa de

máquinas”11. Por isso a combinação mediadora de registro mimético realista e princípios de

construção não-realistas, necessários para dar conta da matéria, que é opaca, constituída

por relações sociais alienadas objetivadas, engessadas, e que pede um novo alheamento,

uma segunda alienação. Paradoxalmente, o encurtamento da distância, que revela o horror

sob a pedra da cultura, a brutalidade da existência quotidiana, produz estranhamento,

distanciamento. O que Brecht diz do novo teatro vale também, nesse sentido, para a Nova

Música e para o romance modernista:

A resposta reside no estilo alienante da representação. Nesta, o fio da história é um fio fragmentado; o todo isolado é constituído de partes independentes que podem e devem ser comparadas com os incidentes das partes correspondentes na vida real. Este modo de representar extrai toda a sua força de comparações com a realidade; em outras palavras, está a todo instante dirigindo a atenção para a causalidade dos incidentes reproduzidos. [...] A platéia não é totalmente “arrebatada”; não precisa amoldar-se psicologicamente, adotar uma atitude fatalista para com o destino representado.12

Com isso em mente, voltemos ao livro. A história começa com a saída de Franz

Biberkopf da prisão de Tegel, bairro de Berlim situado no noroeste da cidade, em 1927, após

ter cumprido ali quatro anos de sua pena, e a partir daí acompanhamos sua tortuosa e

custosa reinserção na sociedade. Desde o início, esta, e acima de tudo a cidade, em

permanente transformação, dividem com a personagem o primeiro plano. Apesar da

dificuldade em se arrumar trabalho em tempos de crise e desemprego em massa, “der

Franz” promete a si mesmo manter-se decente, mas, ingênuo, é enganado e passado para

trás com facilidade. O nome Biberkopf, aliás, literalmente “cabeça de castor”, no dialeto

10 Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman” (1954), in Noten zur Literatur,

Frankfurt/M., Suhrkamp, 1981, pp. 41-47, aqui p. 42, trad. Modesto Carone: “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Benjamin, Adorno, Horkheimer & Habermas, Textos escolhidos, São Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1980, pp. 269-73, aqui p. 270.

11 Ibid., p. 46, trad., p. 272. 12 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. de Melo, Rio de Janeiro, Rocco, 2002,

pp. 100-01, entrada do dia 3.8.40.

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local significava então algo como “cara de burro”, ou coisa parecida. O prenome Franz, por

sua vez, parece ser uma alusão a Francisco de Assis, mas também, ou principalmente, a

Franz Woyzeck, o famoso anti-herói proletário recriado por Georg Büchner a partir do fait

divers de um soldado que, tomado de ciúmes, assassinara a amante13. Trata-se, em suma,

de um simples de espírito, que fala aos passarinhos e em momentos críticos, de alucinação e

delírio, comunica com coelhos, camundongos, intropatiza com as plantas, a terra, ouve

apelos no vento... Um dos traços que sobressaem durante a leitura é que, como já dizia

Adorno, não há vida reta num mundo torto: apesar da promessa que fizera de permanecer

honesto após sair da prisão, Franz Biberkopf vive iludido e se iludindo, é trapaceado e

acaba sem querer envolvendo-se em novos crimes; mesmo resistindo com unhas e dentes,

mesmo não querendo, “é obrigado a querer”, “está acima dele, ele tem de querer”14. Através

do livro, como costumam dizer alguns críticos, acompanhamos os inúmeros altos e baixos

13 A comparação mereceria um desenvolvimento a parte. Não se pode ignorar o fato de os fragmentos da peça de

Büchner, inacabada quando de sua morte em 1837, terem permanecido durante muito tempo ignorados precisamente por estar a obra à frente de seu tempo, fazendo uso de procedimentos épicos que viriam a ser empregados e desenvolvidos na Rússia e na Alemanha, mais ou menos a partir da encenação de Mistério-Bufo, de Maiakóvski, por Meyerhold, em 1918. Numa palavra: em Woyzeck, o que está em jogo é a destruição da “peça bem feita”, do drama realista burguês, atrelado às unidades clássicas de ação, tempo e lugar, além de restrito à esfera privada da vida, concentrado na dinâmica e na riqueza psicológicas, na profundidade interior das personagens, assim como no diálogo, na tensão e na resolução de conflitos interindividuais. Não à toa, a peça de Büchner fora ressuscitada, tirada do esquecimento, quase um século depois, após a Primeira Guerra, quando tudo aquilo (profundidade subjetiva, totalidade harmônica e significativa, continuidade e desenvolvimento progressivo) já soava mais do que falso, justamente por Alban Berg, cuja forma operística modernizada pelas descobertas da Nova Música, longe de fornecer, como era comum na ópera clássica tanto quanto o seria no cinema, um mero fundo musical psicológico, que sugerisse a cada etapa os estados de ânimo, os sentimentos ou as impressões das personages, visava ao contrário expor as lacunas deixadas pelas palavras, não o que está nas personagens, mas antes aquilo que se passa entre elas, vale dizer, o estado de alienação, desumanização e absurdidade, que se encontra objetivado para além das personagens (a este respeito, veja-se Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister des kleinsten Übergangs, in Gesammelte Schriften, Bd. 13, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997, pp. 428-29, trad. M. Videira: Berg. O mestre da transição mínima, São Paulo, Unesp, 2009, pp. 179-80). Com a ópera de Berg, terminada em 1922 e encenada em Berlim em 1925, a modernidade da música fazia enfim justiça à modernidade daquele texto. Simplificando ao extremo, digamos que, embora Berg não tenha rejeitado de todo a tonalidade clássica, combinando-a ao contrário, de maneira muito a propósito, com a técnica schönberguiana, a não-hierarquização dos tons na construção musical dodecafônica (as doze notas da gama cromática tendo todas igual importância) condizia com a fragmentação da narrativa, a não-linearidade causal e a autonomia relativa das cenas da peça de Büchner. A este respeito, citemos o bom comentário de Anatol Rosenfeld, Teatro moderno, São Paulo, Perspectiva, 1977, pp. 64-65: “Um dos aspectos da obra de Buechner que nos toca particularmente como moderno é a solidão de suas personagens. Já não se trata da solidão romântica, mas da solidão da lonely crowd, concebida como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos participam, se transforma em caos absurdo em que cada um é, forçosamente, isolado. [...] A imagem do homem apresentada por Buechner desqualifica a do herói trágico que é denunciada como falsa. Surge, talvez pela primeira vez, o herói negativo que não age, mas é coagido, o indivíduo desamparado, desenganado pela história ou pelo mundo [...] Woyzeck é um caso extremo, verdadeiro „drama de farrapos‟: é um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. Cada cena, ao invés de funcionar como elo de uma ação linear, representa um momento em si substancial que encerra toda a situação dramática ou, melhor, variados aspectos do mesmo tema central – o desamparo do homem num mundo absurdo.” É grande a semelhança com a história de Franz Biberkopf: em ambos os textos, no de Büchner e no de Döblin, além da situação monológica, há grande destaque para o lado grotesco, para a redução zoológica do homem (enquanto Woyzeck é incapaz de controlar o músculo constritor, Biberkopf pesa quase cem quilos, come feito um glutão e copula à maneira de um animal selvagem) e para o automatismo de suas ações (os dois assassinam as amantes como se fossem autômatos guiados por forças que se manifestam à despeito de suas vontades).

14 BA, 163 e 314/183 e 359: “er will nicht, er wehrt sich, es geht über ihn, er muß müssen.”

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desta personagem a um tempo comum e incomum – mas, como previne o narrador: “Será

um mendigo comum e um homem rico incomum?”15 –, a luta com o destino e consigo

mesmo, as ilusões e os desenganos, os remorsos e os pensamentos mórbidos, a propensão

ao alcoolismo e a perdição no submundo do crime e da prostituição, e, sobretudo, seu total

esmagamento por forças obscuras e poderes que não domina. Tal esmagamento, todavia, só

pode ser apreendido suficientemente se não se perder de vista que aquele movimento

negativo de sobe e desce na situação da personagem, o vaivém entre fortitude e fastio,

autossuficiência e afogamento no álcool, que parece não conduzir a lugar algum, cada novo

episódio começando como que do zero, como que repetindo a sequência de acontecimentos

do anterior, vem sempre conjugado ao movimento vertiginoso da cidade, com suas

incessantes demolições e (re)construções.

De modo muito explícito, pelo menos é o que aparenta numa primeira leitura, Döblin

tenta dar um sentido ao ritmo ensandecido da metrópole e às sucessivas quedas e

adversidades sofridas por seu herói através da referência a mitos bíblicos e helênicos

relacionados à loucura, à obediência e a rituais de sacrifício, com destaque para as

tribulações de Jó, o holocausto de Isaac e os remorsos de Orestes, três personagens que têm

em comum o fato de serem meros joguetes de forças que escapam a elas, sendo salvas, por

intervenção divina, no derradeiro momento, quando já tudo parece perdido. Se

considerarmos com Lévi-Strauss que o mito é antes de tudo uma solução imaginária para

tensões, conflitos e contradições reais, sociais e históricas, então tal solução, que no mais

das vezes assume contornos edificantes e complacentes, parece estar de fato muito

claramente presente no livro em questão. Ali, a experiência de impotência do sujeito em

busca de um lugar ao sol no seio da monstruosa metrópole moderna, sem controle sobre o

que lhe advém, sobre a própria história ou o sobre o conjunto de forças sociais agindo sobre

ele, ganha não somente apoio em explicações mitológicas como também uma conotação de

exemplaridade. Trata-se, à primeira vista ao menos, de uma tentativa, longe de ser

excepcional na arte modernista do início do século, de outorgar um sentido arcaico-

mitológico ao curso desprovido de sentido do mundo da mercadoria fetichizada. Na célebre

justificação de T. S. Eliot, num texto sobre Joyce: “É simplesmente uma maneira de

controlar, ordenar, dar forma e significância ao imenso panorama de futilidade e anarquia

que é a história contemporânea.”16 No que concerne a Döblin, entretanto, como veremos,

15 BA, 394/453: “Ist ein Bettler gewöhnlich und ein Reicher ungewöhnlich?” 16 Thomas Stearns Eliot, “Ulysses, Order and Myth” (1923), in Selected Prose, ed. Frank Kermode, London, Faber

and Faber, 1975, p. 177: “It is simply a way of controlling, of ordering, of giving a shape and a significance to the immense panorama of futility and anarchy which is contemporary history.”

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parece mais adequada a explicação de Roberto Schwarz: “vários dos principais escritores

modernistas procuraram dar parentesco mítico a seus episódios contemporâneos, para lhes

atenuar a contingência e lhes emprestar generalidade, dignidade arquetípica, eternidade

etc., mesmo que irônicas, ou para acentuar a sordidez.”17

A este respeito, diga-se de passagem, as referências mítico-religiosas, judeo-cristãs e

gregas – Esther (livro 1), Jeremias (livros 1 e 5), Agamemnon, Clitemnestra, Orestes e as

Erínias (livros 2 e 6), Adão e Eva (livros 2, 3, 4 e 8), Menelau, Telêmaco e Helena (livro 4),

Jó (livros 4 e 8), Aquiles (livro 6), Abraão e Isaac (livros 6 e 7), a prostituta Babilônia e a

Morte ceifeira (livros 6, 8 e 9), Salomão/Eclesiastes (livros 7, 8 e 9), os anjos Sarug e Terah

(livro 8), Macabeus (livro 9) –, estão intrinsecamente relacionadas às vicissitudes das

personagens, muitas vezes, com efeito, recebendo tratamento irônico, como por exemplo

quando os adornos e apetrechos de guerra de Aquiles são comparados às roupas surradas e

sujas de Biberkopf18, comparação que tem por efeito um distanciamento, impedindo que o

leitor enxergue no anti-herói moderno e em sua luta contra as forças anônimas da

metrópole um qualquer resquício de nobreza trágica. Salvo engano, algumas daquelas

referências, em muitos momentos, também não deixam de interferir na percepção que se

tem, a cada novo episódio, da cidade de Berlim, como que preparando o terreno para ela,

antecipando-a, ou reforçando-a. Sob fundo mitológico, além de contrastada explicitamente

com cidades da antiguidade – a par de Babilônia, também Nínive, Roma, Cartago e

Jerusalém (livros 5 e 6) –, a metrópole moderna é sucessivamente apresentada como um

universo confuso, estranho, destituído de todo e qualquer sentido (livro 1), como um grande

organismo burocrático tendo em si mesmo uma lógica obscura que absorve e devora a todos

(livro 2), como uma gigantesca máquina, perigosa, violenta, mortífera (livro 4), como

entidade sedutora, artimanhosa, incitando ao gozo e à volúpia do pecado (livro 6), por fim,

como um ser autônomo, que segue indiferente seu curso, sempre igual, automatizado (livro

9). Assim, em contraste com a imagem do espaço urbano que aos poucos se constitui, a um

tempo caótica, violenta, sedutora e indiferente, aparecem no correr da história três

heterotopias, por assim dizer, no seio das quais se encontraria a ordem, a paz, ou antes

ainda, a ausência do fardo da responsabilidade: a prisão (livros 1 e 8), o paraíso bíblico

(livros 2, 3, 4 e 8) e o asilo de loucos (livro 9). A mensagem parece clara: neste mundo-cão

não viverás em paz; esta só existiu no passado mítico/bíblico da humanidade; nesta vida só

a encontrarás no presídio ou no sanatório. Sem prejuízo do fato de ser um tanto forçado

17 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, São Paulo, Companhia das

Letras, 1999, p. 138. 18 Cf. BA, 243/278.

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chamar de “pacífica” a vida severina de encarcerados e alienados – embora, pensando bem,

a imagem não deixe de ser poderosa: comparados à vida louca do lado de fora, na inóspita

cidade grande, a prisão e o manicômio teriam ares mais amenos, tranquilos, quiçá até mais

“salutares” –, a mensagem pode ser lida de ponta-cabeça. Explicando melhor: a violência

seria, como de fato é no capitalismo, o normal, e a paz, a exceção quase inconcebível,

inimaginável, que confirmaria a regra geral. Se, na época em que Döblin compunha seu

romance, a cultura da violência, o vínculo social perverso do capital, a guerra como

consequência lógica e incontornável do mercado, já eram estetizados pela indústria da

cultura do entretenimento, pelo complexo industrial de produção das consciências, que

opera tanto a legitimação da existência de um certo grau de violência, ao torná-la coisa

corriqueira, quanto certa estabilização na estruturação da barbárie, então talvez fosse o caso

de afirmar que também a arte, em larga medida, acabou participando de tal processo geral

de estetização, legitimação e naturalização da violência19.

Se Döblin não escapa à tendência20, cabe no entanto ressaltar que o recurso ao mito,

no livro de que estamos tratando e na literatura modernista de modo geral, de um ponto de

vista materialista, deve ser encarado antes de tudo como uma maneira de expor a

liquidação do indivíduo na sociedade moderna, liquidação das condições da formação da

individualidade autônoma, que no entanto haviam sido postas (pelo menos enquanto

pressupostos) pela própria sociedade burguesa. Noutras palavras, em razão de a situação

histórica do capitalismo dito tardio, monopolista, assemelhar-se, no nível das aparências,

àquela, pré-individual, sem sujeito, de épocas remotas, pré-capitalistas, nas quais a

humanidade encontrava-se enredada numa totalidade mítica plena de sentido21, a

referência ao mito expõe o fato de a sociedade capitalista, da mercadoria fetichizada, não

ser tão desencantada, esclarecida, racional e civilizada quanto pretente ou aparenta. Não

surpreende que a despeito dos supostos propósitos moralizantes de Döblin, tão ressaltados

pela crítica, a forma fragmentada, polifônica, hipercomplexa e no fim das contas assaz

19 Estetização que, com frequência, vai de par com aquela da “vida bandida” dos de baixo, ou seja, com a exploração

artística da atração sensual da feiúra, do imundo, do disforme, coisa que se encontra já nos irmãos Goncourt (veja-se a respeito o ensaio de Auerbach sobre Germinie Lacerteux, no Mimesis) e que pode ainda ser notada nos dias de hoje, quiçá mais do que nunca, sobretudo em produções espetaculares como o filme Cidade de Deus. Em literatura, no século XX, os romances de Genet constituem possivelmente o exemplo maior de estetização do sujo, do sórdido, da vida do crime.

20 Evocando as descrições detalhadas de tortura e morte no romance histórico Wallenstein (1920), um crítico não hesitou em acusar Döblin de fascinação obsessiva com a violência e de querer transformar a crueldade em experiência estética. Cf. Wilfried G. Sebald, Der Mythos der Zerstörung im Werk Döblins, Sttutgart, Klett, 1980, pp. 49-51 e 156-60.

21 Cf. Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers”, op. cit., p. 47, trad. cit., p. 273.

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dissonante de sua narrativa faça explodir toda impressão de sentido e coerência globais22.

Com isso em vista, faz-se necessário integrar a dimensão mítico-religiosa da obra à

explicação materialista, isto é, ligar o congelamento do tempo histórico e a fragmentação da

forma literária que ali tem lugar à expansão do trabalho industrial alienado e à subsequente

fragmentação dos processos social e perceptivo no seio disforme da urbs moderna, mas

igualmente, no caso específico de Berlin Alexanderplatz, à persistência da “miséria alemã”

no contexto geral da República de Weimar, a um tempo dependente-independente, incapaz

de superar o multissecular atraso do país no desenvolvimento desigual e combinado do

capitalismo.

***

De forma resumida, pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo industrial,

e com ele a expansão vertiginosa das relações mercantis, isto é, a generalização das formas

capitalistas de trabalho e a colonização do quotidiano pela mercadoria, constituem um

processo que acaba por tornar a vida, em todos os seus aspectos, não somente morna,

monótona e mesquinha – algo muito patente nas personagens de um Flaubert, de um

Tchekhov, mergulhadas no tedium vitae e na insignificância quotidiana –, mas

fundamentalmente brutal, desumana. Ao mesmo tempo, o funcionamento normalizado e

quotidiano desta vida social alienada tende cada vez mais a dissimular e a objetificar a

brutalidade e a desumanidade do processo global capitalista. A partir de meados do século

XIX, mais precisamente após o trauma de junho de 1848, a arte de modo geral e a literatura

em particular (pelo menos aquela que interessa) passam a recompor, no nível da forma, e

assim a elevar à condição de experiência estética, fazendo delas uma evidência chocante, a

derrocada do curso da experiência, a desvitalização da vida e a desumanização das relações

humanas. Não obstante, se, por um lado, à banalização e ao embrutecimento da existência

corresponde um processo de crescente ofuscamento das relações sociais, por conseguinte,

da história e seu sentido geral, por outro lado, o decorrente ceticismo quanto à

possibilidade de se apreender as tendências globais da sociedade e da história, quiçá

mesmo a impossibilidade objetiva de tal apreensão, inverte-se, a partir das últimas décadas

do século XIX, progressiva e quase que inevitavelmente em mística e metafísica. Com

22 Para uma análise pormenorizada da estrutura e dos pontos de vista narrativos, da apreensão formal dos percalços

e vicissitudes sofridos pelo protagonista após a saída de Tegel, assim como da maneira com que a cidade se imiscui e ganha corpo no romance, veja-se a dissertação de Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrópole. Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz, Universidade de São Paulo, 2010, principalmente o capítulo III, assim como, da mesma autora, o artigo publicado no presente número de Sinal de Menos: “A fratura da forma: constituição e implicações da representação da metrópole em Berlin Alexanderplatz”.

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efeito, pelo menos desde Nietzsche e Malthus, o caráter histórico da concorrência

capitalista, da divisão social do trabalho, das relações de classe e da dominação do capital é

dissimulado, dissolvido em explicações de caráter mítico, metafísico, ou ainda

pseudocientífico, como o famigerado “darwinismo social”, que transforma em lei

“sociológica” eterna a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivência na selva do

mercado23, sem falar nas explicações em termos de superioridade racial, em Thierry, Taine,

Le Bon, Gobineau e, entre nós, Euclydes da Cunha. Segundo Lukács, tais tendências à

mistificação, que se combinam então sem problema com o culto positivista dos fatos

particulares, arrancados e isolados de seu verdadeiro contexto, atingiriam “seu ponto

culminante na falsificação bárbara da história e sua transformação em mito pelo

fascismo”24.

De tais tendências, desnecessário dizer, participa também boa parte da arte da

primeira metada do século XX, mesmo (ou sobretudo) a mais avançada. No caso específico

de Döblin, não deixa de ser sintomática a progressiva despolitização pela qual passa a partir

de meados dos anos 1920 (a bem dizer, durante a composição do Berlin Alexanderplatz,

entre 1927 e 1929, o autor oscilava ainda entre a alternativa revolucionária e a

transformação espiritual do mundo). Alemão de origem judia, não custa lembrar, o autor

demonstrava a princípio sensibilidade esquerdista, em suas próprias palavras, “fora

socialista atuante”25, como se pode aliás ver nos artigos que escreveu entre 1919 e 1921, sob

o pseudônimo de Linke Poot (“Pata Esquerda”), para o jornal Die Neue Rundschau26. Num

deles, de 1919, defendia com entusiasmo a classe operária revolucionária, simpatizando

com os conselhos de trabalhadores e soldados formados no imediato pós-guerra, que em

seguida seriam suprimidos pelo governo social-democrata de Friedrich Ebert:

Uma associação de camaradagem entre homens livres constitui a célula natural e fundamental de toda a sociedade, a pequena comunidade; é por aí que se deve começar... É isso que o príncipe Kropotkin há muito já sabia e ensinava, aquilo que aprendera dos relojoeiros suíços na Federação do Jura, em jargão político: o sindicalismo, o anarquismo.27

23 A este respeito, cf. Georg Lukács, Probleme des Realismus III: Der historische Roman, Neuwied/ Berlin, Luchterhand, 1965, p. 212.

24 Ibid., p. 305. 25 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, anexo à ed. da Martins Fontes, p. 527. 26 Cf. Alfred Döblin, Der deutsche Maskenball. Von Linke Poot (1921), Olten/Freiburg, Walter, 1972, e Michel

Vanoosthuyse, “Linke Poot: Döblin, les débuts de Weimar et les intellectuels”, in Études allemandes, n° 6, Lyon (janvier 1993).

27 Alfred Döblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft, Olten/Freiburg, Walter, 1972, p. 92, apud David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, Berkeley/Los Angeles, University of California, 1988, p. 54. Döblin se refere aí a um famoso texto de Peter A. Kropotkin, Memoiren eines Revolutionärs, Bd. II, Münster, Unrast, 2002, p. 319: “Die Art wie jeder jeden als Gleichen sah und behandelte, die ich in den jurassischen Bergen fand, die Unabhängigkeit im Denken und im Ausdruck, wie ich sie sich unter den dortigen Arbeitern entwickeln

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Em princípio, então, rejeita a República, a qual via, não sem razão, como uma traição dos

ideais revolucionários e sob cuja fachada continuaria viva a antiga estrutura capitalista de

poder imperial. Em 1921, porém, algo resignado, Döblin demonstrava aceitar Weimar, pelo

menos enquanto ideal pelo qual valeria a pena lutar, e clamava pelo suporte dos colegas do

meio artístico, que deveriam “espiritualizar” a nova República, contribuir para a superação

tanto das arcaicas estruturas, ainda vigentes, de exploração e dominação, quanto das

altercações partidárias que, após a guerra, teriam impedido às forças de esquerda

estabelecer uma verdadeira ordem digna do homem. Desapontado cada vez mais com a

incapacidade do novo Estado de renovar a ordem das coisas, Döblin vai aos poucos adotar

uma atitude “biologista”, por assim dizer, ligada a uma filosofia especulativa da natureza, o

que aparecerá explicitamente no tratado Das Ich über der Natur, de 1927: as antigas

questões políticas são como que esvaziadas, ou simplesmente deixadas de lado; passa para

o primeiro plano a compreensão do universo como dinâmica ordenada, onde tudo tem seu

lugar, inclusive as guerras imperialistas, vistas como inevitáveis28. É preciso ter em mente

que tal visão despolitizada do mundo, calcada numa filosofia da harmonia cósmica, divina,

era a de Döblin no momento em que se pôs a compor Berlin Alexanderplatz, apesar de o

contato frequente com Brecht fazer com que mantivesse ainda acesa a esperança numa

mudança revolucionária.

Antes de retomarmos a discussão de nosso livro, acrescentemos ainda o fato, que não

deixa de ser revelador, de o autor flertar desde cedo com o exotismo e o esoterismo

orientais. Já no “romance chinês” Die drei Sprünge des Wang-lun (1915), publicado em

pleno conflito mundial, a atitude ambígua do nosso autor se deixa ver plenamente. No livro

são consagrados os ensinamentos taoístas de Li-zi (séc. V a. C.), pregador da passividade

diante do fluxo inalterável da vida; ao mesmo tempo, a história termina com o protagonista

passando à ação e morrendo ao liderar uma insurreição. Passividade e aceitação serena

do curso do mundo, por um lado, por outro, engajamento prático e intervenção

transformadora da sociedade: eis os dois polos, antagônicos e inconciliáveis, encontrados

em muitas de suas obras, como também no próprio curso de sua vida. Continuando o que

sah, und ihre grenzenlose Hingabe an die gemeinsame Sache sprachen meine Gefühle noch viel mehr an; und als ich die Berge nach einer guten Woche Aufenthalt bei den Uhrmachern wieder hinter mir ließ, standen meine sozialistischen Ansichten fest: Ich war ein Anarchist.” Em tradução aproximada: “O modo como cada um é visto e tratado, que presenciei nas montanhas do Jura [suíço], a independência de pensamento e de expressão que pude ver entre os trabalhadores lá, sua devoção ilimitada à causa comum, tocaram profundamente meus sentimentos; e quando, após uma semana passada junto aos relojoeiros, deixei as montanhas, minhas visões socialistas estavam estabelecidas: eu era um anarquista.”

28 Para tudo isso, cf. David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, op. cit., pp. 54-59.

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dizíamos, a fascinação de Döblin por civilizações e concepções de mundo não-ocientais em

seguida reaparecem na novela “Der Überfall auf Chao-lao-sü” (1921) e em Manas (1927),

longo poema épico concebido em parte para dar conta da “crise do romance”29 e que,

segundo o próprio autor, deveria servir de base para Berlin Alexanderplatz, sendo este uma

espécie de “Manas em dialeto berlinense”30. Durante o exílio, a fim de “aliviar a sede de

aventuras”, escreveria a Amazonas-Trilogie (1937-38), sobre povos e culturas pré-

colombianos, e, voltando-se uma vez mais para a China, The Living Thoughts of Confucius

(1940). Por fim, influenciado por anos de leituras de Espinoza, Pascal e Kierkegaard,

acabaria por se converter ao catolicismo romano em 1941 – decisão que Brecht, que

admirava os trabalhos do amigo desde que lera ainda jovem seu Wadzeks Kampf mit der

Dampfturbine (1914/18), no qual se repudiava o heroísmo trágico31, teria considerado como

uma dolorosa traição, como atesta o poema “Peinlicher Vorfall”32. Tal parti pris pelo

irracional não deixaria de envergonhar e incomodar a Brecht, que, após um discurso

pronunciado por Döblin durante o exílio californiano, por ocasião de seus 65 anos, em 14 de

agosto de 1943, no qual defendia que “die Relativität ist der Tod aller Moral”33, notaria em

seu diário:

29 “Die Krise des Romans” é o título de um famoso texto programático, escrito por Otto Flake em 1922, e que

mobilizou toda a classe literária alemã, de modo que quase todo “romance” escrito após esta data teve por meta, por assim dizer, a superação do Bildungsroman clássico, ou pelo menos a renovação do gênero, que após os horrores da Primeira Guerra havia se tornado, por óbvias razões, uma forma caduca. Der Zauberberg (1924), de Thomas Mann, e Der Mann ohne Eigenschaften (escrito entre 1921 e 1942), de Robert Musil, são dois dentre os mais notáveis exemplos de tentativas de superação, ou transformação, do romance de formação clássico. Também o Doktor Faustus (1947), escrito no exílio, espécie de Bildungsroman ao avesso, no qual o protagonista se forma no momento em que, firmado o pacto com as forças demoníacas, dá as costas para o mundo e passa a viver isolado da civilização.

30 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, cit., p. 527. 31 Cf. Bertolt Brecht, Tagebücher 1920-22, Frankfurt/M., 1978, p. 48, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred

Döblin und Bertolt Brecht: Aspekte einer literarischen Beziehung”, in Monatshefte, vol. 79, n° 2 (Sommer 1987), pp. 172-85, aqui p. 172, entrada de 4/9/1920: “Ich lese heute früh den Schluß von Döblins „Wadzeks Kampf‟ und finde darin anklingende Ideen. Der Held läßt sich nicht tragisieren. Man soll die Menschheit nicht antragöden. Und es steht Herrliches drin über die Tragödie. (Es wird Schamgefühl gefordert!) Es ist überhaupt ein starkes Buch. Es läßt den Menschen schamhaft im Halbdunkel und macht nicht Proselyten. So ist es, steht drinnen auf 300 Seiten. Ich liebe das Buch.”

32 Cf. Bertolt Brecht, “Peinlicher Vorfall”, in Gesammelte Werke, Bd. 10: Gedichte 3, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1967, pp. 861-62: “Als einer meiner höchsten Götter seinen 10 000. Geburtstag beging / Kam ich mit meinen Freuden und meinen Schülern, ihn zu feiern / Und sie tanzeten und sangen vor ihm und sagten Geschriebenes auf. / Die Stimmung war gerührt. Das Fest nahte seinem Ende. / Da betrat der gefeierte Gott die Plattform, die den Künstlern gehört / Und erklärte mit lauter Stimme / Vor meinen schweißgebadeten Freunden und Schülern / Daß er soeben eine Erleuchtung erlitten habe und nunmehr / Religiös geworden sei und mit unziemlicher Hast / Setzte er sich herausfordernd einen mottenzerfressenen Pfaffenhut auf / Ging unzüchtig auf die Knie nieder und stimmte / Schamlos ein freches Kirchenlied an, so die irreligiösen Gefühle / Seiner Zuhörer verletzend, unter denen / Jugendliche waren. / Seit drei Tagen / Habe ich nicht gewagt, meinen Freunden und Schülern / Unter die Augen zu treten, so / Schäme ich mich.”

33 Apud Harold von Hofe, “German Literature in Exile: Alfred Döblin”, in The German Quaterly, vol. 17, n° 1 (jan. 1944), pp. 28-31, aqui p. 31.

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Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala. [...] Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era culpado da ascensão dos nazistas (“O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como um irmão, ainda que um mau irmão?”, perguntou à primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de que ele diria “porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi com canções os famintos” etc., mas tudo o que fez foi anunciar com teimosia, sem arrependimento ou pesar, “porque não procurei Deus”.34

A dimensão místico-cristã, que dá mostras da total despolitização do autor durante o exílio

– já em Paris, antes mesmo de imigrar para os EUA, Brecht não deixava de notar inclusive

certa tendência fascista nas ideias sionistas do amigo35 –, faria ainda aparição em Der

Unsterbliche Mensch (1946) e em seguida em “Die Pilgerin Ætheria” (1949). A superação da

“longa noite” e o começo de uma nova vida são os temas de Hamlet oder Die lange Nacht

nimmt ein Ende (1956), seu último romance, segundo alguns críticos interessante do ponto

de vista formal, não obstante ser a experiência histórica da Segunda Guerra totalmente

hipostasiada através do amálgama de fé católica, mitologia grega, poesia trovadora

medieval, referências literárias diversas e, para completar, terapia de grupo junguiana.

Do que precede não se pode inferir a presença, através da obra de Döblin, de uma

temática místico-religiosa – para não dizer regressiva – difusa. Lê-la com este (ou qualquer

outro) a priori pode levar a interpretações descabidas. Também não há problema

simplesmente em se fazer uso de referências orientais. Brecht, por exemplo, aliás

influenciado por Döblin, também estudou os clássicos da Índia e da China, coisa que se

reflete em alguns de seus melhores poemas e peças. Haveria então que se interrogar sobre a

maneira com que são usadas tais referências, e com qual finalidade. O que vale, aliás, para

qualquer referência mítica, religiosa, metafísica, seja ela ocidental ou não. Pois, caberia

perguntar, o que se busca afinal, a perenização de uma situação histórica através de sua

essencialização, um estranhamento fascinado, ou então, ao contrário, um meio de produzir

o distanciamento necessário para lançar uma luz crítica sobre tudo o que pareça ou se

apresente como natural? A este respeito, vale ainda o que já dizia Pascal: “La Chine

obscurcit, mais il y a clarté à trouver; cherchez-la. [...] Ainsi cela sert, et ne nuit pas.”36

34 Bertolt Brecht, Arbeitsjournal, Bd. 2: 1942-1955, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1973, p. 605, trad. R. Guarany e J. de

Melo: Diário de trabalho, vol. II: 1941-1947, Rio de Janeiro, Rocco, 2005, pp. 194-95. 35 Cf. Bertolt Brecht, Briefe, Frankfurt/M., 1981, carta n° 184, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred Döblin und

Bertolt Brecht”, op. cit., p. 183: “In Paris entsetzte mich Döblin, indem er einen Judenstaat proklamierte, mit eigner Scholle, von Wallstreet gekauft. In Sorge um ihre Sohne klammern sich jetzt alle (auch [Arnold] Zweig hier) an die Terrainspekulation Zion. So hat Hitler nicht nur die Deutschen, sondern auch die Juden faschisiert.”

36 Blaise Pascal, Pensées (post., 1670), Paris, Dezobry et E. Magdelene, 1852, art. XXIV, § 46, p. 328.

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***

Voltando então, já não sem tempo, a Berlin Alexanderplatz, digamos que a fim de

montar sua epopeia metropolitana, que evoca, quiçá involuntariamente, mas de todo modo

com grande mestria, estados arcaicos e civilizados coexistindo no seio de um mesmo espaço

social, intricado e estilhaçado, qual seja, uma cidade grande em constante transformação e

expansão, em princípio inapreensível em sua totalidade, visando então recompor o mosaico

caótico e polifônico do espaço urbano moderno e do lugar, ínfimo e precário, ocupado pelo

sujeito isolado e perdido no seio deste último, nosso autor toma naturalmente o cuidado de

distanciar a narrativa de todo psicologismo. As dificuldades da integração social, a retirada

ou a exclusão da comunidade, a opacidade do sujeito em relação a si mesmo, a estranheza

para com o mundo à sua volta, a impossibilidade subjetiva e objetiva de se encontrar paz

neste mundo, de se adequar a seu curso desenfreado e insandecido, de ser e permancer

decente etc., não são por Döblin contrabalançadas pela simples focalização na riqueza

sensorial ou psíquica das personagens: o “herói” – e doravante o uso deste termo, mesmo

sem aspas, será sempre num sentido negativo –, Franz Biberkopf, como não podia deixar de

ser, é pobre em sensações, sua vida interior é quase inexistente. Como já sublinhado, é

antes a cidade que pulsa, cacofônica.

Desde as primeiras páginas, pode-se “ouvir” o bumbar e o rufar das máquinas na

Alexanderplatz, o bulir e o burburinhar das ruas em torno à famosa praça, o trepidar do

chão com a passagem do bonde ou do metrô, estridentes. Às descrições do cenário urbano,

com contornos e tonalidades fauvistas e intensidade expressionista, integram-se estatísticas

demográficas e econômicas, publicidade de tudo quanto é produto, panfletos de

propaganda política, previsão do tempo, itinerários de ônibus, trens e elétricos, filmes e

peças em cartaz, canções populares, prescrições e regras de administrações e repartições

públicas, considerações sociológicas, discursos jurídicos, descobertas científicas recentes,

notícias políticas, artísticas e esportivas do tempo e os mais banais faits divers do

momento, “tudo isso em fusão inextricável com a matéria narrativa e os monólogos

interiores das personagens formando uma unidade fervilhante, turbilhonando no amplo

ritmo de uma linguagem ao mesmo tempo expressiva e naturalista”37. Com efeito, a

linguagem usada por Döblin é bastante híbrida, misturando e combinando a todo momento

citações do Antigo Testamento e do Apocalipse de João na tradução de Lutero, além de

empréstimos da poesia de Goethe e Schiller, com o característico Berlinerich, o patoá

37 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel: Alfred Döblin” (1959), in Letras germânicas, São Paulo/Campinas,

Perspectiva/Usp/Unicamp, 1993, p. 168.

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berlinense, falado nos enfumaçados bistrôs e nos cinzentos pátios de imóveis proletários, ao

qual se misturam o jargão da malandragem (Gaunensprache), a gíria das ruas (Rotwelsh) e,

cá e lá, algumas expressões em iídiche.

Para a contínua justaposição de referências míticas, literárias e fatuais dispersas, e

para obter o efeito de simultaneidade espaço-temporal de planos, acontecimentos e

elementos os mais diversos, Döblin faz uso de técnicas de colagem, de montagem e de corte,

inspiradas nos quadros dadaístas de Kurt Schwitters e no estilhaçar fulgurante das imagens

nos filmes contemporâneos, notadamente no documentário Berlin: Die Sinfonie der

Großstadt (1927), de Walther Ruttmann, no Metropolis (1927), de Fritz Lang, e

principalmente no cinema épico-revolucionário de Eisenstein – A Greve é de 1924, O

Encouraçado Potemkin, de 1925, e Outubro, de 1928 –, técnicas que demandam, no caso

da literatura, um sofisticado trabalho de fragmentação e recomposição da sintaxe. O

resultado é notável: os inesgotáveis recursos empregados pelo autor fazem com que o leitor

sinta, com certo arrepio, tanto o frenesi alucinante da cidade grande no conjunto de suas

manifestações como a desumanidade da vida urbana, o abandono e o desterro de seus

habitantes. A influência de Joyce e a proximidade de Dos Passos são evidentes – Ulysses é

de 1922, Manhattan Transfer, de 1925, ambos publicados em tradução na Alemanha em

1927 – e já foram suficientemente sublinhadas38, mas Döblin vai além ao pôr, ao lado da

grande cidade como sujeito onipotente que o esmaga, um indivíduo marginal como

protagonista por assim dizer de um romance de formação, cujos moldes como se sabe são

burgueses. É no universo do submundo do crime, da boêmia e da prostituição da Berlim da

segunda metade dos anos vinte, como lembra Rosenfeld, “descrito com realismo

alucinatório”39, que nossa personagem vai, por assim dizer, “desenvolver-se”. Seu

desenvolvimento, porém, pouco tem que ver com a formação burguesa clássica, que é

simplesmente parodiada, quando não negada.

***

38 A literatura a respeito é bastante vasta. Além do comentário do próprio Döblin, “,Ulysses‟ von Joyce” (1927), in

Matthias Prangel (Hrsg.), Materialen zu Alfred Döblin ‚Berlin Alexanderplatz‟, Frankfurt/ M., Surkamp, 1975, pp. 49-52, veja-se H. Szulanski, Eine Parallele zwischen James Joyce und Alfred Döblin, tese de doutorado, Université libre de Bruxelles, 1949, Volker Klotz, Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung an den Roman von Lesage bis Döblin, München, Hanser, 1969, Breon Mitchell, “Joyce and Döblin: at the Crossroads of Berlin Alexanderplatz”, in Contemporary Literature, vol. 12, n° 2 (Spring, 1971), pp. 173-187, Andrew McLean, “Joyce‟s Ulysses and Döblin‟s Alexanderplatz Berlin”, in Contemporary Literature, vol. 25, n° 2 (Spring, 1973), pp. 97-113, Joris Duytschaever, “Joyce, Dos Passos, Döblin: Einfluß oder Analogie?”, in Prangel (Hrsg.), Materialien, op. cit., pp. 136-49, Pierre-Jean Le Quéau, “Babylone, encore: Joyce, Döblin et Dos Passos”, in Religiologiques, n° 5 (1992), pp. 1-17, e Frauke Tomczak, Mythos und Altäglichkeit am Beispiel von Joyces Ulysses und Döblins Berlin Alexanderplatz, Frankfurt/M./Berlin, Peter Lang, 1992.

39 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., p. 169.

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A maior parte das leituras feitas desde que o livro foi publicado, em 1929, com

pequenas variações, diz mais ou menos o seguinte: Döblin, no final do romance, faria com

que a morte simbólica de Franz Biberkopf, vale dizer, sua morte enquanto personagem de

narrativa épica e seu renascimento para uma nova vida, com o novo nome de Franz Karl

Biberkopf, coincidisse com sua integração subserviente ao curso do mundo. Deus ex

machina, o autor de fato “ressuscita” seu anti-herói40 – cena que lembra o final do segundo

Fausto, ou ainda, o deliberadamente forçado “final feliz” da Ópera de três vinténs, de

Brecht/Weill, estreada no ano anterior –, mas na condição de não-sujeito, ou de um sujeito

física e psicologicamente mutilado. Após todas as pancadas que levou da vida, Biberkopf

teria ficado calejado, tornado-se humilde, “esperto”; não se metendo mais a besta, não

pondo mais o dedo onde não é chamado, “faz seu trabalho como auxiliar de porteiro [numa

fábrica de porte médio], registra os números, controla carros, verifica quem entra e quem

sai”41, e só. A pretendida moral da história não passaria, ainda segundo tais leituras, de uma

lição de sabedoria de almanaque, do homem que após muito pelejar e nadar sozinho contra

a corrente percebe a futilidade da luta, abandona a arrogância, aceita humildemente sua

finitude, assume a inteira responsabilidade pelos reveses sofridos e aprende a necessidade

da solidaridade humana para não soçobrar na loucura. Coisa tipicamente alemã, ademais, a

solidaridade em questão seria concebida “num vácuo apolítico”42 e a ausência de um

qualquer horizonte utópico, de perspectivas de um futuro melhor, se traduziria no

contentamento da personagem com a forma presente da vida, com o trabalho e os pequenos

prazeres quotidianos. Não seria à toa, nesse sentido, que o texto venha cortado de citações

do Eclesiastes, que resumiriam a sabedoria que teria a duras penas aprendido Biberkopf:

toda resistência é inútil, desejar ou lutar por um câmbio da situação dada é vão, procurar

compreender o que se passa acarreta sofrimento, o que se está torto não se pode endireitar,

aproveite pois o agora porque a vida é curta e nada de novo surgirá sob o sol...

Supondo por ora que as consagradas leituras estejam corretas, o que dizer da

exemplaridade buscada pelo autor na história de Franz Biberkopf? Esta seria no limite

ridícula, ou ridicularizada, posta em xeque a cada episódio pela sofisticada apreensão

formal da vida anônima, insignificante, confusa e atroz do lúmpen na Berlim proletária dos

anos 1920, à qual Döblin, como visto, dá um sentido mítico: “a grande Babilônia, a mãe da

40 Cf. BA, 442/507. 41 BA, 454/520: “Biberkopf tut seine Arbeit als Hilfsportier, nimmt die Nummern ab, kontrolliert Wagen, sieht, wer

rein- und rauskommt.” 42 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., p. 170.

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putaria e de todos os horrores da Terra”43. O tom paternalista assumido pelo narrador no

prólogo, nas prolepses e diversas vezes no próprio corpo da narrativa soaria irônico,

quando não despropositado, contradizendo as supostas intenções do autor, que teria

pretendido seriedade. Se é assim, então se poderia dizer que no interstício entre os temas

propostos – quais sejam: a metrópole moderna como conjunto de forças incontroláveis e

como campo de prova, por um lado, e, por outro, a vida terrível de um marginal, ex-

condenado, como exemplo moral de reinserção social – e a forma com que é montado o

entrecho apareceria a não-identidade entre a intenção autoral e o efeito crítico-estético

produzido no leitor, que perceberia o quanto a idealização de uma personagem, e mais

ainda sua exemplaridade, nos tempos modernos tornam-se uma impossibilidade objetiva44,

muito embora o narrador denomine “trágico” o destino do protagonista45.

No melhor dos casos, isto é, nas melhores leituras, o que se sugere é que Berlin

Alexanderplatz seria paradigmático do quanto as intenções do autor importam pouco e são

no fundo secundárias numa obra artística de qualidade, visto que mesmo se a pregação da

moral de Salomão se revela caduca, retrógrada mesmo, seria no nível das soluções formais

que se encontraria o que há de mais avançado. Como sublinha nesse sentido Rosenfeld, o

domínio linguístico dessa epopeia moderna “exigiu os recursos de um mestre consumado” e

a mensagem que, segundo o crítico, seu autor procurou passar, supostamente explícita

desde o prólogo e reiterada nas prolepses, de uma lição “multimilenar, antiqüíssima, dir-se-

ia arcaica”, seria “captada através de recursos ultramodernos, extremamente requintados”,

o exato oposto do que viria a ser o caso no romance socialista da Alemanha Oriental, o qual

apresentaria “lições ultramodernas através de recursos quase arcaicos”46.

Tais leituras, via de regra, passam ao largo do essencial, a saber: aquilo que acontece

com Biberkopf no verdadeiro epílogo constituído pelas três últimas páginas do livro, as

quais, ao contrário do que se costuma dizer, são construídas de forma muito sutil e

sofisticada, de modo a não dar de bandeja a “mensagem” da história, apesar desta só se

apresentar ali, e que por isso mesmo desde a publicação do livro tem sido mal interpretada,

não raro confundida com seu contrário, isso tanto por críticos de esquerda como pelos mais

conservadores e reacionários. Parece incrível, mas mesmo os leitores de costume mais

43 BA, 253/290: “die große Babylon, die Muter der Hurerei und aller Greuel auf Erden.” 44 Coisa que aliás já haviam notado, no século XIX, por exemplo, Hegel e Baudelaire: enquanto para o primeiro isso

se daria em razão das condições modernas de vida, que fazem com que haja contradição entre as aspirações individuais e os interesses da sociedade de forma geral, para o segundo a causa principal residiria na divisão da sociedade em classes antagônicas, visto que o que é exemplar ou ideal para o proletariado não o é, necessariamente, para a burguesia, e vice-versa.

45 Cf. BA, 451/517: “tragische Schicksal” 46 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., pp. 170 e 171.

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competentes e agudos – para não citar senão que os maiores tendo escrito a respeito:

Benjamin, Adorno e Rosenfeld – não vislumbraram direito o que tem lugar ali, ou por

outra, parecem ter tirado suas conclusões simplesmente por fazer vista grossa do famoso

epílogo. Resumidamente: Benjamin interpreta o livro como um Bildungsroman – ainda

que a formação no caso seja a de um marginal, pois de toda maneira, segundo o crítico,

seria homóloga à burguesa –, como se os problemas de Biberkopf se resolvessem quando

sua “fome de destino” é saciada, e como se nós, leitores, nada mais pudéssemos com ele

aprender a partir do momento em que encontra um emprego fixo, ou seja, a partir do

momento em que se integra à sociedade, de modo que podemos deixá-lo tranquilo em seu

cubículo de assistente de porteiro47; Adorno também se fixa no fato de o autor ter

arranjado, de maneira forçada, para a sua personagem, após esta ter comido o pão que o

diabo amassou, uma ocupação por assim dizer digna, um lugar na sociedade, vendo no

“milagre da integração”, no “permanente ato de graça com que os amos acolhem ao

[indivíduo] que não oferece resistência, forçado a engolir sua renitência”, “na humanidade

com a qual Döblin deixa seu Biberkopf encontrar abrigo”, uma tendência fascista48; para

Rosenfeld, como visto, a mensagem arcaica visada pelo autor talvez não condissesse com a

forma avançada e ultramoderna do livro.

Acontece que a história de Franz Biberkopf não acaba simplesmente com ele fechado

em seu cubículo de auxiliar de porteiro, integrado e conformado com seu sanduíche; a

solidariedade evocada, como ficará claro, assim esperamos, na leitura que faremos das

páginas finais do livro, não tem nada de abstrata ou vazia; por fim, os parágrafos finais não

são, como vem repetindo entediosamente a crítica há 80 anos, fora de esquadro,

inadequados, ou ambíguos, notadamente do ponto de vista político. Ao contrário do que

comumente se encontra na vasta bibliografia a respeito, cabe sublinhar que, como nas peças

que produzia Brecht a partir da mesma época, as considerações morais no romance de

Döblin são no fundo secundárias, e a “mensagem”, a “moral da história”, só é dita, ou

desvendada, embora de modo não evidente, no epílogo49, após um longo e tortuoso

47 Cf. Walter Benjamin, “Krisis des Romans: zu Döblins „Berlin Alexanderplatz‟” (1930), in Gesammelte Schriften,

Bd. III, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1991, pp. 230-36, trad. S. Rouanet: “A crise do romance: sobre Berlin Alexanderplatz de Döblin”, in Obras escolhidas, vol. I, São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 54-60.

48 Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente (1944/47), Frankfurt/M., Fischer, 2003, p. 163.

49 Cf. Bertolt Brecht, Écrits sur le théâtre, vol. 1, trad. B. Perregaux, J. Jourdheil, J. Tailleur e G. Delfel, Paris, L‟Arche, 1972, pp. 266-67, apud José Antonio Pasta, Trabalho de Brecht. Breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea (1986), São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2010, p. 169: “Na verdade, no teatro épico, as considerações morais não apareciam senão em segundo plano. Seu propósito era menos moral que o estudo. Entretanto, é verdade, depois do estudo vem a pílula: a moral da história. [...] Não éramos apenas os porta-vozes da moral, mas os porta-vozes das vítimas. Trata-se aí de duas atitudes completamente diferentes, pois com

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“processo de revelação”50: é a própria verdade do todo que vem à luz; para além das

personagens, o que é finalmente posto em causa é a ordem social mutiladora.

***

Trocada em miúdos, a observação de Benjamin, de o livro de Döblin ser à sua

maneira um Bildungsroman, até que faz sentido. Aqui cabe a comparação, notada de

passagem na conclusão da famosa resenha do crítico, com L‟Éducation sentimentale,

romance que, como se sabe, pinta o quadro geral de uma geração perdida, que fora a do

próprio autor, de indivíduos que passam ao largo de seu próprio tempo, de sua própria

vida. Ao procurar imitar os livros, adotando de forma irrefletida as idées reçues do

romantismo, Frédéric Moreau e seus colegas se tornam incapazes não somente de contruir

e determinar eles mesmos o próprio destino, mas igualmente de tirar das experiências

vividas uma qualquer lição de vida a não ser a de ter passado ao largo da mesma, de tê-la

perdido: “Ils l‟avaient manquée”51, resume o narrador.

Tal crise é manifesta já no título, irônico, do romance de Flaubert: a suposta

educação sentimental não conduz o sujeito a lugar algum; no fundo não há mais acúmulo

de experiências, amadurecimento, tampouco desengano. É a crise terminal do

Bildungsroman, cuja existência coincidira com o ciclo histórico que inicia com a queda da

Bastilha em julho de 1789 e termina grosso modo com o massacre do campo proletário em

junho de 1848, ciclo durante o qual, segundo Lukács, teriam primado sobretudo tentativas

ou soluções de compromisso, de se juntar o que a primeira Revolução Francesa havia

separado, a saber, duas visões de mundo distintas e incompatíveis, burguesa e aristocrática,

que por sua vez correspondiam a dois modelos sociais irreconciliáveis. Nas palavras de

Paulo Arantes:

O Wilhelm Meister – e embutida nele a Bildungsethik – vinha finalmente consagrar esse dispositivo bifronte: de um lado, o ímpeto imponderável do “longo esforço de formação interior”; de outro, a par da natural sede de nomeada, os interesses materiais mobilizados pelo processo de ascensão social que se punham em cena, sublimados, na face da “personalidade cultivada” voltada para o palco do mundo.52

frequência utilizam-se justamente argumentos morais para persuadir as vítimas de se acomodarem ao seu destino.”

50 BA, 453/519: “ein Enthüllungsprozeß” 51 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale. Histoire d‟un jeune homme (1869), 2 volumes, Paris, Fasquelle,

1929, vol. 2, p. 272. 52 Paulo Eduardo Arantes, “Uma irresistível vocação para cultivar a própria personalidade”, parte II, in

Trans/Form/Ação, vol. 26, n° 2 (2003), pp. 7-42, aqui p. 23.

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O burguês tentava ou desejava tornar-se nobre, em geral sem sucesso, o que, talvez não

ainda, ou não tanto, em Goethe, mas certamente no tempo de Flaubert, gerava uma

sensação de inadequação, de desconforto existencial, que em Frédéric é muito patente:

“Suas ambições intelectuais o haviam deixado, e sua fortuna (ele o percebia) era

insuficiente [...] ele sentia a necessidade de sair desta existência, de se agarrar a alguma

coisa.”53 Donde a conclusão: “Todo o mal residia nessa vontade moderna de se elevar acima

de sua classe, de ter luxo”54. No fundo, malgrado os inúmeros projetos que se sucedem uns

aos outros, Frédéric não deseja trabalhar, e a par dos planos de casamento com Madame

Dambreuse, que lhe asseguraria boa vida pelo resto de seus dias, evita assumir

compromisso com o que quer que seja.

Ora, aos olhos de Benjamin, como já assinalado, o romance de Döblin seria como

“L‟Éducation sentimentale dos marginais”, ou seja, o “estágio mais extremo, mais

vertiginoso, mais definitivo, mais avançado, do velho „romance de formação‟ da era

burguesa”55. Ali também as personagens não se formam, não têm como se desenvolverem,

se tornarem paulatinamente individualidades autônomas, pois aquilo que Hegel chamava

de “espírito objetivo” entretempo se congelou em normas, convenções e instituições

caducas, que ao invés de servirem à formação do sujeito ao forçá-lo a agir de forma

racional, o mutilam e desintegram: a experiência inscrita numa duração, numa

temporalidade dilatada, por isso mesmo plena de sentido, comunicável, se despedaça em

vivências dispersas que fecham o sujeito num registro monológico; a dicotomia indivíduo-

sociedade, quando não desaparece por completo, já não é mais clara e distinta, nem dada de

antemão, da mesma forma que o sujeito, em vez de fazer o trabalho reflexivo de crítica do

objeto e de retorno crítico sobre si mesmo, saindo enriquecido da confrontação com a

realidade objetiva, como que fica colado a ela, sem possibilidade de recuo, distanciamento,

discernimento. A cidade, nesse contexto, não é mais tão-somente um cenário ou pano de

fundo quase neutro contra o qual se destaca e progride o protagonista em sua busca por um

lugar no mundo no qual possa se reconhecer e ser reconhecido em sua individualidade. Na

prosa de Döblin pelo menos, a relação intencional do eu despedaçado, desestruturado e

descentrado de Franz Biberkopf com o movimento da metrópole se reflete na contínua

flutuação da perspectiva dos monólogos interiores à visão “objetiva”, em terceira-pessoa, a

53 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale, op. cit., vol. 1, p. 190. 54 Ibid., p. 195. 55 Walter Benjamin, “Krisis des Romans”, op. cit., p. 236, trad. cit., p. 60: “[...] so ist die Geschichte dieses Franz

Biberkopf die ‚Education sentimentale„ des Ganoven. Die äußerte, schwindelnde, letzte, vorgeschobenste Stufe des alten bürgerlichen Bildungsroman.”

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um tempo próxima e distinta da do protagonista. O resultado é uma visão alucinatória,

reflexo da paranoia urbana generalizada56.

Rosenfeld tem toda razão quando afirma que no estágio em que se encontrava a

classe burguesa na Alemanha do final dos anos vinte57, dificilmente um herói burguês se

adaptaria aos propósitos da epopeia metropolitana tal como a concebia Döblin. Razão pela

qual suas personagens são, em sua maioria, proletárias e marginais, o cenário ideal para a

construção de seu mito urbano sendo os bairros populares em torno da Alexanderplatz,

universo dominado por malandros, boêmios, conspiradores, ladrões, drogados, cáftens,

meretrizes e trabalhadores precarizados de toda ordem. Ao mesmo tempo, a

conscientização política do herói, sua adesão a um movimento de oposição, a uma

organização revolucionária, poderiam facilmente pôr a perder tais propósitos, aos quais

também não poderia senão dificilmente se adaptar “um proletário sindicalizado com

consciência de classe”58. Aqui outro ponto de proximidade com L‟Éducation sentimentale.

Seria sem dúvida interessante comparar as cenas em que Frédéric acompanha seus amigos

aos clubes políticos após fevereiro de 1848 com as reuniões que passa a frequentar Franz

depois do acidente que lhe deixou maneta. Interessante notar que, tanto num romance

como no outro, a súbita perda de interesse dos protagonistas pelo mundo da política é

condicionada pela esfera privada do amor. Assim, um pouco à maneira com que, no

romance de Flaubert, Rosanette, por natureza aversa à República de Fevereiro, apoquenta

Frédéric por suas inclinações republicanas – que em si mesmas não se fundam numa

qualquer convicção profunda e refletida, ao contrário do que se passa com o amigo

Dussardier, o bravo caixeiro –, também Mieze, no romance de Döblin, instigada por Eva,

partidária da ordem, faz pressão sobre Franz para que deixe de lado os debates políticos –

“é isso o que ele faz, política e nada mais que política”59 –, considerados suspeitos e mesmo

perigosos, e abra mão de sua amizade com Willi – “Aquilo é um malandro. Ele vai levar o

56 Cf. Sabine Hake, “Urban Paranoia in Alfred Döblin‟s Berlin Alexanderplatz”, in German Quarterly, vol. 67, n° 3

(Summer 1994), pp. 347-68. 57 No Doutor Fausto (1947), um dos últimos grandes romances de Thomas Mann, o narrador Serenus Zeitblom

pinta de forma magistral o universo espiritual, político e artístico da burguesia alemã nos anos 1910 e 1920, no qual cultura e barbárie abraçavam-se sem remissão – como precedentemente apontado também em A montanha mágica (1924), no qual a personagem de Hans Castorp descobre o horror sob a pedra da civilização, ou antes ainda em A morte em Veneza (1912), na sedução do artista Gustav von Aschenbach pela beleza olímpica do adolescente Tadzio, indissociável do contexto de doença, putrefação e morte. No caso da situação de época descrita por Zeitblom, boa parte dos que se ocupavam então do pensamento e da arte tomava livremente licença para legitimar a força bruta e o desencadeamento de energias primárias violentas, dando vazão a uma espécie de “neobarbárie consciente”. Em suas palavras: “tratava-se de abjurar todo enternecimento, obra da idade burguesa, de modelar a humanidade à intenção de épocas duras e sinistras, desdenhosas do sentimento humano, para preparar uma era de grandes guerras e revoluções” (Le Docteur Faustus. La vie du compositeur Adrian Leverkuhn racontée par un ami, trad. L. Servicen, Paris, Albin Michel, 1950, p. 468).

58 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel”, op. cit., p. 169. 59 BA, 277/317: “det macht er, Politik und nischt als Politik bei de Kommunisten und Anarchisten”

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Franz para o mau caminho”60 –, rapaz boêmio, ladrão de ocasião, fã de Nietzsche e de

Stirner61, que, entre um chope e outro, carregava o outro a meetings comunistas e

anarquistas – segundo Eva frequentados por “um populacho desses que só tem um par de

calças com furos no traseiro”62. De modo semelhante ao que Frédéric, mergulhado no idílio

turístico de Fontainebleau, desdenha a “agitação” que tomava conta da capital francesa

naqueles ensolarados dias de junho, a qual, diante de seu suposto amor por Rosanette e da

“natureza eterna”, parece-lhe “miserável”63, também Franz, cansado daquelas discussões

que, no fim das contas, (a seu ver) não levavam a nada, se retira dos debates e conflitos do

tempo, chegando a declarar: “a política não me importa nada, e se as pessoas são tão tolas

de se deixarem explorar, não tenho nada a ver com isso”64.

A despeito da diferença de contexto, nos dois casos trata-se, para falar como Marx,

de tentativas frustradas de consumar a emancipação pessoal pelas costas da sociedade.

Indivíduo de aspirações românticas tanto quanto banais, o pequeno-burguês Frédéric

Moreau, que apesar dos inúmeros projetos (ou antes, por esta mesma razão) não trabalha

de jeito nenhum, que desde sempre se regalara com seu desprezo dos homens comuns e da

idiotia alheia, oscilando em permanência entre o ideal sublime e inatingível (fosse a

República majestuosa ou Mamãe/Madame Arnoux) e a facilidade do ganho imediato (tanto

os interesses econômicos pessoais como a relação erótica de substituição com a rameira

Rosanette, ou a conjugação das duas coisas, pseudo-amor e dinheiro fácil, na perspectiva de

casamento com a rica viúva Dambreuse), irrealiza “as alternativas históricas de sua época

ao vivenciá-las como alternativas eróticas”65. Por sua vez, o que diz o proletário Franz

Biberkopf, cuja vida ao lado da jovem Mieze parece importar mais do que tudo, ou ser tudo

o que lhe restou (além da bebida, é claro, e da pseudo-amizade de Reinhold), é mais ou

menos o seguinte: se não trabalho, se não posso arrumar um emprego decente por ter

perdido o braço, logo não exploro ninguém, tampouco sou explorado, e se não dependo do

Estado para nada, visto que recuso o direito ao auxílio desemprego, então esse papo de

60 Ibid.: “Det is ein Lausejunge. Der verführt den Franz.” 61 A referência a estes dois autores não é nada gratuita, principalmente no que concerne a Stirner, que, embora do

ponto de vista subjetivo, de sua posição com relação aos conflitos sociais do tempo, pareça inicialmente anticonformista, do ponto de vista de sua produção teórica (da teodiceia do indivíduo absoluto) demonstra ser, na verdade, ultraconformista para com a situação social dada. A observação é de Theodor W. Adorno, Zur Lehre von der Geschichte und von der Freiheit (1964-65), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2006, p. 85.

62 BA, 277/317: “son Gesindel, die keene heile Hose uffn Hintern haben.” 63 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale, op. cit., vol. 2, p. 154. 64 BA, 287/329: “die Politik geht mir nichts an und wenn die Menschen so dämlich sind ausbeuten zu lassen, kann

ick nichts für.” 65 Dolf Oehler, “O fracasso de 1848” (1980), trad. Samuel Titan Jr., in Terrenos vulcânicos, São Paulo, Cosac &

Naify, 2004, p. 31.

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exploração, de greve geral, de luta política contra o Estado, por sua abolição ou reforma,

não me concerne em nada.

Em Flaubert, digamos em resumo, a vida das personagens não ensina nem pretende

ensinar uma qualquer lição aos leitores; não somente não parece haver uma moral da

história como a própria noção de sentido da vida é problematizada, posta em questão.

Frédéric prefere o sonho à vida, a evazão aos enfrentamentos efetivos. Por sua vez, embora

desde sempre na roda-viva – nas trincheiras prussianas, nas convulsões revolucionárias do

pós-guerra, no duro retorno à “normalidade”, às voltas com a criminalidade, encerrado na

prisão por assassinato, de novo no turbilhão, na luta contra o alcoolismo, para manter-se

reto quando suas pulsões destrutivas o levam sempre de volta ao mau caminho e à

perdição, novamente a recaída, a queda no crime, no álcool, a culpa, a loucura, a punição,

mas nunca a redenção –, por se crer independente e autosuficiente, embora de fato não o

seja e esteja sempre a se apoiar num Outro (Eva, Mieze, Reinhold, álcool) para lidar com a

realidade, Franz é tão incapaz quanto Frédéric de tomar em mãos as rédeas do próprio

destino. Como notou Dolf Oehler, a fraqueza psíquica de Frédéric, que o leva a escolher

objetos amorosos sucedâneos ao invés de voltar-se para o verdadeiro amor, tende a se

tornar, em Flaubert, a chave para a história da revolução de 1848, antes a causa secreta da

catástrofe que seu resultado:

Seu comportamento erótico pode ser compreendido como metáfora tanto de seu comportamento político como do comportamento da esmagadora maioria das classes médias, que desde o início haviam preferido à verdadeira República, ao ser sublime e majestoso, uma República pronta a se prostituir com os piores partidos – mas sempre se apresentando como República “honrada”.66

Salvo engano, algo análogo ocorre no livro de Döblin: os fracassos do indivíduo Franz

seriam alegorias dos fracassos de toda a sociedade alemã, incapaz de superar sua miséria e

seu atraso histórico, de se desenvolver e se estabelecer em bases sólidas, consistentes,

duráveis, equilibradas; Reinhold, por sua vez, apresenta todos os traços de um líder

fascista, inclusive semelhança física com Hitler, além de ser um sedutor nato, exercendo um

fascínio irresistível sobre as mulheres e sobre o próprio Franz, cuja tendência homossexual

66 Ibid., p. 24.

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é um tanto evidente, tendo sido bem captada na famosa adaptação de Fassbinder67; no que

diz respeito à jovem imaculada Mieze (diminutivo de Marie/Maria), “a putinha pálida

recolhida na Invalidenstrasse”68 e que também deixa-se fascinar momentaneamente por

Reinhold, ela “parece simbolizar todos os desejos utópicos que o mundo não permitirá que

se realize”69. A morte de Mieze, em suma, representaria alegoricamente a morte da utopia.

Que o destino de Franz Biberkopf esteja enredado ao de Weimar, sendo em grande

medida alegoria deste, fica claro (embora, salvo engano, nenhum crítico o tenha visto) no

fato de ele ter tido a crise de ciúmes, assassinado a noiva, a prostituta Ida, e terminado

preso, tudo em 1923, precisamente o ano da crise de hiperinflação70, das insurreições

operárias massacradas pela social-democracia e do malogrado putsch da cervejaria, que

levou Hitler à prisão. Ainda nesse registro, a relação de Franz com prostitutas71 e seu

ingresso na vida marginal, não muito diferente do que ocorre no romance de Flaubert,

seriam signos do malogro da revolução espartakista, da prostituição de seus ideais e da

incapacidade do povo alemão de superar o atraso, a posição marginal em relação a países

como França e Inglaterra. Prosseguindo, os anos de “calmaria” na vida de Franz, os quatro

que passa em Tegel (1923-27), coincidem não por acaso com o período economicamente

67 O filme, de 1980, com duração de quinze horas e meia, de resto deixa um pouco a desejar, apesar de notável

interpretação da parte dos atores Günther Lamprecht e Gottfried John. Com orçamento pequeno, mas com a ideia fixa de cobrir quase que integralmente o romance de Döblin, Fassbinder foi obrigado a se limitar basicamente aos interiores (ao quarto de Franz, ao apartamento de Eva, à sala de Reinhold, ao bistrô de Henschke e ao escritório de Pums), mergulhando o espectador na “atmosfera” da época, o que em si não deixa de ser interessante, não fosse o fato de o principal, isto é, a metrópole, o efeito de simultaneidade dos planos etc., quase não aparecer. Filmada à maneira de um melodrama, a história individual de Franz Biberkopf acabou ganhando destaque, centralidade demais, caindo na banalidade. O longo e tão celebrado epílogo do filme, uma livre interpretação do diretor à luz da história posterior, é uma visão alucinada, terrificante, quase um transe. Note-se, não obstante tudo isso, que o quarto dos treze episódios (“Eine Handvoll Menschen in der Tiefe der Stille”), honra lhe seja feita, do ponto de vista estético, é muito superior a todo o resto e é o que, em termos de forma, mais se aproxima do livro.

68 BA, 322/369: “der Mieze […] das blasse Hurchen […] von der Invalidenstraße aufgelesen” 69 Wallace Steadman Watson, Understanding Rainer Werner Fassbinder. Films as Private and Public Art,

Columbia, University of South Carolina, 1996, p. 247. 70 No final de 1918, US $ 1 valia 4 PM (Papiermark) ; em 1° de janeiro de 1923, valia 7.000 PM; em 1° de junho do

mesmo ano, 160.000 PM; e em fim de outubro de 1923, já equivalia a 4.200 bilhões PM. Com a situação completamente fora de controle, em 15 de novembro de 1923, o velho Papiermark foi substituído por uma nova moeda, o Rentenmark, intercambiável contra 1.000 bilhões PM, ou seja, US $ 1 ficou fixado a 4,2 RM. No ano seguinte, o Rentenmark seria ainda substituído pelo Reichsmark. Para maiores detalhes, cf. Peter Gay, Le suicide d‟une république: Weimar, 1918-1933, trad. J.-F. Sené, Paris, Gallimard, 1995.

71 O tema da prostituição é onipresente no romance, e quase sempre relacionado aos temas religiosos. Além da já evocada prostituta Babilônia, que no final é derrotada pela Morte ceifeira, pode-se percebê-lo na onomástica, nos nomes das personagens femininas, quase todas meretrizes. Tanto Minna como Lina são formas diminutivas de Maria Magdalena. Mieze, como já assinalado, é diminutivo de Marie, nome dado por Franz, pois o nome verdadeiro da menina é Emilie, também conhecida por Sonja (evidente referência à personagem de Crime e castigo, que também se prostitui para sustentar o herói, Raskolnikov). Eva, que, supõe-se, teria levado Franz para o mau caminho após a guerra, também se chama Emilie e é Franz/Adão quem lhe dá o nome bíblico. Emilie, em latim Aemilia (masc. Aemilius), de aemulus, significa “emulação”, “rivalidade”; é também uma personagem de Othello, a mulher de Iago, manipulada por este por ser acompanhante de Desdêmona (é ademais bastante emanciapada para uma mulher da época, como o são Eva e Mieze). Ida, por fim, nome de raiz germânica, proviria possivelmente do Althochdeutsch id, que costuma se traduzir por “trabalho”, “labor”. Prostituição, tentação, trabalho, rivalidade, ciúmes, morte – eis alguns dos significantes associados às personagens femininas e que vêm expressos igualmente em seus nomes.

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sem turbulências da República, proporcionado pelo plano Dawes e pela estabilização

monetária. Na saída de Tegel, em meados de 1927, apesar dos claros indícios de

modernização do país, Franz se vê às voltas com a miséria, com a corrupção, com o

desemprego, com a insignificância, com o desespero e com a confusão político-ideológica.

Por volta da mesma época, em agosto, os nazistas organizaram a primeira grande reunião

do partido, tendo encontrado bastante apoio entre militares, proprietários e industriais. Ao

sair da prisão, Franz quer permancer decente, de maneira mais ou menos análoga a Hitler

que, depois do fracasso do putch, percebeu que estrategicamente seria mais eficaz agir por

vias legais e democráticas do que tomar o poder a força. O momento em que Mieze é

assassinada pelo protofascista Reinhold, em 1° de outubro de 1928, coincide não por acaso

com o início da resistível ascenção do partido delinquente de Hitler. Acresce que em

setembro, uma seção dos Stahlhelme (“capacetes de aço”), grupo extremista formado por

antigos combatentes hostis a Weimar, declarou abertamente seu ódio ao regime. Por fim,

tem-se um momento decisivo no epílogo do livro, que desvendaremos mais adiante.

***

Na época em que Shakespeare compunha suas maiores obras, pobres ociosos,

mendigos e vagabundos foram proscritos por lei na Inglaterra – a “Elizabethan Poor Law”,

também conhecida como “Act for the Relief of the Poor”, data de 1601. Ou seja, os pobres

que por ventura se encontrassem sem emprego eram classificados ou como fisicamente

hábeis ou como incapazes para o trabalho e então levados, segundo fosse o caso, para

hospitais ou asilos de caridade (halmshouses), casas de trabalho forçado (poorhouses,

workhouses, houses of industry), instituições correcionais (houses of correction) e até

mesmo para a prisão. Por um decreto de 1656, Louis XIV criou em Paris o Hôpital Général

no intuito de nele encerrar todos os pobres encontrados naquela cidade (mendigos, doentes

mentais, delinquentes, inválidos) a fim de adestrá-los para o trabalho. Vinte anos mais

tarde, um novo decreto real ordenava a criação de um Hôtel Général em todas as cidades do

reino. Passando pelo Iluminismo no século XVIII e pela “questão social” no século XIX até

os dias de hoje, saber como manter o povo com a mão na massa e o que fazer com os

ociosos e tidos por inaptos ou incapacitados para o trabalho sempre foi central para a

sociedade cuja organização da produção tem por a priori fetichista a mercadoria72. No

72 Veja-se, por exemplo, Voltaire, “Les embellissements de la ville de Cachemire” (1750), in Œuvres complètes, t. VI,

Paris, Alexandre Houssiaux, 1853, p. 618: “Quoi ! depuis que vous êtes établis en corps de peuple, vous n‟avez pas encore trouvé le secret d‟obliger tous les riches à faire travailler tous les pauvres! Vous n‟en êtes donc pas encore aux premiers éléments de la police ?”

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início da década de 1920, Henry Ford falava em “freedom of starvation”73 para os que não

desejassem servir a sociedade com seu esforço, disciplina e labor, e a conclusão “lógica” que

alguns cientistas eugenistas da época tiraram do princípio fordista74 (a bem dizer,

rousseauista75) segundo o qual não haveria lugar na civilização para preguiçosos foi a

necessidade, sobretudo do ponto de vista econômico, do trabalho forçado para uma parcela

da população e, para os “naturalmente” incapazes de trabalhar, nada menos que o

extermínio sistemático76. Apesar de o exército de reserva de trabalhadores ser no

capitalismo uma condição necessária do sobrelucro, em períodos de super-produção e, por

conseguinte, de escassa compra da falsa mercadoria trabalho, a possibilidade de indivíduos

desempregados descobrirem finalmente o que fazer de seu “tempo livre”, sempre

representou uma séria ameaça para os donos do poder.

A percepção de que um indivíduo autônomo e emancipado é incompatível com a

atividade alienada, com a exploração e a dominação do trabalho social, de que um “outro

homem precisa de uma outra profissão ou então de nenhuma”77, não é rara na literatura

moderna: de Shakespeare e Cervantes a Conrad, de Diderot a Georges Arnaud, passando

por Büchner, Kafka e Céline, têm-se incontáveis exemplos de crítica ao trabalho, de

personagens conscientes da “pouca vergonha” que é a vida de privações do operário, do

pequeno trabalhador que procura ganhar honestamente o pão de cada dia. Em Berlin

Alexanderplatz a coisa não é diferente. Depois de ralar em inúmeros subempregos (como

peão de obra, carregador de móveis, camelô, vendedor de jornais etc.) e não chegar a lugar

algum, Franz Biberkopf, malandro à sua maneira, conclui que a “vida de otário” do

trabalhador honesto não é mesmo para ele:

73 Henry Ford, My Life and Work (1922), Charleston, BiblioBazaar, 2006, p. 16. 74 Cf. ibid., p. 19: “Money comes naturally as a result of service. And it is absolutely necessary to have money. But we

do not want to forget that the end of money is not ease but the opportunity to perform more service. In my mind nothing is more abhorrent than a life of ease. None of us has the right to ease. There is no place in civilization for the idler.”

75 Cf. Jean-Jacques Rousseau, Émile ou de l‟éducation (1762), Paris, Garnier Frères, 1904, livro III, p. 217: “Travailler est […] un devoir indispensable à l‟homme social. Riche ou pauvre, puissant ou faible, tout citoyen oisif est un fripon.”

76 Em 1935, Alexis Carrel, biólogo racista e eugenista francês, prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1912 e pesquisador respeitado do Rockfeller Institut de Nova Iorque até 1938, dizia em seu best-seller internacional L‟Homme, cet inconnu, Paris, Librairie générale française, 1965, pp. 345-46: “Há ainda o problema não resolvido da multidão imensa dos deficientes e criminosos. [...] O custo das prisões e dos asilos de alienados, da proteção pública contra os bandidos e os loucos, como sabemos, tornou-se gigantesco.” Eis a solução, a mais “humana e econômica”, que propunha o respeitado cientista – que além de tudo pregava a fraternidade entre os homens! – para dispor destes “seres inúteis e nocivos” à civilização dos homens sãos e normais: tratamento dos menos perigosos “na base do chicote”, “seguido de uma curta permanência no hospital”, e para os demais, vale dizer, para os assassinos, autores de roubo à mão armada, sequestradores de crianças e loucos tendo cometido qualquer crime, sem “preconceitos sentimentais”, seria-lhes reservada a câmera de gás.

77 BA, 252/288: “Ein anderer Mensch braucht auch einen anderen Beruf oder auch gar keinen.”

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Nada de trabalhar. Tire essa história de trabalhar da cabeça. O trabalho vai provocar bolhas na mão, e não dá nada de dinheiro. Além do mais, de trabalhar nunca ninguém ficou rico, é o que estou dizendo. Só trapaceando.78

Ele quer por si mesmo manter-se de pé. Algo que traga dinheiro rapidamente, isso ele quer. Trabalhar, besteira. [...] fica enraivecido [...] por vezes se espanta de ver como alguém pode ser tão tolo e se ralar enquanto outros dirigem seu próprio carro ali perto. Comigo não. Era uma vez, meu rapaz. Prisão de Tegel, alameda de árvores negras, as casas balançando, os telhados ameaçando cair na cabeça da gente e eu ainda por cima tenho que ser decente! [...] Dinheiro para cá, dinheiro para ganhar, é de dinheiro que o homem precisa.79

Ando por aí, faço umas poucas coisas, mas trabalhar, não trabalho, deixo que outros trabalhem para mim. [...] tenho um braço só. O outro se foi. Foi esse o pagamento que recebi por ter trabalhado. Por isso não quero saber mais nada de trabalho decente, entende? [...] O seu trabalho decente é escravidão.80

Quando, após um meeting, um velho anarquista lhe diz que para recusar o trabalho “é

preciso primeiro trabalhar”, porque o trabalho, o chão da fábrica por assim dizer, é

condição para a associação, a organização em torno dos meios de produção, a luta de

classes efetiva através “de greve, greve em massa, greve geral”81 – e não era outro, diga-se

de passagem, o argumento marxista82 –, Franz não entende, fica atado à ideologia do self-

made man: “Estou me lixando para todas essas arengas, essas greves [...] O homem está

por sua própria conta. Faço sozinho aquilo de que preciso. Sou provedor de mim mesmo!

Ora essa!”83 Orgulhoso e obstinado, Franz Biberkopf deseja autonomia, não quer nem ouvir

falar da assistência do Estado: “Não quero, não fica bem para um homem livre [...] Sou um

homem livre ou não sou ninguém.”84 Sua concepção da liberdade é tipicamente burguesa:

se imagina livre, dono do próprio nariz, quando em realidade, enquanto indivíduo alienado,

separado da potência social de transformação, das forças produtivas da sociedade, está

78 BA, 245/280: “Bloß nicht arbeiten. Schlag dir das ausm Kopp mitm Arbeiten. Vons Arbeiten kriegst du Schwielen

an die Hände, aber keen Geld. Höchstens noch in Kopf. Vons Arbeiten is noch keen Mensch reich geworden, sag ich dir. Nur vom Schwindeln. Siehste ja.”

79 BA, 253/289: “Er will auf eigene Beide stehen. Was rasch Geld bringt, will er. Arbeiten, Quatsch. […] […] kriegt ne Wut […] manchmal staunt er, wie einer so dämlich sein kann und sich abrackern und andere dicht daneben fahren Auto. Sollte mir passen. Das war einmal, mein Junge. Tegeler Gefängnis, Allee schwarzer Bäume, die Häuser wackeln, die Dächer wollen einem aufn Kopf fallen und ich muß anständig werden! […] Geld her, Geld verdient, Geld braucht der Mensch.”

80 BA, 270-71/309-10: “Ich geh rum, ich tu ein bißchen, aber arbeiten tu ich nicht, ich laß andere für mich arbeiten. […] ich hab bloß einen Arm. Der andere ist ab. Das hab ich dafür bezahlt, daß ich gearbeitet habe. Darum will ich nischt mehr wissen von anständiger Arbeit, verstehste? […] Deine anständige Arbeit ist ja Sklaverei.”

81 BA, 271/311: “So, dann haste aber nicht weiter zugehört. Daß ich von der Arbeitsverweigerung gesprochen habe. Dazu muß einer erst arbeiten. […] Von Streik hab ich geredet, Massenstreik, Generalstreik.”

82 Cf. Karl Marx, Les luttes de classes en France (1848-50), Paris, Éds. Sociales, 1974, p. 81: “O direito ao trabalho é no sentido burguês um contrassenso, um desejo vão, lamentável, mas por trás do direito ao trabalho há o poder sobre o capital, por trás do poder sobre o capital a apropriação dos meios de produção, sua subordinação à classe operária associada, isto é, a supressão do assalariado, do capital e de suas relações recíprocas.”

83 BA, 272/311: “Ich pfeife überhaupt auf das ganze Gemeckere, auf deine Streiks […] Selbst ist der Mann. Ich mache allein, wat ich brauche. Ick bin Selbstversorger! Nanu!”

84 BA, 240-41/275: “Ich will das nicht, das gehört sich nich für einen freien Mann […] Ich bin ein freier Mann oder keiner.”

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subsumido a um poder objetal que foge completamente à sua compreensão, a seu controle,

e que dirige inclusive sua vontade, seus atos85. Em suma, sua postura é contraditória,

embora ele não perceba a contradição: não quer depender de nada nem de ninguém, para o

que, dentro das condições vigentes, depende de arrumar dinheiro, coisa que de resto não

tem como obter com os bicos incertos que vez por outra, e depois do acidente cada vez

menos, consegue encontrar. Razão pela qual as experiências do crime, da prisão, do

alcoolismo, da violência e da loucura estão sempre a assombrá-lo, e sua posição com

relação ao trabalho, por isso mesmo, também não é estática; não se trata de uma

progressiva tomada de consciência; trata-se de uma posição assaz volúvel como de resto o é

a própria personagem.

Num primeiro momento, como vimos, ao sair da prisão procura um emprego

decente, vende entre outras bugingangas pregadores de gravata, revistas de educação

sexual e o jornal do Partido Nacional-Socialista, nada que lhe traga dinheiro ou

reconhecimento, muito pelo contrário: dos inúteis pregadores ninguém quer saber, as

revistas, consideradas imorais, pornográficas, trazem-lhe problemas com Lina, a namorada

polonesa, e o jornal nazi, naturalmente, o põe em conflito com os militantes comunistas.

Após ser passado para trás por um colega de trabalho, Lüders, tio de Lina, e se afogar no

álcool por algum tempo, posto que não querendo, porém forçado a querer, cai novamente

na via do crime e logo perde o braço direito num acidente provocado pelo “amigo”

Reinhold. De volta às ruas, ao frequentar os meetings políticos com Willi, “politiza” seu

discurso, embora de forma enviezada: o trabalho só serve para alimentar os capitalistas

sanguessugas; de trabalhar decentemente ninguém nunca enriqueceu etc. Por fim, não mais

sustentado por Eva e Herbert, mas pela nova namorada, a pequena Mieze, que se prostitui a

um tempo para manter-se independente e cuidar do estropiado amado, sente-se mais e

mais um inútil, deseja fazer algo, ser produtivo, recuperar de alguma maneira a autoestima,

a dignidade perdida: “Tenho que trabalhar, senão as coisas não funcionam para mim. Senão

me acabo.”86 E mais para frente: “Eu também – vou – trabalhar de novo.”87

85 Cf. Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alemã (1845-46), trad. M. Backes, Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 2007, p. 57: “O poder social [soziale Macht], quer dizer, a força de produção multiplicada, que nasce por obra da cooperação dos diferentes indivíduos sob a ação da divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, por não se tratar de uma cooperação voluntária mas sim espontânea, não como um poder próprio, associado, mas sim como um poder [Gewalt] alheio, situado à margem deles, que não sabem de onde ele procede nem para onde ele se dirige, um poder que eles não podem mais dominar, portanto, mas que, pelo contrário, percorre uma série de fases e etapas do desenvolvimento peculiar e independente da vontade e dos atos dos homens, e que inclusive dirige esta vontade e estes atos.”

86 BA, 320/367: “Ich muß arbeiten, sonst geht es nicht mit mir. Sonst geh ich kaputt.” 87 BA, 363/417: “Ick – geh – ooch wieder arbeeten.”

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Um detalhe da narrativa pode esclarecer um pouco mais essa questão, em tudo

central, do trabalho. Por meio de colagens, reproduz-se em diversas partes do livro, sem

julgamento, no corpo do texto, o conteúdo de jornais da época, de todas as cores:

Morgenpost, Grüne Post, Berliner Zeitung, Pfaffenspiegel, Schwarze Fahne, Atheist,

Arbeitslosen, Berliner Arbeiter-Zeitung, Neue Welt etc. Particularmente no livro 2, o

contraste ideológico é bastante gritante: em poucas páginas tem-se linhas do jornal nazi Die

Völkischer Beobachter (“Federalismo verdadeiro é antissemitismo, luta contra o judaísmo

e, igualmente, luta pela autonomia da Baviera”), do jornal comunista Die Rote Fahne

(“Krupp permite que seus funcionários aposentados morram de fome, um milhão e meio de

desempregados, crescimento de 226 mil em 15 dias”) e do jornal evangélico Der

Friedensbote (“Ó peregrino silencioso pelo mundo, leva contigo Jesus Cristo...”). Biberkopf

simplesmente não dá a mínima para o que é propagado em cada um destes veículos: vende

o Beobachter apesar de não ter “nada contra os judeus”88, que “são gente decente”89; aos

comunistas com quem discute no bar diz “não é da minha conta”90, “que me importa tudo

isso”91; e ao ler no bonde com a namorada o poema religioso do jornal luterano pensa na

sede que sente, pois “dois copos é muito pouco”92. Não é difícil perceber que o que

condiciona a indiferença com relação ao conteúdo de tal e tal discurso ideológico é a

indiferença com relação aos conteúdos do trabalho: “Se tiver que ser [...] se isso dá para

alimentar a gente”93, pouco importa o emprego. Na cabeça de Biberkopf a coisa é simples,

como fica manifesto em sua fala aos militantes comunistas: “E é preciso ter paz para que a

gente possa trabalhar e viver. Operários de fábrica e comerciantes e todos, para que haja

ordem, do contrário, não se pode trabalhar de verdade. E de que vocês vão viver, seus

fanfarrões? Vocês se embriagam com esse palavreado [marxista-leninista]!”94 Por ser “a

favor da ordem”95, simpatiza com os fascistas, que de resto não propunham uma mera

ideologia, mas antes um arcaísmo, sem ter que aderir ao que defendem: a revolução alemã

não logrou, “não conseguiram nada”, “não vai dar em nada essas coisas de vocês”, mas

88 BA, 82/89: “Er hat nichts gegen die Juden” 89 BA, 63/67: “es sind anständige Leute” 90 BA, 95/105: “geht mich nicht an” 91 BA, 96/106: “Was geht mich das alles an” 92 BA, 97/107: “zwei Glas war zu wenig” 93 BA, 62/66: “Wenns sein muß […] wenns seinen Mann ernährt.” 94 BA, 94/103: “Und es muß Ruhe werden, damit man arbeiten und leben kann. Fabrikarbeiter und Händler und

alle, und damit Ordnung ist, sonst kann man eben nicht arbeiten. Und wovon wollt ihr denn leben, ihr Großschnauzen? Ihr macht euch ja mit Redensarten besoffen!”

95 BA, 82/89: “er ist für die Ordnung”

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quem sabe com “estes daqui da faixa [com a suástica]” não dê “alguma coisa”96. No fundo

mesmo, se diz indiferente a todas “essas bobagens”97: “se gostam do jornal [nazi] não faz

diferença para mim, basta que o comprem”98. Entrementes, ao ficar novamente

desempregado, embebeda-se, prometeu levar uma vida decente, e aí brada orgulhoso:

Eu não vou para o céu. Por quê? [...] para mim ninguém tem de dizer nada. Mas se existem criminosos, sou aquele que pode falar a respeito. Honra seja feita. Juramos ao Karl Liebknecht, estendemos a mão a Rosa Luxemburgo. Vou para o paraíso quando morrer, e eles vão se curvar diante de mim e dizer: esse é Franz Biberkopf, honra seja feita, esvoaça bem alto a bandeira preta-branca-vermelha, mas ele guardou isso para si, não se tornou um criminoso como outros homens que querem ser alemães e enganam seus conterrâneos.99

Tais exemplos demonstram algo notado por Adorno nos anos 1940, referindo-se não

por acaso ao romance de Döblin, a saber, que uma característica daquela geração seria a

capacidade “de exercer qualquer trabalho, porque o processo de trabalho não os liga a

nenhum em particular”, o que “lembra a triste ductibilidade do soldado retornando para

casa de uma guerra que não lhe dizia respeito, ou do trabalhador ocasional, que acaba por

entrar em ligas e organizações paramilitares”100. Com a industrialização, o ajuste do

indivíduo às demandas da sociedade, por irracionais que fossem ou sejam, tornou-se mais

deliberado e total que em épocas passadas, justamente porque deve ser o modelo para todo

e qualquer comportamento subjetivo. Como sublinha Horkheimer: “o sujeito deve, por

assim dizer, dedicar todas as suas energias para estar „dentro e a partir do movimento das

coisas‟, nos termos da definição pragmatista [de Dewey].”101 O segredo do funcionamento

da ideologia no capitalismo, seja tal segredo dissimulado, como outrora, ou confesso de

maneira cínica, como agora, não é outro senão a idiotia daqueles que, não acreditando

realmente em nada, obedecem a ordens e executam-nas sem questionar, sendo facilmente

mobilizados sem que conheçam as razões ou os propósitos102.

96 BA, 87/94-95: “Sie habens nicht zustande gebracht […] kommt nichts raus bei euren Sachen […] Weiß nicht, ob

bei denen was rauskommt mit die Binde hier.” 97 Ibid.: “für die Zicken” 98 BA, 170/191: “Warum nicht, ob sie ihn mögen, ist mir egal, wenn sie ihn bloß abkaufen.” 99 BA, 129/143: “Ich komm nicht in den Himmel. Warum? […] mir hat keiner was zu sagen. Wenn es aber

Verbrecher gibt, so bin ich es, der darüber reden kann. In Ehren treu. Dem Karl Liebknecht haben wirs geschworen, der Rosa Luxemburg reichen wir die Hand. Ich werde ins Paradies gehen, wenn ich tot bin, und sie werden sich vor mir verbeugen und sagen: das ist Franz Biberkopf, in Ehren treu, ein deutscher Mann, ein Gelegendeitsarbeiter, in Ehren treu, hoch weht die Flagge schwarz-weiß-rot, aber er hat es für sich behalten, er ist kein Verbrecher geworden wie andere Männer, die Deutsche sein wollen und ihre Mitbürger betrügen.”

100 Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 163. 101 Max Horkheimer, Eclipse of Reason (1947), New York, Continuum, 1974, p. 96. 102 Cf. Slavoj Žižek, The Individual Remainder. On Schelling and Related Matters (1996), London/ New York,

Verso, 2007, pp. 200-201. Para Žižek, isso explicaria o “paradoxo” de os intelectuais cínico-esclarecidos, que se gabam de não acreditar numa qualquer causa social, serem em geral, nos dias de hoje, os primeiros a deixarem-se seduzir por fanatismos e fundamentalismos de toda ordem.

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***

Tradicionalmente, o romance da desilusão expõe a falsidade da concepção burguesa

da vida, do homem, da sociedade e da arte, que “desaba miseravelmente ao chocar-se com a

brutal prepotência da vida capitalista”103. Não que seja falsa em si mesma, a ideologia

burguesa, mas antes, como se sabe, é a pretenção de estar realizada que se mostra ilusória:

ao defrontarem-se com a crua realidade da economia capitalista, “os mais altos produtos

ideológicos da evolução revolucionária burguesa se reduzem a meras ilusões”104. Enquanto

em Balzac o processo de formação do capitalismo e sua dinâmica eram expostos no terreno

do espírito, nos autores que sucedem, em Flaubert mormente, os valores burgueses,

humanistas, já se encontram incorporados “na relação capitalista de mercadoria para

mercadoria”105. Com o colapso progressivo dos referenciais burgueses, as coordenadas da

experiência (espaço e tempo, sujeito e objeto, identidade e diferença) tendem a se

embaralhar. Este estado de desorientação subjetiva ganha uma amplitude extrema nas

vésperas da Primeira Guerra: nas obras de Heym, Trakl, Rubiner e Meidner, o indivíduo

desindividualizado, ou na impossibilidade de se individualizar, de discernir as coisas e os

outros em sua diferença específica, encerrado monadologicamente sobre si mesmo no seio

caótico e mecanizado do universo industrial e urbano, aparece como uma concentração

alucinada e potencialmente explosiva de forças contraditórias. Não à toa, o “outcast e o

marginal tornam-se personagem central do drama expressionista – figura que pela sua

própria condição social está em situação monológica”106. Pressente-se, de forma

angustiante, “nas páginas sombrias de Kafka e nas telas de Kokoschka, a deformação

absurda da pessoa humana que iria atingir a Europa com o triunfo iminente do nazismo”107.

O vento apocalíptico que soprou durante a Primeira Guerra fazia-se ainda ouvir após o fim

desta, ao mesmo tempo em que a incrível energia utópica liberada pela eclosão da

Revolução Russa de 1917 apontava no horizonte o nascimento de um outro mundo. Nas

palavras de Maiakóvski:

[...] a Revolução lançou à rua a fala rude de milhões, a gíria dos arrabaldes se derramou pelas avenidas centrais; o idiomazinho enfraquecido dos intelectuais, com as suas palavras

103 Georg Lukács, “Balzac: Les Illusions perdues” (1935), trad. L. F. Cardoso, in Ensaios sobre literatura, Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 101. 104 Ibid., p. 102. 105 Ibid., p. 121. 106 Anatol Rosenfeld, O teatro épico (1965), São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 104. 107 Alfredo Bosi, História concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix, 1994, p. 496.

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esterelizadas: “ideal”, “princípios da justiça”, “princípio divino”, “a imagem transcendental de Cristo e do Anticristo”, tôdas essas falas que se proferiam num murmúrio nos restaurantes, foram varridas. É o nôvo cataclismo da língua. Como torná-lo poético? As velhas regras, com as „rosas formosas‟ e os versos alexandrinos, não servem mais. Como introduzir a linguagem coloquial na poesia e como livrar a poesia de tais falas?108

O poeta russo expõe aí, em poucas palavras, um movimento dialético conhecido: as

transformações no processo social como que exigem do artista uma nova organização

formal da obra, assim como as forças produtivas emancipadas na obra de qualidade

prefiguram um estado não alienado, apontam na direção da emancipação social, emperrada

pelas relações sociais de produção capitalistas. Noutras palavras, a carnificina militar

imperialista de 1914-18, marco extremo da crise da cultura e da civilização burguesas, assim

como as inovações técnicas (iluminação elétrica, cinema, automóvel), uma nova concepção

científico-filosófica do universo (teoria da relatividade geral), uma nova explicação

globalizante do homem (psicanálise), uma nova teoria geral da linguagem (linguística

saussuriana), a concepção de uma nova humanidade criada pela revolução soviética, as

transformações aceleradas da vida quotidiana urbana contemporânea e a crescente

deteriorização das condições da formação do sujeito autônomo do liberalismo/romantismo

– tudo isso reclamava uma revolução das formas artísticas tradicionais, burguesas, do

mesmo modo que, inversamente, de forma dialética, também as tendências artísticas de

vanguarda (cubismo, expressionismo, dadaísmo, Bauhaus, dodecafonismo...), combinando

o experimentalismo estético a um elevado grau de abstração antirrealista, continham em

germe um devir que transcendia a mera aparência quotidiana das coisas.

Para muitos artistas, com efeito, “desilusão” naquele contexto passou a não ter outro

sentido senão o de desvendar, por detrás da aparência, ou antes, na própria aparência, a

essência monstruosa (Unwesen) da sociedade capitalista, e despertar ao expô-la o

sentimento da necessidade de sua superação histórica pelo proletariado. Em suma:

“desilusão” equivalia a “consciência de classe”. Ao contrário da burguesia, que graças ao

dinheiro sempre pôde bem ou mal se preservar, se proteger da quotidianidade, o

proletariado, com muito mais intensidade, encontra-se mergulhado no turbilhão da vida

quotidiana, por isso mesmo só ele poderia negá-la praticamente, ao negar a si mesmo

enquanto classe antagônica do capital109. O artista não tinha como fazer vista grossa para a

nova situação, voltar a pintar como Tiziano ou Rembrandt, compor como Haydn ou Mozart,

108 Vladimir Maiakóvski, “Como fazer versos?” (1926), trad. Haroldo de Campos, in Boris Schnaiderman, A poética

de Maiakóvski através de sua prosa, São Paulo, Perspectiva, 1971, pp. 167-219, aqui pp. 170-71. 109 Cf. Henri Lefebvre, La vie quotidienne dans le monde moderne, Paris, Gallimard, 1968, p. 79.

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escrever como Stendhal ou Dostoiévski. Como explica Brecht, polemizando com o autor de

“Narrar ou descrever?”110:

O debate sobre o realismo bloqueará a produção se continuar assim. [...] o fato de que o proletariado desumanizado põe toda a sua humanidade no protesto e encabeça a luta contra a desumanização da produção é uma coisa que o professor [Lukács] não vê. [...] O escritor vê algo novo quando observa o proletariado trabalhando em termos abstratos, e devemos ser claros a esse respeito. A forma narrativa de Balzac, Tolstói etc. foi a pique nos “desalmados” complexos factuais, minas de carvão, dinheiro etc. Homilias de professores não a farão flutuar de novo.111

O que estava em jogo então era encontrar, ou criar, uma linguagem capaz de abarcar em seu

conjunto a vida material prática e a Revolução, ou seja, o mundo da mercadoria, o

conhecimento científico deste mundo e a ação destinada a controlá-lo e superá-lo, o que

implicava de certo modo uma união teórico-prática entre o artista e o operário, o cientista e

o revolucionário. Bons exemplos da tendência são a Proletkult de Bogdanov, ou inspirada

diretamente nela, a Liga para a cultura proletária (Bund für proletarische Kultur), criada

em Berlim na primavera de 1919, ou ainda, quase uma década depois, próxima do partido

comunista, a Liga dos escritores proletários revolucionários (Bund proletarisch-

revolutionärer Schriftsteller), fundada em 1928.

De maneira geral, é esse o contexto político e cultural ao qual pertence o Berlin

Alexanderplatz. Se Thomas Mann confessou ter ficado admirado com o bem-sucedido do

grande experimento de Döblin, o de ter elevado a realidade proletária contemporânea à

esfera épica112, Brecht, por sua vez, parece não ter se dado de todo por satisfeito com a

representação da classe operária no romance, ou antes, com a ausência desta113. Na revista

Linkskurve, foram publicados ataques veementes de críticos comunistas espumando com o

110 Cf. Georg Lukács, “Narrar ou descrever? Contribuição para uma discussão sôbre o naturalismo e o formalismo”

(1936), trad. G. V. Konder, in Ensaios sôbre literatura, op. cit., pp. 47-99. 111 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I, op. cit., entrada de 18.8.38, pp. 15-17. 112 Cf. Thomas Mann, “Vorwort zu dem Katalog Utländska Böcker 1929”, apud Olivier Bernhardt, Alfred Döblin und

Thomas Mann: eine wechselvolle literarische Beziehung, Würzburg, Königshausen & Neumann, 2007, p. 85: “Der Raum verbietet mir, auf das nach seinen künstlerischen Mitteln aufregend interessante Werk, das ich vorhin beim Namen nannte, näher einzugehen, aber ich bekenne, daß ich in Bewunderung stehe vor diesen großartig gelungenen Versuch, die proletarische Wirklichkeit unserer Zeit in die Sphäre des Epischen zu erheben.”

113 Segundo testemunho de Gabriele Sander, Döblin. Berlin Alexanderplatz, Stuttgart, Reclam, 1998, p. 115, apud Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrópole, op. cit., p. 12: “Wir beide, Brecht und ich, hatten den Roman mehrfach gelesen. Vieles gefiel uns daran; aber wir waren in einem Punkt nicht einverstanden. In Döblins Buch nahm das Lumpenproletariat den entscheindenden Platz ein, Huren und ihre Zuhälter. […] Döblin hatte die Arbeiter vergessen, und das schien uns deshalb so wesentlich, weil der deutsche Roman und vor allem auch Thomas Mann immer die industriellen Arbeiter vergessen hatte.”

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fato de Franz Biberkopf não ser um proletário com consciência de classe114. Se prostitutas,

cáftens, trambiqueiros e assassinos de fato aparecem no primeiro plano, não é verdade que

os trabalhadores, trabalhadores sindicalizados, não figurem na trama. Em pelo menos três

momentos significativos eles têm voz no capítulo. Primeiramente, na confrontação, que tem

lugar em grande parte no bar de Henschke, entre Franz, então vendedor do jornal nazi, e

alguns militantes comunistas, dentre os quais um antigo camarada seu, Georg Dreske, ex-

spartakista, agora um amolador desempregado. Em seguida, como já visto, nos meetings

anarquistas e comunistas, que frequenta com Willi, durante um tempo seu principal

parceiro de bebedeira. Por fim, na cena final, à qual voltaremos adiante.

Obviamente, não é na e pela fala do anarquista que o livro é “revolucionário”, como

tampouco é ponto alto de uma peça como Santa Joana dos Matadouros (1931), de Brecht, a

fala do dirigente comunista, cujas palavras não “dispõem de vibração à altura da virada

superadora e inaugural que parecem prometer”115. À maneira das melhores obras do

modernismo, a modernidade não está tanto no que é dito, mas no como é dito. Por tudo que

ele abrange, apresenta e expõe, o livro de Döblin em seu conjunto, à maneira de um

Ulysses, ou pouco depois, de um Voyage au bout de la nuit, voluntariamente ou não, sugere

ou aponta para formas de vida mais complexas e universais que as burguesas, claramente

decadentes, lesadas, mutiladoras. Nas palavras de Benjamin: “raramente a serenidade do

leitor fora perturbada por ondas tão altas de acontecimentos e reflexões, raramente ele fora

assim molhado, até os ossos, pela espuma da linguagem verdadeiramente falada”116. Ao

lado de tal riqueza, desnecessário lembrar, as promessas de integração à ordem vigente,

marcada pelo selo do empobrecimento, da reificação e da mutilação de toda expressão

individual, soam como piadas de mal gosto, pois, nas palavras de Debord:

Nenhuma melhoria quantitativa de sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica, representam um remédio durável à sua insatisfação, pois o proletariado não pode se reconhecer verdadeiramente numa injustiça particular que teria sofrido nem, por conseguinte, na reparação de uma injustiça particular, tampouco de uma série de injustiças, mas somente na injustiça absoluta de ser rejeitado à margem da vida.117

114 Por outro lado, talvez em resposta às críticas negativas da esquerda, Die Ehe (O matrimônio), peça escrita em

seguida a Berlin Alexanderplatz, após muitas discussões com Brecht e Piscator no inverno de 1929-30, e estreada no fim de 1930, aos olhos de muita gente, pouco se distinguia de uma peça de agit-prop comunista, tendo encontrado hostilidade em Munique, em Leipzig e em Berlin, por criticar a família burguesa e pregar a legalização do aborto. Cf. Peter Jelavich, Berlin Alexanderplatz. Radio, Film, and the Death of Weimar Culture, Berkeley/Los Angeles, University of California, 2009, p. 31.

115 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, op. cit., p. 134. 116 Walter Benjamin, “Krisis des Romans”, op. cit., pp. 233, trad. cit., p. 56. 117 Guy Debord, La société du spectacle (1967), in Œuvres, Paris, Gallimard, 2006, § 114, p. 816.

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À luz do que precede, a hipótese que defendemos é a seguinte: a passagem de Franz

Biberkopf a uma postura mais ativa no final do livro, o fato de o entrecho fechar com ele a

marchar, não mais solitário entre solitários, mas solidário entre solidários, é condizente

com e fiel à riqueza possível sugerida no nível da forma.

***

Se no curso de suas desventuras o herói döbliniano teve de ser destruído, “queimado

até o fundo da alma”118, a razão reside, esta era a convicção do Döblin logo após a derrocada

da revolução alemã, no fato de uma nova vida só poder florecer, parodiando Schiller, das

ruínas da anterior119, daquela “vida subjuntiva”, para falar como Kierkegaard, vida

hipotética, que poderia ser ou ter sido diferente se tal e tal oportunidade tivesse se

apresentado, se tal e tal medida tivesse sido tomada... Franz Biberkopf, um pouco à

maneira do esteta kierkegaardiano, passou boa parte da vida a se proteger e a se defender

dos outros e da sociedade mediante aquilo que o filósofo dinamarquês chamou de “má

ironia”120, que é o que lhe permitia manter certa distância, se defender do curso

desenfreado do mundo, por isso atinha-se a uma atitude essencialmente passiva, de não

enfrentamento. Segundo Kierkegaard, a passagem para a vida ética ocorreria no momento

em que o esteta volta para si a ironia a fim de medir a distância que separa o que ele se

imagina ser daquilo que ele efetivamente é. O resultado seria o abalo das certezas prévias, a

reapropriação das próprias escolhas, a superação do tédio e da postura niilista. Embora,

obviamente, Biberkopf nada tenha de um intelectual romântico entediado, ele partilha com

este a “arte” de não escolher, de recusar ou postergar a ação, a decisão, a confrontação com

a realidade, com os outros, razão pela qual, entre outras, precisa de dinheiro, e rápido,

porque é o dinheiro que torna possível o conforto da passividade, da não-intervenção121.

Porém, ao contrário do “sujeito ético” kierkegaardiano, para o qual escolher o que lhe

118 BA, 380/436: “Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden!” 119 Cf. Alfred Döblin, “Ruinen, neues Leben” (08/09/1919), in Kleine Schriften, Bd. 1, Olten/Freiburg, Walter, 1985,

pp. 239-42, apud Wulf Köpke, “Döblins Theaterprovokationen”, in International Alfred-Döblin-Kolloquium Mainz 2005, Bern, Peter Lang, 2007, pp. 65-80, aqui p. 80.

120 Søren Kierkegaard, Le concept d‟ironie constamment rapporté à Socrate (1841), Œuvres complètes, vol. 2, Paris, Orante, 1975, p. 240.

121 Mais uma vez, caberia aqui a comparação com Frédéric Moreau. Leia-se, por exemplo, o que escreve Franco Moretti, Signos e estilos da modernidade. Ensaios sobre a sociologia das formas literárias (1988), trad. Maria Beatriz de Medina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 286: “Essa atitude estética perante a vida e a história é a chave de outra novidade da obra de Flaubert. Ali o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual se satisfaz o desejo, como Marx ressaltou acontecer com o Mefisto de Goethe. Em Educação sentimental o dinheiro é desejável porque permite não a satisfação, mas o seu adiamento. Agora que é rico, Frédéric pode finalmente entregar-se aos seus sonhos como sonhos; por saber que pode realizá-los assim que desejar, não há necessidade de fazê-lo agora [...] A vida de Frédéric é, na verdade, um monumento à indecisão irônica; tanto que consegue permanecer indefinido até naqueles anos cruciais, entre 1848 e 1851, em que todos tinham que tomar partido.”

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acontece é a atitude ética por excelência, em Biberkopf tal escolha não se confunde com o

desejo das coisas como elas são, com o contentamento com o mundo tal como ele é.

Kierkegaard já estava descrevendo, à maneira estilizada dos filósofos, a necessidade de um

novo tipo de Bildung, não mais exatamente aquele definido por Goethe e Hegel. Nas

palavras de Franco Moretti:

Crescer não significa mais aprender a reconhecer no mundo a inteligência sem rival do espírito hegeliano, mas aprender a temer o poder do mundo. E é realmente este o tipo de Bildung (se é legítimo chamá-la assim) de que um mundo baseado em relações de poder e dedicado a elas, e não a fins morais ou modelos racionais, precisa para funcionar.122

Como veremos, o herói de Döblin, por sua vez, acaba escolhendo, mas sua escolha, a única

autêntica, concernirá à transformação da realidade: ao contrário do esteta, de um Frédéric

Moreau, sua recusa deixa de ser abstrata e niilista, e ao contrário do sujeito ético, tal como o

concebe Kierkegaard, ele já não se conforma, não mais aceita resignado a necessidade de as

coisas serem como são. Por isso também, o “sacrifício de si” no final do livro, que não é

sacrifício de sua existência presente, mas do homem que fora até ali, pouco tem a ver com

aquele de Isaac por Abraão, ou com o do herói trágico grego de modo geral. Franz Biberkopf

não mais treme e teme diante do poder do mundo como outrora, está novamente de pé,

“enfim endireitado”123. A mensagem, supostamente ancestral, buscada por Döblin nos

mitos bíblicos e helênicos, salvo mal-entendido, não é a do temor e tremor, é outra: como

Adão e Eva, sua personagem perde a inocência, preço pago pelo verdadeiro conhecimento

das coisas; como Jó, se dá conta da distância, ou inadequação, entre seu desejo de pôr um

fim à onda de azares que o acomete e sua própria capacidade, enquanto indivíduo isolado

das forças sociais, de transformar efetivamente a sua realidade; como Abraão/Isaac, acaba

por aceitar o “sacrifício” (a amputação do braço, a morte de Mieze, a perda dos “amigos”),

admite sua parte de culpa, de responsabilidade, nas coisas que sucederam; como com

Orestes, por fim, mais do que o fato de a sua parte de responsabilidade ser mitigada por

circunstâncias atenuantes, de ser considerado “inocente” e “livre” para seguir com sua vida,

através da ressurreição do herói “dentro do espírito da liberdade” é superado o “pathos da

experiência da sedução demoníaca e da cegueira humana, que irremediavelmente conduz

ao abismo”124.

122 Ibid., p. 209. 123 BA, 11/9: “doch zurechtgebogen” 124 Werner Jaeger, Paidéia. A formação do homem grego (1936), trad. Artur M. Parreira, São Paulo, Matins Fontes,

1995, pp. 286 e 304.

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Que o crime de um herói trágico, que não sucumbe senão perante a potência superior

do destino, tenha ainda que ser punido, a razão, segundo Schelling, reside no fato de tal

punição implicar nada menos que “um reconhecimento da liberdade humana, uma honra

que se prestava à liberdade”125. Quando Hegel sustenta que os “heróis trágicos são a um

tempo culpados e inocentes”126, o conceito de culpa presente na afirmação é dialético, ou

seja, ao contrário do que ocorre no drama ou no grande romance burguês, a culpabilidade

não é pautada pelo conhecimento que se tem da ação e de suas consequências, nem pela

vontade moral consciente do herói. De modo que, quando Édipo ou Antígona assumem o

destino como resultado de seus próprios atos, eles negam por aí mesmo o destino imposto

do alto, como necessidade cega, ou por outra, repõem como seus os pressupostos de suas

ações. Trata-se de duas noções distintas de destino, a segunda tendo a ver com a posição

dos pressupostos do agir (no drama burguês, ao contrário, supõe-se que os heróis tenham

desde o início pelo menos alguma consciência dos pressupostos e das consequências

daquilo que fazem, o que implica já terem assimilado as regras do jogo, uma certa

adaptação prévia ao curso do mundo, que é o que lhes permite agir de maneira deliberada e

decisiva e assim responder plenamente por aquilo que fazem, dizem ou decidem). É óbvio

que Franz Biberkopf não é um herói trágico (que se erige livremente contra a potência

superior do mundo objetivo e que tendo sua liberdade reconhecida pela punição após

sucumbir, após ser derrotado pelo destino, também deixa de ser livre), tampouco é um

herói burguês (consciente das forças em jogo, por isso mesmo livre e responsável por seus

atos, dono do próprio destido), mas no final de sua história percebe-se algo daquela noção

(salvo engano, mais hegeliana que propriamente grega) do destino como não sendo, ex

post, uma fatalidade, algo imutável, num trecho, poder-se-ia dizer, bem brechteano:

O ar pode lançar granizo e chuva, não há como se defender contra isso, mas contra muitas outras coisas, é possível. Então não gritarei mais como antes: o destino, o destino. Não é preciso reverenciar isso como sendo o destino, é preciso olhar, tocar e destruir.127

Contra o mau tempo, Biberkopf percebe que nada pode fazer a não ser abrir um guarda-

chuva, mas contra a condição desumana de vida, isto é, o trabalho, à qual se vê sacrificado

desde sempre (estando empregado ou não), contra o fato de não ter a menor probabilidade

125 F. W. J. Schelling, Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo (1795), in Obras escolhidas, sel. e trad. Rubens

Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1980, décima carta, p. 34. 126 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik (1820-29), Bd. III, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1990, p. 545: “Die

tragischen Heroen sind ebenso schuldig als unschuldig.” 127 BA, 454/520-21: “Die Luft kann hegeln und regnen, dagegen kann man sich nicht wehren, aber gegen vieles

andere kann man sich wehren. Da werde ich nicht mehr schrein wie früher: das Schicksal, das Schicksal. Das muß man nicht als Schicksal verehren, man muß es ansehen, anfassen und zerstören.”

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de alcançar, dentro da classe na qual querendo ou não se encontra subsumido, condições

que o ponham numa situação emancipada128, contra a situação de classe, em suma, toma

consciência que é não somente possível, mas preciso lutar. Nasce nele o desejo de ruptura

com o que está posto. Isoladamente, porém, sabe que não tem o menor controle sobre as

forças, instituições e relações sociais objetivadas, sobre as condições de existência e de

produção da sociedade vigente, e que o destino é mais forte que ele, e que não poderá

mudá-lo, mas: “Se somos dois, é bem mais difícil ser mais forte do que eu. Se somos dez, é

ainda mais difícil. E se somos mil e um milhão, então é realmente muito difícil.”129 No fim,

então, acaba dando razão ao velho anarquista. Ao contrário do herói trágico, que segundo

Schelling é livre na luta individual contra o fatum e acaba não-livre após ter sido

reconhecida sua liberdade, Biberkopf percebe, após ser destruído pelas forças sociais

objetivadas, que só alcançará a liberdade pela e na luta coletiva.

A lição que aprende o anti-herói no final é condizente com a atitude que a forma da

narrativa de Döblin requer do leitor desde as primeiras páginas do livro; a “mensagem”

final ganha força pois é confirmada no nível da forma: ficar desperto, atento a tudo o que

acontece, tomar cuidado para não se deixar atropelar pelo curso das coisas, não se deixar

embasbacar, usar a razão. Assim como é quase impossível ao leitor se identificar com

qualquer uma das personagens – ainda mais quando se trata do protagonista, assassino,

estuprador, ladrão e alcoólatra, embora seja ao mesmo tempo difícil permanecer

completamente indiferente à sua sorte –, também ele, Biberkopf, aprendeu que não se deve

deixar fascinar, porque é seu fascínio pela personalidade de Reinhold que, indiretamente,

leva à morte de Mieze, do mesmo modo que, no plano histórico-político, o fascínio pela

personalidade autoritária de Hitler, por um lado, e a indiferença política (inclusive da parte

dos bem-pensantes), por outro, deixariam livre o caminho para sua ascenção democrática

ao poder em 1933. Em suma, a atitude fascinada, embasbacada, irrefletida, ou então a

indiferente, no limite cínica, ambas de toda maneira essencialmente passivas, favorecem a

exploração e a manipulação das pessoas: “Por isso, calculo tudo primeiro e, se chegar a hora

e for conveniente para mim, vou agir de acordo. Ao homem foi concedida a razão, ao invés

disso, os bois formam uma agremiação.”130

128 Cf. Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alemã, op. cit., pp. 104-6. 129 BA, 453/519-20: “Was ist denn das Schicksal? Eins ist stärker als ich. Wenn wir zwei sind, ist es schon schwerer,

stärker zu sein als ich. Wenn wir zehn sind, noch schwerer. Und wenn wir tausend sind und eine Million, dann ist es ganz schwer.”

130 BA, 454/520: “Darum rechne ich erst alles nach, und wenn es so weit ist und mir paßt, werde ich mich danach richten. Dem Mensch ist gegeben die Vernunft, die Ochsen bilden statt dessen eine Zunft.”

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Devemos assim, diante disso, descartar a interpretação, bastante corrente, que

sustenta haver no final do livro uma contradição performativa, vale dizer, entre o pregar o

uso da razão e o aderir cegamente a um movimento de massa (note-se que já é um avanço,

porque há críticos, e não são poucos, que não chegam nem a enxergar o fato, bastante

óbvio, que Biberkopf passa do “eu” ao “nós” e termina marchando junto aos manifestantes,

com os tambores a rufar atrás dele). Há também os que sustentam que estariam as colunas

a marchar para um novo abatedouro, uma nova guerra, e que Döblin, visionário, teria

prefigurado os acontecimentos por vir, os nazistas no poder etc. Na mesma linha, tomam o

rufo dos tambores, a onomatopeia “rataplã, rataplã”, como índice do nível de insconsciência

da massa alienada, como evidência de que Franz estaria ou sendo conduzido em meio a

uma multidão de autômatos iguais a ele, ou, ao contrário, olhando para ela com indiferença,

senão com desprezo. Mais uma vez, faz-se necessário pôr abaixo tais leituras, verdadeiros

tiros à queima-roupa, que ignoram completamente o contexto no qual foi escrita e no qual

se passa a história. Até porque, nunca é demais lembrar, dependendo do contexto, é

preferível “grito em lugar de cantilena, rufar de tambor em lugar de nina-nana”131.

***

Voltemos pois ao fecho do livro. É significativo que Franz não termine no bar de

Henschke, com a cara cheia, lembrando de coisas do passado e exclamando: “c‟est là ce que

nous avons eu de meilleur!”132 Não. Tirando alguns altos momentos – e Franz os nomeia,

lembra-se com orgulho de ter lutado ao lado dos spartakistas, e parece ter experimentado,

durante um breve período, uma autêntica felicidade ao lado de Mieze –, sua vida em

realidade não passou de uma sucessão de desgraças e mal-entendidos: guerra, crime,

prisão, alcoolismo, mutilação, tratamento de choque... E agora, depois de tudo, o que se

tornou? Não passa de um estropiado a exercer funções simples, repetitivas, alienadas.

Arrumou um trabalho, por certo, mas por quanto tempo? Então não há saída? Por si só,

nada indica que se libertará do círculo vicioso: por ora é assistente de porteiro, mas se

perder o emprego, não mergulhará no álcool, não recairá na vida de antes, no submundo do

crime? Se o fizer, não acabará, muito provavelmente, fazendo novas passagens pelo cárcere,

não enlouquecerá, terminando de novo no sanatório? O velho anarquista tinha razão: “Pois

então”, dizia ele a um Franz irônico e cínico, “tente agir sozinho [...] sozinho não se faz

131 Vladímir Maiakóvski, “Como fazer versos?”, op. cit., p. 171. 132 Gustave Flaubert, L‟Éducation sentimentale, op. cit., vol. 2, p. 274.

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nada. Precisamos de organização de luta.”133 E completava, como que prevendo o que viria a

acontecer com aquele que, sem parar de rir, dizia-se autossuficiente: “Você é tapado. Você

ainda vai quebrar a cara. Não conhece a coisa mais importante para o proletariado:

solidariedade. Você não sabe o que é isso.”134

Acontece que no final, no epílogo formado pelas três últimas páginas, a coisa muda

de figura. As interpretações do famoso fecho são das mais variadas e, em geral, bastante

estéreis. Além das já citadas, vejamos mais algumas: após o renascimento, Biberkopf volta

mudado e luta para se manter fiel a si mesmo contra a influência do coletivo135; as

trompetas e os tambores dos manifestantes são claramente o que o novo Biberkopf rejeita,

o que não quer mais, nunca mais marchar cegamente para a guerra136; ele evita as colunas

que marcham na rua, foge delas, pois aprendeu que o poder mundano é perecível, devendo

por isso ser examinado com a devida calma137; com este apêndice supérfluo e desnecessário,

Döblin faz seu herói saltar de vez para fora da esfera pública138; de toda evidência, Franz se

torna um homem pio e temeroso de Deus, um verdadeiro militante cristão139. Ainda pior

que leituras desse cunho são as que aderem ao relativismo pós-moderno, com sua pregação

da infinidade de leituras e interpretações possíveis, todas válidas, visto não haverem

critérios objetivos nos permitindo determinar que uma leitura seja mais ou menos

verdadeira que outras. De fato, não é incomum nos dias de hoje a postura pseudocrítica que

estima que o final do livro deva permanecer para todo o sempre “em aberto”, projetando

desse modo sobre a personagem de Döblin a própria incapacidade de tomar partido no que

quer que seja: Franz Biberkopf ficou mais sábio, mas hesitaria ainda quanto a se engajar

nas lutas do tempo, até porque não saberia por onde começar, ou como fazer140. Contra tal

133 BA, 272/311: “Na, denn versuchs man alleene. […] alleene kannste nischt machen. Wir brauchen Kampf-

organisation.” 134 BA, 272/311-12: “Du bist vernagelt. Da wirste dir den Kopp einrennen. Du kennst nicht die Hauptsache beim

Proletariat: Solidarität. Det kennste nicht.” 135 Cf. Walter Muschg, “Nachwort des Herausgebers”, in Alfred Döblin, Pardon wird nicht gegeben, Olten, Walter,

1960, pp. 371-84; Albrecht Schöne, “Döblin: Berlin Alexanderplatz”, in Benno von Wiese (Hrsg.), Der deutsche Roman. Vom Barock bis zur Gegenwart, Bd. 2, Düsseldorf, Bagel, 1963, pp. 291-325; James H. Reid, “Berlin Alexanderplatz: A Political Novel”, in German Life and Letters, n° 21 (1968), pp. 214-23.

136 Cf. Volker Klotz, Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin, München, Hanser, 1969.

137 Cf. Hans-Peter Bayerdörfer, “Der Wissende und die Gewalt: Alfred Döblins Theorie des epischen Werkes und der Schluß von Berlin Alexanderplatz” (1970), in Matthias Prangel (Hrsg.), Materialen zu Alfred Döblin ‚Berlin Alexanderplatz‟, Frankfurt/M., Surkamp, 1975, pp. 150-85, aqui pp. 158-60.

138 Cf. Leo Kreutzer, Alfred Döblin. Sein Werk bis 1933, Stuttgart, Kohlhammer, 1970. 139 Cf. Anne Liard Jennings, Alfred Döblin‟s Quest for Spiritual Orientation, Urbana, University of Illinois, 1959,

apud Ulrich Dronske, Tödliche Präsens/zen. Über die Philosophie des Literarischen bei Alfred Döblin, Würzburg, Königshausen & Neuman, 1998, p. 155.

140 Cf. Peter Bekes, Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz. Interpretation, München, Oldenbourg, 1995, pp. 104-10. Para o autor, a passagem final em itálico seria “ambivalente, senão contraditória”: de um lado, tem-se a destruição do velho mundo, a liberdade de realizá-lo e a miragem de um novo mundo, de outro, a canção dos tocadores de

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postura, caberia relembrar que o epílogo do livro é decerto enigmático, concebido para sê-

lo, mas como todo enigma, ao contrário do mistério, não apresenta aquele caráter de

absoluta indecidibilidade que tentam lhe colar alguns críticos pós-modernos, supondo

antes a possibilidade de decifração, que tem a ver com o conteúdo de verdade da obra, que

por sua vez remete sempre ao plano da realidade sócio-histórica141.

Continuando, lembremos ainda que alguns críticos enxergaram no final, por

diferentes razões, menos uma contradição que uma conjunção dos opostos, indivíduo e

coletivo entrando como que em simbiose justamente enquanto opostos142; a arrogância e o

orgulho do antigo Franz Biberkopf são destruídos, assim como a convicção de que sozinho

pode ter razão contra todos, ao mesmo tempo que o novo Biberkopf destrói a crença

enganadora num destino todo-poderoso143; haveria assim uma superação da (falsa) escolha

entre a autoasserção (Selbstbehauptung) do indivíduo em oposição à sociedade e a

aceitação cabal dos ditames sociais, uma superação, enfim, da contradição entre

passividade e atividade, compreensão e ação formando um só e mesmo movimento144. Mais

uma vez, o problema com todas estas interpretações é que, ao desconsiderar a situação,

caem na metafísica, tirando lições ou teorias supostamente universais acerca do indivíduo e

da sociedade.

Citemos por fim uma das leituras mais inteligentes de que pudemos nos interar, que

é a que compara o final de Berlin Alexanderplatz com o d‟A montanha mágica, vendo uma

diferença decisiva nas posturas dos dois protagonistas: Hans Castorp no fim do livro de

Mann acaba tropeçando na Primeira Guerra sem refletir e sem fazer o balanço de suas

experiências do tempo passado em Davos, enquanto que Franz Biberkopf se põe a refletir,

com a devida calma, antes de tomar qualquer medida, observa criticamente o que se passa à

sua volta, começa a tomar consciência da situação, a entender o que aconteceu com ele,

tambor, com seu apelo a marchar para a guerra. Não é difícil enxergar que a “contradição” em questão está antes na cabeça do crítico que no que diz o texto, como se fosse possível transformar o mundo sem luta, revolucioná-lo sem revolução...

141 Para as noções de caráter enigmático e conteúdo de verdade da obra de arte, cf. Theodor W. Adorno, Ästhetische Theorie (1970), Frankfurt/M., Suhrkamp, 2003, pp. 182-204. Veja-se também, para a diferença específica de enigma e mistério, José Antonio Pasta, “O romance de Rosa: temas do Grande Sertão e do Brasil”, in Novos Estudos, Cebrap, n° 55 (1999), pp. 61-70.

142 Cf. Otto Keller, Döblins Montageroman als Epos der Moderne, München, Fink, 1980; Erwin Kobel, Alfred Döblin. Erzählkunst im Umbrich, Berlin, Walter de Gruyter, 1985.

143 Cf. Klaus Müller-Salget, Alfred Döblin. Werk und Entwicklung, Bonn, Bouvier, 1972. 144 Cf. Matthias Prangel, “Franz Biberkopf und das Wissen des Wissens. Zum Schluß von Berlin Alexanderplatz

unter der Perspektive einer Theorie der Beobachtung der Beobachtung”, in Gabriele Sander (Hrsg.), Internationales Alfred-Döblin-Kolloquium Leiden 1995, Bern, Peter Lang, 1997, pp. 169-80.

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quais as causas, as razões de sua desgraça145. Pois bem, ao contrário das leituras habituais,

quase sempre arbitrárias, e partindo por assim dizer de onde parou esta última, cabe

sustentar que Franz enfim tira uma lição de suas experiências, que não é aquela, a que

havíamos indicado lá atrás, com Rosenfeld, duma solidariedade vazia e apolítica; também

não é mais aquela sabedoria do Eclesiastes, do contentar-se com o que se tem, sem

questionar etc., que só figura no texto para contrastar com a verdadeira sabedoria, que é

emancipadora. A postura que foi a sua desde o começo, passiva e reativa diante do destino,

muda completamente: não adianta culpar ou maldizer o curso das coisas; é preciso

transformá-lo. De um lado, repete-se aquilo que foi o caso desde o início: “não acredito em

mais nada neste mundo [...] e não me meto”146; de outro, ocorre uma tomada de

consciência: “não gritarei mais como antes: o destino, o destino [...] é preciso olhar, tocar,

destruir”147. Entre as duas maneiras opostas de encarar o curso degradado da vida, da não-

intervenção à destruição, o que se passa? Biberkopf avista “com frequência” de sua janela

manifestantes “com bandeiras, música e canto”, e põe-se a pensar, percebe que “algo está

ocorrendo no mundo”148. Enfim, a frase chave para se entender os parágrafos finais:

“Biberkopf é um pequeno operário”149, pois é nesta condição que ele vai marchar... ao lado

dos trabalhadores.

O que nos permite fazer tal afirmação? Muita coisa, na verdade. Segundo consta,

para começar, até sua publicação definitiva, em forma de livro, em outubro de 1929, Döblin

teria feito revisões, cortes e adições no romance, principalmente no prólogo, reescrito

inúmeras vezes, mas também na conclusão. À vista disso, pode-se avançar a seguinte

hipótese, algo a que, salvo engano, a crítica até agora não parece ter prestado a devida

atenção: Franz passa, como é dito aliás explicitamente, o inverno de 1928-29 no manicômio

de Buch150; o que dá a entender que o que segue (visita ao túmulo de Mieze com Eva,

processo contra Reinhold e o funileiro Matter, oferta de emprego etc.) tenha lugar na

145 Cf. Helmut Koopmann, “Der Schluß des Romans Berlin Alexanderplatz: eine Antwort auf Thomas Manns

Zauberberg?”, in Werner Stauffacher (Hrsg.), Internationale Alfred-Döblin-Kolloquien Münster 1989-Marbach/N. 1991, Bern, Peter Lang, 1993, pp. 179-91.

146 BA, 454/520: “Ich schwör sobald auf nichts in der Welt […] und fall sobald nicht rein.” 147 BA, 454/521: “Da werde ich nicht mehr schrein wie früher: das Schicksal, das Schicksal […] man muß es ansehen,

anfassen und zerstören.” 148 BA, 454/520: “Sie marchieren oft mit Fahnen und Musik und Gesang an seinem Fenster vorbei […] es geht was

vor in der Welt.” 149 BA, 454/521: “Biberkopf ist ein kleiner Arbeiter.” 150 Cf. BA, 442/507. Diga-se de passagem, um fato notável, em geral esquecido pela crítica, é que apesar de todas as

referências mítico-religiosas encontradas no romance, o narrador, do início ao fim da história, toma o cuidado de datar os acontecimentos. Tem-se assim uma estrutura temporal bastante nítida, as datas sendo explicitamente indicadas ao longo do texto: 1927 (livro 1), novembro de 1927 (livro 2), fim de 1927 (livro 3), janeiro e fevereiro de 1928 (livro 4), fevereiro a abril de 1928 (livro 5), abril a junho de 1928 (livro 6), agosto e setembro de 1928 (livro 7), setembro e outubro de 1928 (livro 8), inverno de 1928-29 (livro 9).

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primavera de 1929 (confirma-o ademais um trecho que precede imediatamente os

acontecimentos finais, no qual o narrador se refere na forma pretérita ao “frio terrível” do

último inverno151). Se é assim, então não é possível ignorar o acontecimento histórico-social

maior daquele momento, aquilo que ficou conhecido como o Blutmai, as manifestações do

dia do trabalho, os três dias de protesto que resultaram num banho de sangue.

Relembrando resumidamente os fatos: o social-democrata Karl Friedrich Zörgiebel (SPD),

prefeito de polícia de Berlim, que havia proibido as demonstrações naquele ano, receoso

que dessem lugar a conflitos entre membros do Partido Comunista Alemão (KPD) e os do

Partido Nacional-Socialista (NSDAP), mais precisamente entre a Roter Frontkämpferbund

(RFB) e a Sturmabteilung (SA), colocou nada menos que treze mil policiais nas ruas e deu

ordens de atirar nos manifestantes, que, instigados pelo KPD, puseram-se a marchar apesar

da interdição. É preciso entender que as demonstrações organizadas pelo KPD naquele

momento, principalmente as do 1° de maio, tinham um significado mais amplo do que se

lhes constuma atribuir: elas eram articuladas e percebidas como “prelúdios à grande

transformação”152. Embora não tenha havido um inquérito oficial sobre a brutalidade

policial, embora nenhum policial tenha sido inculpado, é fato que, após três dias de

barricadas e batalha de rua, trinta e três pessoas foram mortas, quase duzentas ficaram

feridas e mais de mil e duzentas foram presas153. Os acontecimentos foram tão marcantes,

que ao que parece Brecht teria percebido ali, naquele exato momento, que a Revolução não

estava mais no horizonte próximo154. Quanto a Döblin, tampouco ficou indiferente, bem ao

contrário: juntamente com Heinrich Mann, Carl von Ossietzky e o advogado de defesa Hans

Litten, criou o Ausschuß zur Untersuchung der Berliner Maivorgänge, uma comissão

incumbida de investigar o ocorrido a fim de ajudar os trabalhadores e manifestantes

inculpados.

Se nossa hipótese parecer ainda extravagante, note-se que talvez nem seja preciso

evocar tal acontecimento extraliterário para determinar a “cor política” daqueles com quem

Franz se põe a marchar na última cena. Contra os que sustentam, e não são poucos os

151 BA, 448/514: “war ja eine furchtbare Kälte den ganzen Winter”. De resto, no mesmo parágrafo, há uma passagem

cheia de sarcasmo e duplos sentidos, na qual fala-se da “sujeira tremenda [furchtbarer Dreck]” que tomou conta da cidade, “pois o magistrado de Berlim é tão refinado e humano que deixa toda neve se transformar devagarinho, aos poucos, em sujeira, que ninguém toque um dedo nela [denn der Magistrat von Berlin ist so vornehm und human und läßt den ganzen Schnee sich selber sachte peu à peu in Dreck auflösen, daß mir den keener anrührt]”. Desnecessário adicionar que se está a falar de tudo menos da neve, que a sujeira que se alastra é outra.

152 Eric D. Weitz, Creating German Communism, 1890-1990: From Popular Protests to Socialist State, New Jersey, Princenton University, 1997, p. 186.

153 A respeito, veja-se entre outros Pamela E. Swett, Neighbors & Enemies. The Culture of Radicalism in Berlin, 1929-1933, Cambridge, Cambridge University, 2004, pp. 120-36.

154 Baseamo-nos aqui na transcrição duma palestra de Iná Camargo Costa, “Brecht e o teatro épico”, de 3 de maio de 2005.

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críticos que o fazem, que o trecho final seja ambíguo, fora de esquadro, politicamente

indefinido etc., um outro trecho, dez páginas antes, parece corroborar a hipótese de que os

manifestantes aos quais Franz se une, marchando para a guerra com tambores e bandeiras,

são em realidade trabalhadores comunistas:

Júbilos e gritos, marchar a seis e a dois e a três, marcha a revolução francesa, marcha a revolução russa, marcham as guerras dos camponeses, os anabatistas, seguem todos atrás da morte, há um júbilo atrás dela, vão rumo à liberdade, seguem em rumo à liberdade, o velho mundo deve sucumbir, desperta, ó brisa da manhã, rataplã, rataplã, a seis, a dois, a três, irmãos, rumo ao sol, à liberdade, irmãos, rumo à luz, do passado escuro reluz claro o futuro, marcar passo e direita e esquerda e esquerda e direita, rataplã, rataplã.155

Ao comparar tais linhas, que no lugar onde figuram parecem, estas sim, fora do lugar, com

os dois derradeiros parágrafos, em itálico no livro, percebe-se logo que um trecho prefigura

e anuncia o outro:

Rumo à liberdade, direto para a liberdade, o velho mundo precisa sucumbir, desperta, brisa da manhã.

E marcar passo e direita e esquerda e direita e esquerda, marchar, marchar, seguimos para a guerra, caminham conosco cem tocadores de tambor, eles tamborilam e assobiam, rataplã, rataplã, um vai por vias retas, o outro pelas tortas. Um fica parado, o outro cai, um continua a correr, o outro jaz mudo, rataplã, rataplã.156

Exatamente os mesmos termos empregados anteriormente para descrever as guerras dos

camponeses do século XVI, a Revolução Francesa e a Revolução Russa, reaparecem no

fechamento do entrecho: “rumo à liberdade”, “o velho mundo precisa sucumbir”, “desperta,

ó brisa da manhã”, “rataplã, rataplã”. Duas coisas parecem estar em jogo aí: por um lado, a

fidelidade a acontecimentos emancipatórios, frente aos quais a Alemanha, cujo atraso

político-social e a quase visceral incapacidade revolucionária eram notórios, histórica e

ideologicamente se opôs, e por outro lado, a reabertura de um horizonte utópico. Acresce

que o primeiro trecho contém dois versos de um famoso hino do movimento operário,

ouvido nas revoluções russas de 1905 e 1917, e que se tornaria extremamente popular na

Alemanha a partir do início dos anos vinte: “Brüder, zur Sonne, zur Freiheit, Brüder zum

155 BA, 444/509: “Jubel und Schreien, Marschieren zu sechsen und zu zweien und zu dreien, marschiert die

französische Revolution, marschiert die russische Revolution, marschiert die Bauernkriege, die Wiedertäufer, sie ziehen alle hinter dem Tod einher, es ist ein Jubel hinter ihm her, es geht in die Freiheit, die Freiheit hinein, die alte Welt muß stürzen, wach auf, du Morgenluft, widebum widebum, zu sechsen, zu zweien, zu dreien, Brüder, zur Sonne, zur Freiheit, Brüder zum Lichte empor, hell aus dem dunklen Vergangenen leuchtet uns Zukunft hervor, Schritt gefaßt und rechts und links und links und rechts, widebum widebum.”

156 BA, 454-55/521: “Es geht in die Freiheit, die Freiheit hinein, die alte Welt muß stürzen, wach auf, die Morgenluft. / Und Schritt gefaßt und rechts und links und rechts und links, marschieren, marschieren, wir ziehen in den Krieg, es ziehen mit uns hundert Spielleute mit, sie trommeln und pfeifen, widebum, widebum, dem einen geht‟s grade, dem andern geht‟s krumm, der eine bleibt stehen, der andere fällt um, der eine rennt weiter, der andere liegt stumm, widebum widebum.”

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Lichte empor, hell aus dem dunklen Vergangenen leuchtet uns Zukunft hervor”157 – hino

este que aliás já havia sido evocado precedentemente, no episódio do confronto com o

grupo de Dreske no bar de Henshke158. Seja como for, embora Döblin não dê de barato a

resposta, não diga explicitamente quem seriam aqueles com quem marcha Franz Biberkopf,

não há ambiguidade alguma nas palavras finais, não resta dúvidas que ali não se está

marchando para uma guerra nacionalista, imperialista – o proletariado, desenraizado que

é, como se sabe desde Marx, não tem pátria, não se lhe pode retirar o que não possui –,

tampouco se marcha para uma guerra sobre a qual nada se sabe; bem ao contrário, e de

forma bastante clara até, apesar de não dito explicitamente, marcha-se para a guerra de

classes, “rumo à liberdade”.

***

No início do epílogo, o narrador fala da história de Franz Biberkopf como sendo “um

processo de revelação”159, ao cabo do qual se teria atingido “o ponto de inflexão, a partir do

qual recai então a luz sobre o todo”160. Enquanto pretendia ser autossuficiente, nosso anti-

herói andara no escuro, mas enxerga melhor agora:

É preciso acostumar-se a dar ouvidos a outrem, pois o que os outros dizem também me diz respeito. Percebo então quem sou e o que sou capaz de empreender. Por toda parte ao meu redor, trava-se minha batalha, preciso ficar atento, antes de atinar com as coisas, já estou metido nela. 161

Sua batalha de todo dia, é disso que se dá conta, não é só dele. Enquanto trabalhador, seu

estatuto muda; o discurso da luta de classes, do grupo de Dreske ou do velho sindicalista, o

qual, antes, quando vivia de favor – era Eva, por exemplo, quem pagava o aluguel de seu

quarto –, na sua concepção “não lhe dizia respeito”, agora, ao frequentar o pátio da fábrica,

157 Trata-se de uma canção composta por Leonid Petrovitch Radin numa prisão moscovita no inverno de 1885-86,

traduzida e adaptada para o alemão por Hermann Scherchen em 1918 (as duas estrofes finais parecem ter sido adicionadas posteriormente): “Brüder, zur Sonne, zur Freiheit, / Brüder, zum Lichte empor. / Hell aus dem dunklen Vergangnen / leuchtet die Zukunft hervor! // Seht, wie der Zug von Millionen / endlos aus Nächtigem quillt, / bis euer Sehnsucht Verlangen / Himmel und Nacht überschwillt. // Brüder, in eins nun die Hände, / Brüder, das Sterben verlacht: / Ewig der Sklav‟rei ein Ende, / heilig die letzte Schlacht! // Brechet das Joch der Tyrannen, / die uns so grausam gequält. / Schwenket die blutrote Fahne, / über die Arbeiterwelt. // Brüder, ergreift die Gewehre, / auf, zur entscheidenden Schlacht! / Dem Kommunismus zur Ehre, / ihm sei in Zukunft die Macht!”

158 Cf. BA, 89/97: “Was sie singen wollen weiß Franz schon, entweder die ‚Internationale‟ oder ‚Brüder, zum Lichte, zur Freiheit‟, falls sie nicht was Neues haben.”

159 BA, 453/519: “ein Enthüllungsprozeß” 160 Ibid.: “den Umschlagspunkt, von dem erst Licht auf das Ganze fällt.” 161 Ibid.: “Man muß sich gewöhnen, auf andere zu hören, denn was andere sagen, geht mich auch an. Da merke ich,

wer ich bin und was ich mir vornehmen kann. Es wird überall herum um mich meine Schlacht geschlagen, ich muß aufpassen, ehe ich es merke, komm ich ran.”

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adquire todo sentido; percebe que sua luta é travada por muitos outros. Trata-se, a bem

dizer, do nascimento, nele, de uma solidariedade de classe, só possível quando se passa do

regime do favor ao regime do contrato “livre” de trabalho, no qual as identidades sociais

(patrão e empregado, burguês e proletário) ficam mais nítidas, o trabalho tornando possível

o reconhecimento de si e do outro. Acresce que ao sentir na própria pele a realidade

operária, passa a enxergá-la com outros olhos, percebe quiçá pela primeira vez a

possibilidade/necessidade de transformá-la162. Uma vez que um trabalhador se considera

um proletário, se percebe a si mesmo como fazendo parte do proletariado, isto é, parte dos

sem-parte, tal percepção muda sua própria realidade, fazendo com que aja

diferentemente163. Porque não basta a tomada de consciência; a libertação da dominação de

classe não acontece simplesmente mediante uma reflexão desvinculada da práxis de

libertação. Ao mesmo tempo, a práxis autêntica, por assim dizer, não se autoriza num

Outro, não é por ele coberta, ou acobertada, mas intervém no ponto mesmo de

inconscistência da ordem simbólica instituída. Como fica claro na cena do tribunal, a

admiração fascinada por Reinhold, personagem autoritária que durante quase todo o livro

satifaz o impulso masoquista de Franz em seu desejo de ordem e obediência, como que se

desfaz; Mieze, seu grande amor, se foi; e Eva, que perdeu o filho que esperava de Franz

durante a estadia deste em Buch, muda de vida e se afasta de vez do antigo amante. Está

portanto solto no mundo, por conta própria quiçá pela primeira vez na vida, e é a partir

deste momento, quando se encontra esvaziado de todo conteúdo substancial, de todo e

qualquer apoio simbólico que dê sentido à sua existência, é que se constitui para ele a

possibilidade de ruptura com a ordem vigente, através justamente da subjetivação de classe.

Como o poeta, Franz Biberkopf não procura mais o abrigo de uma gruta, mas ao

contrário daquele, deixa claro que não deseja ser carregado pela avalanche das coisas. A

destruição do velho mundo, da qual fala o epílogo, não é destruição cega; não se pode dizer

que o final não seja claro do ponto de vista político. Franz rejeita o discurso nacionalista164,

e o faz com ironia, evocando e alterando os versos da canção patriótica de guerra “Die

162 Lição quase idêntica, diga-se de passagem, àquela encontrada no fim de uma peça de Bertolt Brecht, Die

Maßnahme. Lehrstück (1929-30), in Gesammelte Werke, Bd. II, Prag/London, Malik, 1938, p. 359: “[...] nur belehrt von der Wirklichkeit, können wir / die Wirklichkeit ändern.” Trad. Ingrid D. Koudela: A decisão. Peça didática, in Teatro completo, vol. 3, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004, p. 266: “Só ensinados pela realidade é que podemos / Transformar a realidade.”

163 Cf. Slavoj Žižek, Living in the End of Times, London/New York, Verso, 2010, p. 226. 164 Note-se que já se havia feito mofa do heroísmo patriótico noutros momentos da história, por exemplo, na cena

em que a prostituta e então namorada de Franz, a polonesa Lina, parte com tudo para cima do jornaleiro vendedor de literatura por ela considerada pornográfica (cf. BA, 77-78/83-84). Ao narrar o episódio o narrador em terceira-pessoa faz referência explícita ao drama patriótico Prinz Friedrich von Homburg (1809-10), de Kleist, fazendo com que o caráter cômico da cena realce a absurdidade e o ridículo do ato heróico efetuado em nome da pátria.

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Wacht am Rhein”, em diversos momentos no livro entoada por ele: “Pátria amada, põe-te

em sossego, tenho olhos abertos e não me meto.”165 Não se mete com quem? Ora, com os

nazistas, que diziam que o uso do intelecto era coisa de judeus166. Naquele contexto, a

tomada de posição em prol do pensamento – “dem Mensch ist gegeben die Vernunft” – era

em si mesma considerada suspeita.

***

A grande “lição” do livro, se podemos falar nesses termos, não é aquela, tão

sublinhada, da solidaridade; também não é, em última instância, a da consciência de classe

– Biberkopf já era consciente, e o diz com todas as letras em certo momento, do fato da

exploração, de que uma classe enriquece às custas do trabalho da outra etc. A “lição” que

visa a passar Döblin, no fim das contas, não difere muito daquela do amigo Brecht nas

“peças didáticas”, rigorosamente contemporâneas, vale dizer: na verdade o que se propõe é

um experimento, ao cabo do qual o leitor é levado a perceber diferentemente certas

realidades, a refletir sobre elas, a observar de forma crítica as situações nas quais se vêem

envolvidas as personagens, ou seja, deverá ser capaz de medir o que dizem, ou como agem,

de acordo com o contexto no qual se encontram inseridas. Bom artista, Döblin não

estabelece nem prega um qualquer programa político, não aponta uma saída nem fornece

uma imagem da vida reconciliada, haja vista que a formulação desta última supõe antes de

tudo a crítica, o enfretamento da barbárie e a superação prática e efetiva da vida alienada.

Sobre o que acontece com Franz Biberkopf nada se fica sabendo. Morrerá durante os

protestos ao lado dos camaradas de luta? Será preso? Perderá o emprego? Será

determinado o suficiente para sustentar duravelmente o seu engajamento, forte o suficiente

para manter o não-consentimento, para afirmar e reafirmar sua recusa da heteronomia?

Será capaz de viver, até o fim, como aqueles proletários veteranos da Revolução de 1830, ao

mesmo tempo a morte da utopia e a recusa radical da ordem estabelecida167? Fica, aí sim,

em aberto, a cargo do leitor imaginar, se perguntar, refletir a respeito.

165 BA, 454/520: “Lieb Vaterland, kannst ruhig sein, ich hab die Augen auf und fall sobald nicht rein.” Os versos da

canção original são os seguintes: “Lieb‟ Vaterland, magst ruhig sein, / Fest steht und treu die Wacht am Rhein!” 166 Uma canção nazi de 1928 de fato dizia: “‚Intellekt‟. Hinweg mit diesem Wort dem bösen, / Mit seinem jüdisch-

grellen Schein! Wie kann ein Mann von deutschem Wesen / Ein Intellektueller sein!” 167 Veja-se a respeito o belo estudo de Jacques Rancière, La nuit des prolétaires. Archives du rêve ouvrier, Paris,

Fayard, 1981.

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Trata-se assim, mais ou menos como no teatro brechteano, de um experimento

quase científico, demandando olho clínico168 – como Galy Gay, por exemplo, de Um homem

é um homem (1925/38), que de resto também tematiza o poder de sedução do falso coletivo

sobre o indivíduo, Biberkopf passa por uma metamorfose, é dissecado, desmembrado e

recomposto, ganhando no fim uma nova identidade169 –, em todo caso um experimento

revelador, ou ilustrativo, que permite enxergar melhor, em sua complexidade, certas

realidades, situações, assim como certos discursos, ligados a interesses particulares

determinados e assim por diante. Não é à toa, então, que o próprio narrador, no epílogo,

descreva a história de Franz Biberkopf como “um processo de revelação”. E com efeito,

quando se chega ao fim do livro, com Franz a caminhar solidário com os trabalhadores, e à

condição de que o leitor reflita sobre tudo que passou e junte os fios da trama, muito do que

antes parecia solto, disperso no entrecho, se aglutina e se cristaliza numa nova forma,

reaparece sob nova luz: a percepção de que “não se deve fiar no dinheiro ou no

conhaque”170, a luta por não se deixar embasbacar171, a necessidade de sair da toca da vida

privada e ganhar as ruas172, a aspiração a uma vida livre e independente173, a percepção da

vida urbana moderna como alienada, essencialmente marcada pela falta de tempo e pela

sede de entretenimento174, o que dissimularia o fato de ser em realidade “uma guerra não-

declarada”175 em meio à qual mesmo quando não se morre também não se chega a viver176.

Fica claro que a postura com relação a tal guerra não declarada, que é a guerra do mercado,

agora é outra: antes, Franz só queria sobreviver, recomeçar a vida e manter-se de pé, de

forma honesta se possível, eventualmente pelo viés do crime, da ilegalidade: “A guerra não

tem fim enquanto vivermos, o importante é ficar firme sobre as pernas.”177 Agora, ao

contrário, ele se posiciona, sabe que é preciso escolher seu campo, porque a vida do

trabalhador decente é uma indecência, e com a vida do criminoso também não se vai muito

longe; percebe, ademais, que coisas importantes, que concernem a todos, estão

168 Cf. Bertolt Brecht, “Döblin”, in Gesammte Werke, Bd. 18, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1976, p. 63: “er sieht die

Literatur mehr als Arzt als als Schriftsteller.” 169 A ideia da semelhança entre as duas personagens, assim como da obra como experimento quase científico levado

a cabo por meios artísticos, surgiu ao reler Augusto Boal, Theatre of the Oppressed (1974), trad. C. A. & M.-O. McBride, New York, Theatre Communications Group, 1985, pp. 98-99.

170 BA, 63/67: “man soll nich auf Geld schwören oder auf Kognak” 171 Cf. BA, 133/67: “Das 11. Gebot heißt: Laß dir nicht verblüffen.” 172 Cf. BA, 158-60/176-78. 173 BA, 240-41/275: “Ich bin ein freier Mann oder keiner.” 174 Cf. BA, 23/22: “die Leute in der Stadt keine Zeit haben und unterhalten sein wollen.” 175 BA, 404/463: “es ist unerklärter Krieg” 176 Cf. BA, 390/448: “Er lebt nicht und er stirbt nicht.” 177 BA, 403/461: “Der Krieg hört nicht uff, solange man lebt, die Hauptsache ist, daß man uff die Beene steht.”

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acontecendo no mundo, que o momento, a situação histórica, demandam decisão,

desenlace, tomada de partido178; tem a experiência, aprendeu alguma coisa – se formou?

Não resta dúvida que sim, embora não se forme, desnecessário dizer, à maneira de um

sujeito burguês; a sua não é uma solução de compromisso, tampouco termina por aceitar os

poderes do mundo como se fossem forças naturais, contente com o emprego que lhe fora

concedido apesar de tudo. Franz se forma, mas enquanto sujeito de classe, em ruptura com

a condição dada, que, para falar como Adorno, é “condição falsa”, visto que não condizente

com as possibilidades objetivas (isto é, segundo o nível atingido pelas forças produtivas) de

uma humanidade emancipada. Tal ruptura, aliás, aparece também no nível da forma.

***

No romance-crônica November 1918, monumental tetralogia consagrada à revolução

alemã, escrito na França e nos EUA, entre 1937 e 1943, e publicado integralmente entre

1948 e 1950, Döblin parece rejeitar definitivamente os ideais revolucionários aos quais

aderiu e pelos quais militou na juventude. O livro, que em muitos respeitos, em termos de

composição, assemelha-se ao Berlin Alexanderplatz, oscila entre o romance de cunho

histórico, a crônica jornalística e a narrativa épico-religiosa. No nível do conteúdo, a

revolução é ironizada, satirizada, apresentada de maneira quase grotesca, como uma triste

comédia: Rosa Luxemburgo, por exemplo, é pintada como uma espécie de fanática religiosa

que, assim como o protagonista da história, Friedrich Becker, personagem fictícia, oscila,

como outrora o próprio Döblin, entre dois extremos contraditórios, a saber, entre a

esperança utópica de uma transformação radical da sociedade, por um lado, e, por outro, a

fé religiosa em uma transcendência radical de todas as coisas mundanas179. Acrescente-se

ainda que a Revolução, com maiúscula, que instaura necessariamente uma temporalidade

de ruptura radical, é também ela negada e banalizada no nível da forma, o entrecho se

reduzindo a uma narrativa cronográfica dos acontecimentos, na qual são deliberadamente

mesmerizados, postos em pé de igualdade, grandes feitos e detalhes menores e sem

178 Cf. Slavoj Žižek, “A escolha de Lenin” (2002), trad. L. B. Pericás e F. Rigout, posfácio a Às portas da Revolução.

Escritos de Lenin de 1917, São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 173-342, aqui p. 205: “[...] numa luta histórica concreta, a atitude de „inocência‟ („Não quero sujar minhas mãos ao me envolver na luta, só quero levar uma vida modesta e honesta‟) personifica a máxima culpa. Em nosso mundo, não fazer nada não é algo desprovido de sentido; já tem um significado – significa dizer „sim‟ às relações de dominação existentes.”

179 Cf. Heinz D. Osterle, “Alfred Döblins Revolutionsroman”, posfácio a Alfred Döblin, Karl und Rosa, Munich, Deutscher Taschenbuch, 1978, pp. 665-95.

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importância180. Deliberadamente, dizíamos, porque escrevendo no final dos anos trinta

Döblin tinha uma visão mais distanciada da coisa que no início dos anos vinte: a ausência

de uma ruptura revolucionária radical em 1918-19 acabou abrindo espaço e dando lugar à

pseudo-ruptura reacionária de 1933, o que não deixa de confirmar o famoso diagnóstico de

Benjamin, segundo o qual todo fascismo seria indício de uma revolução malograda.

Voltando ao Berlin Alexanderplatz, a solução final encontrada por Döblin desde a

publicação do livro até os dias de hoje tem sido questionada, criticada como demasiado

artificial, deslocada, forçada, pouco credível, e assim por diante. Com efeito, em poucas

páginas o protagonista morre, é ressuscitado, ganha um novo nome, arruma um emprego e,

não contente, põe-se a pensar por si mesmo, procura formar seu próprio juízo acerca do

que se passa à sua volta, dá um basta à atitude passiva que fora a sua até ali e se mete numa

manifestação comunista. Mas e se, justamente, ao contrário das leituras correntes, tal

solução abrupta, por assim dizer falha, mas por isso mesmo dissonante, for a mais

adequada, do ponto de vista formal, para, mediante a instauração de uma distância

apropriada em relação a tudo o que acontecera até aquele ponto, expor uma nova

temporalidade, vale dizer, não mais a arrastada, atrelada à finitude da vida quotidiana,

fragmentada, mutilada e pseudocíclica, dos altos e baixos que não levam a nada, eterno

retorno do mesmo, que coincide com a ordem do mito, mas antes uma temporalidade que

se manifesta como ruptura, como negação, assunção crítica e superação efetiva de tudo o

que precede?

O próprio autor, numa famosa carta de 1931, admite não ter conseguido fazer o que

pretendia, a saber, uma transição progressiva do estado passivo-receptivo da personagem

para um em que esta fosse mais proativa. À maneira do segundo Fausto, um Biberkopf

numa nova fase, ativo e resoluto, deveria ganhar uma segunda parte181. Nesse sentido, ainda

que o epílogo possa ser visto, segundo o próprio Döblin, como uma tentativa de estabelecer

uma ponte entre os dois estados, entre as duas partes inicialmente previstas – “der Schluß

ist sozusagen eine Überbrückung” –, poderia tal transição se dar sem uma ruptura radical?

O morrer para a vida que levara até então não constituiria justamente a possibilidade de

uma vida não mais assombrada pela morte? A coisa é dita explicitamente no livro: “Como

pode um homem crescer se não procura a morte? A morte verdadeira, a morte real. Assim

te preservaste a vida inteira, preservar, preservar, eis a receosa aspiração do homem e assim

180 Cf. Michel Vanoosthuyse, “Vingt ans après: Döblin, l‟exil et la „révolution allemande‟”, in Manfred Gangl &

Hélène Roussel (dir.), Les intellectuels et l‟État sous la République de Weimar, Rennes/Paris, Centre de recherche Philia/La maison des sciences de l‟homme, 1993, pp. 205-24, aqui p. 209.

181 Cf. Alfred Döblin, carta a Julius Petersen, de 18 de setembro de 1931, in Mattias Prangel (Hrsg.), Materialen, op. cit., pp. 41-42.

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permanece num mesmo ponto e assim não vai adiante.”182 No caso de Franz Biberkopf, não

é a morte que é superada através duma assunção individual heróica da finitude do ser,

como então pregava o famigerado decisionismo existencialista, que deu onde se sabe; antes,

o que se supera é a mera vida, a vida banal, quotidiana, a vida que não vive, da humanidade

que se debate indefinidamente em estranhamento pois que presa aos grilhões da

autoconservação, que é cegueira, mito, enquanto que ao contrário “apenas aquilo que não

se conserva a si mesmo é que não se perde”183.

(agosto-setembro de 2010)

182 Cf. BA, 430/493: “Wie kann ein Mensch gedeihen, wenn er nicht den Tod aufsucht? Den wahren Tod, den

wirklichen Tod. Du hast dich dein ganzes Leben bewahrt. Bewahren, bewahren, so ist das furchtsame Verlangen der Menschen, und so steht es auf einem Fleck, und so geht es nicht weiter.”

183 Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister des kleinsten Übergangs, op. cit., p. 330, trad. cit., p. 40: “[…] nur das nicht verloren sei, was nicht sich selbst behält.”

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A fratura da forma

Constituição e implicações da representação da metrópole

em Berlin Alexanderplatz

Gabriela Siqueira Bitencourt1

Quem já frequentou as páginas de Paysan de Paris2, escrito por Louis Aragon entre

os anos de 1924 e 1925, pode ter percebido como a constituição da figura do narrador

determina, em larga medida, o efeito da representação da grande cidade que era a Paris da

década de 1920. Seu narrador-protagonista, flâneur herdeiro da poesia de Baudelaire,

habita as ruínas dos “locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los”3, afeito a

uma nostalgia em relação aos objetos cotidianos que se tornaram antiquados. Se um

fenômeno característico na vida das grandes cidades é o “embotamento frente à distinção

das coisas”4, o narrador do livro parece buscar algo que supere esta sua condição, certa

essência capaz de configurar uma “mitologia moderna” – tensionando os fios de sua

ambígua relação com a metrópole, que festeja a modernidade, procurando, entretanto, sua

superação5. O narrador de Aragon, como flâneur, é figura peculiar que se destaca na densa

multidão da metrópole (diferença marcada no próprio título: paysan, isto é, um

“camponês”), e é por essa singularidade que, ao atravessar as galerias decadentes, ele é

capaz de observar a significativa inclinação dos objetos, que assinalam na temporalidade do

novo, do mundo da mercadoria, um espaço carregado de esquecimento, “ces plages de

l‟inconnu”6.

Dois anos mais tarde, é outro o trajeto que Alfred Döblin traça nos canteiros de

obras de sua Berlim em descontínua reconstrução, desdobrando a perspectiva pela qual

1 Mestre pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Esse artigo

pretende expor resumidamente um dos argumentos desenvolvidos em minha dissertação de mestrado: BITENCOURT, Gabriela Siqueira. “Fraturas da metrópole. Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz.” 2010. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010.

2 Aqui não se pretende uma análise da obra de Louis Aragon, mas apenas uma aproximação, como procedimento heurístico, para mostrar como há diferenças paradigmáticas na representação do espaço urbano em textos historicamente tão próximos.

3 BENJAMIN, Walter. “Paris do Segundo Império” in: __. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, Vol. III, p. 25.

4 SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 5, out. 2005. 5 WALKER, Ian. City Gorged with Dreams: Surrealism and Documentary Photography in Interwar Paris.

Manchester: Manchester University Press, 2002. p. 114. 6 ARAGON, L. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 2007. p. 20.

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pretende transmitir as “situações elementares da existência do ser humano”7 em dois

vértices ficcionais: uma instância narrativa complexa, que se reconfigura continuamente no

decorrer da história, ora na posição de um narrador convencional, onisciente e mais

próximo do leitor do que do mundo ficcional, ora orquestrando a polifonia dissonante da

cidade; e uma personagem elaborada como anti-herói8, um certo Franz Biberkopf. O

romance tem seu início quando, após cumprir uma pena de quatro anos pelo assassinato de

sua ex-namorada, a prostituta Ida, Franz deixa a prisão de Tegel e reencontra em Berlim

não a enigmática cidade do Paysan de Paris, mas a vertiginosa e ameaçadora configuração

coletiva e anônima que não comporta a contemplação visionária, esquecida de si mesma, do

flâneur de Aragon9.

Os dois livros possuem como “elementos centrais” – explicitados, aliás, em seus

próprios títulos – o nome de um espaço geográfico e a identificação de um indivíduo

(camponês – Paris e Berlin/Alexanderplatz – Franz Biberkopf). Já dissemos que os dois

romances configuram perspectivas bastante diversas, as quais determinam nas obras a

constituição objetiva tanto do espaço quanto das biografias que nucleiam a narrativa. Seus

títulos apresentam a relação entre esses dois elementos com sinais trocados, já que Paris é

um predicado do paysan, e em Berlin Alexanderplatz, os nomes da metrópole e de sua

praça dão o título ao romance, e à personagem – hipoteticamente, principal – é reservado

apenas o subtítulo. O flâneur se configura como quem, embora desejoso da entrega à

multidão, é uma individualidade que se opõe a ela (a multidão não é composta por

flâneurs10); o camponês de Paris representa justamente essa individualidade destacada que

ocupa o cerne do título do romance. Se Döblin “inverte” esses sinais no título, como se

constitui, no romance, tanto relação – carregada de tensão – entre a representação da

metrópole e o desenvolvimento individual da biografia da personagem? Nesta medida, qual

o papel dessa representação específica dos encontros casuais promovidos pela circulação no

espaço urbano – de pessoas, de mercadorias; o primeiro como equivalente do segundo –

para a estrutura convencional do romance?

7 DÖBLIN. Alfred. “A construção da obra épica” in: GREGORY, J. A. O romance o tigre azul como forma estética do

pensamento histórico de Alfred Döblin. 2003. Tese (Doutorado em Literatura Alemã) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003, p. 342. No original: DÖBLIN, Alfred. Bau des epischen Werkes. . Aufsätze zur Literatur .Olten und Freiburg im Breisgau: Walter, 1963. p. 106.

8 “O modo anti-heróico [...] implica a presença negativa do modelo subvertido ou ausente” (BROMBERT, Victor H. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura européia, 1830-1980. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 14).

9 De resto, Benjamin já apontara a dependência do pleno desenvolvimento da flânerie à história da urbanização parisiense. (Ver BENJAMIN, Walter. “O Flâneur” in:__. Charles Baudelaire, op. cit., p. 34).

10 “No fundo, o indivíduo só pode flanar se, como tal, já se afasta da norma.” BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire” in:__. Charles Baudelaire, op. cit., p. 122.

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A discussão sobre efeitos do adensamento urbano foi marcada pelo ensaio "A

grande cidade e a vida do espírito"11, publicado em 1903 – à época em que Döblin já

começara a escrever seus primeiros textos de ficção. Nele, Georg Simmel discute a

correlação entre a transformação da temporalidade da vivência social no adensamento do

espaço metropolitano, tendo como exemplo maior justamente Berlim, e uma transformação

nas condições de percepção do aparato cognitivo individual, cuja consequência poderia ser

observada também na alteração das relações intersubjetivas. Seus argumentos assinalam o

caráter autônomo e anônimo da metrópole – opondo-a a uma cidade como fora Weimar em

seu período clássico, associada em definitivo à figura de Goethe. Segundo Simmel, se uma

das características da metrópole é a ausência de mediações subjetivas entre sua importância

simbólica e sua existência objetiva, circunstâncias individuais não devem agir sobre sua

constituição última. E é por insistir em “preservar a autonomia e a peculiaridade de sua

existência”12, no interior de um tal campo adverso ao desenvolvimento da individualidade, à

distinção qualitativa das coisas, que resultariam os “problemas mais profundos da vida

moderna”13. Esse ensaio sintetizou um tipo de reflexão sobre o advento da metrópole, que

se tornou paradigmática no início do século XX e que está indiretamente relacionada à

construção formal da metrópole no romance Berlin Alexanderplatz. A intenção deste artigo

é mostrar quais são e como são organizados os expedientes utilizados no romance de Döblin

para a representação literária da metrópole e como estes, por fim, atuam na constituição da

própria biografia individual de Biberkopf.

***

Analisada por Volker Klotz como indicativo da relação entre “indivíduo concreto” e

“coletivo concreto”14, retratada no romance, essa composição ambivalente do título

assinalaria a interdependência dos dois termos – Berlim/Alexanderplatz e Biberkopf,

coletivo e indivíduo, anonimato e pessoalidade. Ainda segundo o crítico, a importância do

livro reside justamente aí: em ser o primeiro e, até a publicação do estudo, único romance

alemão que fez da cidade seu assunto. E, para Klotz, ele o fez dando importância igual a

indivíduo e metrópole, sem que um se tornasse coadjuvante do outro.

11 SIMMEL, Georg. “As grandes cidades e a vida do espírito”, op. cit. 12 Idem, ibidem, p. 577. 13 Idem, ibidem, p. 578. 14 KLOTZ, Volker. Die erzählte Stadt: Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin.

München: Carl Hanser, 1969. p. 373.

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Ainda em relação ao título15, gostaria de destacar uma ressonância, sobretudo

formal, que o torna algo tão representativo. Trata-se de um paralelismo entre sua dupla

estrutura e o desdobramento da instância narrativa em, digamos, duas figuras16. Uma das

figuras dessa instância narrativa, aludindo ao subtítulo, é responsável pelo

desenvolvimento de um relato biográfico, e é determinada pela estrutura sintaticamente

linear e, em relação ao gênero do romance, formalmente convencional, da “história de

Franz Biberkopf”. Ela é anunciada, no prólogo do livro, por um narrador que aparece como

o apresentador de um teatro de marionetes, tendo diante de si um pequeno palco de

cortinas fechadas, um mundo em miniatura sobre o qual se debruça, comentando aquilo

que ganhará vida com o movimento dos títeres atados a fios invisíveis. A personagem

principal da Moritat que este narrador irá cantar é Franz Biberkopf, ex-operário de

construção e transportador de móveis que levara uma “insensata vida”17 e, sendo libertado

da prisão de Tegel, procurará “ter uma vida decente”18. Perseguido, entretanto, por uma

força abstrata que “vem de fora, algo imprevisível e que mais parece com um destino”19,

Biberkopf terá de enfrentar três sérios golpes em seu plano de vida, terá de ser novamente

confinado (desta vez, em um manicômio) para, por fim, retornar a Berlim, se não como um

novo homem, ao menos com um novo nome.

Essa, a matéria “convencional” do romance. Ocorre que seu desenvolvimento é

interrompido a todo momento por uma estrutura formal que justapõe não apenas as vozes

daqueles que caminham por Berlim mas também diversos elementos (jornais, cartazes,

canções, manuais) que circulam como transeuntes pela metrópole e que serão apropriados

como componentes discursivos no interior da própria voz narrativa. E é o expediente

mobilizado para representar a simultaneidade da presença de todos esses elementos na

metrópole, presente in nuce no título do livro, que importa à discussão deste artigo.

Há na construção sintática do título Berlin Alexanderplatz um método de

composição que permeará toda a estrutura do romance, variando em vigor: a justaposição

de elementos, que podem ser tanto ficcionais como não ficcionais. De fato, o título do livro

justapõe dois nomes próprios, dois elementos não ficcionais: o da cidade de Berlim, tantas

15 A intenção original de Döblin era de que seu livro se chamasse apenas Berlin Alexanderplatz. Foi, entretanto, por

insistência de seu editor, Samuel Fischer, que não via grande chance de sucesso comercial para um livro em cujo título não figurasse a sugestão de uma aventura romanesca, que o autor incluiu o subtítulo A história de Franz Biberkopf (Die Geschichte Von Franz Biberkopf). Embora o título composto tenha sido imposto à publicação do romance, o resultado da matemática entre intenção primeira do autor e imposição comercial do editor parece ser significativo em relação à narrativa do livro.

16 Essa diferença é “sobretudo formal” porque tal distinção só pode ser encontrada nos elementos de composição do próprio texto.

17 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 9 . 18 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 9. 19 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 9.

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vezes caracterizada como “a metrópole da Modernidade”20, e o de sua praça mais famosa,

Alexanderplatz, centro da região leste, reduto de pequenos comerciantes21. Não são

separados por vírgula ou travessão, tampouco há conectivo sintático que realize a passagem

de um termo ao seguinte: trata-se de uma simples agregação de elementos por

acumulação22. Da mesma forma como agrega elementos, criando uma estrutura pela

justaposição dos dois nomes próprios no título, durante todo o romance o autor trabalhará

recolhendo fragmentos do cotidiano (pequenas notícias de jornais, previsões do tempo,

discursos políticos, anúncios), que serão encadeados em uma organização paratática entre

si e em relação à própria fábula ficcional de Franz Biberkopf.

Essa estrutura de apreensão da realidade na forma é realizada pela utilização de um

expediente que aparecerá mais timidamente na história de Biberkopf (como veremos na

análise do Livro I) e com maior autonomia em certos trechos a partir do Livro II. O que

caracteriza esse novo expediente é a apropriação de elementos extraliterários e, muitas

vezes, não-ficcionais (notícias de jornais, fórmulas científicas, mas também trechos de

obras da tradição literária e religiosa, canções de cabaré e de guerra) para fazer com que a

realidade seja inserida como obra, no caso do romance, como narrativa, e não como

“realidade narrada”. Vejamos, portanto, alguns exemplos dessa configuração.

A narrativa propriamente dita do Livro I começa com a imagem de Biberkopf

deixando a prisão de Tegel, de onde acabava de ser libertado. O motivo central

desenvolvido nesta primeira seção do romance será sua tentativa de reintegração à ordem

da cidade, para a qual ele é obrigado a retornar. O primeiro parágrafo deste Livro nada

explica, apenas mostra:

Estava diante do portão da prisão de Tegel, livre. Ontem ainda passava o ancinho na hora de batatas lá trás com os outros, com uniforme de presidiário; agora andava com um casaco amarelo de verão, lá trás eles catavam batatas, ele estava livre23.

A narrativa, marcada por um caráter descritivo, não oferece explicações ao leitor.

Isso se explicita, por exemplo, pelo uso do pronome “ele”, pelo início da narrativa in media

20 “Groβstadt der Moderne” in: SCHERPE, Klaus. „Berlin als Ort der Moderne“, In: Pandemonium Germanica, nº7,

São Paulo: Humanitas, 2003, pág. 18. Ver também: BECKER, Sabina. „Berlins Entwicklung zur Metropole“. Urbanität und Moderne: Studien zur Groβstadtwahrnehmung in der deutschen Literatur 1900-1930. St. Ingbert: Röhrig, 1993. p. 27.

21 E não do proletariado, como observa Walter Benjamin: “não é um bairro industrial, e sim comercial, habitado pela pequena-burguesia”. BENJAMIN, Walter. “Crise do Romance. Sobre Alexanderplatz, de Döblin” in:__. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 58.

22 O filme produzido sobre o enredo romance, em 1931, de Phil Jutzi, recupera, com o uso do travessão, a sintaxe corrente (encontrada em mapas, guias turísticos etc.) que seria “Berlin – Alexanderplatz”.

23 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13.

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res e pela construção curta das frases. Não há orações subordinadas, que estabeleçam

relações predicativas ou determinações causais (“estava parado diante do portão da prisão

de Tegel”, porque tinha sido libertado). Embora esse tipo de elaboração apresente alguma

dificuldade de compreensão (em um primeiro momento), já que carece de esclarecimentos

e recorre ao uso do discurso indireto livre, ainda é um modelo narrativo compreensível para

o leitor. Contudo, o parágrafo seguinte – parágrafo de uma única oração: “a pena começa”24

– instaura uma ruptura na elaboração formal do discurso.

O terceiro parágrafo é aberto então por frases bastante curtas – brevidade sintática

que tem por objetivo figurar a velocidade do movimento de Franz ao subir no bonde e a

irregular sequência de imagens por ele observada quando já está dentro do veículo:

Estremeceu, engoliu em seco. Tropeçou no próprio pé. Então tomou impulso e sentou-se no bonde elétrico. No meio das pessoas. Adiante. [...] O vagão fez uma curva, árvores, casas intercalavam-se. Ruas animadas surgiam, a Seestraβe, pessoas subiam e desciam. Dentro dele, o grito soava terrível: atenção, atenção vai começar. A ponta de seu nariz gelou, sua bochecha vibrava. “Jornal vespertino do meio-dia”, “B. Z.”, “A mais nova revista”, “a Funkstunde”, “subiu mais alguém”. Os policiais agora vestem uniformes azuis. Desceu do vagão sem que ninguém percebesse, estava no meio das pessoas. E daí? Nada. Olhe a postura, seu porco esfomeado, vai sentir o cheiro do meu punho no nariz. [...] Meu miolo parece que não tem mais banha, deve ter secado por completo. O que era tudo isso? Lojas de calçados, lojas de chapéus, lâmpadas, lojas de bebidas destiladas.25

A partir desse momento, a cidade aparece como uma profusão caótica de sons e

imagens. As falas provenientes das mais diversas origens são colocadas entre aspas, mas

não são introduzidas por um enunciado como “disse o jornaleiro”, como seria característico

do discurso direto. Elas são simplesmente integradas à malha da narrativa, constituindo-a.

O corte abrupto entre cenas é um expediente importante, utilizado durante todo o romance

e introduzido logo no terceiro parágrafo, anteriormente citado.

Nessa breve cena, Biberkopf é levado pelo bonde para o a região central da cidade. A

brevidade das orações corresponde, portanto, à velocidade do bonde, mas também à

simultaneidade da percepção do próprio Biberkopf. O trecho destacado compõe a presença

imediata de imagens, de vozes, de pensamentos, e sua novidade resulta de um esforço de

reorganização formal que fosse capaz de plasmar a velocidade da percepção da personagem.

Esse esforço de reorganizar a estrutura do texto decorre do fato de que a linearidade

sintática, que denota um encadeamento temporal – e, no mais das vezes, causal –, e que é

convencionalmente constitutiva da forma narrativa, impõe um obstáculo à representação

das impressões simultâneas que o ritmo e a aglomeração da grande cidade implicam.

24 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13. 25 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13 - 14.

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A narrativa de Berlin Alexanderplatz precisou romper com a temporalidade

progressiva que a linearidade convencional da linguagem condiciona para representar a

simultaneidade das impressões de Biberkopf ao retornar a Berlim. A forma encontrada é a

descontinuidade de cenas ou mesmo de frases. A partir do corte abrupto, que rompe a

estrutura sintática, quebrando a expectativa de conclusão do leitor, surge uma nova

estrutura, ou nova cena, que também sofrerá um corte abrupto, e assim por diante. É a

partir dessa modulação da narrativa pela incompletude, pela ruptura, que é instaurado

formalmente o choque da integração de Biberkopf ao espaço da metrópole. Tendo em vista

que a narrativa segue colada à percepção de Biberkopf, a sensação de espanto é formalizada

e assim é produzida também no leitor. Ele partilha, na linguagem, a perplexidade da

personagem diante de uma ordem de fenômenos que é incapaz de compreender26. Berlim

aparece, então, como profusão desordenada de estímulos, distorções elaboradas pela

projeção do desconcerto em que se encontra o próprio Biberkopf. É curioso que nos dois

primeiros capítulos, embora em ambos Biberkopf já esteja em Berlim, seus títulos, “No 41

até a cidade”27 e “Ainda sem chegar”28, pareçam ressaltar que estar no centro da cidade não

implica fazer parte dela e que a personagem principal ainda se move como se estivesse em

suspensão em relação ao espaço da cidade. Nestes dois capítulos do Livro I, Biberkopf toma

o bonde que o levará ao centro da cidade e vaga, perdido, até encontrar Nachum, um judeu

que o acolherá para lhe instruir moralmente por meio da parábola de Zannovich. Após o

encontro e a precária estabilização emocional de Biberkopf, a narrativa também muda. O

corte abruto de imagens visuais e representações sonoras cede lugar às vozes dos indivíduos

que Biberkopf vai encontrando conforme caminha pela cidade:

Olhe só, estão construindo o metrô, então deve ter trabalho em Berlim. Ainda havia um cinema, entrada proibida para menores de 17 anos. [...] Um homem para a bilheteira: “Senhorita, não é mais barato para um velho soldado sem barriga?”. “Nada, só para crianças com menos de cinco meses, com chupeta.” “Feito. É a idade certa. Recém-nascidos a prestação.” “Pois bem, cinquenta, vá entrando”. Atrás dele, esgueirava-se um jovem, esbelto, de cachecol: “Senhorita, quero entrar, mas não pagar”. “E daí? Peça para sua mãezinha pôr você no penico”.29

Neste trecho, a diferença é bastante clara. A narrativa acompanha a caminhada de

Biberkopf e sua consciência é reproduzida na voz narrativa pelo uso do discurso indireto

livre (“então deve ter trabalho em Berlim”). As falas que ele escuta enquanto está na fila do

26 “Depois que Biberkopf, no primeiro livro, amedrontado e inseguro, tateando pelas ruas lotadas, percebeu uma

Berlim subjetivamente desfigurada, a cidade como que se apresenta no princípio do segundo (Livro).” KLOTZ, V. Die erzählte Stadt, op. cit., p. 375 (Tradução nossa).

27 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 13. 28 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 17. 29 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 32.

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cinema são todas reproduzidas entre aspas. A cidade, entretanto, aparece menos veloz

(“Um bonde passara lentamente”30) e um pouco mais compreensível para Biberkopf.

Há uma série de recursos que se combinam: o efeito de neutralidade, a agilidade da

linguagem (pelo uso de frases curtas), que gera a impressão de movimento, e a apropriação

dos fragmentos da realidade (vozes que conversam na frente do cinema, descrição de uma

cena em que pessoas comem no bar, observação sobre os policiais de uniforme azul). E são

todos compostos sem que se definam os limites entre os elementos apresentados. Quando a

narrativa rompe a completude da ordem sintática, ela torna também o objeto representado

descontínuo e, por meio dessa sobreposição, cria-se a impressão de caos.

Contudo, a realidade é caótica e incompreensível não em si mesma, mas para Franz,

cuja perspectiva é dominante. Dominante porque os fragmentos que aparecem recolhidos

da cidade e que figuram nestes trechos do Livro I, notadamente do primeiro capítulo,

surgem apenas na medida em que Franz ouve o anúncio dos jornaleiros (“Jornal vespertino

do meio dia”) ou vê, pela janela do bonde, os policiais (“Os policiais vestem uniformes

azuis”). A única consciência que age e é representada imediatamente, agora pelo discurso

indireto livre, é a dele. Do mesmo modo, se temos acesso aos pensamentos da prostituta

com a qual Biberkopf encontra, é por meio do discurso direto, ou seja, pela mediação do

narrador: “Ela pensava, a cabeça sobre o travesseiro: os sapatos amarelos bem que podem

ganhar meia sola”31. Em outras palavras, esse discurso “desordenado” corresponde ao

desajuste do próprio Franz. E isso mimetiza algo que tematicamente podemos descrever

como desajuste em relação ao espaço da metrópole: Biberkopf sente medo quando entra em

Berlim – medo explicitado pela vertigem que o abala, quando acha que os telhados das

casas vão desabar32, e pela fuga para o interior dos pátios das casas33.

Um pouco mais adiante, esse desajuste é manifestado pela impotência sexual de

Biberkopf. Entrando na cidade como quem entra em uma máquina de desejos (o anúncio

constante de produtos, a visibilidade dos bares, os filmes eróticos, a oferta das prostitutas

espalhadas pelas ruas), a inadequação de Franz é expressa como impotência sexual. É um

ato de violência que marca a inserção de Biberkopf: o estupro da irmã de Ida (antiga

namorada e prostituta, que ele explorava e que matou em uma briga) – relação sexual

forçada em um primeiro momento e, depois, relativamente concedida. No momento em que

30 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 32. 31 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 35. 32 “E sobre as casas havia telhados, que pairavam sobre elas, seus olhos vagueavam para cima: que os telhados não

escorreguem e desabem, mas as casas estavam firmes e retas”. DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 15. 33 “Assim o homem ficou parado no vestíbulo da casa, não ouvia o terrível barulho da rua, as casas malucas não

estavam lá.” DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 16.

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estupra Minna – como projeção de Ida – Franz finalmente supera a impotência sexual e

começa sua tentativa de “conquistar” também a cidade – explicitada nos títulos dos

capítulos: “Vitória em toda linha”34 e, mais adiante, “Terceira conquista de Berlim”35 –,

quando ele decide “tornar-se um homem decente”. A ruptura que, portanto, assinala o fim

desse primeiro momento de reencontro com a cidade e do Livro I, marca a reintegração de

Franz, e nessa medida, o Livro II trata dessa integração ao mundo, agora compreensível

para Franz, da região central de Berlim.

Essa ruptura se manifestará tanto no plano temático quanto no plano formal.

Tematicamente porque no Livro II, aberto pelo título “Franz Biberkopf entra em Berlim”36,

Franz volta a circular despreocupado, sentindo-se em seu elemento e determinado a

encontrar um trabalho novo e “decente”; formalmente porque ele deixa de ter a perspectiva

dominante. A partir do Livro II, a utilização dos fragmentos do cotidiano se intensifica e

radicaliza e, então, os próprios fragmentos discursivos da cidade se tornam a narrativa,

independentemente da consciência de Franz, como será mostrado mais adiante. Se a

consciência da prostituta, no Livro I, era acessada apenas pela mediação do narrador (“Ela

pensava, a cabeça sobre o travesseiro: os sapatos bem que podem ganhar meia sola”), a

partir do Livro II, as outras personagens passam a compor imediatamente a voz narrativa.

Essas outras personagens deixam de ser simples satélites, cujo movimento centrípeto

nomeia sempre a biografia de Franz, e acabam apropriadas como fragmentos constituintes

da narrativa, de forma que permanecem tematicamente alheias ao desenvolvimento da vida

do “antigo operário de construção”, relativizando sua centralidade. Por conta desse

deslocamento e da neutralidade, cria-se um efeito dramático, cênico. O meio pelo qual isso

ocorre é a alternância de pontos de referência, em uma elaboração em que se entremeiam

as descrições neutras do narrador observador e a perspectiva das personagens que ele

mobiliza no romance como “refletores”, ou seja, como pontos intercambiáveis das quais

depende a apreensão dos fatos. Utilizando, por meio da técnica da onisciência múltipla, o

fluxo de consciência de diferentes personagens, o narrador domina um aparato cognitivo

subjetivo múltiplo que apreende as cenas a partir de diferentes campos.

Por alternar entre o recurso a um narrador aparentemente neutro – cuja função seria

a de apenas criar uma apresentação panorâmica dos momentos nos quais se desenvolvem

os acontecimentos – e essa onisciência múltipla, a narrativa se torna complexa, e o leitor

leva tempo para se acostumar.

34 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p 38.. 35 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 272. 36 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 51.

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Franz agora vende jornais nacionais-populistas. Não tem nada contra os judeus, mas é a favor da ordem. Pois é preciso haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de reconhecer. E o capacete-de-aço, ele bem que viu os rapazes e seus líderes também, é uma coisa e tanto. Ele está na saída do metrô da Postdamer Platz, junto à passagem da Friedrichstrasse, sob a estação da Alexanderplatz.37 Franz tem um olhar bem firme, fixa os olhos longamente no amolador, que gagueja e vira a cabeça: “a história de Arras, é essa que quero saber. Ainda vamos apurar isso. Se você esteve lá!”. “Você está delirando, Franz, retiro o que disse, você deve ter bebido além da conta.” Franz aguarda, reflete, logo vou lhe pregar uma peça, esse aí faz de conta que não está entendendo nada, dá uma de espertinho. “Pois, naturalmente, Orge, é evidente que tivemos em Arras com Arthur Böse e Bluhm e o pequeno primeiro-sargento, como se chamava mesmo, era um nome esquisito.” “Esqueci.” Deixe esse cara falar, ele bebeu além da conta, os outros também percebem isso. “Espere aí, o nome dele é Bista ou Biskra, ou coisa que o valha, o pequeno.” Deixe esse cara falar, não digo nada, logo ele vai se embaraçar, daí não vai dizer mais nada.38

Nestes dois trechos, a narrativa mobiliza as estratégias anteriormente apontadas,

como o narrador onisciente (“Franz aguarda, reflete”), mas de perspectiva neutra, que neste

momento específico assume a posição de simples observador, cuja função é apresentar os

fatos; o discurso indireto livre (“é preciso haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de

reconhecer”) assim como o fluxo de consciência (“deixe esse cara falar, ele bebeu além da

conta, os outros também percebem isso”) para ampliar o efeito de objetividade da cena,

pela ausência de uma instância mediadora, pois tudo é transmitido diretamente ao leitor.

Por meio do discurso indireto livre, a voz das personagens torna-se parte do discurso do

narrador:

Eles aprovam como uma bênção tudo o que Franz faz. Eva, que ainda ama Franz, gostaria sinceramente de ajudá-lo a arranjar uma garota. Ele resiste, conheço essa garota, não, essa você não conhece, Herbert também não, como você pode conhecê-la, não, faz pouco tempo que ela está em Berlim, é de Bernau, só vinha de vez em quando para cá até a estação Stettin.39

Esse método de composição já presente no Livro I e que se baseia no corte de cenas e

frases e no emprego de diferentes estilos e recursos narrativos, assim como na apropriação

das vozes dos transeuntes e interlocutores de Biberkopf, será radicalizado a partir do Livro

II. Surge então uma estrutura que justapõe não apenas as vozes daqueles que circulam por

Berlim mas também de diversos elementos (jornais, cartazes, canções, manuais) que

circulam como transeuntes pela metrópole e que serão apropriados como elementos

discursivos no interior da própria voz narrativa. Finalmente aqui será trazido em sua força

o expediente que vemos sintetizado no título do livro.

37 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 89. 38 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 91. 39 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 292.

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A fim de investigar como se constitui a representação da metrópole em si e como esta

afeta a outra figura narrativa do romance, aquela que acompanha o percurso biográfico de

Biberkopf, podemos destacar a importante estrutura do primeiro capítulo do Livro V,

comparando alguns de seus recursos aos outros capítulos – comparação que ajudará a

comprovar que as particularidades de cada um desses trechos concorrem para engendrar o

mesmo efeito.

Tanto o Livro II quanto o Livro V mostram Biberkopf reintegrado, após ter superado

os obstáculos de sua recém-conquistada liberdade, no primeiro, e após se recuperar da

traição de Lüders, no segundo. Isso significa que, nesses dois Livros, Franz se torna parte

da ordem da metrópole e, nessa medida, sua história oscila como elemento intercambiável

entre outras histórias e elementos da organização urbana, sua própria biografia como

fragmento recolhido das ruas da cidade. Vale ressaltar que Biberkopf não se encontra

totalmente ausente destes trechos, e pode até ser citado, mas o foco não é sua história40.

Uma das relações que podemos estabelecer entre os dois capítulos diz respeito a seus

próprios títulos: “Reencontro na Alex” e “Franz Biberkopf entra em Berlim”, assinalando a

inclusão em um espaço geográfico determinado da cidade. Além disso, o uso do substantivo

“reencontro”, derivado do verbo “wiedersehen” (reencontrar), ao marcar certa

impessoalidade também alude a uma frase daquele primeiro capítulo – frase significativa

dentro do romance: “A Rosenthaler Platz se diverte”. O uso do verbo em sua forma

reflexiva, fazendo com que, na oração, Rosenthaler seja “agente”, acaba por sugerir uma

personificação do espaço, uma antropomorfização da própria cidade. Essa transformação

do espaço físico em agente da frase cria o efeito de uma autossuficiência e autonomia da

metrópole; afinal, quem se diverte é a própria praça, independentemente de quem esteja

passando por lá. No Livro V, o substantivo “Wiedersehen” (de evidente origem verbal),

além de significar essa autonomia, pode, por sua forma, referir-se tanto a Franz, que

finalmente deixa o quarto onde estava escondido para tentar, pela segunda vez,

“conquistar”41 Berlim, como também àquela miríade de anônimos que transita pela rede

verbal tecida no Livro IV (e que apresenta uma construção bastante semelhante à dos

Livros II e V), em cujo primeiro título lemos “Um punhado de gente em torno da Alex”42.

O primeiro período deste primeiro capítulo do Livro V é breve:

40 Isso ocorre, por exemplo, no primeiro capítulo do Livro IV: “Sobre as lojas e atrás delas, no entanto, há moradias,

no fundo temos ainda pátios, edifícios transversais, anexos, casas de fundo, caramanchões. Linienstrasse, ali está a casa onde Franz Biberkopf se refugiou após a confusão com Lüders.” DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 136.

41 Trata-se do já citado título do sexto livro é “Dritte Erorberung Berlins”, assinalando a relação para com a cidade e enfatizando, de resto, o motivo bélico, que ganhará força no último capítulo.

42 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 115.

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Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem a altura de um andar e crava as estacas no chão como se nada fossem.43

Característico desse primeiro trecho é o uso da onomatopeia, representando o som

emitido pelo bate-estacas a vapor e retomando, de certa forma, outro aspecto essencial do

Livro II: a utilização de signos iconográficos44 que representam os serviços públicos da

cidade de Berlim45. O que ambos os elementos (os signos iconográficos e a onomatopeia)

guardam em comum é o ato, com consequências importantes para a forma do romance, de

tentar suspender o caráter descritivo e, portanto, mediador da linguagem. A linguagem do

romance deixa de realizar a mediação entre a realidade e o leitor, para se tornar a própria

coisa representada. Enquanto a onomatopeia faz uso de uma figura de linguagem que

procura abolir a arbitrariedade do signo por meio de uma associação (mais ou menos

objetiva) ao som emitido pelo objeto a ser representado – em nosso caso, o bate-estacas a

vapor –, o recurso das imagens logra a suspensão da descrição ao evitar por completo a

mediação linguística.

No Livro V, todo seu primeiro trecho46 parece aproveitar uma composição visual

afeita a uma técnica cinematográfica para elaborar até mesmo a articulação entre os

parágrafos. A título de ilustração, pode-se estabelecer uma analogia entre o deslocamento

do eixo (não do “foco narrativo”, que permanece sendo o da visada panorâmica) e o

deslocamento de uma câmera de cinema. Se a cena do primeiro parágrafo remete a um

close-up, que capta a imagem autônoma da máquina, ela é seguida por um extreme long

shot: uma tomada que se afasta do objeto centralizado, ampliando a imagem e

estabelecendo um quadro panorâmico, capturando o trânsito das pessoas que circulam pela

praça. O terceiro parágrafo retoma o movimento da máquina, mas ainda com uma

perspectiva panorâmica, de forma que ainda capta os transeuntes:

Ar gélido. Fevereiro. As pessoas passam de sobretudo. Quem tem usa peles, quem não tem não usa. As mulheres usam meias finas e passam frio, mas é bonito. Os vagabundos esconderam-se do frio. Quando esquentar, meterão os narizes de fora novamente. Enquanto isso bebericam ração dupla de conhaque, mas que conhaque, nem mesmo um cadáver gostaria de nadar nele.47

43 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 185. 44 NOMURA, Masa. Berlin Alexanderplatz, Linguagem funcional e literatura. Presença do cotidiano no texto

literário. São Paulo: Annablume, 1993. p. 116-139. 45 “Esse mapa de instituições, como se vê normalmente no gabinete do prefeito, é incluído aí sem qualquer

intermediação épica. É intermediado pelo narrador apenas por uma leve estilização”. KLOTZ, Volker. Die erzählte Stadt, op. cit., p. 375 (Tradução nossa).

46 Reproduzidos nas notas 44, 48 e 50. 47 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 155.

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Há uma nebulosa interposição e sobreposição de enunciados de caráter bastante

diverso, mas cuja função não é explicitada pelo texto – ao menos não à primeira vista. Nos

fragmentos aqui destacados, apresenta-se uma voz narrativa informativa e aparentemente

neutra, captando e reproduzindo a realidade objetiva dos acontecimentos, como “Ar gélido.

Fevereiro”48. Ocorre que este enunciado é continuamente recortado, por exemplo, por

frases exclamativas (“nem mesmo um cadáver gostaria de nadar nele”), que sugerem a

apropriação das vozes das pessoas que circulam pela praça, as quais haviam sido

capturadas pelo olhar neutro do narrador no início deste trecho (“as pessoas andam de

sobretudo”).

O que torna tão singular essa voz é justamente esse estatuto híbrido, ou seja, sua

constituição amorfa, capaz de se reconfigurar continuamente para adaptar-se com maior

grau de objetividade aos diferentes fatos representados. A propósito dessa característica do

narrador, gostaria de avançar para o parágrafo seguinte, exemplo significativo da fatura

narrativa do romance.

Brumm, brumm, martela o bate-estacas a vapor na Alexanderplatz. Muitas pessoas têm tempo e ficam olhando o bate-estacas martelar. Lá no alto, um homem puxa uma corrente, então sai uma baforada de vapor em cima, e zás, a estaca leva um golpe na cabeça. Depois, fica tão pequena quanto a pontinha de um dedo, leva mais um golpe, aí seja o que quiser. Ao final, desaparece, caramba, serviço finamente realizado, como um produto em conserva, seguem em diante satisfeitos. Tudo está coberto de tábuas. A Berolina ficava diante do Tietz, uma mão estendida, era uma mulher colossal, levaram-na dali. Talvez a derretam e façam medalhas com ela.49

A sintaxe desses longos trechos, compostos por materiais colados das mais diversas

origens, é constituída por vozes que se interpõem, sem qualquer elemento linguístico que

estabeleça a fronteira entre os enunciados da figura do narrador e das personagens

anônimas que compõe o romance, fazendo com que muita vez seja difícil (e, quem sabe,

ofício duvidoso) determinar quem enuncia esta ou aquela sentença. É esta uma das formas

que o autor possui de dar estatuto narrativo ao fenômeno da cidade, imprimindo-lhe, nesse

movimento, uma personificação: “Berlim não é descrita. Ela se impõe”50. Nos trechos

seguintes, quando interpenetrada pela fala das figuras anônimas que transitam pela cidade,

a voz narrativa torna-se espaço de locução para todo o tipo de anúncio e propaganda que

compõe a praça, seja visual ou sonoramente:

Vrumm, Vrumm, os elétricos, bondes amarelos com vagões atrelados, rolam sobre a Alexanderplatz coberta de tábuas, é perigoso saltar deles. A estação estende-se livre por

48 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 155. 49 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, 185. 50 SOUZA, Celeste H. M. R. Alfred Döblin, Berlim Alexanderplatz e o romance de montagem. 1995. (Trabalho

apresentado no Encontro nacional da Anpoll). In: Anais João Pessoa : ANPOLL, 1995. p. 522

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ampla superfície, via de mão única em direção à Königstrasse, passando pelo Wertheim. Quem se dirige ao leste precisa desviar por trás à altura do comando da polícia, através da Klosterstrasse. Os trens rumorejam da estação até a Jannowitzbrücke, a locomotiva solta baforadas de vapor, está agora por cima do Prälat, Cervejaria Schlossbräu, entrada na próxima esquina. [...] Demoliram Loeser e Wolff com a placa de mosaico, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do outro lado, diante da estação, já existe outro. Loeser e Wollf, Berlim-Elbing, qualidade de primeira para todos os gostos: Brasil, Havana, México, Pequeno Consolo, Liliput, Charuto n. 8, 25 pfennigs a unidade, Balada de Inverno, embalagem com 25 unidades, cigarrilhos n. 10, não selecionado, folha de Sumatra, um produto especial neste preço, em caixas com cem unidades, dez pfennigs.51

A descrição do movimento dos bondes, a nomeação das ruas e de seus

estabelecimentos, tudo parece reforçar a espacialidade do texto. A interposição dessas

descrições, aliada à precisão das frases, cria o efeito de velocidade, caracterizando uma

temporalidade acelerada, dominante nesta narrativa. Uma das características mais

importantes deste trecho, de efeito claramente cênico, é prescindir de um ponto fixo de

enunciação. A ausência de um ponto fixo de referência faz com que haja a impressão de

independência em relação a uma subjetividade reguladora, alcançando um efeito de

objetividade neutra, de fato como se uma câmera percorresse o espaço da praça, detendo-se

ora em um objeto, ora em um transeunte.

Essa multiplicidade heterogênea de estilos e materiais é conduzida por uma voz

neutra, que dá breves indicações espaciais e temporais, sumários narrativos sem

intromissões ou comentários. A narrativa varia entre diferentes configurações:

a) o “diretor de cena”52 (Alexanderplatz, 1929, um frio do cão) aparece intercalado à

consciência das personagens (aqui a voz do jornaleiro se mistura ao sumário narrativo):

Ele se afasta, é melhor que mande engraxar as botas, deve passar a noite no abrigo Palme da Fröbelstrasse, sobe no bonde. Este, por certo, viaja com o bilhete errado ou achou algum na rua, ele que tente. Se o apanharem, terá perdido o bilhete certo. Sempre esses espertalhões e mais dois agora. Qualquer hora mando fazer uma grade aqui na frente. Vou tomar o café da manhã.

b) diálogos que variam entre discurso direto, discurso indireto e discurso indireto

livre (no primeiro exemplo, o discurso direto; no segundo, uma mistura dos três tipos

discursivos):

1) São dois homens de mais idade, operários de construção da Rosenthaler Strasse. O outro desaprova o que aquele diz: “É um caso triste, se vir uma coisa dessas no teatro ou ler no

51 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 186. 52 FRIEDMAN, Norman. “Point of View in Fiction: The Development of a Critical Concept”. PMLA, v. 70, n. 5, p.

1.169-1.170, Dec. 1955. p. 1776.

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livro, então vai cair no choro”. “Você talvez. Olhe Max, será que alguém ia chorar por causa de uma coisa dessas?53 2) Certa noite, lá está Reinhold a seu lado no metrô Alexanderplatz, em frente à Landsberger Strasse, perguntando-lhe se tem programa para a noite. Ora, ora, o mês ainda nem acabou, o que há, e, na verdade, Cilly está esperando por Franz – mas ir junto com Reinhold, naturalmente, a todo prazer. E caminham devagar a pé – o que o senhor acha, para onde – descem caminhando pela Alexanderstrasse em direção à Prinzenstrasse. Franz fica insistindo até descobrir aonde Reinhold quer ir. “Vamos até o Walter Dançar?” Ele quer ir até o Exército da Salvação na Dresdener Strasse! Quer ouvir o que dizem. Que coisa. Bem a cara do Reinhold. Cada ideia que ele tem.54

c) canções:

E então vamos nós, vamos nós, olê, olê, olá, alegria, alegria, olê, olá. E assim vamos nós, alegria, alegria, olê, olê, olá (...) Movimentavam os braços no ritmo da música: “Beba, beba, irmãozinho, beba, deixa os problemas para trás, beba, beba, irmãozinho, beba, deixa os problemas para trás, fuja da dor, fuja da tristeza, daí a vida é uma beleza.55

d) e notícias de jornais: Franz lê enquanto Pums lida em sua escrivaninha, quer ver algumas coisas no jornal Berliner Zeitung que está sobre a cadeira: 3.000 milhas marítimas numa casca de noz, de Günther Plüschow, Férias e Roteiros, a Conjuntura de Lania, o palco de Piscator, no teatro Lessing. O próprio Piscator assume a direção. O que é Piscator, o que é Lania? 56

No início do Livro V, surge um narrador que fala a partir de “frases simples,

declarativas”57, criando o cenário no qual o leitor irá mergulhar: o título do capítulo situa o

espaço: “Alex”; o ano: “1927”; e as condições climáticas: “um frio do cão”. A concentração

espacial e temporal da representação, dada pela descrição das ruas, dos bondes e o uso do

verbo no presente do indicativo, aliados ao recurso do discurso indireto livre, criam uma

apresentação essencialmente cênica dos objetos. Percebe-se que uma das principais

características dessa estrutura é não assumir uma configuração única, homogênea. Se

quiséssemos recorrer, por exemplo, à tipologia de Norman Friedman para caracterizar

esses trechos específicos em que a biografia de Franz é esquecida e a metrópole toma seu

espaço, poderíamos caracterizá-los em um primeiro momento a partir do que Friedman

nomeia como o “modo dramático”. Nele, o narrador possui um caráter simplesmente

informativo, descrevendo ações e reproduzindo falas, mas deixando que os estados de

53 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 287. 54 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 206. 55 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 85. 56 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 235. 57 DOLLENMAYER, David B. The Berlin novels of Alfred Döblin. Wadzek's Battle with the Steam Turbine, Berlin

Alexanderplatz, Men without Mercy and November, 1918. Berkeley: University of California Press, 1988. p. 73.

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ânimos dependam das personagens58. Contudo, o romance extrapola a tipologia, dada a

multiplicidade de registros de que se vale. Se por vezes a função narrativa é meramente

informativa, ele não utiliza apenas diálogos mas também se apropria dos pensamentos dos

transeuntes e personagens. Ademais, em certos momentos, como ocorre no primeiro

capítulo do Livro II, o narrador assume sua onisciência e apresenta para o leitor toda a

biografia do jovem Max Rüst, que aos catorze anos desce do bonde no ponto da rua

Lothringe. Ele o seleciona como uma personagem dentre muitas e desenreda, em meras

vinte linhas, sua situação atual e todo seu futuro, até seu “anúncio fúnebre”59, e com a

brevidade da descrição e a eleição casual entre tantos outros, o narrador apenas enfatiza a

banalidade de sua história. Em uma narrativa (do primeiro capítulo do Livro II) que

transcorria balizada por um narrador de disposição largamente descritiva60, surge

repentinamente a figura do narrador onisciente que vê o transcorrer da história para além

do imediatismo dos fatos, ou seja, superior à percepção do leitor.

A velocidade com que os sumários narrativos que “descrevem” a cidade (“Ar gélido.

Fevereiro”, “a estação estende-se livre por ampla superfície”) são constituídos (com

interrupções abruptas que dão espaço a outros discursos, os quais, por sua vez, também

serão interrompidos, e assim por diante) impregna a narrativa pela qual se constitui a

imagem da metrópole de um tempo acelerado. Essa velocidade que arma e desarma as

cenas, em um movimento que varia de ritmo ao mesmo tempo em que varia de perspectiva,

fratura também a própria história de Biberkopf.

Nas divagações do flâneur de Aragon há uma dilatação do tempo e nesse ânimo

vagaroso a singularidade ganha forma. Se a projeção de seu compasso no tempo da

narrativa dá a medida da temporalidade da Paris da década de 1920, é o enrijecimento do

texto, a partir da composição formal, que determina o ritmo da metrópole döbliniana –

ritmo acelerado, marcado pela ausência de relação entre os heteróclitos, pelas frases curtas,

pela oscilação entre a perspectiva interna (discurso indireto livre e monólogo interior) e

perspectiva externa. A ausência de uma unidade conferida por uma subjetividade externa

ao mundo que é narrado (ou seja, de um narrador tradicional, comentador) marca a

petrificação dos estilhaços de realidade.

58 “Having eliminated the author, and then the narrator, we are now ready to dispose of mental states altogether.

The information available to the reader in the Dramatic Mode is limited largely to what the characters do and say; their appearance and the setting may be supplied by the author as in stage directions; there is never, however, any direct indication of what they perceive (a character may look out of the window-an objective act-but what he sees is his own business), what they think, or how they feel.” FRIEDMAN, Norman. “Point of view in fiction”, op. cit., p. 1178.

59 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 56. 60 “Do lado sul, a Rosenthaler Strasse desemboca na praça. Do outro lado, a loja Aschinger serve comida e cerveja às

pessoas, oferece concertos e pães em geral.” DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. p. 55.

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Algumas das primeiras resenhas escritas sobre o romance de Döblin já apontavam a

afinidade que existia entre esse seu modo de composição e o recurso da montagem61 como

utilizado no meio cinematográfico62. Desde então, a maior parte da fortuna crítica do livro

parte da análise desse artifício formal para discutir a fatura do romance. Era a primeira vez

que, extraído das artes plásticas, da experiência dadaísta e expressionista63, esse recurso

formal se tornava elemento de composição de um romance alemão64. A centralidade da

análise formal nas interpretações do livro – que procurava compreender a “simultaneidade

de posição e justaposição funcional de fragmentos”65– deve-se ao fato de que, constituindo

a múltipla configuração da voz narrativa do livro, essa estrutura parece determinar a

imagem da metrópole que caracteriza este romance, ao lhe imprimir seu próprio ritmo.

Contudo, será que essa forma de composição se constitui apenas como pano de

fundo para o núcleo biográfico do romance ou o expediente “coletivo” da montagem

terminaria por abalar a voz onisciente do narrador da Moritat? No artigo, “An urban

montage and its significance in Döblin‟s „Berlin Alexanderplatz‟”, David Dollenmayer

afirma que a montagem não teria por efeito o enfraquecimento “do papel do narrador”66.

Nesse artigo, o crítico pretende analisar de que forma o uso da montagem acarreta em uma

imagem da metrópole que, aliada ao retorno vitorioso e pacífico de Biberkopf a Berlim no

desfecho do romance, constrói-se positivamente. Para Dollenmayer, a presença do narrador

se explicita, por exemplo, na forma de organização dos elementos do capítulo – organização

que sugeriria uma visão na qual a cidade possui uma ordem. Para sustentar a afirmação de

que o narrador estaria sempre presente, Dollenmayer aproxima sua argumentação da já

citada resenha de Walter Benjamin. Segundo o crítico, “both Benjamin and Scheunemann

stress that the use of montage does not mean the elimination or even the weakening of the

narrator”67. O problema dessa afirmação decorre do fato de que o que Benjamin

compreendia sob a palavra “narrador” parece divergir do uso que Dollemayer faz dele.

61 Desenvolvi uma discussão sobre a utilização de montagem e colagem nos capítulos III e V da minha dissertação. 62 Ver as resenhas: E. Kurt Fischer: “Berlin Alexanderplatz” (p. 67-69); J – S: ist das unser “Alex”?. In: PRANGEL,

Matthias. Materialien zu Alfred Döblin “Berlin Alexanderplatz”. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975. 63 DÖBLIN, Alfred. Epilog, Das Lesebuch. Frankfurt am Main: Fischer, 2009. p. 646. 64 Já em 1925, John dos Passos publicara Manhattan Transfer e Ulisses (1922), de James Joyce, era uma referência

importante. Não se sabe se Döblin conhecia ou não Manhattan Transfer (provavelmente sim, já que foi indicado à tradução pelo leitor da Editora Fischer, Oskar Loerke, amigo bastante próximo de Döblin) e há mesmo quem discorde de que tanto o livro de Dos Passos quanto o de Joyce sejam semelhantes ao livro de Döblin: “em sentido estrito Ulisses, (1922) de James Joyce, e Manhattan Transfer (1925), de John Dos Passos, não são romances-montagem [...] O único romance-montagem dos anos 20 é, entretanto, Berlin Alexanderplatz”./ EMONS, Hans. „Montage – Zitat – Collage in Film, Kunst, Literatur und Musik“. Montage-Collage-Musik. Berlin: Verlag für Wissenschaftliche Literatur, 2009, p. 15 - 16.

65 CARONE, Modesto. A montagem. Metáfora e montagem. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 99-100. 66 DOLLENMAYER, David B. “An Urban Montage and Its Significance in Döblin's Berlin Alexanderplatz.” The

German Quarterly, v. 53, n. 3, p. 317-336, May 1980. 67 DOLLENMAYER, ibidem, p. 320.

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Em 1936, Walter Benjamin publicou o ensaio “O narrador. Considerações sobre a

obra de Nikolai Leskov”. Certamente um dos textos mais discutidos de Benjamin no Brasil,

“O narrador” procura articular o problema do declínio da narrativa, que encontra seu

primeiro indício no surgimento do romance, assim como uma reflexão sobre a própria

possibilidade de experiência à discussão do desenvolvimento das forças produtivas. Grosso

modo, a possibilidade social do narrador dependeria, para Benjamin, de uma malha

comunitária perpassada pelo fio condutor de uma temporalidade comum. Benjamin vê na

“evolução secular das forças produtivas”68 a trilha do processo de “definhamento” da arte

de narrar, o processo de extinção da “sabedoria – o lado épico da verdade”69. O lado épico

da verdade, aqui, como o “sal épico”, que torna “mais duráveis as coisas às quais se

mescla”70, ou seja, aquilo que em sua consistência e permanência temporal pode ser

transmitido e assimilado pelo ouvinte.

O advento do romance na era moderna faria parte desse processo, portanto, como

seu primeiro indício, vinculado estritamente a um dado técnico: a invenção da imprensa. O

romance, cuja propagação depende exclusivamente de sua relação com o livro, não “precede

da tradição oral e nem a alimenta”71. Benjamin observava que “se a arte narrativa é hoje

rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por isso”; o fato noticiado pelo

jornal, impregnado de explicações, seria oposto ao traço épico, livre do “contexto

psicológico da ação” oferecendo ao leitor liberdade “para interpretar a história como

quiser”72. Para Benjamin, o isolamento do romancista reflete a e revela-se na forma, que,

curvada aos dados da vivência individual, traduz-se em uma segregação do romancista e do

próprio romance, em tudo oposta à experiência comum da verdadeira narração – embora

ambas compartilhem a mesma origem épica. Na indiferenciação original de Mnemosyne, a

deusa da recordação (Die Errinernde), já estariam reunidas tanto a musa da narração, a

memória, (Gedächtnis) quanto a musa do romance, a rememoração (Eingedenken).

As reflexões em que Benjamin investiga essa transformação da experiência social são

articuladas em mais de um texto, por exemplo, nos ensaios “Experiência e pobreza”73 e “A

obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”74. Quando essa produção teórica que

gravita em torno dos mesmos dilemas é tomada em conjunto, vê-se que sua análise não se

68 BENJAMIN, Walter. “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” in:__. Obras Escolhidas.

Magia e técnica, arte e política . São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 201. 69 Idem, ibidem, p. 201. 70 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 59. 71 BENJAMIN, Walter. “O Narrador”, p. 201. 72 Idem, ibidem, p. 203. 73 BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza” in:__. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política, p. 114-119. 74 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.” in:__. Obras escolhidas. Magia e

técnica, arte e política, p. 165-196.

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afoga em uma nostalgia do irrecuperável, mas procura vislumbrar na constelação da

atualidade novas possibilidades, “sem, no entanto, assumir a forma obsoleta da narração

mítica universal”75. Com efeito, uma resenha de 1930, “Crise do romance. Sobre

Alexanderplatz, de Döblin.”, bastante anterior ao ensaio “O narrador”, também faz parte

desse conjunto de reflexões. Nela, Benjamin comenta a publicação de Berlin

Alexanderplatz e a conferência “A construção da obra épica”. Nessa resenha, o comentário

sobre a montagem ocupa o cerne da análise, porque seria a voz anônima dos fragmentos

recuperados pelo romance de Döblin que configura, para Benjamin, a presença do

“narrador nato”76 dentro da obra.

A argumentação da resenha tem início com a distinção entre narrativa tradicional e o

romance, estabelecendo ao mesmo tempo o vínculo compartilhado por ambos: sua origem

épica, refletida na imagem do mar. O autor ressalta, contudo, que existe uma diferença

entre a narrativa (a poesia épica) e o romance, definida em larga medida pela relação

estabelecida entre o autor e a existência – metaforicamente, o mar. Se o narrador, como

poeta épico, é aquele que observa o mar e recolhe o que sua água deita sobre a areia, o

romancista navega, solitário77. Essas diferentes atitudes, ou formas de relação entre o autor

e a “existência”, se traduzem nos vínculos sociais que articulam o poeta épico ou romancista

à obra e a seu receptor (ouvinte ou leitor). Não se trata, contudo, de um vínculo que

dependa apenas da intenção do autor, pois “a instauração de um narrador não é um

fenômeno exclusivamente literário, mas é também o produto da articulação entre literatura

e experiência histórica”78. Embora Benjamin aqui não se detenha, como o faz no ensaio “O

narrador”, sobre a discussão da origem comum das duas formas épicas (narrativa e

romance), e nem explique a distinção entre ambas segundo um processo histórico que teria

propiciado a predominância do romance sobre a narrativa, o vínculo histórico que

determinaria esse desenvolvimento era um tema comumente discutido na época e participa

da resenha como um pressuposto. Portanto, o espaço cada vez maior ocupado pela leitura

dos romances contribuiria para o declínio da narrativa – declínio que, atrelado ao ocaso da

experiência, Benjamin discutirá no ensaio sobre “O narrador”. Segundo sua perspectiva, a

narrativa, “o espírito épico em toda sua pureza79”, estaria enfaticamente relacionada à

75 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Não contar mais?” in :__. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:

Perspectiva, 2007. p. 62. 76 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 54. 77 Idem, ibidem, p. 54. 78 GATTI, Luciano. “O foco da crítica: arte e verdade na „Correspondência‟ entre Adorno e Benjamin”, 2008, 292 f.

Tese (Doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas, 2008. p. 112.

79 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 55.

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tradição oral. Posto que no romance a vida é o incomensurável levado “ao paroxismo”80 , ou

seja, é o que mal pode ser dito, sua presença cada vez mais homogênea em detrimento da

narrativa representava à comunicabilidade da épica uma “ameaça”, pois sua forma baseada

na solidão do indivíduo ajudava a emudecer o homem interior81.

Com efeito, no ensaio “O narrador”, Benjamin insiste no aspecto oral inscrito na

epicidade da narrativa. A oralidade, nesse caso, não parece coincidir exatamente com a

apropriação feita em Berlin Alexanderplatz dos fragmentos de discurso da cidade ou da

presença do dialeto berlinense, mas, sim, estar associada à possibilidade de transmissão

comunitária de uma experiência que relaciona presente e passado na vida do ouvinte.

Quando o tempo é participado pelos membros da comunidade por gerações, as narrativas

permanecem significativas e, por isso, são constantemente contadas e reelaboradas, de

forma que a fala dos antigos narradores continua presente, embora não seja imutável. O

que resultaria dessa reiteração oral das histórias, no ensaio “O narrador”, seria uma

“superposição de camadas finas e translúcidas”82. Já na resenha sobre o romance de

Döblin, a acentuada importância conferida ao aspecto da oralidade se transfigura no elogio

feito por Benjamin do uso da “montagem” como “princípio estilístico do livro”83. A presença

do “espírito do dialeto berlinense”84, diz o autor, inspira o próprio ritmo do texto,

assemelhando-se, portanto, ao tom familiar que o narrador épico adota diante dos ouvintes

ao transmitir seus conselhos. No entanto, as “histórias escandalosas”, canções, anúncios,

textos bíblicos e cantigas infantis são todos textos retirados da vivência compartilhada dos

indivíduos e cerzidos na malha do romance; esse conjunto representaria a vida cotidiana a

serviço da arte85. Correspondentes aos “versos estereotipados da antiga epopeia”86, esses

fragmentos representam, no interior do texto, o discurso comum e reconhecível da vivência

do habitante da metrópole. E poderíamos nos perguntar se a justaposição desses materiais

não seria capaz de conferir ao texto algo análogo àquela sobreposição de camadas de

histórias. Próximo à colocação de Benjamin, pensando a reestruturação do romance como

“obra épica”, Döblin anuncia em 1917: “no romance, trata-se de dispor em camadas, de

80 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 54. 81 “Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente o espírito da

narrativa que o espaço cada vez maior e cada vez mais impudente que a leitura dos romances ocupa em nossa existência.” Idem, ibidem, p. 55.

82 BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 206. 83 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 56. 84 Idem, ibidem, p. 57. 85 Idem, ibidem, p. 56. 86 Idem, ibidem, p. 56.

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amontoar, de revolver, de empurrar”87. “Empilhando” diferentes histórias e materiais, essa

estrutura montada carregaria para dentro do romance Berlin Alexanderplatz os inúmeros

fios da malha cotidiana. E o que proporcionaria peso a esses materiais, ainda segundo o

autor, seria o fato de sua escolha não conter nada de arbitrário; afinal, “a verdadeira

montagem se baseia no documento”88, que confere “autoridade à ação épica”89.

Por mais claro que seja o tom elogioso no princípio da resenha de Benjamin, a crítica

ao romance é ambivalente e cifrada, distinguindo duas faturas, diversas por sua forma de

composição e seu efeito. Por um lado, o romance de Döblin seria capaz de recuperar a “voz

do narrador nato” na medida em que comunica algo que é realmente participado pelo

leitor90, mas também porque, por meio do uso da montagem, apropria-se do cotidiano e,

portanto, de materiais que pertencem à vida comum. É com essa inovação, principalmente

formal, destaca Benjamin91, que o livro de Döblin enfrentaria aquele problema

característico do romance: a ausência de transmissão de algo que reflita na vida do próprio

leitor. Revertendo o disperso – os materiais que não possuem relação aparente entre si –

em vivência coletiva, Döblin alcançaria o lado épico, foco das próprias reflexões

desenvolvidas desde o “Programa berlinense”, de 1913.

No entanto, se o entusiasmo de Benjamin com o uso dos materiais do cotidiano é

inegável, o comentário sobre a fábula de Franz Biberkopf é mais turvo. Carla Damião,

autora de Crise da narração, crise do romance, também destaca essa dupla visada presente

na resenha de Benjamin, mas acredita ver no comentário do autor sobre a “trajetória” de

Biberkopf uma translúcida crítica negativa92. Segundo Damião, a frase “a história de Döblin

é burguesa, limitadora muito mais pela própria origem do que tendência ou intenção”

estaria ligada ao comentário feito por Benjamin, alguns anos mais tarde, sobre a posição

política de Döblin93. Com efeito, na conferência “O autor como produtor”, Benjamin critica

87 DÖBLIN, Alfred. Observações sobre o romance. In: GREGORY, Alceu João. O romance O tigre azul como forma

estética do pensamento histórico de Alfred Döblin, p. 315. No original: DÖBLIN, Alfred, Bemerkungen zum Roman. Aufsätze zur Literatur, p. 20.

88 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 56. 89 Idem, ibidem, p. 56. 90 “Ele [o romance] tem sua moral, que afeta mesmo os berlinenses”. Idem, ibidem, p. 57. 91 “A montagem faz explodir o “romance”, estrutural e estilisticamente, e abre novas possibilidades, de caráter épico.

Principalmente na forma”. Idem, ibidem, p. 56. 92 DAMIÃO, Carla Milani. “Crise da narração, crise do romance. O contexto histórico-filosófico da teoria narrativa

de Walter Benjamin”, 1995. Dissertação (Mestrado em Filosofia): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1995, p. 149.

93 “Essa visão social e política que norteia os experimentos teatrais de Brecht e os radiofônicos de Benjamin, parece faltar a Döblin embora [...] fosse “simpatizante” do socialismo. Parece ser esse aspecto ao qual Benjamin se reporta quando diz que: „ a história de Döblin é burguesa, limitadora muito mais pela própria origem do que pela tendência ou intenção”. DAMIÃO, ibidem, p. 148. Ver também: BONOMO, Daniel R. “Colocutores em trânsito: os tontos movimentos dos romances „Grande Sertão: Veredas‟ e „Berlin Alexanderplatz‟”. 2007. Dissertação (Mestrado em Literatura Alemã). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 15-15; e KIESEL, Helmuth. Alfred Döblin: Montageroman, Geschichte der literarischen Moderne. Sprach Ŕ Ästhetik Ŕ Dichtung Im zwanzigsten Jahrhundert. C. H. Beck, München, 2004, p. 216-317.

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o que observa como uma tendência política representada na “moda da reportagem”94,

lançada pela Neue Sachlichkeit e, nomeadamente, censura Döblin por ter renunciado à

tomada pública de posição política ao lado do proletariado. Ocorre que, de todo modo, a

crítica de Benjamin contida nesse ensaio é posterior à publicação da resenha sobre Berlin

Alexanderplatz e está relacionada a um texto que Döblin publica em 1931, notadamente

“Wissen und verändern!”95. Parece que seu embate com Döblin nesse texto está

diretamente focado nas ideias difundidas no ensaio “Wissen...”, e não em relação à

composição formal do romance de Döblin no que diz respeito à montagem – artifício

artístico que Benjamin ainda elogia, mas agora citando apenas seu emprego pelo teatro

épico de Bertolt Brecht. Contudo, ao menos uma questão levantada no ensaio “O autor

produtor” pode lançar luz sobre a resenha que Benjamin escrevera sobre Berlin

Alexanderplatz. Essa questão está colocada nas divergências explicitadas pelo autor em

relação ao que este enxerga como “produto” da Neue Sachlichkeit: a transformação da “luta

contra a miséria”96 “em objeto de consumo”.

Retornando à resenha sobre o romance, quando Benjamin comenta especificamente

a fábula de Biberkopf, há uma série de elogios e críticas que se misturam, tornando difícil

apartar aquilo que seria positivo na fatura do livro dos problemas que este não resolve. Por

exemplo, quando comenta a história de Biberkopf, Benjamin reflete que “como verdadeiro

poeta épico”, o narrador (ou “autor”, segundo os termos da resenha) se ausenta, deixando

que a história corra lentamente – o que é fortalecido pelo ritmo compassado do dialeto

berlinense. A inscrição desse ritmo comum ao cidadão no desenvolvimento da própria obra

seria “uma das forças que se voltam contra o caráter fechado do velho romance. Pois este

livro nada tem de fechado. Ele tem sua moral”97, conclui Benjamin. Na exposição mais

detalhada das características da narrativa épica desenvolvida em “O narrador”, vemos que

tanto o “texto aberto” quanto a “moral da história” são apresentados como elementos

constitutivos da narrativa épica98.

Se o uso do dialeto é explicitamente elogiado, a relação que o livro de Döblin

estabelece entre o mundo dos marginais e o mundo burguês dá ensejo a uma crítica

94 BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor” in:__. Magia e técnica, arte e política, p. 128. 95 DÖBLIN, Alfred. “Wissen und verändern!” In: Der deutsche Maskenball. Wissen und verändern. Olten und

Freiburg im Breisgau: Water Verlag, 1972. p. 127-266. 96 BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”, op. cit., p. 130. 97 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 57. 98 “Com efeito, o „sentido da vida‟ é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é

outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, o „sentido da vida‟, e no outro, „a moral da história‟ – essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa. (...) o romance chega a seu fim, e este é mais rigoroso do que em qualquer narrativa.”.BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 213.

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ambivalente. Por um lado, isso implicaria, para Benjamin, algo importante99 e, por outro,

um aspecto restritivo do romance de Döblin. Em seu aspecto positivo, a miséria retratada

no romance seria a miséria real, que precisava “se virar” e dar um jeito de “chegar ao fim do

mês” – e “um grande narrador era necessário para reafirmar essa verdade”100. Mostrando a

face real da miséria em que vive parte da população de Berlim, portanto, essa representação

da miséria não seria equivalente àquela retratada em na “subliteratura naturalista” ou no

que Kracauer designa como “romance-reportagem”101. Por outro lado, diz Benjamin:

Diz-se que Lenin só odiava uma coisa com ódio mais fanático que a miséria: compactuar com a miséria. Essa atitude, com efeito, é de certo modo burguesa; não somente no sentido mesquinho do desleixo, mas no sentido maior da sabedoria. Nesse sentido a história de Döblin é burguesa numa acepção muito mais restritiva que se considerássemos apenas sua tendência e sua intenção: ela é burguesa por sua origem. [...] O mundo desses marginais é homólogo ao mundo burguês; a trajetória de Franz Biberkopf, de proxeneta a pequeno-burguês, descreve apenas uma metamorfose heroica da consciência burguesa.102

O que antes havia sido encarado como algo positivo (a representação da “miséria

real” em oposição à “miséria temida”) reverte-se em fraqueza da obra: o ato de compactuar

com a pobreza. O que significa dizer que não é por sua intenção que a obra é burguesa, mas

pela origem? Já vimos que Damião sustenta que a “origem” (no caso, Abkunft) designaria o

fato de o romance ter sido escrito por Döblin, de quem após alguns anos Benjamin

demonstrará divergir por razões políticas. Embora seja possível associar o termo “origem”

ao autor da obra, Döblin, parece-me mais interessante pensar em outra hipótese,

autorizada pela argumentação que se segue à frase ora discutida. Benjamin aprofunda seu

comentário aproximando o livro de Döblin à obra de Charles Dickens – a afinidade entre

ambas residiria na identificação entre o mundo dos marginais com o mundo burguês. O

parentesco que Benjamin forja entre, de um lado, Berlin Alexanderplatz, e, de outro,

Charles Dickens, A educação sentimental e o Bildunsgroman [romance de formação]

autoriza a associação do problema da “origem” à irrevogável condição do livro, qual seja, de

que se trata de um romance.

Seguindo essa hipótese, é possível explicar a crítica à representação da miséria em

Berlin Alexanderplatz a partir da reflexão de Benjamin sobre a própria forma do romance.

Em “O narrador”, o estudo realizado por Georg Lukács em A teoria do romance é elogiado

99 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 56. 100 Idem, ibidem, p. 58. 101 “O romance-reportagem falha tanto diante da representação dos fatos como das exigências expressivas do

romance enquanto forma. Movimenta-se impotente entre ciência e configuração épica, descoberta e documentário”. KRACAUER, S. Apud: MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. “A Crítica de Siegfried Kracauer ao „Romance-Reportagem‟”. In: XI Congresso Internacional da Abralic. Anais, p. 2.

102 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 59.

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por Benjamin, pois este teria revelado “com grande lucidez” a relação que a forma

romanesca estabelece com a transmissão do ensinamento e teria iluminado como se dá a

presença do tempo no interior da obra103. Ao fim do romance, segundo Lukács, a luta contra

“o poder do tempo” seria sempre fracassada, mas à personagem estaria garantida a

reminiscência, as lembranças dos eventos transcorridos, quando enfim seria possível

“intuir” o sentido da vida, que permanece, contudo, inexprimível. Não seria outro o

percurso de Biberkopf104. Ao final do romance, Biberkopf retorna a Berlim, protegido em

seu cubículo de porteiro, sendo consolado pela lembrança de sua vida, que o torna “mais

esperto” que os outros. Permanecendo nessa linha de análise, embora essas lembranças o

tornem mais “esperto”, o sentido alcançado é inexprimível, e sua recém-adquirida esperteza

em nada pode ajudar ao leitor.

Esse possível percurso analítico talvez explique a referência feita por Benjamin à

sabedoria, ou seja, à necessidade de concluir o romance com uma articulação a partir da

qual a toda trajetória por ele exposta deveria ser iluminada. Residiria, portanto, justamente

na conclusão de Berlin Alexanderplatz o momento em que a obra compactua com a

pobreza. Se a pobreza e a marginalidade seriam apenas um estágio da vida burguesa, um

estágio superável, então a “luta contra a miséria” teria sido transformada em “objeto de

consumo”. Sem dúvida, Benjamin elogia “a arte inesquecível” com que Döblin narra o

“amadurecimento” de Franz, mas o elogio escancara seus ares críticos na aproximação ao

romance de formação e a Flaubert.

A educação sentimental, de Flaubert, seria para Benjamin um grande exemplo do

caráter fechado de uma obra literária, opondo-se à narrativa tradicional que, chegando ao

fim, sempre sugere uma continuação. Em A educação sentimental, descrito por Benjamin

como o modelo “mais recente” do romance105, o desfecho do percurso biográfico impõe uma

conclusão irrevogável à história, convidando o leitor a buscar o sentido daquela vida.

Contudo, uma vez que o sentido não é atingido pela própria história, ele tampouco pode ser

expresso, de onde resulta que o romance seja “o incomensurável levado ao paroxismo”. A

Berlin Alexanderplatz e ao romance de Flaubert é associado também o romance de

formação [Bildungsroman] Wilhelm Meister. Embora na resenha de 1930 ele seja citado

apenas ao final da reflexão, no ensaio “O narrador” parece mais claro que o efeito dessa

aproximação está mais próximo da crítica do que do elogio. Benjamin vê no romance de

103 BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 212. 104 “Chegamos ao fim desta história. Tornou-se longa, mas precisava alongar-se e, alongar-se cada vez mais, até

atingir seu clímax, o ponto de inflexão, a partir do qual recai então a luz sobre o todo”. DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 519.

105 BENJAMIN, Walter. “O narrador”, op. cit., p. 212.

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Goethe uma tentativa de inserir a transmissão do ensinamento em um tipo de forma

literária em sua essência “refratária ao conselho”106. Por isso, o problema do

Bildungsroman residiria no fato de que a integração da estrutura social na vida do

indivíduo resultaria em uma frágil justificação dessa mesma estrutura. Desse modo, dizer

que o romance de Döblin constituiria um “estágio” do romance de formação107 significa que,

ao fazer da história do marginal Biberkopf apenas uma transformação “heroica da

consciência burguesa”, ou seja, o relato da adequação de um homem que é por fim capaz de

inserir-se no mercado de trabalho, o romance justificaria, ao fim e ao cabo, o processo

social apresentado durante todo o desenvolvimento de sua biografia.

Entre as várias reflexões apresentadas na resenha ensaística de Benjamin, o

desenvolvimento de duas, em especial, pode contribuir para a discussão do presente artigo.

O primeiro leva em conta o uso da montagem, e o segundo, o retorno de Biberkopf à cidade

de Berlim. A divisão entre esses dois níveis de texto, ou seja, por um lado, a montagem de

episódios heterogêneos e, por outro, a biografia individual de Biberkopf, poderia sugerir

uma estrutura cindida, na qual não houvesse qualquer relação entre as partes. Ou, como

disse David Dollenmayer em seu ensaio, que não atuasse sobre a constituição do narrador

onisciente. Se há uma relação entre as partes, esta não é determinação total, mas de

interpenetração semântica. A relação que se estabelece, por exemplo, entre cenas como a do

matadouro, ou a de Jó, e os eventos que marcam o percurso de Biberkopf é de implicação

mútua. Há na aproximação efetuada pela montagem um caráter análogo ao procedimento

alegórico justamente porque a relação que a montagem permite conferir às cenas não é

plenamente determinada. O conceito de alegoria aqui utilizado entende que ela

compreende dois aspectos, “l‟un qui est l‟aspect immédiat et littéral du texte; l‟autre qui en

est la signification morale, psychologique ou théologique”108. Partindo dessa leitura, pode-

se analisar, por exemplo, a cena do matadouro em relação à ignorância de Biberkopf, cuja

falta de ponderação traça seu caminho rumo à morte, mas seu sentido também pode ser

tomado da descrição do funcionário que apenas “cumpre a função que lhe compete”109. Aí

estaria expressa a realização do desejo de Franz por um mundo ordenado, evidenciado em

sentenças como: “não tem nada contra os judeus, mas é a favor da ordem. Pois é preciso

haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de reconhecer”110. O matadouro poderia ser

106 Idem, ibidem, p. 202. 107 BENJAMIN, Walter. “Crise do romance”, op. cit., p. 60. 108 MORIER, Henri. Allégorie. Dictionnaire de poétique et de rhétorique. Paris: Presses Universitaires de France,

1998, p. 65. 109 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 154. 110 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 89.

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alegoricamente interpretado, portanto, como a imagem desse mundo organizado sonhado

por Franz (“é preciso haver ordem no paraíso”), em que o arbítrio individual seria delegado

à ordem estabelecida111: assim como o funcionário do matadouro não deve ser julgado, pois

só “cumpre a função que lhe compete”, também Franz não quer ser responsabilizado por

vender jornais nacionais-populistas, embora “nada tenha contra judeus”112. Isso significa

que, na medida em que a forma não impõe um significado unívoco da aproximação entre as

partes, tampouco o leitor pode determiná-lo. O que importa dessa “alegoria implícita”113 é

que sua imagem em movimento apresentada no episódio do matadouro não se resume a

essa significação “moral” sempre latente, pois sua significação literal permanece, ainda que

novos significados possam ser a ela agregados. Essa interpretação converge com o conceito

de “visão figural” que Erich Auerbach utiliza para discutir o realismo medieval e da

Antiguidade tardia, conforme comentado em Mimesis:

Para a visão mencionada [figural], um acontecimento terreno significa, sem prejuízo da sua força real, concreta, aqui e agora, não somente a si próprio, mas também outro acontecimento, que repete prenunciadora ou confirmativamente; e a conexão entre os acontecimentos não é vista preponderantemente como desenvolvimento temporal ou causal, mas como unidade dentro do plano divino, cujos membros e reflexos são todos os acontecimentos.114

Essa “visão figural”, portanto, possibilita que dois acontecimentos sem relação

temporal ou causal sejam reunidos em uma unidade de sentido. O que propiciava essa

unidade fechada, na leitura exegética da Bíblia, era o plano divino, que garantia a função

ocupada por cada uma das partes. Contudo, é esse plano transcendental que está ausente

em Berlin Alexanderplatz. Resulta daí que o desaparecimento dessa conjuntura, que

conferia um sentido unívoco à reunião das partes, expõe a ruptura que a unidade temática

tenta conformar.

A estrutura do romance de Döblin, cujo efeito remonta ao procedimento alegórico,

insere uma ruptura na trama. Ela rompe o desenvolvimento da biografia, causando uma

suspensão no desenvolvimento da história. O efeito que essa indeterminação do significado

produz pode ser descrito como uma sensação de “vertigem”: “não há mais ponto fixo, nem

no objeto nem no sujeito da interpretação alegórica, que garanta a verdade do

conhecimento”115. Essa indeterminação também ocorre em relação à justaposição dos

111 ROMANELLO, Janice de Fátima Belther. “A poética de Alfred Döblin e a manifestação do grotesco em Die

Ermördung einer Butterblume e em Berlin Alexanderplatz”. Tese (Doutorado em Literatura Alemã), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. p. 75.

112 DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz, p. 89. 113 MORIER, Henri. Allégorie. Dictionnaire de poétique et de rhétorique, p. 71. 114 AUERBACH, E. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.

500-501. 115 GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Alegoria, morte, modernidade” in: História e narração em Walter Benjamin, p. 40.

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trechos da metrópole. O expediente da montagem, interpondo à trama fragmentos que a ela

não se relacionam diretamente, ocasionam um deslocamento de atenção, fazendo com que

a história de Franz seja colocada em perspectiva, tornado-se apenas mais um elemento,

intercambiável entre outros elementos.

Klaus Scherpe, em seu texto, “Von der erzählten Stadt zur Stadterzählung. Der

Groβstadtdiskurs in Alfred Döblins „Berlin Alexanderplatz‟”116 discute a importância que

possui a colagem dos fragmentos no romance. Scherpe insiste na necessidade de abandonar

a “erzählte Stadt”117, ou seja, a “cidade narrada” que caracterizaria a forma de representação

do espaço urbano na narrativa do século XIX, “demolindo o tradicional edifício narrativo,

para criar espaço para a construção moderna da obra épica”118. A questão, portanto, seria

como elaborar uma Stadterzählung, um “discurso da cidade” que encontrasse os meios de

pensar literariamente a narrativa metropolitana. Scherpe vê na forma do Berlin

Alexanderplatz esse novo discurso da cidade. A Berlim reconfigurada por Döblin apareceria

então:

como “segunda” (será que „terceira‟?) natureza, construída segundo uma lógica, que justamente por isso se tornaria efetiva; ela não se reduziria ao “núcleo” de um ou outro discurso, e nem poderia ser facilmente determinada por um contexto que criasse estabilidade. A cidade, como inter-relação comunicativa de todas as relações e negócios (transações) humanos, perderia seus limites e seria pulverizada119.

Em outros termos, a união dos textos recolhidos dos jornais, dos cacos de histórias

individuais, dos refrões musicais não estabeleceria uma conexão entre todos. Pelo

contrário, a metrópole deveria ser compreendida como um espaço engendrado por

diferentes discursos marcados pela perda de sua integridade. Construída a partir de

fragmentos, é a representação de uma realidade que reproduz a lógica de troca, a saber, da

equivalência de todos os elementos, e sua consequente substituição. Dessa forma, assim

como os anúncios escolhidos, as frases reproduzidas poderiam ser facilmente substituídas

por outras – o que também acontece com as pequenas histórias que o narrador coleciona

das ruas de Berlim. São fragmentos de identidades que se configuram e resolvem no

pequeno espaço que lhes é concedido, privados de um desenvolvimento integral que

denotasse sua singularidade e que conferisse necessidade específica à sua introdução.

Desprovidos desse desenvolvimento e necessidade, tornam-se elementos que podem ser

116 [Da cidade narrada à narrativa da cidade. O discurso da metrópole em Berlin Alexanderplatz de Alfred Döblin]

SCHERPE, Klaus R. „Von der erzählten Stadt zur Stadterzählung. Der Groβstadtdiskurs in Alfred Döblins ‚Berlin Alexanderplatz„“ in: Fohrmann, Jürgen; Müller, Harro [Hrsg]. Diskurstheorien und Literaturwissenschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 418-437.

117 Aqui, Scherper procura traçar uma oposição a Volker Klotz. 118 Idem, ibidem, p. 419 [Tradução nossa]. 119 Idem, ibidem, p. 419.

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substituídos por qualquer outro. É dessa forma que a montagem, mais do que simples

figuração da realidade, torna-se denúncia da lógica do sistema à margem do qual se

movimenta a personagem.

Em seu livro Fisiognomia da metrópole moderna120, Willi Bolle avalia, comentando

Benjamin, que a vida do indivíduo da metrópole é marcada pelo choque. Seu cotidiano seria

estruturado a partir de “„vivências de choque‟ [Chockerlebnisse], impactos que ele [o

indivíduo] tem de aparar aguçando ao máximo sua consciência”, sendo-lhe exigido que viva

por reflexos, sem “tempo para formar sua experiência, um eidos de vida, uma imagem de

si”121. Benjamin fundamenta sua argumentação a partir de uma leitura de “Além do

princípio de prazer” [1921], de Sigmund Freud. O diagnóstico de Freud, segundo o qual o

que é transferido à consciência não se mantém como memória122, é transposto por

Benjamin para o contexto da metrópole, em que o contato com as massas urbanas

estimularia uma reação constante e intensa por parte da consciência. Na poesia de

Baudelaire, Benjamin constata uma tentativa de transformar a própria vivência do choque

em estrutura literária123.

Como Scherpe aponta na obra de Döblin, a vivência do choque e a desagregação da

experiência são tornadas tema e forma do livro. Talvez possamos aproximar essa fatura do

que fez em sua obra o próprio Benjamin: Döblin mobiliza uma estrutura calcada na

justaposição de fragmentos para fazer o tema tornar-se forma, na medida em que a estética

do fragmento “representa a experiência da vida moderna não apenas tematicamente, mas

[…] como forma expressa o ritmo urbano”124. Se de fato a montagem do texto impõe uma

descontinuidade na representação do tempo, então poderia haver uma afinidade entre essa

estética de composição formal e algo da ordem de uma historiografia materialista

desenvolvida por Benjamin no texto “Sobre o conceito de história”125. Nesse texto, tão

conhecido quanto nebuloso, Benjamin insiste na necessidade de inserir uma cesura naquilo

que, como observa Jeanne Marie Gagnebin, em “História e cesura”, seria caracterizado

como “uma narração que pretende traduzir na sucessão das palavras e das frases o

encadeamento do real”, que “acarreta uma narrativa falsamente „épica‟”, como se todos os

acontecimentos pudessem encadear-se uns aos outros no fluxo sem obstáculos da história

120 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2000. 121 Idem, ibidem, p. 345. 122 BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”, op. cit., p. 108-111. 123 Idem, ibidem, p. 112. 124 BOLLE, Wille. Fisiognomia da metrópole moderna, op. cit., p. 158. 125 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História” in:__. Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 222-232.

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universal”126. Nesses termos, o recurso da montagem seria capaz de estabelecer a cesura no

interior da própria conformação da obra, rompendo a continuidade linear dos fatos, sem

possibilidade de estabelecer uma totalidade a partir de seus elementos heterogêneos, uma

vez que se realizaria como a elaboração formal possível de uma realidade que se deixa

representar apenas por meio de fragmentos. A obra, dessa forma, seria “denúncia crítica da

„falsa aparência de totalidade‟”.127

126 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “História e cesura” in:__. História e Narração em Walter Benjamin, op. cit., p. 98. 127 Idem, “Alegoria, morte, modernidade” in:__. História e Narração em Walter Benjamin, op. cit., p. 43.

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Louis-Ferdinand Céline Voyage au bout de la nuit e a crise do realismo

Daniel Garroux*

O romance Voyage au bout de la nuit, publicado em 1932, tem sido classificado

pelos críticos como “picaresco”, “filosófico”, “de formação” etc. No que pese o valor dessas

caracterizações, acredito que seja mais proveitoso partir da análise cerrada da obra para

depois tentar situar Voyage... em um contexto mais amplo de questões. Para isso, tomo

como ponto de partida as relações entre a posição do narrador e o estilo, ancorando as

hipóteses interpretativas na objetividade do texto e adensando pouco a pouco o enigma que

a esfinge celineana nos propõe.

Ao colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma

consciência cindida por experiências traumáticas, a narrativa de Voyage... subverte alguns

dos pressupostos de que o gênero do romance havia se servido até então, como o

tratamento ilusionista de tempo e espaço, o predomínio da função referencial da linguagem

e a construção de personagens autônomas, dotadas de psicologia complexa. O romance

realista do século XIX, em larga medida, apoiava-se sobre uma “consciência central”

(geralmente oculta sob a forma de um narrador em terceira pessoa) que organizava o

material empírico antes de transmiti-lo ao leitor. Em Voyage... a certeza dessa consciência

central se encontra abalada, e o difícil processo de tentar recompor a experiência por meio

da linguagem é exposto ao leitor.

Embora algo da mesma ordem tenha ocorrido na obra dos grandes romancistas do

começo do século XX, como Joyce, Faulkner e Virginia Woolf, a narrativa de Voyage...

percorre via própria, e as eventuais semelhanças se originam menos de uma influência

direta daqueles autores sobre Céline do que do caráter comum das experiências históricas

sedimentadas nas obras, que, sob olhar panorâmico, condicionaram a crise do realismo e o

advento de um novo tipo de romance.

* *

* Mestrando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP, bolsita do CNPq.

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Primeiros sintomas

La grande défaite, en tout, c‟est d‟oublier, et surtout ce qui vous a fait crever, et de crever sans comprendre jamais jusqu‟à quel point les hommes sont vaches. Quand on sera au bord du trou faudra pas faire les malins nous autres, mais faudra pas oublier non plus, faudra raconter tout sans changer un mot, de ce qu‟on a vu de plus vicieux chez les hommes et puis poser sa chique et puis descendre. Ça suffit comme boulot pour une vie tout entière.1

Ainda em 1932, pouco após sua publicação, o romance Voyage au bout de la nuit, de

Louis-Ferdinand Céline (até então um ilustre desconhecido no ambiente literário francês),

foi saudado por um artigo entusiasta de Léon Daudet, o que contribuiu muito em sua

divulgação. Além disso, o fato do romance ter sido rejeitado pelo júri do prêmio Goncourt

do mesmo ano levou muitos críticos a escreverem artigos nos quais – em meio à polêmica

sobre o livro que o júri se recusara a premiar2 – havia alguma reflexão acerca dos aspectos

propriamente literários do romance. Tamanha polêmica contribuiu tanto para a divulgação

de Voyage... quanto para a construção da imagem de obra maldita. Imagem cujo fundo de

verdade está em apontar a vertiginosa capacidade do romance em impactar os leitores. Em

contrapartida, essa vocação para o escândalo acabou fazendo com que os aspectos formais

da obra fossem obnubilados. A questão mais relevante e evidente só foi levantada em

fevereiro de 1933 por Jean Cabanel, nas páginas da revista Triptyque:

De onde vem afinal o encanto desse livro atroz e como explicar que os mesmos que o chamam de criminoso e asfixiante não podem deixar de saudá-lo como uma obra-prima?3 Dentre as inovações que chamaram a atenção da crítica, destacava-se a linguagem

inventada pelo autor, na qual palavras e expressões oriundas do baixo registro da língua

francesa mesclavam-se a registros elevados – Jean Cabanel provavelmente se referia a isso

ao utilizar o par dissonante “encanto/atroz” para caracterizar o efeito inaudito produzido

pelo linguajar do livro. Embora, já em 1916, Henri Barbusse tenha colocado a linguagem

1 CÉLINE, Louis-Ferdinand. Voyage au bout de la nuit. Paris: Éditions Gallimard, Folio 60, 2006, p.31. “A grande

derrota, no fundo, é esquecer, e sobretudo aquilo que fez você morrer, e morrer sem nunca compreender até que ponto os homens são cruéis. Quando estivermos com o pé na cova, nada de bancarmos os espertinhos, nós aqui, mas também nada de esquecer, vamos ter de contar tudo sem mudar uma palavra do que vimos de mais celerado entre os homens e depois calar o bico e depois descer. Isso aí é trabalho suficiente para uma vida inteira.” Viagem ao fim da noite/ tradução Rosa Freire d‟Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 32.

2 Em artigos de grande circulação, Lucien Descaves e Léon Daudet atacaram os irmãos Rosny, integrantes do júri que se recusaram a premiar Voyage... Maurice-Yvon Sicard, na revista Le Huron, acusou os Rosny de terem sido comprados e o caso foi parar nos tribunais. Os ânimos só se acalmaram quando Voyage obteve o prêmio Renaudot do mesmo ano. Para uma exposição mais detalhada da contenda: AJALBERT, Jean. Mémoirs à rebours, t.I, Réglements de Compte/ Paris: Denöel & Steele, 1936, p.203 sq.

3 “D‟où vient donc le charme de ce livre atroce et comment expliquer que ceux-là mêmes qui le disent criminel et asphyxiant ne peuvent s‟empêcher de le saluer du nom de chef-d‟œuvre ?”. CABANEL, Jean. Louis Ferdinand Céline. In : DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935. Para tornar a argumentação mais acessível, optei por traduzir os trechos em francês que não possuem versão em língua portuguesa. Adianto que se trata de uma tradução puramente instrumental, com fins didáticos. Quando os textos em francês são excertos literários, mantenho a versão original no corpo do texto e transcrevo a tradução em nota.

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popular na boca de personagens de seu romance Le Feu, em Voyage... a própria instância

narrativa é contaminada por procedimentos típicos da língua oral. Gonzague Truc, no

artigo “Contre un roman de l‟abjection”, criticou a linguagem forjada por Céline nos

seguintes termos:

Notemos, ainda, o que há de desajeitado nessa afetação de um estilo de vagabundo, enquanto o personagem que fala é médico. É pouco verossímil que um mesmo indivíduo diga: „e aí ele me disse...‟ e, dez linhas depois, disserte sobre Marcel Proust de tal maneira... Não... (...) nós continuamos a nos perguntar se devemos perdoar seu autor por tê-lo escrito, e seus editores por terem-no publicado.4

Embora prescritivo, o diagnóstico de Gonzague Truc percebe a especificidade da

linguagem do narrador no romance. Não obstante, essa linguagem não é simples “afetação”

da fala de um “vagabundo”, mas elaboração estilística que mescla diversos registros,

inserindo-os em outro contexto e transformando seu significado original. Inventiva, irônica

e desabusada, a linguagem empregada pelo narrador imprime suas feições em todo o

universo ficcional do romance. Victor Margueritte, ainda em 1932, também investiu contra

o livro com argumentos muito próximos aos de Gonzague Truc:

O que significa essa narrativa que se diz autobiográfica em que um médico se expressa como um mestiço de apache e camponês rocambolesco? Ou Louis-Ferdinand faz troça, ou ele abusa do direito que o verdadeiro às vezes possui de não ser verossímil.5

Ao atacarem a obra, esses críticos acabaram detectando justamente os pontos

sensíveis de ruptura com a tradição anterior do gênero. Do desrespeito sistemático em

relação ao critério de verossimilhança levado a cabo em Voyage... é parte fundamental a

criação de uma personagem de feições híbridas como Bardamu (personagem que inclusive

se duplica em outras personagens), cujas ações já não podem ser entendidas como uma

resultante das motivações, de seu destino pregresso, de suas características físicas e

psicológicas e do meio em que está inserido – como acontece, por exemplo, com uma

criatura como Emma Bovary. Compreender as ações de Bardamu e de seu duplo, Robinson,

exige um salto especulativo que não exclui a atuação de forças motrizes inconscientes, algo

que, a certa altura, o próprio narrador de Voyage... confessa ao leitor:

4 “Notons, de plus, ce qu‟il y a de maladroit dans cette affectation d‟un style de voyou, alors que la personnage qui

parle est médecin. Il est peu vraisemblable qu‟un même individu dise : „qu‟il me dit...‟ et, dix lignes plus loin, disserte sur Marcel Proust de pareille façon... Non.... (...) nous continuons à nous demander s‟il faut pardonner à son auteur de l‟avoir écrit, à ses éditeurs de l‟avoir publié”. TRUC, Gonzague. “Contre un roman de l‟abjection”. In : DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935, p.28.

5 “Et qu‟est-ce que ce récit soi-disant autobiographique où un médecin s‟exprime comme un apache mâtiné de paysan rocambolesque ? Ou Louis-Ferdinand Céline se moque, ou il abuse du droit qu‟a parfois le vrai de n‟être pas vraisemblant”. MARGUERITTE, Victor. In : DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935, p.35.

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“De nos jours, faire le « La Bruyère» c‟est pas commode. Tout l‟inconscient se débine devant vous dès qu‟on s‟approche.” 6

Além da “oralização” da voz narrativa, que produzia um estilo híbrido, os detratores

da obra criticavam sua estrutura ambígua, criada pela adoção da primeira pessoa e a

concomitante criação de um narrador-protagonista cuja trajetória retoma, em linhas gerais,

a biografia do próprio autor (a guerra, as viagens à África e aos Estados Unidos e o exercício

da medicina na periferia de Paris, são os exemplos mais evidentes). Embora o crítico se

sinta tentado a deslindar, no romance, o liame entre ficção e autobiografia, separando

episódios que fazem referência à trajetória do autor daqueles inteiramente inventados

(como a viagem como escravo em uma galé ou o trabalho como catalogador de pulgas), o

fato é que, após terem sido integrados ao universo da obra, o fato de esses materiais

constituírem “transposições” ou invenções deixa de ser relevante. Importa o seu papel

interno, a função que exercem e sua relação com outros componentes “dentro” do universo

criado pela obra literária. Lucien Rebadet, que tanto se equivocou, parece ter acertado ao

referir-se à obra de Céline como uma “fantasmagoria biográfica”. Céline, em uma de suas

cartas a Milton Hindus, explicou a relação entre sua obra e a “vida objetiva” nos seguintes

termos:

“... a vida objetiva, real, é-me insuportável [...] Ela me parece atroz, então eu a transponho sonhando, caminhando. Suponho que seja um pouco como essa doença geral do mundo chamada poesia.” 7 A mescla de ficção e autobiografia, contudo, não era invenção de Céline, vale lembrar

que apenas cinco anos antes, em 1927, fora publicado postumamente Le temps retrouvé,

último volume de La recherche du temps perdu. Em seus romances, Marcel Proust, assim

como Céline em Voyage..., utilizava-se de material autobiográfico abundante que, após o

processo de elaboração ficcional, consubstanciava-se ao universo da obra. Além disso, o

narrador-protagonista Marcel também emprega um estilo elaborado poeticamente e

distante do uso corrente do francês, mesmo de grande parte de seus registros escritos.

Por que, então, quando Proust era já um autor consagrado, o romance de Céline

sofria ataques tão veementes por criar um herói inverossímil e engendrar um estilo

“antinatural”? Provavelmente porque Marcel, o protagonista da Recherche... precisa ser

6 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, op. cit., p. 397. Tradução: “Nos dias de hoje, fazer-se de La Bruyère não é

fácil. Todo o inconsciente foge de você assim que você se aproxima”, p. 418. 7 “... la vie objective, réelle, m‟est insupportable [...] Elle me semble atroce, alors je la transpose tout en rêvant, tout

en marchant. Je suppose que c‟est à peu près la maladie générale du monde appelée poésie. ”ROUX, Dominique de: Cahiers de l‟Herne nº 5, Lettres à Milton Hindus, Édition de L‟Herne : Paris, 1965, p.84. Embora seja preciso desconfiar das opiniões que Céline, em sua correspondência, emite sobre a própria obra, nesse caso, como se trata de uma opinião sobre a motivação do escritor, não vi problemas em recorrer a essa carta.

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despido de sua roupagem aristocrática para que o conteúdo crítico de sua construção

(intencionalmente esgarçada) venha à tona, e principalmente porque o “encanto” da

linguagem entretecida por Proust, embora distante do francês convencional, nada tinha de

“atroz”.

Os longos períodos em que a “mémoire involontaire” do narrador da Recherche...

enreda seu leitor produzem uma sensação de infinita nostalgia, pois tudo o que é revelado

por esse narrador dotado de paciência infinita, cada nuance subjetiva de seus personagens,

cada detalhe arquitetônico de sua imensa catedral narrativa, está infinitamente distante do

presente da enunciação, em um passado absoluto, o que levou o crítico Erich Auerbach a

caracterizar La recherche... como a “epopéia da alma”8.

Nada mais distante dos cortes abruptos, das reticências e exclamações com que o

narrador de Voyage... expõe ao leitor suas hesitações, lapsos e imprecações. Tanto Proust

quanto Céline refutam as convenções realistas, mas o fazem por vias opostas: o estilo de

Proust encanta e envolve seu leitor em uma teia complexa, que o faz esquecer-se de si

mesmo, entre o sono e o despertar; o de Céline o açoita como uma descarga elétrica e lhe

impede a ordenação dos dados empíricos exigida pela reflexão.

Um narrador febril

Je leur raconterai plus rien à l'avenir! que je me disais, vexé. Je voyais bien que c'était pas la peine de leur rien raconter à ces gens-là, qu'un drame comme j'en avais vu un, c'était perdu tout simplement pour des dégueulasses pareils 9

A constituição de seu narrador é um dos pontos de ruptura mais sensível entre

Voyage... e o modelo do romance realista que, segundo o crítico Erich Auerbach, teria

alcançado sua culminância nos grandes romancistas franceses do século XIX. Grande parte

do efeito verdadeiramente revolucionário produzido pelo romance de Céline só pode ser

compreendido se tivermos em mente a tradição imediatamente anterior do grande realismo

com a qual ele rompia, forjada, em larga medida, pela tríade: Stendhal, Balzac e Flaubert10.

8 “Os acontecimentos passados já não detêm qualquer poder sobre ele Ŕ que jamais trata o passado remoto como

se não tivesse acontecido, nem o já consumado como se ainda estivesse em aberto. Por isso não há tensão, nenhum clímax dramático, nenhuma conflagração ou intensificação seguidos de resolução e apaziguamento. (...) Esta é a verdadeira epopéia da alma, na qual a própria verdade envolve o leitor num sonho longo e doce (...)” AUERBACH, Erich. “Marcel Proust: o romance do tempo perdido” in:__. Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica/Trad. Samuel Titan e Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades, Ed.34, 2007, p.340.

9 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, op. cit., p. 26. Trad.: "No futuro não vou contar mais nada para eles!", pensava eu, humilhado. Percebia muito bem que não valia a pena contar nada para essa gente, que um drama como o que eu havia presenciado pura e simplesmente não tinha o menor valor para uns sacanas daqueles!, p.28.

10 “Se observarmos corretamente, a França teve durante todo o século XIX a mais importante participação no surgimento e no desenvolvimento do moderno realismo.”, p.440, e também “Quando Stendhal e Balzac tomaram

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No corpus das obras desses três autores prevalece o ponto de vista narrativo em

terceira pessoa, que evita a exposição direta do artifício, de modo a favorecer a ilusão de

objetividade do material narrado. Entretanto, o fato de Voyage... ser narrado na primeira

pessoa não basta para explicar o quanto ele se opõe, no que tange à construção do ponto de

vista narrativo, ao modelo realista do século XIX. É preciso situar essa oposição em um

plano subjacente à simples escolha do ponto de vista, pois ela se assenta, em última

instância, nas transformações históricas que afetaram o gênero como um todo, embora o

ponto de vista bem possa ser tomado como ponto de partida para uma análise dessas

mudanças. Nesse sentido, pode-se observar que, mesmo nas exceções, ou seja, nos poucos

romances realistas do século XIX narrados em primeira pessoa, a função desse ponto de

vista narrativo era bastante diversa da que ele possuirá em Céline e outros autores do século

XX.

No prefácio da edição original de seu romance, Le Lys dans la Vallée, publicado em

1836, Balzac explica de modo sucinto por que, nesse livro, optou por um narrador em

primeira pessoa:

Em muitas passagens de sua obra, o autor criou um personagem que narra em seu nome. Para chegar ao real, os escritores utilizam dentre os artifícios literários aquele que lhe parece mais apropriado para vivificar suas figuras. Destarte, o desejo de animar suas criações conduziu os homens mais ilustres do século passado à prolixidade do romance epistolar, único sistema que poderia tornar verossímil uma história fictícia. O eu perscruta o coração humano tão profundamente quanto o estilo epistolar, sem tantas mesuras. A cada obra, sua forma. A arte do romancista consiste em uma boa materialização de suas idéias Ŕ Clarisse Harlowe pedia sua vasta correspondência. Gil Blas pedia o eu.11

O narrador em primeira pessoa era, para Balzac, um modo de “vivificar” sua criação.

Certamente o pressuposto implicado nessas reflexões era um projeto realista que, no

entanto, já não partilhava do empirismo ingênuo de romancistas ingleses do século XVIII

como Richardson e Defoe12. Além disso, em Le Lys dans la Vallée, a experiência que se

personagens quaisquer da vida cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e as transformaram em objetos de representação séria, problemática e até trágica, quebraram a regra clássica da diferenciação dos níveis (....) Completaram assim, uma evolução que vinha se preparando fazia tempo (desde o romance de costumes e a comédie larmoyante do século XVIII e, mais nitidamente, desde o Sturm und Drang e o pré-romantismo) – e abriram caminho para o realismo moderno, que se desenvolveu desde então em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida.” AUERBACH, Erich. Mímesis. São Paulo : Perspectiva, 2001, p. 500.

11 “Dans plusieurs fragments de son œuvre, l‟auteur a produit un personnage qui raconte en son nom. Pour arriver au vrai, les écrivains emploient celui des artifices littéraires qui leur semble propre à prêter le plus de vie à leurs figures. Ainsi, le désir d‟animer leurs créations a jeté les hommes les plus illustres du siècle dernier dans la prolixité du roman par lettres, seul système qui puisse rendre vraisemblable une histoire fictive. Le je sonde le cœur humain aussi profondément que le style épistolaire et n‟en a pas les longueurs. A chaque œuvre, sa forme. L‟art du romancier consiste à bien matérialiser ses idées. Clarisse Harlowe voulait sa vaste correspondance, Gil Blas voulait le moi. ” BALZAC, Honoré de. Le Lys dans la vallée. Paris: Gallimard, 2004, p. 365.

12 A expressão “naïve empiricism” foi encontrada em MCKEON, Michael. “Generic Transformation and Social Change: Rethinking the Rise of the Nove”. Theory of the Novel: A Historical Approach. Edited by Michael McKeon/ New Jersey: The Johns Hopkins, 2000, p.382-399.

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pretende “vivificar” é essencialmente privada, quase sempre entremeada por segredos de

camareira e intrigas de salão. Tal característica aproxima o procedimento de Balzac do

romance epistolar, que também procurava dar vivacidade ao relato pela expressão

despojada de ornamentos e pela proximidade com a intimidade das personagens que o

recurso permitia. Não por outro motivo esse romance de Balzac, um dos únicos da Comédie

humaine narrado em primeira pessoa, inicia-se por uma carta do protagonista Félix à

Natalie que serve de moldura narrativa ao longo relato subsequente, conferindo

verossimilhança à situação de enunciação. O narrador, por meio desse procedimento,

apresenta-se ao leitor: está sentado à mesa de seu aposento e retoma, por escrito, o fio de

sua vida, desde sua infância até a maturidade, passando pelo que mais deve ter atraído o

público de Balzac, suas experiências amorosas.

Ao contrário do narrador de Le Lys dans la Vallée, o narrador de Voyage... não se

apresenta ao leitor, tampouco cria a imagem de um interlocutor. Ele surge em pleno ato

narrativo, desde as primeiras linhas do romance: “Ça a débuté comme ça. Moi, j'avais

jamais rien dit. Rien.”13 Ex abrupto, ele introduz-nos em sua história. A reiteração do

pronome indefinido “ça” indica um desvio intencional do registro elevado e a primeira

criação do efeito de oralidade característico do estilo celineano. Mesmo situado a posteriori

em relação aos eventos narrados, o narrador de Voyage... não anuncia sua posição

ficcionalmente e, consequentemente, é como se sua voz emanasse de um não-lugar. A

primeira frase do romance, “Ça a débuté comme ça” anuncia um fluxo de enunciação

contínuo, que só se encerra com a frase final, “qu‟on n‟en parle plus”. Por detrás do “moi”

que identifica narrador e protagonista – separados funcionalmente14 – há uma diferença de

perspectiva temporal, que diz respeito à ação do tempo e dos acontecimentos sobre o

caráter do narrador. Contudo, não se sabe exatamente qual a situação desse narrador e nem

o que o motivou ao relato, pois seu rosto permanece oculto sob a máscara ficcional, em uma

região noturna da qual sua voz emana e para a qual, como o título anuncia, retornará.

Tudo indica que, durante esse longo fluxo enunciativo em que se constrói a história

do romance, a alternância de foco entre o tempo da história narrada e o tempo do ato de

narrar ocorra de acordo com a utilização de procedimentos literários específicos. Um desses

13 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.11. “Foi assim que isso começou. Eu nunca tinha dito

nada. Nada." CÉLINE, Louis- Ferdinand. Viagem ao fim da noite, p.17. 14 Ao revisitar a tipologia elaborada por Dolezel em seu estudo sobre os modos narrativos no romance tcheco, Jaap

Lintvelt faz a seguinte observação: “Como uma mesma personagem preenche tanto a função de representação quanto a função da ação, Dolezel pondera que a oposição entre narrador e personagem se encontra neutralizada. Se distinguirmos no interior da personagem entre a personagem-narrador (eu-narrador) assumindo a função da representação, e a personagem-atuante (eu-narrado), preenchendo a função da ação, constatamos entretanto que a dicotomia entre o narrador e agente da ação se mantém.” LINTVELT, Jaap. Essay de Typologie Narrative: le „point de vue‟. Paris: José Corti, 1989, p.164.

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procedimentos é a mudança do tempo verbal do pretérito para o presente, tempo verbal que

cumpre, em Voyage..., duas funções: primeiramente, a de representar a ação narrativa

“enquanto” ela é praticada, em trechos como:

Mais tout de même, il a dû exister, je me dis aujourd‟hui, quand j‟y pense, ce Blanc barbu que nous rencontrâmes un matin...15 (grifo meu). Esse tipo de construção, que em Voyage... é sempre sucinta e pontual, transfere o

olhar do leitor para a situação do narrador “enquanto” enunciador. Nos romances

epistolares, essa mudança para o presente da enunciação era moeda corrente (“for just

now, as I was folding up this letter, in my lady‟s dressing room”16), e tinha como objetivo

inserir o leitor na intimidade do narrador, geralmente em seu quarto, onde leitor e

narrador-leitor partilhavam suas emoções. Entretanto, em Voyage... a utilização do

presente cumpre também, e predominantemente, a função de enunciar uma verdade

atemporal, como na sentença: “todo homem é mortal”. Trata-se de um procedimento que

fixa um ensinamento ou uma constatação fora do devir narrativo:

C‟est triste de gens qui se couchent, on voit bien qu‟ils se foutent que les choses aillent comme elles veulent, on voit bien qu‟ils ne cherchent pas à comprendre eux, le pourquoi qu‟on est là. Ça leur est bien égal. Ils dorment n‟importe comment, c‟est des gonflés, des huîtres, des pas susceptibles, Américains ou non. Ils ont toujours la conscience tranquille.17 Esse tipo de construção gnômica, em que o uso do tempo presente está ligado a

comentários de caráter atemporal, tem presença massiva no romance. Não por acaso, tais

passagens lembram as máximas dos grandes moralistas franceses do século XVII, como La

Rochefoucauld18:

Peu de gens connaissent la mort. On ne la souffre pas ordinairement par résolution, mais par stupidité et par coutume; et la plupart des hommes meurent parce qu'on ne peut s'empêcher de mourir.19

15 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, p. 193. “Mas convenhamos, ele deve ter existido, digo hoje, quando penso

nisso, aquele branco barbudo que encontramos certa manhã” CÉLINE, Louis-Ferdinand Viagem ao fim da noite. (p.193).

16 RICHARDSON, Samuel. Pamela. London: Penguin, 2003, p. 44. 17 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.214. “É triste as pessoas se deitando, a gente percebe

muito bem que não ligam a mínima se as coisas não andam como gostariam, a gente vê muito bem que não tentam compreender o porquê de estarmos aqui. Para eles tanto faz como tanto fez. Dormem de qualquer jeito, são umas descaradas, umas bestas quadradas, umas insensíveis, americanas ou não. Sempre têm a consciência tranquila.” Viagem ao fim da noite, p.215.

18 “Se é verdade, tal como Gide uma vez observou, que as máximas de La Rochefoucauld são na realidade potenciais romances em miniatura, então Céline existe para demonstrar quais estruturas particulares seriam inventadas para provê-las de momentum de romance.” JAMESON, Fredric. “Céline and innocence”. Céline, USA, v.93, n. 2. The South Atlantic Quartely, Spring 1994, p.318.

19 “Poucos conhecem a morte. Não a sofrem comumente por resolução, mas por estupidez e por hábito; e a maior parte dos homens morre porque não pode evitar morrer”. LA ROCHEFOUCAULD, François le Duc. Oeuvres. Édition établie par L. Martin-Chauffier. Paris : Bibliothèque de la Pléiade, 1964, p.406.

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Essa frase poderia figurar nas páginas de Voyage..., sem provocar estranheza, ao

lado de reflexões como: "Nous sommes, par nature, si futiles, que seules les distractions

peuvent nous empêcher vraiment de mourir"20. Entretanto, em Voyage..., as máximas

emitidas pelo narrador são colocadas ao lado do relato das desventuras do protagonista, o

que leva o leitor a indagar qual a relação que se estabelece ali entre os comentários de fundo

moral (presente eterno) e a representação (eterno devir)21.

Os narradores de Balzac também pontuavam seus relatos com sentenças morais

generalizantes. Segundo afirma o crítico Erich Auerbach, Balzac por vezes enxergava a si

mesmo como um moralista clássico, sendo possível escutar em sua obra ressonâncias das

sentenças lapidares de um La Bruyère. Entretanto, o juízo proferido pelo crítico acerca

dessa tendência de Balzac ao “palavrório” moralizante é bastante negativo:

O mínimo que pode ser dito sobre tais sentenças é que não merecem, em sua maioria, a generalização de que gozam. São as ocorrências surgidas da situação do instante, por vezes muito oportunas, por vezes absurdas, nem sempre de bom gosto. 22

Embora o melhor de Balzac, cuja imaginação está sempre para situações específicas

do mundo material, não aflore em seus comentários de fundo moral, vale notar que, na

trajetória do gênero romance rumo ao realismo, trata-se de um procedimento residual,

futuramente exorcizado por Flaubert e que, um século antes de Balzac, já aparecia, de modo

muito mais intenso, nas ficções de um autor como Henry Fielding:

esse conhecimento da vida superior, embora muito necessário para evitarem-se equívocos, não é de grande valia para um escritor cuja alçada é a comédia, nesse tipo de romances os quais, como este que estou escrevendo, são de tipo cômico.23

Em Tom Jones, a presença massiva do autor – por meio de um sem-número de

digressões, antecipações, retornos e comentários – liga-se à tradição cômico-satírica

anterior ao surgimento do romance, daí a remissão à divisão aristotélica dos gêneros

(segundo a qual caberia ao cômico o que é “baixo”, tanto no registro, em prosa, quanto no

20 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.219. “Somos por natureza tão fúteis que só as distrações

podem de fato nos impedir de morrer.” Viagem ao fim da noite, p.220. 21 Segundo Jean Pouillon, para quem o romance é a descrição da consciência no tempo, o modelo de “romance

puro” pode ser definido nos seguintes termos: “Por romance „puro‟, compreendemos um romance que seja apenas expressão, que não se pretenda nem explicação nem julgamento, que entregue esses últimos aos cuidados de gêneros em que se explique e se julgue. Não se condena a análise em si mesma; o seu valor romanesco é que é criticado (...) a análise deixa de ser empreendida por sua verdade própria, para o ser pelo que exprime a respeito do herói que a ela procede; transforma-se em recurso para o fazer aparecer e não para o julgar;” POUILLON, Jean. O tempo no romance. trad. de Heloysa de Lima Dantas/ São Paulo: Cultrix, 1974.

22 AUERBACH, Erich. Mimesis, op. cit., p. 428. 23 “this knowledge of upper life, though very necessary for preventing mistakes, is not very great resource to a

writer whose province is comedy, of that kind of novels which, like this I am writing, is of the comic class.” FIELDING, Henry. The history of Tom Jones, a foundling. Harmondsworth: Penguin, 1966, p.400.

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caráter das personagens, quase sempre oriundas de camadas sociais inferiores)24 que será

quebrada pelo romance realista. Como alguns de seus contemporâneos, Céline retoma uma

série de procedimentos presentes nas primícias do romance, ou mesmo em gêneros

anteriores, como no romance picaresco. Contudo, apesar da semelhança entre os

procedimentos, seu significado foi historicamente modificado: o narrador de Tom Jones

goza da inatingibilidade autoral e de uma perspectiva olímpica25, está suficientemente

distante da matéria narrada para não deixar-se contaminar com ela de modo traumático

(como parece ser o caso em Voyage...), sua cumplicidade pende para o lado do leitor, o qual

sabe que não deve tomar tão a sério aquilo que, no fundo, é apenas uma boa história:

Esse comentário, entretanto, somente pretende ter ou parece ter „validade geral‟. Seu significado para a estrutura significativa do romance resulta menos de seu conteúdo do que de seu efeito contrastante; o individual e o particular se contrapõem a ele. Sua importância também resulta do fato de que serve principalmente para enfatizar a origem autorial da narração. Desse modo, o comentário autorial pode desempenhar um papel decisivo na tensão que se estabelece entre narrador e realidade ficcional. O leitor está quase sempre consciente de que a pretensão de validade universal desse comentário é na verdade uma ironia. 26

A “ironia” de Fielding, contudo, não era desprovida de caráter moral, apenas tinha

como pano de fundo um quadro de valores mais amplo em relação à mentalidade burguesa

ascendente em sua época, uma espécie de juste milieu aristocrático que o afastava do

puritanismo de seus contemporâneos Richardson e Defoe27. Por um viés mais formal, pode-

24 Os críticos que se dedicaram ao estudo do romance realista geralmente assinalam com algum pesar a tendência

satírico-moralizante de Fielding. Auerbach, por exemplo, afirma: “o engenhoso e importante Henry Fielding, que toca tantos problemas morais, estéticos e sociais, mantém a representação sempre nos limites do tom satírico-moralista...”, Mimesis, op. cit., p.430; posição semelhante à que Ian Watt assume, com mais matizes, em The Rise of the Novel: “a técnica de Fielding era eclética demais para tornar-se um elemento permanente na tradição do romance – Tom Jones é romance apenas em parte, contendo muitos elementos da novela picaresca, do teatro cômico, do ensaio ocasional.” p.250, F. Stanzel assume uma posição mais formalista ao encaixar Tom Jones na definição de “Romance Autoral”, com o que, ao mesmo tempo, ganha-se uma visão mais imparcial e perde-se o caráter histórico do desenvolvimento do gênero, para o qual as formas não estavam todas disponíveis em todas as épocas, como em uma dispensa.

25 A despeito do fato do narrador de Tom Jones afirmar, em determinado ponto da história, que perdeu de vista seu protagonista, tal afirmação não cria a imagem de um narrador hesitante, pelo contrário, trata-se de mais uma estratégia cômica que o enaltece pela habilidosa demonstração do manejo da técnica.

26 “This commentary, however, only claims or appear to be „generally valid‟. Its significance for the structure of meaning of the novel result less from its content than from its effect as a foil; the individual and the particular are set against it. Its importance also results from the fact that it serves especially to emphasize the authorial source of the narration. In this way authorial commentary can play a decisive role in the tension between narrator and fictional reality. The reader is almost always aware that the claim of universal validity of this commentary is really an irony.” STANZEL, Franz. Narrative Situations in the Novel, op. cit., p.51.

27 Tal característica não passou despercebida ao crítico Ian Watt: “Fielding, portanto, procura ampliar nosso senso moral mais do que intensificar as punições contra a licenciosidade. Ao mesmo tempo, contudo, sua função de porta-voz da moralidade social tradicional indica que sua atitude com relação à ética sexual é inevitavelmente normativa; (...) Muitas vezes o meio termo ideal de Aristóteles consegue, talvez, subverter em certa medida rígidos princípios éticos; e é, talvez, como bom aristotélico que Fielding chega muito perto de sugerir que a castidade demasiada de Bliffil é tão ruim quanto a escassa castidade de Tom”, op. cit., p.246.

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se relacionar o efeito relaxador da obra de Fielding ao ponto de vista narrativo panorâmico

em terceira pessoa e à figura ilustrada do narrador autoral28.

Sem o alicerce de um sistema de valores (nem mesmo de um sistema decadente

como o de Fielding), a narrativa de Voyage... encerra seu leitor na incerteza metonímica da

primeira pessoa narrativa, e mesmo a individualidade desse enunciador-personagem que se

interpõe entre o leitor e o mundo narrado se encontra abalada. Como sabemos, o nome

Bardamu designa tanto o narrador quanto o protagonista de Voyage... (pelo menos de boa

parte dela). O Bardamu-narrador, portanto, está (ou deveria estar, pois esse é um dos

aspectos que a estrutura de Voyage... problematiza) “existencialmente” colado ao

Bardamu-protagonista. Por conseguinte, a difícil relação entre a universalidade presumida

pelas máximas e a particularidade do ponto de vista pode ser definida como uma crescente

tensão, que coloca em risco tanto a validade das máximas quanto a singularidade das

experiências. Por um lado, um ensinamento moral exigiria uma universalidade que o ponto

de vista adotado pelo narrador tende a inviabilizar; por outro lado, uma vez que as máximas

do narrador possuem um fundamento moral universal, dado de antemão, o destino de

Bardamu tem seu caráter “individual” ameaçado. De todo modo, o hiato entre esses

comentários atemporais (no presente gnômico) e a narração das desventuras de Bardamu

(no pretérito épico) exige um leitor capaz de percebê-lo e de desconfiar tanto das reflexões

do narrador quanto da objetividade do mundo narrado29. Tais características foram

duramente criticadas por Wayne Booth em “A retórica da ficção”. Segundo Booth, esse

hiato produziria uma ambiguidade moral.

Um narrador na primeira pessoa, um herói picaresco moderno, leva-o por uma seqüência de aventuras sórdidas. Tudo é, claro, completamente “objectivo”: Céline nunca está inegavelmente presente e aí é que está o problema. O leitor não pode deixar de se perguntar se as lições de moral de Ferdinand, que são bem freqüentes, devem ou não ser levadas a sério. Será esta a opinião de Céline? Deveria ser a minha, pelo menos temporariamente, de modo a eu poder acompanhar com simpatia esse herói?30

Ou ainda:

28 “Intensificam o contraste entre Fielding e Richardson como moralistas os efeitos de seus pontos de vista

narrativos muito diferentes. Richardson concentra sua atenção no indivíduo e faz o vício ou a virtude parecer muito grande e influir na ação. Fielding lida com demasiadas personagens e um enredo complicado demais para dar a mesma importância às virtudes ou vícios de um único indivíduo.” WATT, Ian, ibidem, p.245.

29 Nesse ponto discordo de Henri Godard, que expressando uma opinião semelhante a de Jean Pouillon em relação ao romance ideal, afirma que “a indubitável vontade de escrever acima de tudo um romance é contrabalanceada em Voyage por uma necessidade de exprimir convicções sobre certo número de assuntos, o que é testemunhado por todas as asserções, aforimos e julgamentos de valor ali presentes.” GODARD, Henri. Henri Godard commente Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Éditions Gallimard : Paris, 1991, p.146. Minha crítica a esse tipo de afirmação é a de que ela fixa de antemão um modelo de romance, sem levar em conta as metamorfoses pelas quais o gênero passou e continua passando ao confrontar-se com a matéria histórica.

30 BOOTH, W. A Retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Portugal: Arcádia, 1980, p.396.

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Contudo, independentemente da quantidade de raciocínio que façamos a seu respeito, fomos apanhados, durante a leitura deste livro. Apanhados na armadilha de um consciente em sofrimento, somos levados a sucumbir, moral e visualmente. [...] Embora Céline tenha experimentado a desculpa tradicional Ŕ não se esqueçam de que quem fala é o meu personagem e não eu Ŕ não podemos desculpá-lo por ter escrito um livro que, se o leitor o levar a sério, o corrompe.31

Penso ainda não ser possível decidir sobre a parcela de culpa que caberia a Céline por

ter escrito Voyage... Entretanto, diante da quantidade de obras moralmente ambíguas que

a modernidade nos legou, somos levados a pensar que essa ambiguidade também tem suas

raízes no desenvolvimento histórico do gênero. O diagnóstico de Wayne Booth acerta ao

entrever que o leitor reivindicado por esse romance não era mais o leitor do século XIX, que

aceitava a ilusão realista do narrador onisciente, e nem mesmo um leitor disposto a

penetrar na intimidade dos personagens e identificar-se com eles por meio do narrador em

primeira pessoa de filiação epistolar: o leitor de Voyage... seria um leitor disposto às

sensações vertiginosas provocadas pela frustração de suas expectativas e pelo

questionamento de suas certezas.

Delirium Tremens

Para o crítico Anatol Rosenfeld, as modificações que se operaram no romance no

século XX são análogas ao fenômeno de “desrealização” detectado nas obras de pintores

modernos32. Assim como o ponto de fuga, técnica de produção da ilusão de perspectiva,

fora abandonado pela pintura, algo análogo teria ocorrido no romance em relação à

sucessão temporal. Portanto, as mudanças que o século XX impôs ao gênero narrativo

predominante no século XIX não seriam apenas mudanças de assunto ou de

procedimentos, mas da própria possibilidade de uma representação objetiva da realidade.

Tal processo foi caracterizado por Rosenfeld como o “desmascaramento do mundo

epidérmico do senso comum”.

Em Voyage..., a narrativa se reveste de um tom febril que parece ser o resultado

tanto da tentativa de compreender experiências extremamente aflitivas e violentas quanto

do trauma provocado por essas experiências sobre a consciência do narrador. Não é por

outro motivo que a figuração da guerra dá início ao romance, pois ela atua ali como uma

espécie de rito iniciático para o protagonista.

31 BOOTH, ibid., p.399. 32 “O termo „desrealização‟ se refere ao fato de que a pintura deixou de ser mimética, recusando a função de

reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível.” ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno” in: Texto e contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1969, p.76.

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On est puceau de l‟Horreur comme on l‟est de la volupté. (…) Qui aurait pu prévoir avant d‟entrer vraiment dans la guerre, tout ce que contenait la sale âme héroïque et fainéante des hommes? À présent, j‟étais pris dans cette fuite en masse, vers le meurtre en commun, vers le feu... Ça venait des profondeurs et c‟était arrivé.33

O narrador renuncia a uma representação objetiva convencional na medida em que

se aproxima da consciência do protagonista, a ponto de, em certos trechos, fundir-se com

ela. Como já foi dito, paradoxalmente, a função desse procedimento “desrealizante” advém

de uma “intenção” realista: a representação fiel de tais acontecimentos exige que eles sejam

retratados em sua dimensão inconsciente. A afinidade entre a linearidade da linguagem e o

pensamento racional precisa ser subvertida para dar conta de uma experiência cujo

significado se furta às razões do “mundo epidérmico do senso comum”. O ponto de vista

assumido por esse narrador, pela mesma via paradoxal, procura ser fiel ao conteúdo da

matéria narrada ao encerrar o leitor em uma consciência cindida por experiências

traumáticas. Sorrateiramente, Voyage... propõe ao leitor uma aporia: a crise nervosa

sofrida por Bardamu, bem com uma série de experiências acachapantes (a viagem à África,

a aquisição de paludismo, o trabalho excruciante na Ford) retiram-lhe a possibilidade de

engendrar um relato objetivo. Em contrapartida, o único lastro dessas experiências é esse

mesmo relato entrecortado e febril, por vezes delirante.

A verve de Céline é sem dúvida o traço que mais marcou o legado do autor. A

linguagem urdida em Voyage..., como foi dito, chocou porque estendeu o emprego do

registro popular à enunciação do narrador do romance, na qual se mescla com registros

elevados, produzindo um estilo híbrido, ao mesmo tempo estranho e familiar. Somente Zola

havia ousado algo semelhante, como atestam os últimos capítulos de L‟Assommoir, em que

o envilecimento da protagonista Gervaise chega a contaminar o narrador em terceira

pessoa. O discurso indireto livre surge, então, como um desdobramento quase natural dos

processos degenerativos que atuam sobre o caráter físico e mental da lavadeira. Em

Voyage..., a linguagem empregada pelo narrador em primeira pessoa parece ligar-se

estreitamente ao caos do mundo narrado e, por conseguinte, é plena de viradas abruptas, de

imprecações e sobreposições. Tome-se, à guisa de exemplo, o penúltimo parágrafo do

primeiro episódio de Voyage..., em que Bardamu segue o regimento festivo, caminhando

em direção à guerra:

Alors on a marché longtemps. Y en avait plus qu‟il en avait encore des rues, et puis dedans des civils et leurs femmes qui nous poussaient des encouragements, et qui lançaient des

33 CÉLINE, Voyage au bout de la nuit, p.18. “Somos virgens de Horror como o somos de volúpia. (...) Quem

poderia prever antes de entrar realmente na guerra tudo o que continha a escabrosa alma heroica e vagabunda dos homens? Agora, eu estava envolvido nessa fuga em massa rumo ao assassinato em comum, rumo ao fogo... Isso vinha das profundezas e havia chegado.” Viagem ao fim da noite, p.21.

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fleurs, des terrasses, devant les gares, des pleines églises. Il en avait des patriotes ! Et puis il s‟est mis à y en avoir moins des patriotes... La pluie est tombée, et puis encore de moins en moins et puis plus du tout d‟encouragements, plus un seul, sur la route.34

Parágrafos como esse parecem confirmar o que diz Céline quando este se refere a seu

estilo como sendo sua “petite musique”. Aqui tomamos pé do intenso trabalho estilístico

que produz a dicção singular desse narrador, dicção que recria no plano do significante a

profusão de sons e impressões do espaço ficcional que circunda o protagonista. Vale notar,

inicialmente, que não há léxico de baixo calão, embora algumas construções, como “Y en

avait” e “Il en avait”, atentem contra o registro culto da língua. Contudo, o que realmente

cria o efeito de oralidade é o trabalho com a sintaxe, a pontuação e a sonoridade das

palavras. A repetição de construções sintáticas, como no último período “et puis”, “et puis

encore”, “et puis plus du tout” remete a uma estrutura rítmica na qual o mesmo motivo é

retomado com pequenas variações. Estamos diante de uma verdadeira fanfarra de fonemas

que reproduz o entusiasmo do protagonista e o clima festivo do desfile militar. O grande

número de assonâncias e aliterações (“pluie”/ “plus”/ “puis”, e o menos evidente: “de moins

en moins”/ “encouragements”) é contrabalanceado pela grande variação de tom entre os

períodos encerrados, respectivamente, por ponto de exclamação e reticências, como se um

respondesse ao outro: “Il en avait des patriotes!”/ “Et puis il s‟est mis à y en avoir moins

des patriotes... ”. O contraste entre a alegria luminosa do desfile e o horror sombrio da

guerra é anunciado pela construção antitética, e os monossílabos que encerram o parágrafo

“de moins en moins et puis plus du tout [...] plus un seul, sur la [...]” indicam o

desaparecimento da festa e a transição para uma tonalidade fúnebre, anunciada pela chuva,

cujo som reproduzem. Finalmente, os “encouragements” são substituídos pela “route”,

retomada duas vezes no primeiro parágrafo do próximo capítulo na expressão “au millieu

de la route” – espaço do viajante e signo de desabrigo contra as intempéries do destino.

À fragmentação sintática dessa passagem corresponde uma dispersão temporal. A

cena imediatamente anterior a esse sumário reproduzia o diálogo entre Bardamu e seu

colega, interrompido pela chegada do desfile militar, de modo que a narração parecia até

então seguir os acontecimentos passo a passo. Quando se chega ao sumário, há uma

aceleração temporal e o relato se torna metafórico: o alistamento de Bardamu é descrito

como uma entrada numa arapuca – basta que, entusiasmado, siga o regimento até “os civis

34 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.14. “E então a gente marchou um tempão. Havia

carradas de ruas, e nelas civis e suas mulheres que nos estimulavam e que jogavam flores, das varandas, diante das estações de trem, das igrejas repletas. Como havia patriotas! E depois começou a haver menos patriotas... Caiu uma chuva, e depois cada vez menos e depois mais nenhum estímulo, nem um único, pelo caminho.” CÉLINE, Louis-Ferdinand, Viagem ao fim da noite, p.17.

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fecharem suavemente as portas às suas costas”. O aceleramento temporal e o concomitante

obscurecimento dos detalhes exteriores preparam o salto temporal até o próximo episódio,

no qual somos lançados, “au millieu de la route”, em plena guerra.

O estilo forjado por Céline aproveita o potencial poético de procedimentos

disponíveis nos registros orais35. A utilização de estruturas típicas da linguagem oral, na

passagem comentada, auxilia na criação do efeito metonímico-festivo da passagem. Na

linguagem oral há sempre a possibilidade de retificar o que acabou de ser dito e aproximar-

se gradualmente do sentido que se pretende expressar. Na passagem transcrita essas

retificações ganham ainda outro significado, pois correspondem tanto à profusão de

impressões com que o desfile atinge a consciência do protagonista quanto às hesitações do

narrador ao tentar recompor sua história.

A expressão “Il en avait”, por exemplo, desencadeia a enumeração metonímica do

desfile que será reiterada em “Il en avait des patriotes”. Em uma simples conversa, o

substantivo “patriotes” serviria apenas para resumir e precisar o sentido do que foi dito

antes (“des rues, et puis dedans des civils (...) des pleines églises”), ao ser recriado no

romance, esse processo serve também a propósitos miméticos. Nota-se ainda que essa

sobreposição metonímica de elementos lembra o resultado de uma livre-associação. Um

indício disso é que, em diversos trechos do romance, ocorre uma aproximação entre

palavras e expressões que possuem semelhança fonética, como em “de moins en moins”/

“encouragements”. Em seu estudo sobre Voyage..., o crítico Henri Godard detecta, na

linguagem celineana, um fenômeno de recorrência fonética, que se inicia em Voyage:

A partir de Voyage..., Céline começa também a explorar outro modo de tomar distância em relação ao sentido. Ele consiste em deixar o significante desempenhar seu próprio papel na formação da cadeia verbal pela repetição exata ou aproximada de fonemas presentes no contexto precedente. Nada é mais constante e nem mais natural à oralidade do que escutar os fonemas se chamarem mutuamente. Mas, na escrita, o aprendizado da redação nos habituou a privilegiar o sentido, a clareza e a precisão.36

A associação entre palavras de sonoridade semelhante, a ausência de hierarquia

35 Em um ensaio publicado em junho de 1935, Léo Spitzer postulou que o estilo criado por Céline teria se apropriado

de uma estrutura binária da frase típica da língua francesa falada, como a da frase: “Il a dormi le père”. Em oposição ao início da frase (“Il a dormi”) uma espécie de exclamação espontânea, o segundo termo (no caso, o substantivo “père”) representa um esclarecimento avaliativo, recurso que Céline explora também em suas potencialidades irônicas. SPITZER, Léo. Une habitude de style : le rappel chez M. Céline. In: DERVAL, André. Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Critiques 1932 Ŕ 1935.

36 “Dès Voyage, Céline commence aussi à explorer une autre manière de prendre de la distance par rapport au sens. Elle consiste à laisser le signifiant jouer son rôle propre dans la formation de la chaîne verbale par la répétition exacte ou approchée de phonèmes présents dans le contexte précédent. Rien n‟est plus constant ni plus naturel à l‟oral que d‟entendre ainsi les phonèmes s‟appeler l‟un l‟autre. Mais, à l‟écrit, l‟apprentissage de la rédaction nous a habitués à privilégier le sens, sa clarté et sa précision.‟‟ GODARD, Henri. Henri Godard commente Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline. Éditions Gallimard : Paris, 1991, p. 135.

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sintática entre os elementos e a utilização de procedimentos típicos da linguagem oral

parecem encenar o próprio “brotar” da linguagem na consciência, como em um monólogo

interior, técnica narrativa que Édouard Dujardin definiu, talvez pela primeira vez, nos

seguintes termos:

O monólogo interior é, no plano da poesia, o discurso sem ouvinte e não pronunciado, pelo qual uma personagem expressa seu pensamento mais íntimo, o mais próximo do inconsciente, anteriormente a toda organização lógica, ou seja, em seu estado nascente, por meio de frases diretas reduzidas ao mínimo sintaticamente, de modo a produzir a impressão de “imediato”.37

Apesar de aproximar-se da definição de Dujardin, não sabemos se realmente a

narrativa de Voyage... se configura como um discurso “sem ouvinte e não pronunciado”. A

última frase do romance, “q‟on n‟en parle plus” aproxima Voyage... de uma narrativa oral.

Contudo, não há no romance qualquer elucidação sobre a situação presente do narrador ou

sobre a existência de um interlocutor. Trata-se, afinal, de um monólogo interior ou

“exterior”? Endereçado a si mesmo ou a outrem? Em seu livro sobre o tema, Dorrit Cohn

constatou essa ambiguidade entre discurso endereçado a si mesmo e a outrem em algumas

obras:

Quando um texto na primeira pessoa não manifesta nenhum traço de atividade escrita, ou da entrada em cena de ouvintes fictícios, sem por isso renunciar à forma característica da interpelação oral, é o estatuto próprio narrativo que é, para retomar a expressão de Michel Butor, “deixado na sombra”.38

Tudo indica que Voyage... possa ser elencada entre as narrativas em que Dorrit Cohn

constatou um “status problemático”. Apesar dos indicadores de que se trata de uma fala

endereçada a um interlocutor, em alguns trechos do livro não podemos mais distinguir

entre a voz do narrador e o fluxo de pensamentos do protagonista. Ora, tal impossibilidade

indica que nesses trechos o narrador adere à consciência do protagonista ao reviver os

37 “Le monologue intérieur est, dans l‟ordre de la poésie, le discours sans auditeur et non prononcé, par lequel un

personnage exprime sa pensée la plus intime, la plus proche de l‟inconscient, antérieurement à toute organisation logique, c‟est-à-dire en son état naissant, par le moyen de phrases directes réduites au minimum syntaxial, de façon à donner l‟impression „tout-venant‟.‟‟ Édouard Dujardin empregou a técnica do „„monologue intérieur‟‟ DUJARDIN, Édouard. Le monologue intérieur. Apud: CANNONE, Belinda. Narrations de la vie intérieure/Paris : Presses Universitaires de France, 2001, p.32.

38 “Quand un texte à la première personne ne manifeste aucune trace d‟activité scripturale, ou de la présence en scène d‟auditeurs fictifs, sans pour autant renoncer à la forme caractéristique de l‟adresse orale, c‟est le statut narratif lui-même qui est, pour reprendre l‟expression de Michel Butor, „laissé dans l‟ombre‟ ‟‟. COHN, Dorrit. La Transparence intérieure. Modes de représentation de la vie psychique dans le roman. Trad. do inglês por Alain Bony. Paris: Éditions du Seuil, 1981, p.200.

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acontecimentos que narra39.

Entretanto, a ambiguidade entre oralidade e escrita presente em Voyage... não serve

apenas para representar os traumas de uma consciência cindida que tenta repuxar os fiapos

de uma memória em frangalhos, mas também para despertar seu leitor para a singularidade

linguística da narrativa do romance, na qual o material linguístico cotidiano banalizado, ao

ser observado por um novo ângulo, é “ressignificado”. Nesse sentido, o efeito artístico

produzido pelo uso que Céline faz de procedimentos oriundos da linguagem oral parece não

estar distante daquilo que Victor Chklovski, em seu ensaio sobre “A arte como

procedimento”, definiu como “estranhamento”, a saber, a sensação de não coincidência de

uma semelhança ou, simplesmente, um processo de “desautomatização”40. O próprio autor

parecia ter consciência disso: “Eu sou um colorista de palavras, mas não como Mallarmé de

palavras de sentido extremamente raro – de palavras usuais, de palavras cotidianas.”41

Tal procedimento está relacionado à intenção, diversas vezes anunciada pelo autor,

de criar um “ritmo” próprio. A prosa cotidiana e a linguagem formal representam para o

autor um material inerte, ao qual é preciso dar vida através do trabalho estilístico. “Tente se

colocar no ritmo sempre dançante do texto”, escreve Céline a seu editor Jonh Marks, “Tudo

aquilo é dança e música”42. Cabe ao autor puxar os fios que movem as palavras. Caso o

estilista obtenha sucesso nessa empreitada “au bord de la mort”, essas marionetes

ganharão vida em suas mãos. Para isso, ele deve evitar tanto o risco de não conseguir livrar

as palavras do peso de sua significação convencional, puramente referencial, quanto o de

esvaziá-las de todo conteúdo de modo a que se alcem aos céus delirantes do puro jogo dos

significantes.

Em Voyage..., a soberania da função referencial da linguagem, uma das premissas do

realismo formal segundo Ian Watt, encontra-se assombrada pela função poética (daí a

quebra de verossimilhança, a metaforização do relato, as elipses e reiterações, a

enumeração metonímica e as associações sonoras). Paradoxalmente, é justamente essa

elaboração poética que resgata a função representativa do relato, por adequar-se à situação

39 Para Belinda Canonne o monólogo interior pode ser definido como uma narrativa sem narrador. Para o caso

específico de Voyage..., contudo, prefiro tratar de uma ocasional “fusão” entre narrador e protagonista. Como se trata de um narrador que vivenciou experiências traumáticas, não podemos excluir a hipótese de que o impacto reverberatório desses traumas sobre o narrador justifique o efeito de oralidade, a quebra da hierarquia sintática e as associações sonoras.

40 CHKLÓVSKI, Vitor. Arte como procedimento. Teoria da literatura, formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973, p39 a 56.

41 “Je suis un coloriste de mots, mais non comme Mallarmé de mots de sens extrêmement rare Ŕ des mots usuels, des mots de tous les jours”. HINDUS, Milton. L.-F. “Céline tel que je l‟ai vu”. L‟Herne 3. Paris : Herne, 1999. Carta de 15 de maio de 1947, p.138.

42 “Tâchez de vous porter dans le rythme toujours dansant du texte" , “Tout cela est danse et musique”. GODARD, Henri. Henri Godard commente Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline, p.142.

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do narrador, voz monológica aprisionada em uma consciência traumatizada. Como

apontou Marcel Arland, esse enunciado pleno de fissuras e retomadas indica uma falta de

segurança por parte do narrador:

Pois a primeira coisa a que se apegam os homens perdidos é a essa língua, que lhes permite, tremendo de medo e de solidão, de se tomarem a si próprios como ouvintes e de narrar suas histórias, com exclamações, blasfêmias, com tais repetições e tais frases sentenciosas em que um homem indeciso encontra sua única certeza.43

O estilo de Voyage... parece ser a tábua de salvação do narrador após o naufrágio da

objetividade épica tão cara aos realistas do século XIX. Céline, por meio de seu intenso

trabalho estilístico, relativiza o éffet de réel em prol de um realismo que não faz abstração

do meio no qual se expressa, reintroduzindo no fluxo enunciativo desse narrador-

protagonista os processos de construção – tais como as hesitações, lapsos, associações

paralelas, intuições, afetos – eliminados em uma exposição convencional e linear.

Paradoxalmente, esse trabalho formal inovador pode ser compreendido como uma

exigência ditada pela premissa realista de criar uma representação fidedigna da vida

cotidiana44, embora nessa última tenha se introduzido uma ordem de experiências que não

cabe mais nos moldes convencionais de representação 45.

Nosografia da crise

Cabe então perguntar sobre o que, afinal de contas, perturba a forma dessa narrativa.

Para isso espero contar com a contribuição de alguns teóricos que diagnosticaram

mudanças radicais sofridas pelo romance durante o começo do século XX, muitas vezes

descritas como uma crise do próprio gênero ou uma mudança radical de pressupostos.

43"Car la première chose à laquelle se raccrochent ces hommes perdus, c‟est cette langue, qui leur permet,

tremblants de peur et de solitude, de se prendre pour auditeur et de raconter leur histoire, avec des exclamations, des jurons, avec ces répétitions et ces phrases sentencieuses où un homme indécis trouve sa seule assurance”. DERVAL, Andre. Critiques 1932-5, p.261.

44 AUERBACH, Erich. Mimesis, op. cit. 45 A idéia do romance como “espelho” da realidade cotidiana pôde ser contestada tomando como ponto de partida a

própria experiência cotidiana de cada indivíduo, na qual, a partir do desenvolvimento urbano industrial, esse dificilmente consegue uma visão ordenada da situação em que está inserido. Tal contestação foi utilizada por Virgínia Woolf em um artigo no qual defendia o seu estilo de representação – a técnica do stream of consciousnes – atacando as convenções realistas: “[...] A vida é assim? Os romances devem ser assim? [...] olhe de perto e a vida, parece, está muito longe de ser „assim‟. Examine por um momento uma mente comum em um dia comum. A mente capta uma miríade de impressões [...] A vida não é uma sucessão de lanternas de carruagem dispostas em simetria; a vida é um halo luminoso, um invólucro semi-transparente nos envolvendo dos primórdios da consciência até o fim. Não é tarefa do romancista comunicar esta variedade, espírito desconhecido e ilimitado, qualquer que seja sua aberração ou complexidade, com tão pequena mistura de estranheza e formalidade quanto possível?”. WOOLF, Virginia. A ficção moderna. O leitor comum, Tradução de Luciana Viégas. Rio de Janeiro: Graphia, 2007, p.75. Nesse sentido, pode-se bem compreender a empreitada do romance moderno como um realismo ao pé da letra, pois ela teria surgido numa época em que a representação clara e ordenada dos fatos, tal como a dos romances do século XIX, é que seria acusada de artificialidade.

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A primeira objeção a ser feita contra o diagnóstico da crise é a de que o romance,

desde seu nascimento, sempre esteve “em crise”. Em primeiro lugar, por tratar-se de um

gênero que surgiu sem a mesma dignidade de seus antepassados épicos. Além disso, o

romance, por natureza, é dotado de incomensurável força plástica, que lhe possibilita

renovar-se constantemente e incorporar as características de outros gêneros – para alguns

teóricos, como Bakhtin, ele é definido por essa propriedade de metamorfose aglutinadora46.

Frente à capacidade subversiva desse gênero “onívoro”, seria incorreto tentar fixá-lo

em um conjunto rígido de definições. O que se pode fazer é localizar tendências que o

acompanham durante seu desenvolvimento, em um processo que vincule as mudanças dos

procedimentos artísticos às transformações históricas que afetam o sistema literário no

qual o romance está inserido. Embora o processo por meio do qual ele se “adaptou” aos

diferentes materiais históricos não seja uniforme, o escopo das mudanças formais

encontradas nos grandes romances do começo do século XX aponta para um abalo sem

precedentes em alguns dos alicerces cambiantes de que o gênero havia se servido até então.

No ensaio antológico de Walter Benjamin sobre o narrador, há uma passagem que

discorre sobre a incomunicabilidade do que foi vivido nos campos de batalha por parte dos

soldados que dali retornavam:

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.47

Embora Céline tenha participado dos combates, só publicará seu livro vinte anos

depois, ou seja, uma geração após a “enxurrada de livros sobre a guerra” a que se refere

Benjamin. Entre os autores que retrataram a experiência do front, Henri Barbusse foi o que

mais influenciou Céline. Le Feu e Clarté, romances que tinham a guerra como tema, são

apontados como as principais influências na elaboração de Voyage...48 Para investigar como

Céline reelaborou o estilo de Barbusse, transcrevo a seguir um trecho de Le Feu:

- Dis donc, toi qui écris, tu écrirais plus tard sur les soldats, tu parleras de nous, pas?

46 “O romance parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas

e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom”. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A Teoria do Romance. Trad. Aurora F. Bernardini. São Paulo, Unesp/HUCITEC, 1993, p.399.

47 BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221, p.198.

48 Não parece ser unanimidade entre os críticos que Clarté tenha influenciado Céline tanto quanto Le Feu. Nesse ponto, Marie-Christine Bellosta discorda de Henri Godard: “A opinião predominantemente aceita é a sustentada por Henri Godard : somente Le Feu o teria influenciado [...] Essa interpretação da influência de Barbusse sobre Céline me parece, entretanto, muito restritiva”. BELLOSTA, Marie-Christine. Céline ou l‟art de la contradiction : Lecture de Voyage au bout de la nuit, p.7.

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- Mais oui, fils, je parlerais de toi, des copains, de notre existence...[...] Il indique de la tête les papiers où j‟étais en train de prendre des notes. Le crayon en suspens, je l‟observe et l‟écoute. Il a envie de me poser une question. - Dis donc, sans t‟commander... [...] si tu fais parler des troufions dans ton livre, est-ce que tu les f‟ras parler comme ils parlent, ou bien est-ce que tu arrangeras ça, en lousdoc ? C‟es rapport aux gros mots qu‟on s‟engueule pour ça, tu n‟entendras jamais deux poilus l‟ouvrir pendant une minute sans qu‟i‟s disent et qui‟s répètent des choses que les imprimeurs n‟aiment pas besef imprimer.49

O narrador-protagonista está na trincheira, ao lado de seus companheiros poilus50, e

escreve em seu caderno. O diálogo entre o soldado Barque e o narrador assume significado

metalinguístico e se torna uma pequena defesa do estilo de representação empregado por

Barbusse. O modo dramático é predominante nos capítulos desse romance em forma de

crônica, o que lhe permitiu expor o cotidiano das trincheiras em toda sua crueza. No trecho

transcrito, a justificativa do narrador para colocar em seu livro a linguagem dos soldados

(“parce que c‟est la vérité”) nos lembra trechos de romances de Zola em que a pretensão de

objetividade científica se mescla ao tom de denúncia humanitária51. Tal característica fez

com que Le Feu se tornasse um verdadeiro libelo humanista contra os horrores da primeira

guerra.

Não se pode deixar de notar, em contrapartida, que esse sentimento de compaixão

faz com que aumente a distância entre o narrador-protagonista e seus companheiros,

distância marcada pela diferença de registro linguístico: o narrador-protagonista, tanto ao

descrever outros personagens e os espaços quanto ao dialogar com outros soldados, utiliza

um registro elevado. Inversamente, a fala de seus companheiros é marcada por gírias,

pronúncias típicas e aglutinações de palavras. A diferença também se dá pelo pronome de

tratamento (“fils”\“mon petit frère”), que indica não só diferença de idade, mas também de

nível cultural e socioeconômico, do narrador em relação a seu interlocutor. Por intermédio

dessa consciência central, que nos garante a estabilidade das categorias de tempo e de

49 O trecho apresenta características estilísticas muito específicas. Procurei, na tradução abaixo, apenas dar uma

idéia aproximada do efeito produzido pelo original: “- Diz aí, cê que escreve, cê vai escrever depois sobre os soldados, cê vai falar da gente, hein?/ - Certamente, filho, falarei de você, dos companheiros, de nossa existência... [...]/ Ele indica com a cabeça os papéis em que eu tomava minhas notas. O lápis em suspenso, eu o observo e o escuto. Ele deseja me perguntar algo./ - Diz aí, faz favor... [...] si cê faz o pessoal falar em seu livro, cê vai fazer eles falar como eles fala, ou cê vai dar uma ajeitada, pôr no bom português? É por causa dos palavrões que a gente aqui solta a torto e a direito, cê nunca vai escutar dois soldados abrir a boca um minuto sequer sem que eles digam coisas que os editores não vão gostar nem um pouco de publicar.” BARBUSSE, Henri. Le Feu. In: Les grands romans de 14-18. Paris: Omnibus, 2006, p.126.

50 Os soldados franceses que participaram da primeira guerra eram chamados poilus (“peludos”) por seu aspecto nas trincheiras, onde não havia a possibilidade de cuidar da higiene pessoal. A palavra, no entanto, não possui conotação pejorativa.

51 Um exemplo claro é L‟Assommoir, em cujo prefácio lemos: “É a moral em ação, simplesmente. L‟Assommoir é cerrtamente o mais casto de meus livros. [...] Meu crime foi ter tido a curiosidade literária de recolher e colar em um molde bem trabalhado a língua do povo.[...] Eu não me defendo, aliás. Minha obra medefenderá. É uma obra de verdade, o primeiro romance sobre o povo, que não mente e que tem o odor do povo.” ZOLA, Emile. L‟Assommoir. Paris : Gallimard, 1978, p.25.

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espaço, o leitor toma conhecimento da guerra e se “conscientiza” do seu significado

“verdadeiro”.

Assim como no romance de Barbusse, em Voyage au bout de la nuit nos deparamos

com um narrador em primeira pessoa que apresenta ao leitor as experiências de um

soldado de infantaria durante a guerra de trincheiras. Contudo, a narrativa aqui, como já foi

dito, é um fluxo de enunciação contínuo. Ao contrário do que acontece em Le Feu, o modo

dramático não predomina em Voyage au bout de la nuit, sendo quase sempre substituído

pelo ponto de vista fixo do narrador-protagonista. O tom febril da narrativa desfaz a

objetividade do mundo narrado e cria um amálgama entre os acontecimentos pregressos e

as impressões do narrador no decorrer da enunciação. Tais fatores concorrem para tornar

vulnerável a confiabilidade da consciência central: tanto no momento em que vivenciou os

acontecimentos quanto no de transmiti-los, as categorias de tempo e espaço se encontram

abaladas aqui, e “desrealizam” o mundo narrado.

Os dois trechos que transcrevo a seguir devem permitir um adensamento das

reflexões que acabo de expor. O primeiro pertence a Le Feu, romance em que pululam

batalhas grandiloquentes e o segundo, de Voyage, é a única cena de combate em todo o

romance:

Trecho de Le Feu:

– Tout à coup, une explosion formidable tombe sur nous. Je tremble jusqu‟au crâne, une résonance métallique m‟emplit la tête, une odeur brûlante de soufre me pénètre les narines et me suffoque. La terre s‟est ouverte devant moi. Je me sens soulevé et jeté de côté, plié, étouffé et aveuglé à demi dans cet éclair et ce tonnerre... Je me souviens bien pourtant : pendant cette seconde où, instinctivement, je cherchais, éperdu, hagard, mon frère d‟armes, j‟ai vu son corps monter, debout, noir, les deux bras étendus de toute leur envergure, et une flamme à la place de la tête ! 52

Trecho de Voyage:

Ce fut la fin de ce dialogue parce que je me souviens bien qu‟il a eu le temps de dire tout juste : „Et le pain ?‟ Et puis ce fut tout. Après ça, rien que du feu et puis du bruit avec. Mais alors un de ces bruits comme on ne croirait jamais qu‟il en existe. On en a eu tellement plein les yeux, les oreilles, le nez, la bouche, tout de suite, du bruit, que je croyais bien que c‟était fini, que j‟étais devenu du feu et du bruit moi-même. Et puis non, le feu est parti, le bruit est resté longtemps dans ma tête, et puis les bras et les jambes qui tremblaient comme si quelqu‟un vous les secouait par derrière. Ils avaient l‟air de me quitter et puis ils me sont restés quand même mes membres. Dans la fumée qui piqua les yeux encore longtemps, l‟odeur pointue de la poudre et du soufre nous restait comme pour tuer les punaises et les puces de la terre entière. [...]

52 BARBUSSE, Henri. Le Feu. op. cit., p.126. “De repente, uma explosão gigantesca despenca sobre nós. Tremo até a

medula, uma ressonância metálica preenche minha cabeça, um odor cáustico de enxofre penetra minhas narinas e me sufoca. A terra se abre diante de mim. Eu me sinto ser levantado e jogado de lado, dobrado, sufocado e quase cego por essas centelhas e essa tempestade... eu procurava, consternado, abatido, meu companheiro de combate, eu vi seu corpo se erguer, em pé, negro, os dois braços estendidos em toda sua envergadura, e uma chama no lugar da cabeça!”.

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Ils s‟embrassaient tous les deux pour le moment et pour toujours mais le cavalier n‟avait plus sa tête, rien qu‟une ouverture au-dessus du cou, avec du sang dedans qui mijotait en glouglous comme la confiture dans la marmite.53

Quando se colocam os trechos lado a lado, fica difícil acreditar que Céline não tenha

tido diante de si a passagem do livro de Barbusse ao sentar-se para escrever essa cena de

seu romance, que parece retomar e parodiar, ponto por ponto, a cena criada por Barbusse.

A locução adverbial “tout à coup”, que inicia o trecho de Le Feu, anuncia a mudança

do tempo verbal para o presente. Em seguida, uma explosão terrível “tombe” sobre o

narrador e seu companheiro Poterloo, prenunciando o clímax do trágico capítulo Le

Portique. Em Voyage, a expressão “Et puis ce fut tout” tem função semelhante à locução

adverbial de Barbusse, com a diferença de que o tempo verbal não se modifica e as

impressões do protagonista, ao serem relembradas, mesclam-se ao próprio ato de

enunciação, interferindo na organização do material linguístico: o período seguinte parece

reforçar ainda mais o efeito de espontaneidade pela construção truncada “Après ça, rien

que du feu et puis du bruit avec”. A explosão não é nomeada como em Barbusse, mas

apresentada em uma metonímia de impressões que se sobrepõem por meio de um

intrincado jogo sintático. Enquanto em Barbusse as três orações do período que narra os

efeitos da explosão sobre o protagonista estão sintaticamente completas ( 1.“je tremble

jusqu‟au crâne”, 2. “une résonance métallique m‟emplit la tête”, 3. “une odeur brûlante de

soufre me pénètre les narines et me suffoque”), em Céline, elas estão imbricadas (“les yeux,

les oreilles, le nez, la bouche, tout de suite, du bruit”). Além disso, à quebra da hierarquia

sintática da frase corresponde um abalo momentâneo da separação entre consciência e

mundo objetivo (“j‟étais devenu du feu et du bruit moi-même”).

Nota-se ainda que no trecho de Le Feu o narrador utiliza o presente do indicativo, o

que gera uma espécie de imobilidade e contribui para uma das características fundamentais

desse romance: a de produzir, com tons simples e sinceros, uma série de imagens, de

quadros exemplares. Justamente por isso, no momento de maior proximidade com a

consciência interior do protagonista, a sequência dos verbos no particípio passado

53 CÉLINE, Louis-Ferdinand, Voyage au bout de la nuit, p.22. “Foi o final do diálogo, porque me lembro que ele só

teve tempo de dizer: „E o pão?‟. E pronto. Depois, nada a não ser fogo e barulho juntos.Mas um desses barulhos como jamais pensaríamos que existisse. E que nos atacou de tal forma, bem direto nos olhos, nos ouvidos, no nariz, na boca, imediatamente, esse barulho, que pensei que era o fim, que eu mesmo tinha virado barulho e fogo.

E depois, não, o fogo foi embora, o barulho ficou muito tempo na minha cabeça, e depois nos braços e nas pernas que tremiam como se alguém os sacudisse por trás. Pareciam me abandonar, e depois finalmente ficaram comigo, meus membros. Na fumaça que pinicou os olhos ainda durante um tempo, o cheiro forte da pólvora e do enxofre ficava como que para matar os percevejos e as pulgas da terra inteira. [...]

Os dois se beijavam, naquele momento e para sempre, mas o cavaleiro não tinha mais cabeça, só uma abertura em cima do pescoço, com sangue dentro que cozinhava em fogo brando fazendo gluglu como geléia no tacho.” CÉLINE, Louis-Ferdinand, Viagem ao fim da noite, p.24.

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(soulevé/ jeté/ plié/ étouffé/ aveuglé) sugere uma sucessão temporal absolutamente

previsível, clara e ordenada. A sequência de verbos subsequente corresponde exatamente,

de modo verossímil, ao que ocorreria a um soldado atingido pelo choque de uma explosão:

ele seria levantado do chão pela onda de choque e jogado de lado, dobrado sobre seu ventre.

Em seguida, a fumaça lhe sufocaria e cegaria temporariamente como, afinal, “deve” ocorrer

com aqueles que são atingidos por explosões desse tipo. Contudo, nesse momento, nós não

estamos mais verossimilmente “dentro” da consciência do protagonista, que dificilmente

teria uma percepção tão clara de tais acontecimentos. Trata-se de um aspecto problemático

da obra de Barbusse, se levar-se em conta o fato de que ela pretendia trazer à tona a

experiência da guerra, em toda sua crueza, pelo testemunho de quem realmente a

vivenciou. É justamente aqui que a premissa de ser realista – o que Barbusse, em larga

medida, acreditou ser possível fazer nos moldes clássicos – torna-se paradoxal: tais

experiências, para serem representadas desse ponto de vista, de modo realista, exigem uma

alteração nas coordenadas de tempo e espaço, as duas categorias fundamentais da

percepção. O critério de verossimilhança se torna uma aporia aqui, uma vez que o caráter

disforme de uma experiência traumática não se adapta a uma sucessão temporal regular e a

uma concomitante linearidade sintática. O final grandiloquente desse trecho tampouco

escapa de rasgos idealizantes: o narrador, após a explosão, busca “instinctivement” seu

“frère d‟armes”, afirmação que nosso olhar contemporâneo não acolhe sem ironia.

Finalmente, a aparição do corpo decapitado, no particípio passado, é intensificada pelo

ponto de exclamação: torna-se um exemplo do desespero tanto do narrador quanto do

protagonista, que se unem patologicamente nesse ponto culminante do testemunho.

Algo bem diverso ocorre no trecho de Voyage, em que o protagonista, após tornar-se

fogo e estrondo, aos poucos, quase que literalmente, recompõe-se diante do leitor, como um

boneco de marionetes que reatasse seus fios, ao que corresponde o gradual

restabelecimento de uma hierarquia sintática. Os membros do corpo do protagonista, assim

como os elementos da oração, voltam gradualmente a seus lugares, após terem sido

“chacoalhados” por uma força alheia, e submetem-se novamente a sua vontade.

Curiosamente, assim como o protagonista de Le Feu, Bardamu também se depara com a

imagem dos corpos de outros soldados que acabaram de morrer. Entretanto, os termos que

emprega na descrição da cena parecem opostos aos que utilizara o narrador de Le Feu, pois

neles a grandiloquência é substituída por um símile culinário (“la confiture dans la

marmite”).

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O pathos exalado pela descrição do companheiro morto em Le Feu é substituído em

Voyage por um olhar analítico, de tonalidade cômica. Tampouco se trata de um traço

secundário, mas central, que descrições escatológicas do corpo e de suas funções biológicas

sejam presença massiva em Voyage. No trecho comentado, essa dimensão corporal se opõe

à pretensão de autonomia da consciência central, entidade abstrata, tensão que se

materializa na experiência traumática. Em uma construção como “pour le moment et pour

toujours” comicamente redundante, a inclusão do segundo termo (“et pour toujours”)

parece corresponder a uma constatação imediata do narrador, reiteração típica de

enunciados orais, que introduz uma cesura no tecido narrativo.

De todo modo, a análise mostra que a regularidade sintática do trecho de Le Feu

sinaliza a presença de uma consciência central organizadora cuja credibilidade é assim

reforçada. A asseveração desse narrador, premissa do testemunho, garante sua capacidade

de comover a si mesmo e ao leitor, por identificação, com aquilo que relembra. Já no trecho

de Voyage, os elementos se sobrepõem uns aos outros em diversos níveis e,

consequentemente, todo o universo representado se desfaz num feixe de impressões

desconexas. O aspecto traumático da experiência é reconstruído estilisticamente e o leitor já

não pode assumir a distância necessária para se comover, o que insere Céline no rol dos

escritores cujas obras buscam justamente desestabilizar o leitor comum, subvertendo suas

expectativas. No final de Le Feu, o narrador profere um longo discurso endereçado aos

soldados, agora identificados como os trabalhadores (“Ah! vous avez raison, pauvres

ouvriers innombrables de battailles”), para que se unam em torno do ideal de igualdade

(“Il y a surtout l‟égalité!”). O efeito desse longo discurso sobre o leitor é consolador (“la

preuve que le soleil existe”), mas de uma consolação conquistada à custa da pluralidade

semântica da ficção. Não por outro motivo, a desolação que sentimos ao percorrermos as

páginas de Voyage... é o melhor indício de que Céline levou às últimas consequências seu

ofício de romancista.

Em seu ensaio “A posição do narrador no romance contemporâneo”, Adorno

compara alguns dos romances contemporâneos a epopéias negativas, por eles

representarem um processo de reificação avançado a ponto de tornar impossível a

emergência de uma consciência individual. Consequentemente, nesses romances se

tornaria praticamente impossível definir qual a “tomada de posição” por parte do autor54.

Wayne Booth criticou a “ambiguidade moral” do ponto de vista adotado por Céline e, de um

54 “Nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na dissonância e no

abandono”. ADORNO, Theodor W. A posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de Literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p.62.

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modo geral, o relativismo na arte moderna. Entretanto, tudo indica que Voyage au bout de

la nuit, ao furtar-se a uma representação objetiva, atenha-se justamente à premissa realista

de dizer “como as coisas realmente são” de que fala Adorno em seu ensaio.

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Da Centralidade de Canudos

César Takemoto1

“Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar pra abranger de um lance o conjunto da terra. E nada mais divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros – arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, sovacas de bocainas, criava-lhe perspectiva inteiramente nova. E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que „ali era o céu...‟ ... Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d‟água, divagando, serpenteantes... ... Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres...” 2

É bem provável que nem mesmo Euclides da Cunha pudesse prever a quantidade de

ressonâncias históricas que estariam contidas nesse fragmento d‟A Terra. Nós leitores,

contudo, não devemos de forma alguma deixá-las passar sem alguma reverberação. Nessa

tomada decisiva o narrador nos dá, ao assumir uma posição nas alturas – propriamente

divinas –, para contemplar a Terra, uma (auto) imagem perfeita do seu ponto de vista

narrativo: a perspectiva euclidiana é aquela que no distanciamento máximo encontra o

princípio de estetização do que ele chama de “reunião de tantos traços incorretos e duros”,

do mundo do sertão, enfim. Sua distância superior é o que permite uma suavização da

aspereza própria ao seu objeto, assim como uma respectiva correção – julgadora – deste. A

imagem dos “pequenos cursos d‟água” que “mal se lobrigavam” nos faz ver a terra como um

grande organismo doente, abandonado a si, mas que no entanto se deixa ver em sua linha

mestra, o distinto “Vaza-Barris”, aquele que organiza, por assim dizer, o caos da “planície

rugosa”. Uma imagem que talvez nos faça lembrar as tão cotidianas tomadas

cinematográficas, ou mesmo televisivas – feitas do alto de um helicóptero – de alguma das

favelas de uma grande cidade brasileira, planos de câmera que enquadram encarnando o

horror do urbanismo caótico e catastrófico a que nos levou nossa modernização, ou mesmo

que rastreiam vertiginosamente em suas vielas algo que lhes conduza para fora da vertigem

1 Mestrando do Departamento de Teoria Literária da Universidade de São Paulo. Email: [email protected] 2 Euclides da Cunha, Os sertões (A Terra), São Paulo: s/d., p. 40-44.

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do presente (explica-se: esse “algo” como um corpo criminoso qualquer, o do momento).

Pois é da modernização, de uma visão da modernização, de que se trata. Na certa não

seremos os primeiros a notar que a vitória sobre Canudos pôde se dar principalmente por

estratégicas logísticas – e não militares stricto senso – como a abertura de estradas para o

interior da área visada pelas expedições, permitindo assim que uma pioneira dinâmica de

circulação pudesse se normalizar. Ora, não estaria cifrada aqui, de maneira quase alegórica,

a própria lógica da modernização espacial brasileira em seu estéril investimento em

sistemas viários? (Lembremos que a linha do trem vai apenas até certa etapa, Queimadas...)

Olhando do topo da modernização, do ápice – já há muito tempo declinante – do progresso

à brasileira, que visão é essa que permanece e insiste para além d‟ “os matutos” que crem

estar no céu? Aliás, que espécie de matutos somos nós a olhar para essa imagem?

O olhar distanciado, superior e cuja perspectiva se pretende neutra, em Euclides

assume ares de tribunal da História. Este, um dos inúmeros achados catalogados e

ressistematizados pelo generosíssimo livro de Willi Bolle, grandesertão.br3. Se temos em

mente que o fragmento acima está contido numa obra formalmente épica – bélica, coletiva,

grandiosa –, a imagem que dali se desprende passa a funcionar em certa medida como o

nível zero para certa compreensão do conflito em questão, a saber: o embate entre o poder

central e as forças sertanejas. Embate, entretanto, que se submete a um paradoxo muito

específico: o “poder central” tem sua sede não no interior do território sobre o qual pensa

ter validade e legitimidade, mas na sua costa periférica mesma, massacrando com

exacerbada violência aquilo que Euclides chamou de “o cerne vigoroso da nossa

nacionalidade”4 – porque gestado em isolamento quase ideal por séculos, o contrário

mesmo da vida “internacional” litorânea. A república brasileira, recém-nascida e

corporificada pelo seu exército, transparece toda a sua fragilidade na ignorância sobre o seu

país, dialeticamente expressa pela obsessão descritiva sistemática da primeira parte do

livro. Sintomaticamente a ignorância é transferida para o lado dos pobres rebelados que

seguiriam um líder místico e pré-histórico, responsável por distraí-los “de suas

obrigações”5. No entanto, é a própria narrativa euclidiana que descreverá o momento

decisivo no qual o primeiro passo da desordem – para retomar aqui os termos cruciais da

dialética da malandragem6 - é dado, pra variar, pelo latifundiário, que se recusa a pagar sua

3 Willi Bolle, grandesertão.br, São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2004. A generosidade em questão diz respeito à

abrangência da bibliografia estudada e da incorporação não preconceituosa – mas crítica – de seus predecessores, a quem não nega o debate.

4 Euclides da Cunha, op.cit., p. 213. 5 Euclides da Cunha, op. cit., p. 295. 6 Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in: __. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998.

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parte numa transação comercial feita com o Conselheiro7. (De resto, o pecado original da

burguesia brasileira, que não se pauta nem pela igualdade formal pressuposta pela ordem

econômica da qual é tributária – e subordinada – direta).

Ora, uma comunidade messiânica seguindo seu líder pelo deserto e em busca da

Terra Santa não deve nos cegar – ou, melhor dizendo, ensurdecer – às ressonâncias

políticas profundas dos textos do Gênesis bíblico reconfigurados na grande narrativa

euclidiana, como já nos indicou Walnice Nogueira Galvão8. Um dos méritos de Euclides foi

justamente – mesmo que de forma injusta – ter apontado para o caráter messiânico da

comunidade de Canudos, se não me engano a única tentativa de cisão radical – ou melhor,

de política subtrativa9 –, no Brasil, total e internamente conduzida pelos pobres. Se seu

cientificismo é a marca de classe de seu narrador – determinando sua posição de intelectual

europeizado, apesar de apenas semiatualizado10 – a visão euclidiana não pode se reduzir a

ele, e de fato não o faz: o índice formal disso é a sua tragicidade. Para Antonio Candido, é

esse sentimento trágico que permite a Euclides escapar ao mecanicismo cientificista e

mesmo às determinações da sociologia para ganhar contornos sobrenaturais, quase

míticos11.

Canudos nos acena como uma tentativa histórica que nos cabe compreender e

reformular. Foi um lacaniano heterodoxo que, sem ter estudado ou mesmo conhecer o

Brasil em profundidade12, enxergou Canudos como o momento em que a liberdade tornou-

se efetiva: a brutalidade com que até as mulheres e crianças foram massacradas pelos

soldados da Nova República – que já nascia esclerosada – prova dialeticamente que a

utopia de fato existiu lá, daí a necessidade – e ao mesmo tempo a impossibilidade – de

7 “Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhes as

caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.” in: Os sertões, Vol. II, A luta, p. 18.

8 Walnice Nogueira Galvão, “Euclides da Cunha”, in: Pizarro, Ana (org.), América Latina: Palavra, Literatura e Cultura. Vol. II: Emancipação do Discurso, pp. 628- 633, citado in: Willi Bolle, op. cit., p.75.

9 O termo politique soustractive foi cunhado por Alain Badiou no atual contexto de esgotamento da política negativa, política cujo horizonte último e radical é a revolução social. Esgotamento não no sentido da revolução não ser mais necessária – uma vez que ela é mais necessária do que nunca – mas em estarmos impossibilitados realizá-la no atual estado de coisas de maneira, digamos, programática. Seria então necessário concentrar-se numa figura propriamente subtrativa de política, na tentativa de prendre congé de, de se subtrair à agenda e à lógica da política parlamentar-democrática oficial para criar condições de possibilidade para a volta da política negativa propriamente dita. Cf. Logique des mondes, Paris: Seuil, 2006.

10 Cf. “Euclides da Cunha, sociólogo” in: Antonio Candido, Textos de intervenção, São Paulo: Duas Cidades /34, 2002, p. 180.

11 Idem, p. 182. 12 Sua referência é antes La guerra del fin del mundo de Mario Varga Llosa, uma das reescrituras d‟Os Sertões,

como trataremos adiante. Sem entrar no debate do romance do escritor peruano, como não deixar de notar que o evento de Canudos, raramente estudado a sério no Brasil, parece ser mais discutido fora do que dentro do país? A grande exceção honrosa, aqui, talvez não deixe de ser a própria Walnice Nogueira Galvão em Vida e Morte em Belo Monte.

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apagar todo e qualquer vestígio dela13. Nessa extraordinária rejeição do espaço estatal, é

como se “o outro lado benjaminiano do progresso histórico, o dos derrotados, adquirisse

seu próprio espaço”14. Talvez aqui seja o lugar onde possamos melhor identificar a razão da

utilização da perspectiva trágica por Euclides. Não seria então o caso de inverter a

conclusão de Antonio Candido e dizer que essa perspectiva em última instância não escapa

ao cientificismo e nem à sociologia, mas pelo contrário, lhes reforça – até ao paroxismo – a

fatalidade própria? A fatalidade científica transfigurada em tragédia poderia então ser

compreendida como a maneira de Euclides da Cunha se desvencilhar da culpa de haver ele

mesmo defendido a intervenção militar no sertão baiano, uma vez que a lei trágica é, uma

vez enunciada, inexorável. O traço patético dessa tragicidade – entendida com uma nobre

elevação do destino fúnebre daqueles sertanejos – é o índice de culpa da intelectualidade e

da classe governamental brasileira que apoiou em bloco – com honrosas exceções – a

campanha em suas sucessivas expedições. O trágico euclidiano é a marca formal do mea-

culpa socialmente objetivo ante a barbárie. A República brasileira nasce sob o signo de

Canudos.

É a partir dessas considerações que podemos redefinir a altiva perspectiva euclidiana

como antiutópica, uma vez que para ela não há lugar algum fora do espaço total abarcado

por sua descrição aspirante ao controle. Daí a linearidade de sua narrativa que não faz mais

do que acompanhar – de modo mesmo extenuante – a linearidade das expedições militares

mesmas15. Ao decretado massacre republicano de Canudos corresponde a estilização

pseudotrágica da visão antiutópica euclidiana. Ora, na literatura brasileira há pelo menos

um texto que se antecipa a essa formalização a posteriori euclidiana, em sentido

incisivamente diverso ou mesmo contrário: uma breve crônica de ninguém menos que

Machado de Assis16 – intitulada “Canção de piratas” e publicada pela primeira vez na

Gazeta de Notícias em julho de 189417 – apresenta-se como um espécie de libelo romântico

em defesa do Conselheiro e seus 2000 seguidores18, tal qual se deduzia na época19. O

enquadramento geral dos fatos que chegam ao Rio de Janeiro – não só sobre Canudos, mas

também sobre um outro grupo denominado os “clavinoteiros de Belmonte” – é estético, no

13 Ver a “Introdução à edição brasileira” de Slavoj Zizek, Às portas da revolução, São Paulo: Boitempo, 2005. 14 Idem, p. 16. 15 Zé Celso transpôs esse traço formal para a cena teatral como um grandioso estupro coletivo. 16 A narrativa euclidiana é a posteriori porque se propõe contar a história da tragédia de Canudos depois não só de a

ter ajudado, mas de a terem levado a cabo. Ela se opõe frontalmente à crônica machadiana que, em seu estupendo apriorismo, abre uma perspectiva utópica quase insuspeitada em sua obra.

17 E portanto já um bom tempo após a famosa virada inauguradora de sua segunda fase – a elaboração e a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cf. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo, São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000.

18 Machado de Assis, “Canção de piratas” in:__. Páginas Recolhidas, Rio de Janeiro: Globo, 1997. 19 Walnice Nogueira Galvão, No calor da hora, São Paulo: Ática, 1994.

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sentido de que Machado os defende primordialmente como matéria soberba a inspirar e

mesmo fazer renascer os artistas e poetas de seu tempo, tal qual a figura dos “piratas”

inspiraram Victor Hugo e os poetas de 1830. Tal perspectiva estetizante, veremos, é uma

estratégia de reconstrução, em âmbito brasileiro, de um espaço propriamente utópico, uma

dimensão que muitos jamais ousariam admitir em nosso autor maior. Machado, aqui, não

se propõe a ir além das informações dadas pelo telegrama recém chegado da Bahia,

preferindo ater-se à suas poucas palavras e desentranhar delas algo como uma particular

explosão imaginativa. Em seu gesto retórico que visa resguardar da figura do conselheiro a

sua aura – pois sim, trata-se de manter uma distância soberanamente poética do real de

Canudos – misteriosa e poética, temos já uma consciência que está nos antípodas do

espírito científico que abriu o crânio do messiânico líder para ali enxergar as

“circunvoluções expressivas” que resumiam o espírito “do crime e da loucura” daquela “

„rede inextricável dos becos tortuosos” da Jerusalém de taipa‟ ”20. Aos invés de exorcizar a

organização legionária, Machado vai lhe dar um estatuto propriamente eventivo

(événementielle)21: em fidelidade aos seus antecessores românticos, ele vai saudar no seu

presente um sujeito social capaz de – mesmo que virtualmente – suspender ou tornar

irrelevante a ordem social vigente:

Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dois mil homens, não é o que dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção. Nem a morte escapa à regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanás! Os partidários do Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre. 22

Como essa crônica faz parte do exórdio da história escrita sobre Canudos (pouco

restou da, ou jamais houve, história escrita por Canudos), Machado a constrói com dados

imaginários/literários que se negam à investigação catalogadora e sábia de um Euclides, de

um lado, e não se arriscam a enunciar previamente o seu teor de verdade, de outro. A ironia

20 As citações entre aspas são de diversos trechos d‟Os Sertões e foram colhidas no capítulo “O sertão como forma de

pensamento” da obra de Bolle acima citada, p. 79. 21 Para o desenvolvimento completo da noção de événement, articulado a uma reabilitação das categorias da

verdade e do sujeito – e portanto em espírito absolutamente contrário ao banimento sumário destas na filosofia contemporânea – remeto a obra magistral de Alain Badiou, L‟être et l‟événement, Paris: Seuil, 1988.

22 Machado de Assis, op. cit, p. 147.

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do escritor, para aqueles que dela sentiram falta, está na brutal diferença de entusiasmo

entre o objeto de sua crônica e a sociedade da República brasileira recém-proclamada... Ao

final do texto, ele propõe aos poetas uma composição que seja à altura de seu tempo, de

uma modernidade demograficamente crescente: “fora com as cantigas de pouco fôlego.

Vamos fazê-las de mil estrofes, com estribilho de cinqüenta versos, e versos compridos, dois

decassílabos atados por um alexandrino e uma redondilha”. À tarefa hiperbolizada lançada

pelo escritor fluminense, a literatura brasileira respondeu à altura – e largura, talvez até

literalmente demais: nem 10 anos depois Euclides publicava Os seus Sertões. Enterrou,

porém, com essa publicação, aquilo que Machado havia esboçado nessas páginas – agora,

retrospectivamente, visionárias. À distância machadiana que abria por assim dizer, no

plano da literatura, um espaço utópico, Euclides da Cunha interpôs um distanciamento

“cartográfico”, “um esprit de géometrie planejador”23, propriamente estratégico-militar. A

formalização literária euclidiana, entretanto, – para parafrasear livremente algumas

considerações de Bolle24 – é tudo menos de ordem contingente, uma vez que capta em sua

fisionomia mais contraditória a razão instrumental à brasileira. Esta, por sua vez, encontra

a sua mais elevada manifestação urbano-arquitetônica no plano-piloto de Brasília, cuja

realização se dá nessa imensa construção no coração d‟ “O planalto Central do Brasil”25. A

expressiva forma da capital brasileira – vista de cima – não faz muito mais do que refletir a

própria sombra do veículo chave dessa perspectiva: o avião26. Reflexo a bem dizer sombrio,

se lembrarmos que tal perspectiva está na origem formalizada por sobre a tragédia de

Canudos – e consequentemente implicada nela.

Como se contrapor ao estratagema da construção euclidiana dos sertões? Na literatura

brasileira27, estou convencido de que o romance que levou isso a cabo de maneira mais

consequente e sistemática foi o Grande Sertão: Veredas. Willi Bolle faz a demonstração

ponto por ponto desse diálogo (crítico) literário – uma reescrita propriamente dita – entre

os dois gigantes28 a partir da intuição crítica pioneira de Antonio Candido, que leu e

escreveu sobre a obra-prima de Guimarães sob o prisma das três grandes categorias

euclidianas: a terra, o homem e a luta29. Acrescentaria de minha parte que o próprio título

23 Bolle, op. cit., p. 76. 24 Idem. 25 Essas são, está claro, as palavras iniciais d‟Os Sertões, op. cit. 26 Não sem razão não cansamos de defender o pioneirismo técnico de Alberto Santos Dumont – um quase

contemporâneo da geração de Euclides – na aviação mundial. 27 E portanto sem contar com uma tentativa maior de reescritura, como o já mencionado La guerra del fin del

mundo, de Vargas Llosa. 28 Bolle, op. cit. 29 O texto original é de 1957 e chama-se “O sertão e o mundo”, republicado e refeito com o título “O homem dos

avessos”, in: __. Tese e antítese, São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

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das obras brinca com esse espelhamento: Os Sertões, apesar de estar no plural, é uma obra

cujo horizonte é singular, visando um sertão progressivamente mais específico, numa

concentração espacial propriamente messiânica: “O sertão de Canudos é um índice

sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos

predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum”30.

Grande Sertão: Veredas está no singular, mas constitui-se num labiríntico vai e vem por

uma pluralidade, uma proliferação quase infinita de veredas e nomes sertanejos. O seu “–

Nonada” inicial se opõe negando frontalmente a descrição euclidiana no grandioso primeiro

parágrafo de sua obra, cujo centro é o planalto central do Brasil. O travessão, que

expressaria em algumas leituras um complexo dialogismo formal entre o sertanejo e o

homem culto31, pode ser lido também como um sinal de subtração, enfatizando o sentido

negativo da palavra inaugural do universo do romance e, ao mesmo tempo, determinando o

núcleo positivo basilar (básica regra de equação: menos com menos dá mais...) desse

catatau. Nonada é a versão sertaneja da Utopia – esta por definição um não lugar. O

romance rosiano tenta reabrir a brecha utópica que Machado articulou em sua crônica, não

recriando o distanciamento de tipo aurático, mas abolindo todo distanciamento a

aferrando-se a uma (re)criação radicalmente imanente. Programaticamente ou não, o

grande romance rosiano parece seguir as linhas gerais dessa romântica crônica

machadiana:

1- Coloca os “criminosos” no centro da narrativa, pintando-os em certa medida

também como “galantes e audazes”32 aventureiros que se libertaram da vida social

sedentária e suas instituições civilizadas pautadas pelo modelo sulista (fluminense);

2- Produz uma espécie de renascimento literário através de uma radical invenção da

linguagem, implodindo a “prosa dura” do naturalismo (porém sem abrir mão da pesquisa

documental) numa narrativa de fôlego, cujas virtualidades imaginativas são quase infinitas

(apesar de serem pautadas por uma forma rigorosa).

3- Mesmo a maneira machadiana de imaginar essas figuras da realidade sertaneja –

através de figuras da poesia européia – é de certa maneira reproduzida pelo recurso rosiano

30 E. da Cunha, op.cit, p. 53. O caráter messiânico é tradicionalmente dado em medida temporal: o tempo

messiânico é o tempo abreviado, da recapitulação. Cf. Giorgio Agamben, “Quatrième Journée” in: Le temps qui reste, Paris: Rivages, 2004. O caráter messiânico de Canudos, entretanto, aparece em Euclides pela categoria do espaço, pois a narrativa é retrospectiva e aquele tempo é uma recapitulação fatalista dos vencedores.

31 Principalmente Ana Paula Pacheco, “Jagunços e homens livres pobres”. Revista Novos Estudos CEBRAP nº81, Julho de 2008.

32 Machado de Assis, op. cit.

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às narrativas de cavalaria em busca de modelos de conduta para pautar as ações dos

personagens33.

Nesse cruzamento, “o sertão virou mar” – ao ter seu mundo fecundado pela tradição

européia e pelos artistas brasileiros a ela vinculados. Mas também o “mar virou sertão”,

uma vez que a vida na capital brasileira – no litoral e voltada para o Atlântico34 – tornara-se

um deserto social... Foi José Antônio Pasta Jr. que identificou o princípio de hibridização

que determina a estruturação formal do romance35 como sendo a “vigência simultânea de

dois regimes da relação sujeito-objeto”, um que assume a distinção entre os dois e outro

que a abole. No limite dessa lógica encontra-se a própria relação obra-leitor, o que o crítico

expressa como uma luta de morte: ou o leitor é absorvido pelo universo da obra como que

por um “ato mágico”, ou o leitor a suprime enquanto uma rede singular de significações.

Ora, não teria o crítico encontrado aqui uma lógica supressiva que mimetiza infielmente, ou

seja, invertendo o sentido do evento de Canudos? Não é então verdade que todo momento

palpável de emancipação social pode ser comparado a um momento mágico onde as

relações sociais naturalizadas até então vigentes saem do eixo e se abrem a potencialidades

antes inimaginadas? E não é também verdade que o Estado brasileiro em sua desesperada

tentativa de supressão deixou entrever o seu inalienável excesso? Ora, visto por esse ângulo,

o romance rosiano mostra como soube se aproveitar, em âmbito literário, da dinâmica de

Canudos – que jamais se impõe inteiramente – e do seu simultâneo recalque próprio ao

contra-ato fundador da modernização brasileira. Está aí um outro lado da “ambiguidade

como princípio organizador” de Walnice Nogueira Galvão36: “uma absoluta confiança na

liberdade de inventar”37 – própria da condição de classe de um narrador latifundiário – que

não entra em contradição com uma inconstância subjetiva permanente – pesada herança de

nossa não realização histórica.

33 Cf. Antônio Candido, op. cit., p. 130-31. 34 Como um dos vértices do triângulo comercial Portugal - África - Brasil, explorado de maneira concisa e em suas

consequências históricas por Luis Felipe de Alencastro no “Fardo dos Bacharéis”. Revista Novos Estudos CEBRAP nº19, Dezembro de 1987, p. 69. Quando o fardo dos bacharéis em questão deixou de ser necessário – e se estivermos corretos isso se deu em Canudos – ele foi prontamente substituído por um fardo militar.

35 No seminal artigo de José Antonio Pasta, “O Romance de Rosa – Temas do Grande Sertão e do Brasil”. Revista Novos Estudos CEBRAP n° 55, Novembro de 1999, p. 62.

36 Ver a “Introdução” in:__. As formas do falso, São Paulo: Perpectiva, 1986, p. 13. 37 Antônio Candido, op. cit., p. 121.

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João Ternura

Um livro à revelia do próprio autor

Helena Weisz

Este trabalho pretende analisar o romance João Ternura, de Aníbal Machado, do

ponto de vista das contradições entre os projetos ideológicos do primeiro Modernismo e os

problemas trazidos pelo processo histórico nacional.

No momento em que inicia a escrita de seu único romance, em 1926, Aníbal

Machado partilha dos objetivos libertários e dos pressupostos ideológicos que animavam a

vanguarda artística brasileira. Como, no entanto, o romance continua a ser escrito até 1964,

é possível ver no movimento de sua forma um embate entre matéria narrativa e dinâmica

histórica da nação. Tal conflito acaba por fazer com que protagonista e obra entrem em um

processo de dissolução que os condena a subsistirem parcialmente inconclusos. A análise de

João Ternura traz à tona uma reflexão sobre as possibilidades de constituição do Brasil

como nação autônoma e independente.

**

Um só depoimento de Aníbal Machado, de 1941, a respeito de um encontro com

Carlos Drummond de Andrade, seria suficiente para demonstrar o alcance de sua fé no

futuro:

Depois de ter privado muito tempo com o poeta, só vim a conhecê-lo mais tarde quando, indo visitá-lo certa manhã na Floresta, bairro de Belo Horizonte, o surpreendi no pequeno escritório de sua casa a dar audiência às imagens de seu sonho. (...) Olhamos para a estante e falamos sobre alguns escritores da nossa preferência, sobre a poesia que nos aproximava mutuamente. Falamos depois sobre as coisas que nos revoltavam a ambos. E sentimo-nos mais irmãos na revolta. Carlos deixou transparecer aqui a sua amargura irônica, com vestígios de desânimo. Eu lhe confessei a minha fé na vida, na inevitável transformação para melhor, do homem. Receei haver melindrado seus sentimentos com o meu otimismo. Diante de um espírito tão sensível e lúcido, a minha confiança na vida parecia grosseiramente inspirada em forças irracionais. Senti nos olhos do poeta um reflexo de angústia. Percebi na sua figura a expressão, mais acentuada agora, de quem é agitado com frequência pelas lutas do espírito.1

1 Aníbal Machado, “Aparição de Maria Julieta”, in:__. A arte de viver e outras artes. Rio de Janeiro: Graphia

Editorial, 1994, pp. 221-222.

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De fato, Aníbal Machado era de um otimismo desconcertante, o que pode ser

facilmente comprovado em sua crítica dispersa, ensaios, auto-retratos e nos depoimentos

de seus contemporâneos2. Não seria difícil compilar aqui inúmeras passagens onde tal

otimismo se manifesta. Para não cansar o leitor, fiquemos apenas com um exemplo, um

ensaio de 1939 por ocasião do centenário de nascimento de Machado de Assis3. Nele, Aníbal

se mostra inconformado com o pessimismo do autor, que especula ser tributário de um

excesso de civilização ou “ausência de instinto poético forte”; de um afastamento “das

forças e sugestões da terra” ou até mesmo de “qualquer trauma, alguma deficiência vital ou

complexo de inferioridade”.

Levando em conta que era próprio da crítica literária do decênio de 30 procurar

“estabelecer uma corrente recíproca de compreensão entre a vida e a obra, focalizando-as

de acordo com as disciplinas em moda, sobretudo a psicanálise, a somatologia, a

neurologia”4, a crítica de Aníbal se mostra afinada com certo espírito da época e toma a

obra pelo autor, buscando razões psíquicas que fundamentem niilismo tão insuportável

para um otimista de carteirinha.

Já se tem dito que Machado “aconteceu” no Brasil como um fenômeno isolado e quase inexplicável. Tudo indica que continuará assim, sem correspondência íntima com o nosso psiquismo profundo. Na desproporção entre o seu espírito e o do meio em que viveu pode-se descobrir uma das condições de seu drama. Machado fez-se grande quase clandestinamente.

Civilizando-se demais, caminhando muito adiante do nosso caos, no qual não chegou a integrar-se por ausência de instinto poético forte, Machado foi antes de tudo uma consciência viril, fria e implacável. O dom da lucidez ajudou-o a destruir o da simpatia humana... (...)

Distanciado da vida, a regular e cerimoniosa distância dos amigos, afastado das forças e sugestões da terra – Machado perdeu muito desses imponderáveis que enriquecem o subconsciente do artista, mas ganhou em imparcialidade, em análise miúda e sarcástica. A realidade não foi para ele esse mundo ardente e perpetuamente em fusão em que os grandes romancistas ingleses e russos parecem mergulhar e nadar; serviu-se dela como se entrasse num depósito de material a fim de retirar dali unicamente os elementos de que necessitava para justificar uma atitude do espírito e uma concepção da vida: a sua atitude pessimista, a sua concepção de cético e negador implacável. Encontrava então em si mais forças para permanecer longe e acima de tudo como um desertor assustado, do que embaixo vociferando ou cantando. Da vida só interessava ao escritor aquilo que servisse para instruir a sua concepção previamente desencantada da vida. À terra também nada ficou devendo: voltou-se para o homem em si, na sua solidão ou no seu ridículo de figurante da comédia humana. Essas influências eletivas – mais para o homem moral, menos para o ser vivo e para a terra – naturalmente influenciaram o seu estilo desnudo, gracioso, maravilhosamente límpido. Já tem sido notado que qualquer trauma, alguma deficiência vital ou complexo de inferioridade

2 Ver as coletâneas de crítica dispersa e ensaios A arte de viver e outras artes, cit. e Parque de Diversões. Org. Raúl

Antelo, Belo Horizonte / Florianópolis: Ed. UFMG / Ed. UFSC, 1994. 3 A. Machado, “Machado de Assis”, in:__. A arte de viver e outras artes, cit., pp. 140 a 145. 4 Cf. A. Candido, “Esquema de Machado de Assis”, in: Vários escritos, São Paulo: Duas cidades, 1995, pp. 17 a 39.

Também não devemos deixar de observar que a entrada da psicanálise na crítica literária leva, no caso de Aníbal, muita água para o moinho de uma confusão entre público e privado (ou entre esfera autoral e elaboração artística, entre vida e arte sem mediações formais) que podemos verificar na íntegra do texto anterior e neste mesmo, sobre Machado de Assis.

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(o da origem humilde e o da cor, numa sociedade preconceituosa) teriam marcado para sempre o destino de Machado. Tudo isso o tornara vigilante consigo mesmo, orgulhoso e sensitivo. E nessa preocupação de recato, de boas maneiras, nesse amor-próprio protegendo-se contra ferimentos possíveis, perdeu o homem os estados de distração, de abandono e consentimento; perdeu a humildade, a espontaneidade; perdeu o melhor de si mesmo. O seu pessimismo desanimado privou-o de atingir o “lado solar da vida”, na expressão do Sr. Tristão da Cunha. A vida é que é má e absurda ou era a Machado que faltava, além da vontade da luta, os elementos de fundo poético-irracional e as condições objetivas que deveriam fazê-lo reconciliar-se com ela? O autor de Dom Casmurro escolheu o lado das coisas que lhe dava razão para apoiar o seu niilismo fundamental. Nenhuma personagem generosa em sua galeria; nenhum episódio heroico. E quando a vida, à revelia do artista, começa a se compor em sua obra com certa frescura e inocência, ei-lo que aparece – o autor – com seu olhar sorridente e mordaz, para avisar que tudo é ilusão passageira. Instinto, alegria, progresso, ambição, amor – tudo vai desembocar no Nada.

A aversão de Aníbal Machado pelo que se considerava o desencanto machadiano não

é um caso isolado. Ao contrário, os modernistas em geral incomodavam-se com o

pessimismo do autor de Dom Casmurro, que entrava em choque com uma visão positiva da

modernização que caracterizava o movimento. Tal desconforto, que incluía até mesmo

escritores de consciência crítica aguda como Mário de Andrade, correspondia à “ideia de

que a elite brasileira, com sinceridade, com boa vontade e com abertura para o povo, que

era como que a sua família, iria arrumar esse país. Era um pouco a maneira com que Mário

e o Modernismo se viam a si mesmos.”5 Para Aníbal, o espírito sombrio de Machado de

Assis não corresponderia ao “nosso psiquismo profundo” que seria, portanto, solar. O

excesso de civilização e a “consciência implacável” do autor teriam-no impedido de

abandonar-se a esse “caos” ardente e “perpetuamente em fusão” que seria a realidade

brasileira e enxergar “certa frescura e inocência” em um terreno social problemático, sim,

mas pronto para ser transformado. Vê-se daí que, ainda que parecendo “grosseiramente

inspirada em forças irracionais”, a confiança de Aníbal Machado no processo histórico seria

algo difícil de demover.

Alinhados com a produção crítica do escritor, alguns estudos recentes sobre a obra

de Aníbal Machado tendem a ver nos contos e em João Ternura o otimismo que

impregnava seus artigos de jornal.6 No entanto, em outro enfoque de leitura, é possível

5 Cf. Roberto Schwarz, “Conversa sobre „Duas Meninas‟”, in:__. Sequências Brasileiras, São Paulo: Companhia das

Letras, 1999, p.234. 6 A esse respeito, ver entre outros: Maria Angélica Guimarães Lopes, “Aníbal Machado e o sonho” e “Nas asas do

boato: a contística de Aníbal Machado”, in: A coreografia do desejo: cem anos de ficção brasileira, São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 115 a 126 e 127 a 138; M. Cavalcanti Proença, “Os balões cativos”, in: A. Machado, A morte da porta estandarte e Tati, a garota e outras histórias, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1978, pp. xi a xxx; Antonio Dimas, “Magia e Ternura”, in: Os melhores contos de Aníbal Machado. São Paulo: Global, 1986, pp. 5 a 12; e Maria Augusta Bernardes da Fonseca, “Vento, gesto, movimento: a poética de Aníbal Machado”, Tese de Doutoramento em Teoria Literária. Departamento de Linguística e Línguas Orientais. FFLCH/USP. Orientador: Prof. Dr. Boris Schnaiderman, 1984.

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perceber as marcas dos abalos nessa confiança na “inevitável transformação para melhor do

homem” ao longo de seu único romance.

João Ternura tem uma história singular: iniciado ainda na década de 207, o livro foi

concluído a custo em 1964, ano da morte do autor, e publicado apenas postumamente, em

1965, por iniciativa do amigo Carlos Drummond de Andrade. Otto Maria Carpeaux resume

bem a expectativa em torno da obra:

Quando conheci Aníbal – parece-me que foi em 1941 – me diziam os amigos: os contos são ótimos, muita outra coisa ótima está escondida nas gavetas, mas Aníbal ainda não tem dado toda a medida do seu talento; espere o João Ternura. Eles próprios já esperavam, então, há anos, esse João Ternura que já estaria escrito mas ainda não definitivamente redigido, ou então estaria mentalmente pronto no espírito de seu criador mas ainda não escrito, ou então teria ficado fragmento e ficaria fragmento para sempre. Enfim, João Ternura virou uma grande lenda da literatura brasileira: meio boato e meio símbolo.8

Aníbal reunia todo tipo de artista e intelectual aos domingos em sua casa na Rua

Visconde de Pirajá. Sempre pronto a discutir os trabalhos de autores novos ou antigos e

com uma disposição conciliatória e universalista no trato das questões nacionais, exerceu

forte influência em muita discussão artística e ensaística do Modernismo da segunda fase.

“Com ele apareceram no Brasil o surrealismo e o realismo socialista – e, em geral, a

literatura de inspiração social –, o cubismo e a arte abstrata”.9 Também em função disso,

João Ternura foi o livro mais esperado do Modernismo brasileiro: até mesmo Oswald de

Andrade trombeteava por aí que seria um dos pontos altos do romance nacional10, e os

amigos por décadas aguardaram ansiosos sua conclusão. Pode-se dizer que, se havia

expectativa entre os amigos de Aníbal, a expectativa era de todo artista, intelectual ou

curioso do meio que passasse pelo Rio de Janeiro.

Todo mundo era amigo de Aníbal Machado: os poetas todos: os anteriores a 22, os integrantes da Semana de Arte Moderna, a geração de 45, os concretistas, os indefinidos, que mal tinham metido o bico para fora da casca; os romancistas todos; regionalistas, subjetivistas; os plásticos todos: figurativistas, abstracionistas, tachistas, escultores, gravadores, desenhistas, arquitetos; os músicos: eruditos e populares, compositores ou executantes; as escolas de samba gostavam de Aníbal e a bossa nova também gostava de Aníbal; (...) quem clamasse por um prefaciador inteligente, quem andasse à cata de um leitor

7 Mais precisamente em 1926, segundo Renard Perez em “Aníbal Machado: vida e obra”, in: A. Machado, João

Ternura, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1965, p.xxiii. 8 Otto Maria Carpeaux, “Presença de Aníbal”, in: A. Machado, João Ternura, Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976,

pp. xiii a xxii. 9 O. M. Carpeaux, cit., p. xvi. 10 Apud Renard Perez, Escritores brasileiros contemporâneos, 1a série, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970,

p. 23.

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para seus originais, (...) quem chegasse de longe ou partisse: todos procuravam Aníbal Machado. 11

No entanto, a elaboração da obra foi lenta, caótica e muitas vezes interrompida. O

testemunho de Renard Perez, publicado apenas na primeira edição do livro, dá uma medida

mais exata de seus períodos de escrita e suspensão:

Numa manhã de janeiro de 1956, fomos entrevistar Aníbal Machado, para a série de reportagens biográficas que então fazíamos, semanalmente, no suplemento literário do Correio da Manhã. Àquela altura, já tínhamos começado a frequentar as famosas noites de domingo, e apesar do conhecimento ainda recente, acredito que logo nos ligasse uma afeição muito particular. Afeição antecipada, de minha parte, e motivada na grande admiração pela sua obra, pela aura em torno de sua figura – e que me levou a querer conhecê-lo; e que logo teve correspondência numa enorme prova de consideração – uma das maiores provas de consideração que um homem como Aníbal poderia dar: concedeu em ler trechos de seu João Ternura, então já “definitivamente” engavetado, e em torno do qual fizera cair, voluntariamente, uma zona de silêncio. Mas a prova não se deteve aí; diante do entusiasmo pelos trechos ouvidos, e a pedido nosso, confiou-nos aqueles originais amarelecidos – parte batidos a máquina por Eneida, vinte anos antes, parte talvez maior em manuscrito – folhas esparsas, recibos de farmácia, pedaços de envelopes, enchidos a lápis pela letrinha miúda. Levamos os originais para casa, rebatemos os capítulos iniciais, deciframos carinhosamente a parte manuscrita, já meio apagada pelo tempo. E creio poder dizer que foi da nova leitura daquele caos recomposto, e da vida que sentiu pulsar ainda ali, que voltaria a Aníbal o entusiasmo que o faria retomar para prosseguir – quase trinta anos depois – o famoso romance abandonado.12

Sabemos então que Aníbal deu vida a seu personagem João Ternura até

aproximadamente 193013, engavetando-o depois por mais de vinte anos para retomá-lo em

1956 e arrastá-lo consigo por mais oito anos – até sua morte, em 19 de janeiro de 1964,

poucos meses antes do acontecimento que representou o fim das ilusões de conciliação

entre movimentos de esquerda, trabalhadores e burguesia nacional.14 Ainda assim, a versão

final do livro, reunida e levada a público por Carlos Drummond de Andrade, revela uma

obra cuja finalização não resolve os impasses que estão na raiz de seu projeto – impasses

que, antes, ajudam a compreender o assombroso adiamento de sua produção.

Faz todo o sentido que a publicidade involuntária que João Ternura recebeu antes

de concluído tenha atemorizado o autor, e é isso que nos conta o próprio Aníbal na

introdução ao livro.15 Mas a leitura a que este trabalho se propõe, com vistas ao exame das

relações entre a obra literária e sua matéria histórica, independentemente das intenções do

11 “Aníbal e o partido da vida”. Depoimento de Paulo Mendes Campos, por ocasião da morte de Aníbal em 1964, in:

A arte de viver e outras artes, cit., pp. xii-xiii. 12 “Aníbal Machado: vida e obra”, in: João Ternura, cit., p. xv. 13 “Em 1935, Ternura já se encontra inteiramente banido das cogitações do escritor.” Renard Perez, cit., p. xxvi. 14 A esse respeito ver: R. Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in:__. O pai de família e outros estudos, São

Paulo: Paz e Terra, 1992, pp. 61 a 92 e “Fim de século”, in: __. Sequências brasileiras, cit., pp. 155 a 162. 15 A. Machado, João Ternura, cit., p. 3.

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escritor, nos leva a uma outra hipótese para o adiamento: o protagonista João Ternura

parecia querer configurar-se como símbolo do brasileiro e das possibilidades da nação

(conforme ao ideário e às aspirações modernistas em seu primeiro tempo) mas, em função

da dissociação entre seus anseios e seus atos, que o levam ao imobilismo, acaba por

desenvolver-se em boa medida dentro do esquadro das personagens fracassadas próprio de

muitos dos romances nacionais ao longo da década de 30.

O fracassado é o “protagonista sintomático” do qual se queixa Mário de Andrade em

“A elegia de abril” de 1941:

De uns dez anos pra cá, sem a menor intenção de escola, de moda literária ou imitação, numerosos escritores nacionais se puseram cantando (é bem o termo!...) o tipo do fracassado. (...) Mas em nossa literatura de ficção, romance ou conto, o que está aparecendo com abundância não é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição do ser sem força nenhuma, do indivíduo desfibrado, incompetente para viver, e que não consegue opor elemento pessoal nenhum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como nenhum ideal, contra a vida ambiente. Antes, se entrega à sua conformista insolubilidade. (...)

Não é possível aceitar esta frequência de um tipo moral em nossa ficção viva, sem lhe conhecer a causa. (...) ...existe em nossa intelectualidade contemporânea a pré-consciência, a intuição insuspeita de algum crime, de alguma falha enorme, pois que tanto assim ela se agrada de um herói que só tem como elemento de atração, a total fragilidade, e frouxo conformismo. ...que se anula numa conformista desistência e vai-se embora. Vai-se embora pra Pasárgada?... 16

Em João Ternura, o protagonista vocacionado para ser o símbolo da nação que se

constitui, acaba paralisado entre a nostalgia de um universo rural amesquinhado e em

decadência, para onde não deseja voltar, e com vistas a uma totalidade imaginária que não

se concretiza com a mudança para a cidade grande. De um modo geral, suas vivências no

Rio de Janeiro o afastam do passado mas não o recolocam no presente – as poucas

situações significativas para ele são as que se constituem como aproximações a esse mundo

total e o remetem psicologicamente ao ambiente da primeira infância. Diante disso, sua

vida adulta parece o desenrolar de um grande vazio: aparentemente, nenhuma

aprendizagem, nenhuma adaptação e nenhum embate com a realidade. “Instinto, alegria,

progresso, ambição, amor – tudo vai desembocar no Nada” nesse livro que carregava o

projeto ambicioso de ser “...uma longa, longa conversa: com o Brasil de seu tempo e com o

Brasil de sempre”17 e acaba, em sua negatividade provavelmente um tanto à revelia de

Aníbal, aproximando-se dos romances maduros de Machado de Assis.

João Ternura apresenta-se internamente dividido em seis partes, chamadas “livros”.

Segundo Aníbal Machado, o Livro I era o único que estava mais ou menos pronto antes de o

16 Mário de Andrade, “A elegia de abril”, in: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo; Martins, 1974, p. 190, 191. 17 Cf. O. M. Carpeaux, cit., p. xxxvii.

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romance ser engavetado18. A grande aposta do narrador no potencial de lirismo da infância,

bem como a aproximação lírico-fusional entre narrador e protagonista, aliadas a um

material temático em que se justapõem formas arcaicas e modernas, parecem ratificar essa

afirmação na medida em que nos revelam uma escrita ainda sob o impacto da euforia e das

inovações do Modernismo “heróico”. Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, cada um a seu

modo, se afiguram como influência principal.

A aposta na visada primitiva, que se confunde com o olhar infantil, está na pauta do

“Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de 192419, dentro de um “programa de reeducação da

sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira”20.

A perspectiva definida pelo Manifesto – sentimental, intelectual, irônica e ingênua ao mesmo tempo – é um modo de sentir e conceber a realidade, depurando e simplificando os fatos da cultura brasileira sobre que incide. (...) A inocência construtiva da forma com que essa poesia sintetiza os materiais da cultura brasileira equivale a uma educação da sensibilidade, que ensina o artista a ver com olhos livres os fatos que circunscrevem sua realidade cultural, e a valorizá-los poeticamente...

Esse processo (...) originou-se na nova escala de experiência condicionada pela máquina e pela tecnologia, por todo esse conjunto dos meios de produção, comunicação e informação da época moderna, que transformaram a natureza circundante, criando a sobrenatureza do meio ambiente técnico da civilização industrial e urbana, a escala não livresca, mas espetacular de um mundo surpreendente e mágico, de coisas mutáveis, de objetos que se deslocam no espaço e no tempo, – de um mundo em que a própria ciência funciona como varinha de condão.21

A construção de um ponto de vista “ingênuo” está, na obra de Oswald de Andrade,

englobada em um projeto de cultura brasileira mais amplo, para o qual a valorização da

primitividade nos libertaria de nosso sentimento de inferioridade cultural. Dentro dessa

visada, “o Brasil pré-burguês, quase virgem de puritanismo e cálculo econômico, assimila

de forma sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-

burguesa, desrecalcada e fraterna; além do que oferece uma plataforma positiva de onde

objetar à sociedade contemporânea. Um ufanismo crítico, se é possível dizer assim.”22

Se em Oswald o olhar infantil se mistura à perspectiva primitiva dentro de um

programa de educação da sensibilidade para uma nova escala de experiência determinada

18 “Assim, com acréscimos, supressões e pequenas modificações no já feito, além da elaboração quase total da 2a

parte em diante, procurei dar-lhe arranjo adequado à vida de seu morador...”, in: op. cit., p. 4. 19 Em Obras Completas de Oswald de Andrade: do pau-brasil à antropofagia e às utopias, Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1978. 20 Cf. Benedito Nunes, in: “Antropofagia ao alcance de todos”, prefácio à edição supracitada, p. xx. 21 Idem, ibidem, pp. xx-xxi-xxii. 22 Cf. R. Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, in:__. Que horas são?, São Paulo: Companhia das

Letras, 1997, p. 13.

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pelo desenvolvimento tecnológico, em Bandeira o infantil tem outras razões de ser23. A

infância aparece em sua poética como certa capacidade de brincar frente a um mundo

ruinoso, como um poder de dotação de sentido no vazio, como uma “inclinação essencial

pelos frágeis da cultura”, parte de uma pesquisa mais ampla do que “funda o humano no

estado conceitual do desamparo”, uma vontade de encontrar o que é do homem em seu

processo de instauração, uma “utopia de uma outra relação de sentido com as coisas

humanas”, “em nítida oposição ao andamento geral da história e da vida”.

Ocorre que, tanto o progresso positivado que resolveria os problemas do mundo em

um passe de mágica, de Oswald de Andrade, quanto a instauração do humano por via do

universo infantil, de Manuel Bandeira, acabaram questionados em João Ternura, ainda que

de modo ambivalente – principalmente a partir do Livro III. O desenrolar dos

acontecimentos históricos posteriores a 1930 foram revelando aos poucos o caráter

ideológico das crenças do primeiro Modernismo e talvez tenham minado o projeto original

do livro e vincado o desenvolvimento da obra, contrariando em boa medida as intenções

iniciais do autor.

Já no Livro I, que conta a história do nascimento do protagonista em uma chácara no

interior e as peripécias de sua infância, há indícios de que “os valores mágicos e alógicos da

imaginação primitiva”24 não entrarão em acordo com a moderna ciência e técnica, como

queriam Oswald e os primeiros modernistas. A chácara é apresentada de maneira ambígua,

ora como uma propriedade rural de maior vulto, com muitos ex-escravos e um bom número

de colonos italianos, ora como uma pequena propriedade de um almirante aposentado (o

avô materno de Ternura) sustentada em grande parte pelo negócio de transporte fluvial de

seu genro, Antônio, pai do menino. A mistura de “crias”, colonos, comércio e da sombra da

industrialização (com a ferrovia que está sendo construída na cidade vizinha) indica que a

estrutura patriarcal já não existe ali como organização econômica dominante na sociedade

local, muito embora ela se mantenha em grande parte nos modos de pensar e agir de seus

habitantes. No início desse Livro I, a chácara é ainda uma espécie de universo mítico, um

mundo autônomo no qual as relações sociais encontram-se naturalizadas. Quando a criança

cresce um pouco, a perspectiva do narrador funde-se à ótica do protagonista e o narrador se

mostra tão encantado com o menino que todos os conflitos que o cercam, mostrados a

partir da visada infantil, e dada a ampla utilização do discurso indireto-livre, tornam-se

23 Para todas essas observações sobre a poética de Manuel Bandeira me valho do estudo de Tales A. M. Ab‟Saber,

“Mimese do humano, crítica da desumanização: uma leitura de Manuel Bandeira”, in: Modernization et literature au Brésil, Paris: Ed. Presses Universitaire de la Sorbonne, 2001.

24 “Antropofagia ao alcance de todos”, cit., p. xxiii.

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dúbios: surgem ora como enfrentamentos reais, ora como atos “naturais”.

As vivências do menino pequeno vão se constituindo, nesse primeiro Livro, como um

modo de ser em que tudo se submete à sua onipotência. João Ternura anseia por atravessar

os limites amesquinhados da chácara mas, quando o mundo “de fora” não corresponde às

suas expectativas, opta pela manutenção da fantasia original e abdica da realidade. Nesse

passo, o Livro I termina com a recusa da criança à disciplina do colégio, de onde

rapidamente é expulso iniciando uma série de negações da realidade que o vão aproximar

da “conformista insolubilidade” do “indivíduo desfibrado” que tanto inquietava Mário de

Andrade.

No Livro II o progresso chega à chácara e desestrutura o universo econômico da

família, deixando no lugar um mundo residual sem possibilidade de transformação. Com a

chegada da ferrovia à cidade vizinha, o negócio do pai de Ternura vai à falência e o menino

perde seu lugar de classe, anunciando o avesso da conciliação entre o desenvolvimento

técnico recente (“as novas formas da indústria, da viação, da aviação”25) e os resquícios de

nossa estrutura rural arcaica. Mandado agora para um colégio de padres, foge a nado pelo

rio, o que novamente prenuncia a negação do acordo entre “a floresta e a escola”26 esperado

pelo projeto Pau-Brasil. A fuga lhe proporciona uma espécie de imersão fusional nas águas

do rio de sua infância que o leva, literal e afetivamente, de volta à chácara. Nesse contato

com a natureza, extremamente prazeroso pela sensação de perda no infinito das águas e de

retorno ao estágio de indiferenciação entre sujeito e mundo, se configura uma espécie de

anseio por essa fusão impossível que orientará a trajetória da personagem.

O Livro II, de tamanho muito reduzido, parece funcionar na composição geral mais

como um entreato que prepara a segunda fase do romance, onde haverá sensível mudança

de tom. São as expectativas do próprio protagonista por um “mundo surpreendente e

mágico” que se frustram a partir do Livro III, quando ele se muda para a cidade grande.

A única possibilidade de não sucumbir junto com o seu mundo rural seria prolongá-

lo na cidade, arrumando um emprego público na base de antigos privilégios. Munido de

cartas de recomendação e sem saber por onde começar, o protagonista procura seu “primo

importante” que, em uma única conversa, lhe tira as ilusões de ascensão social. Ternura

também não deixa de recusar por si mesmo este mundo dos “importantes”, mas apenas por

se adivinhar incompetente demais para executar a mise-en-scène dos medalhões: ele é

pequeno demais, não tem “modos” e sua maneira infantil de existir acaba por se chocar com

os horizontes objetivos de uma sociedade que reproduz antigos arcaísmos.

25 Manifesto da Poesia Pau-Brasil, cit., p. 8. 26 Idem, p. 9.

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A demanda de absoluto da personagem toma a forma de uma espera por uma

“grande revelação” de conteúdo inespecífico, que vai se tornando uma espécie de

monomania. Ternura passará o resto de sua vida – que dá a matéria ostensiva do enredo –

aguardando algum importante acontecimento que nunca chega e o mantém em estado de

imobilidade.

O Livro IV traz alguma perda da esperança mágica nos acontecimentos, e a ênfase

recai sobre o tempo vazio de experiência vivido por Ternura no Rio de Janeiro. Há

pouquíssimos acontecimentos a serem narrados, e o olhar infantil vai ganhando contornos

de loucura. No lugar dos episódios de quebra da ordem na cidade, mais comuns no Livro III

(como a Revolução e a grande enxurrada que o leva à Rita), há inúmeros momentos de

regressão fusional. Ternura procura meios de se transformar em árvores ou pedras e

desaparece por várias vezes da vista dos amigos, muitos dos quais também se encontram

enlouquecidos. Cada vez mais melancólico e inerte, escuta e sente com frequência as vozes

de sua infância ao mesmo tempo em que ficamos sabendo que lhe morreram os pais e a

chácara foi vendida. Meio lunático e já envelhecido, o protagonista permanece apenas

vagando em busca do seu “encontro”.

No Livro V, Ternura apresenta uma súbita solidariedade com os oprimidos seguida

de um impulso quixotesco de consertar o mundo, mas logo desiste e volta à monomania da

“grande revelação”. Também intui que o mundo de sua infância virou pura ruína e que ele

não poderia continuar agindo como se lá estivesse. Tal tomada de consciência, porém,

apenas desponta no horizonte para se retrair em seguida. A utilização do discurso indireto-

livre, que dominava os Livros I e II e já escasseava nos Livros III e IV, quase desaparece

aqui; indicando um desgaste do ponto de vista ingênuo e a derrocada do anseio fusional

entre narrador e personagem. O final desse Livro V é mais um entreato: o protagonista sai

de cena e entram vozes do morro para fomentar a expectativa do carnaval. Fica sugerido

um potencial libertário na alegria popular.

A explosão do carnaval no Livro VI será a grande tomada de semiconsciência de João

Ternura. A verdadeira vida, tão aguardada, parece revelar-se na festa, enquanto o livro

entra em “clima de liquidação”: vários discursos e manifestos irrompem de todos os lados

alterando o ritmo da narrativa e o estilo da composição. Narrador e protagonista

praticamente saem de cena para dar lugar a um desfile alucinado de ideias diferentes sem

nenhuma aparente hierarquia. Todas se igualam em uma ironia indecidível e tudo se

dissolve na algazarra da turba. Em meio ao tumulto, o protagonista, num momento de

lucidez, percebe que esse estouro residual tem dia e hora para começar e acabar.

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Após as comemorações, segue inconformado com o retorno aos dias de sempre.

Ternura olha para trás e todo seu passado se funde em espectro. A cidade moderniza-se, as

pessoas envelhecem, enquanto ele apenas observa. Achando a vida cada vez mais absurda e

apegado a um passado idílico, Ternura vira um “olho espiando” para em seguida sumir no

nada, “como se nunca tivesse existido” [p. 224].

***

Quando João Ternura é engavetado (por volta de 1930), as inovações técnico-

formais e temáticas do primeiro Modernismo encontravam-se já devidamente

incorporadas, tornando o anticonvencionalismo “um direito, não uma transgressão”27. A

ficção regionalista da época, principalmente na figura de Graciliano Ramos, “abandona (...)

a amenidade e a curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no

encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem

rústico.”28 À medida que o desenvolvimento histórico frustrava os objetivos libertários e os

pressupostos ideológicos que animavam a vanguarda artística, obrigando os escritores a

reconsiderarem o que se construíra como interpretação brasileira, o ponto de vista

predominante no Livro I de João Ternura – o “padrão de visão com olhos livres”, em

moldes daquela infantil – se revelava à nova geração modernista como certa “opção por não

enxergar”; um possível apagamento dos antagonismos presentes na coexistência do arcaico

e do moderno nacionais29. Não parece arbitrário supor que tais alterações tenham

paralisado o autor de João Ternura, que possivelmente já fosse capaz de intuir uma

necessária mudança de rumos em seu tão aguardado romance.

O problema é que a aposta da primeira geração modernista em um salto mágico por

cima dos atritos nacionais era muito alta – como se vê, no caso específico do autor de João

Ternura, na continuação de seu artigo sobre Machado de Assis e na sequência do

depoimento de 1941, sobre o encontro com Carlos Drummond de Andrade. No primeiro,

Aníbal tenta delinear o “psiquismo brasileiro”, do qual Machado não estaria imbuído:

Será brasileira a obra de Machado pelo simples fato de o escritor haver tomado os seus tipos à sociedade carioca numa das etapas de sua evolução? Mas os motivos eram, como dissemos acima, simples pretexto para que ele pudesse afirmar uma tendência do espírito e uma atitude humana em que me parece entrar muito pouco do psiquismo brasileiro.

27 Cf. A. Candido, “A revolução de 1930 e a cultura”, in:__. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:

Editora Ática, 2000, p. 189. 28 Cf. A. Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, in:__. A educação pela noite e outros ensaios, cit., p. 142. 29 Cf. R. Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, in:__. Que horas são?, cit., p. 27.

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Isso obriga a uma aventura perigosa, que é definir esse psiquismo. ...Certamente nesse terreno obscuro só nos poderá guiar um instinto secreto menos inseguro por enquanto do que o conhecimento lógico. Só assim poderemos falar em espírito brasileiro antes de defini-lo claramente. Essa desordem lírica, essa instabilidade e avidez, esse frêmito superficial diante da vida, essas incoerências miúdas, esses heroísmos instantâneos e entusiasmos sem prosseguimento, essa preguiça e essa doçura de um lado; do outro lado o sopro da terra, o drama das populações rurais, a interferência da paisagem na vida poética do homem, todas essas forças, formas e densidades só pelo lirismo podem ser traduzidas. (...)

A tendência geral da comunhão brasileira é essa marcha apressada e um tanto desordenada para a vida – marcha que se for presidida por um ideal superior e assegurada por melhores condições materiais e culturais irá fatalmente levar o povo à conquista da alegria, com a qual não se coaduna a melancolia sem remédio de Machado. No fundo de nossa vontade de viver existe mais sofreguidão do que inquietação de raízes filosóficas. Entre tantas indeterminações e movimentos incoerentes do nosso psiquismo descobre-se uma permanente predisposição feliz para a vida 30 (grifos meus).

No segundo, a tendência ao aplainamento de conflitos (como em Oswald de

Andrade), associada a uma forte crença no potencial humanizador da primeira infância

(como em Manuel Bandeira) reafirmam-se:

Parecia-me haver tocado imprudentemente um dos fios de invisível trama de sua [de Drummond] alma. Calei-me. Um ventinho de pequeno percurso agitava fracamente a vegetação. Tudo parecia sombrio. De repente, uma transformação. Uma flama dourada, um ser vivo e feliz atravessou o nosso silêncio. Não era um raio de sol que naquela hora matinal esplendia no céu de Belo Horizonte. Era Maria Julieta, filha de Carlos. Ninguém a vira entrar. Apareceu. Apareceu numa confusão de bonecas e outros brinquedos. O mesmo rosto fino do pai, os cabelos louros, a expressão ao mesmo tempo infantil e cheia de experiência humana. Mergulhei o olhar nos seus olhos que possuem um azul de substância vegetal e celeste. Em espírito interroguei o amigo: – “E agora, Carlos? Que valem os nossos pensamentos diante do que essa criança maravilhosa nos traz de inocência, de alegria descuidada? A poesia tem mil maneiras de se encarar...”.

A criança impôs um rumo novo à nossa conversa. Desapareceu a angústia...

Pelo menos provisoriamente. Sorrimos todos. (...)31 (grifos meus).

Paradoxalmente, em João Ternura, que continua a ser escrito em recibos de

farmácia ou apenas na mente de seu autor, a impossibilidade do protagonista constituir-se

segundo os parâmetros (ideais) da individuação burguesa traz a contrapartida do anseio de

fusão com o outro (via ternura e lirismo) e vai tomando conta de sua trajetória. Enquanto

isso, Aníbal reafirma o compromisso ideológico do qual estava inicialmente investido em

diversos escritos. Em janeiro de 1945, tomado ainda pelos impactos da 2a Guerra e em ato

que assinala a derrocada do Estado Novo, o autor pronuncia, na abertura do Primeiro

Congresso Brasileiro de Escritores, uma declaração de princípios, onde professa sua fé no

30 A. Machado in: __. A arte de viver e outras artes, cit., pp. 144-145. 31 A. Machado, “Aparição de Maria Julieta”, in: A arte de viver e outras artes, cit., pp. 221-222.

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progresso, na industrialização e na democracia. O Brasil, “país do futuro”, dependeria

apenas de alguns ajustes para ladear as grandes potências no concerto das nações. E,

reeditando as convicções do primeiro Modernismo, nas condições brasileiras a sociedade

moderna seria mais “cordial” e menos tecnicista que noutras partes:

O homem do futuro, cuja imagem já se esboça na América Latina, ...há de ser livre e cordial, sábio e espontâneo dentro do regime da justiça social que ele criar para todos. Nem a rigidez racionalista que nada pode contra o calor do sentimento, nem esse cósmico tumultuário com que se pretende desanimá-lo de seu assalto consciente à natureza. 32

A julgar por tais crenças, o escritor teria bons motivos para não conseguir dar vida a

seu personagem que, no entanto, insistia em prosseguir em sua derrocada. Pode ser que a

retomada de João Ternura tenha se dado pelo esforço e dedicação de Renard Perez em

organizar os originais esparsos, porém não parece casual para nossa leitura o fato de Aníbal

desenterrar novamente o seu personagem em 1956, quando o milagre desenvolvimentista ia

de vento em popa. E é pelo embate honesto do intelectual com a matéria histórica de que

tenta dar conta em seu livro que João Ternura toma os rumos que toma, mesmo à revelia

dos projetos iniciais de seu autor. Se levada em consideração essa “queda-de-braço” entre o

livro que se tencionava escrever e o que a matéria histórica acaba trazendo de “desvio”,

talvez não seja mera coincidência o fato de Aníbal ter decidido resgatar o seu romance justo

nos anos JK, marcados por uma retomada da confiança no desenvolvimento nacional em

função de um novo surto industrial. Juscelino representou bem os anseios de modernização

existentes em diversos grupos, da esquerda à direita, desejosos de superar o atraso

brasileiro:

Se alguma coisa, aliás, nos falta, é termos consciência exata de que somos irremediavelmente um grande País. Não podemos convencer os outros dessa realidade quando não estamos dela convencidos. (...) Temos o dever de não consentir que o encontro com o grande destino do Brasil seja eternamente postergado. Temos o dever de não consentir que a distância que medeia entre nosso estágio de desenvolvimento e o dos países industrializados e poderosos aumente de maneira perigosa para o nosso futuro.33 (grifos meus).

“Era o „destino‟ do Brasil tomar o „caminho do desenvolvimento‟. A solução para o

subdesenvolvimento nacional, com todas as suas injustiças sociais e tensões políticas, devia

ser a industrialização urgente. (...) Muitos intelectuais de ideias nacionalistas foram

32 A. Machado, “Aos escritores”, in: __. A arte de viver e outras artes, cit., p. 174. 33 Discurso de JK citado em Evaldo Vieira, Estado e miséria social no Brasil de Getúlio a Geisel, São Paulo: Cortez

Editora, 1983, p. 115.

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atraídos pela entusiástica fé do presidente no futuro do Brasil e sua boa vontade no sentido

de tentar acelerar o processo de mudanças econômicas. (...) Os intelectuais da esquerda

radical, por outro lado, eram antipáticos em princípio a Kubitschek; porém a sua posição foi

anulada, pelo menos nos três primeiros anos de sua presidência, pelo sucesso evidente de

sua política.” 34

Em diálogo com o citado “Literatura e subdesenvolvimento” de Antonio Candido,

Paulo Arantes analisa esta ideia de potência nacional prospectiva que orientou o debate

intelectual brasileiro desde a Independência:

Um dos mitos fundadores de uma nacionalidade periférica como o Brasil é o do encontro marcado com o futuro. Tudo se passa como se desde sempre a história corresse a nosso favor – um país, por assim dizer, condenado a dar certo. Estudando certa vez as manifestações literárias deste velho sentimento brasileiro do mundo, Antonio Candido falou em consciência amena do atraso, correspondente à ideologia de país novo, na qual se destaca a pujança virtual, a grandeza ainda por realizar. Esse estado de espírito euforizante estaria de tal modo arraigado a ponto de sobreviver até mesmo à revelação dramática do subdesenvolvimento, tal a confiança numa explosão de progresso que adviria, por exemplo, da simples remoção do imperialismo. E mais, o futuro não só viria fatalmente ao nosso encontro, mas com passos de gigante, queimando etapas, pois entre nós até o atraso seria uma vantagem. Fantasia encobridora reforçada inclusive pelo viajante estrangeiro ofuscado pela exuberância nacional, como foi o caso de um Stefan Zweig, autor do mais celebrado clichê dessa mitologia compensatória: Brasil, País do Futuro.

Ocorre que não faltou apoio na experiência nacional para a cristalização dessa miragem consoladora. A tal ponto, que Sérgio Buarque de Holanda se referiu certa vez à nossa história econômica como uma verdadeira “procissão de milagres”.* Primeiro, o milagre do ouro no século XVIII, a tempo de nos salvar na hora crítica em que a economia açucareira arrefecia seu ímpeto; depois, o milagre do café, caindo do céu quando o esgotamento das minas anunciava uma desagregação econômica ameaçadora. Pois bem: depois de ressuscitar essa visão irônica de uma atividade econômica, movida a arranques mais ou menos fabulosos, João Manoel e Fernando Novais acabam concluindo que, tudo bem pesado, “nossa industrialização não deixou de ser também um desses milagres: resultou antes de circunstâncias favoráveis, para as quais pouco concorremos, do que da ação deliberada de uma vontade coletiva”. 35

A contrapartida dessa procissão de milagres seria um cortejo de desilusões,

configurando na história nacional o que o Paulo Arantes chamou uma “sintaxe da

frustração”. Costuraria a nossa história algo como a sensação constante de “a hora é agora”,

seguida de sucessivos malogros. O futuro “teima em não comparecer ao encontro

marcado”36 e o país imperfeito, mas de grande potencial e sempre prestes a uma realização

34 Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 207 a 211. * Passagem de Visão do Paraíso recentemente relembrada por João Manoel Cardoso de Mello e Fernando Novais

em “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, in: Lilia Moritz Schwarcz, História da vida privada no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 4, p. 644-645.

35 Paulo Arantes, “A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização”, in: Zero à esquerda, São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004, pp. 25 a 77.

36 Idem, ibidem, p. 28.

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impressionante, não vinga sucessivamente. E a soma das numerosas oportunidades de

virada é zero.

Em 1983, Roberto Schwarz fará uma análise precisa da derrocada dessas ilusões

históricas e da transformação do ideário modernista em ideologia:

Corrido o tempo, não parece que o âmbito da cultura se tenha desanuviado, nem aliás o do poder, apesar dos dois mudarem muito. Até segunda ordem, o processo histórico não caminhou na direção dos objetivos libertários que animavam as vanguardas políticas e artísticas. Assim, aliados à energia que despertaram, estes objetivos acabaram funcionando como ingredientes dinâmicos de uma tendência outra, e hoje podem ser entendidos como ideologia, de significado a rediscutir. Nem por isso são ilusão pura, se considerarmos, com Adorno, que a ideologia não mente pela aspiração que expressa, mas pela afirmação de que esta se haja realizado. Algo semelhante aconteceu no Modernismo brasileiro, que tampouco saiu incólume, e cujo triunfo atual, na larga escala da mídia, tem a ver com a sua integração no discurso da modernização conservadora. Em parte a despeito seu, em parte como desdobramento de disposições internas.37

A adesão entusiástica à ideia de “país do futuro”, por parte de Aníbal, contrasta com

o que se encontra figurado em João Ternura. Em função do embate entre matéria narrativa

e dinâmica histórica nacional, o que resulta é uma esperança capenga, que flutua entre uma

sucessão de não realizações e outra. Personagem e obra entram em um processo de

dissolução que as condena a subsistirem inconclusas. Talvez o que esteja em jogo nesse

pequeno livro falhado, mas desde sempre emblemático, seja o destino do que realmente

importou ao século XX brasileiro e que, como esse “livro que não é romance”38, já não

importa mais: as possibilidades de constituição do Brasil como nação autônoma e

independente.

37 R. Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, cit., p. 21. Ver também “Fim de século”, cit. 38 Nos termos do próprio autor, na introdução a João Ternura, cit. p. 5.

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Otimismo e sebastianismo

na história recente da Tropicália

Carlos Pires

“Que vem a ser o otimismo?” perguntou Cacambo.

“Ah! Respondeu Cândido, é a fúria de sustentar que tudo está bem quando está mal.”

E derramava lágrimas, contemplando o preto. (Voltaire, Cândido ou o otimismo)

Em uma coletânea de textos escritos por Caetano Veloso ao longo de sua vida, O

mundo não é chato1, foi publicada na íntegra pela primeira vez uma conferência que o

cantor e compositor proferiu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1993. O

título Diferentemente dos americanos do norte é tirado do começo dessa conferência que

cita – sem dar de imediato a referência com o intuito, talvez, de apresentá-la como reflexão

de um brasileiro – palavras de Jorge Luis Borges a propósito do caráter argentino:

nosso povo, diferentemente dos americanos do norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado (...) O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais...2

Desse ponto o palestrante vai desvelando as intenções daquela apresentação:

“Saber em que medida podemos, sem nos iludir, fazer planos para o futuro Ŕ e mesmo sonhar Ŕ a partir de um aproveitamento da originalidade de nossa condição tomada em sua complexidade desafiadora.”3.

Ou, trocando em miúdos, como reeditar algum projeto nacional no começo dos anos

90. Esse momento de abertura dos mercados, de transformação da experiência material

urbana, reedita certos mitos ligados às modernizações do passado. A auto-imagem que o

Tropicalismo construiu, na linha do primeiro modernismo em versão estilizada, mescla um

aproveitamento da originalidade nacional com as potencialidades técnicas e estéticas dos

1 VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. São Paulo: Companhia das letras, 2005. 2 Idem. Ibidem. p. 42. 3 Idem. Ibidem. p. 43.

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países desenvolvidos. Essa seria, novamente, a base para alavancar a nação no começo da

década de 1990, momento em que a própria tecnologia – que traria “nossa redenção”, como

diz ironicamente a letra de Parque industrial de Tom Zé presente no LP coletivo de 1968 –

é um elemento chave na “nova” vinculação do país aos ritmos dos capitais globalizados. Os

acordos internacionais desse momento para frente, apoiados nessa nova configuração de

funcionamento do mundo possibilitada em boa medida pelas transformações tecnológicas

recentes, apontam para um deslocamento das instâncias das decisões econômicas e

políticas para fora do país a ponto de se criar uma situação em que “tudo passa a ser

problema do capitalismo, e não do Brasil”4. Dessa recuperação da originalidade nacional,

remontada pelo autor desde a tradição ibérica e ao começo da era moderna com Cervantes,

Veloso acredita ser possível justificar “um programa de transformação do mundo nas bases

de uma sensibilidade peculiar aos países do Mercosul”5. Isso se daria acentuando a

diferença com os países onde o capitalismo, na sua versão fria, floresceu, ou, para usar o

paradoxo do autor, o capitalismo dos Prometeus do fogo gelado6. O pecado talvez

fornecesse nesse contexto em que a palestra foi proferida, segundo Veloso, um conceito

mais elástico que o de crime, “menos mensurável, qualitativo, e não quantitativo, e,

sobretudo, mais aberto ao perdão”7. A abertura de cunho político da palestra, a crítica a

uma forma de racionalidade que se perverteu, se dá para chegar à intenção maior do autor:

falar em tom de PROFECIA UTÓPICA [em caixa alta no texto original]8.

O tom da palestra muda significativamente nesse momento e o seu tema em certa

medida também. Veloso parte para um balanço do tropicalismo buscando uma espécie de

perdão – talvez dentro do campo mais elástico que o pecado estabelece – em relação ao fato

de ter contribuído na criação do sentimento de desencanto nacional. Compara o movimento

que ajudou a forjar a uma descida aos infernos, a um ritual de passagem que levou à

iniciação ao grande e verdadeiro otimismo da bossa nova: um otimismo trágico que

significava “violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza,

sentir com intensidade, querer com decisão”9. Esse otimismo é contraposto ao otimismo

tolo dos que acreditavam

na força dos ideais de justiça social transformados em slogans nas letras das músicas e em motivação de programas de atuação. Os tropicalistas em que nos tornamos são da

4 FIORI, José L. Brasil no espaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 17. 5 VELOSO, Caetano. O mundo não é chato, op. cit., p. 44. 6 Idem. Ibidem. p. 58. 7 Idem. Ibidem. p. 44. 8 Idem. Ibidem. p. 46. 9 Idem. Ibidem. p. 47.

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linhagem daqueles que consideram tolo o otimismo dos que pensam poder encomendar à História salvações do mundo 10

Toda a argumentação daqui para frente, turvada por tonalidades místicas, tenta

expiar a negatividade e o pessimismo do tropicalismo com o intuito de fornecer uma

explicação que justifique a passagem àquele otimismo da bossa nova

que parece inocente de tão sábio: nele estão Ŕ resolvidos provisória, mas satisfatoriamente Ŕ todos os males do mundo.11

A bossa nova de João Gilberto funciona como padrão de medida em relação a como

se deve encarar o país e sua cultura, ou como Veloso gosta de repetir e repete na palestra: “o

Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova”12. A especificação histórica que o autor em

alguma medida faz para justificar – e expiar – a negatividade tropicalista não acontece

quando a bossa nova entra em questão, essa flutua como um valor abstrato na cultura

nacional, quase como um ideal mítico. A delimitação mínima do contexto histórico do final

dos anos 50 – o adensamento da cultura nacional e popular ao longo desses anos, o ideal da

revolução, ou ao menos de transformações sociais, em alguma medida no horizonte – não

aparece em momento algum já que João Gilberto é um gênio que está fora de qualquer

questão mundana. João Gilberto é um músico que conseguiu dar forma estética às

contradições em que vivia e essa, ao que parece, é a sua genialidade. O problema é que na

opinião corrente a bossa nova é o momento em que o país ofereceu para o exterior um

produto de exportação de qualidade sem que se entre, na maior parte das vezes, no mérito

dessa qualidade pouco percebida dentro do contexto da indústria cultural americana

expandida para o mundo, que a entende em quase sua totalidade como música de fundo

para tocar em aeroportos ou elevadores. A forma quase doentia de João Gilberto colocar a

letra em pé de igualdade com a música sem que uma violente a outra, mantendo a

integridade das duas nesse conflito específico, é compreendida, já que, entre outros

motivos, não se entende o português na maioria dos casos, como fundo sobre fundo, como

texturas, superfícies sobre as quais a vida imediata, cotidiana, pode acontecer. A tensão

específica da canção – a relação entre a voz e o fundo musical, que não é bem fundo, pois

não está atrás dela – é compreendida e valorizada, como produto de exportação, por algo

10 Idem. Ibidem. p. 48. 11 Idem. Ibidem. p. 50. 12 Idem. Ibidem. p. 51.

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que é quase o seu contrário, por ser uma forma praticamente sem tensão, sem conflito, que

pode ficar ao fundo e às vezes se pode parar e ouvir. Esse olhar do estrangeiro reposiciona e

valoriza a bossa nova no contexto nacional como algo que resolve todos os males do mundo

e esteriliza-a dos aspectos “violentos” que Veloso destaca com alguma razão. A bossa nova

parece fornecer à indústria cultural algo que cumpre – ou cumpriu – as difíceis exigências

do seu idioma de naturalidade, para usar a expressão de Adorno e Horkheimer.

Continuando o argumento sobre a iniciação ao grande otimismo, Veloso chega ao

tema que considera fundamental nessa descida aos infernos que começou em 67 – “fase

ainda não superada” – com a canção Alegria, alegria, considerada “um começar a mexer no

lixo”13: “uma visão autodepreciativa da nossa vida cotidiana e do seu quase nenhum valor

no mundo”14 – tema que perpassa direta ou indiretamente grande parte dos estudos

clássicos sobre o Brasil. E lembra, continuando a reflexão, a forma como Zé Celso

costumava falar no caráter masoquista da estética tropicalista com sua “reprodução

paródica do olhar estrangeiro sobre o Brasil e sua eleição de tudo o que nos parecesse a

princípio insuportável”15. Tudo que pareça pessimismo e negatividade ou, quase tudo, é

elencado nos menores detalhes das composições e relacionado a outras manifestações do

final da década de 1960 como o filme de Glauber Rocha, Terra em transe, onde acontece “a

ostentação barroquizante de nossas falências, de nossas torpezas e de nossos ridículos”16.

Isso para novamente desembocar no otimismo e na necessidade de afirmá-lo no presente

da palestra:

É de volta [ou quase de volta já que essa fase ainda não acabou, como ele insinuou acima – fase ainda não superada - em relação ao mexer no lixo com Alegria, alegria] de tais infernos que pretendo trazer visões utópicas”17.

O recurso estético de recompor o olhar do exterior sobre a realidade do país que traz

à tona os complexos de inferioridade nacionais parece paradoxalmente quase não fornecer

autoconsciência para se pensar a bossa nova vista pelos olhos estrangeiros, ou pelos olhos

internalizados dos padrões de medida da indústria cultural.

A agressividade masoquista com que alguns tropicalistas tentaram explicitar o quase

valor nenhum da vida cotidiana do país no mundo, recuperando aproximadamente as

palavras do autor, que parece ter algum rendimento crítico e estético naquele momento,

13 Idem. Ibidem. p. 51. 14 Idem. Ibidem. 15 Idem. Ibidem. 16 Idem. Ibidem. p. 52. 17 Idem. Ibidem.

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revela, para bem e para mal, a posição heterônoma da nação em relação a um “mundo”

abstrato, sem especificação. O passo, não muito otimista, da constatação do valor nenhum

da vida no mundo das mercadorias, sem cair em um reencantamento da vida cotidiana,

parece fora de pauta na maneira como os problemas são armados. A crítica e negatividade

parecem funcionar em uma chave descrita por Jean-Claude Bernardet quando tenta

caracterizar o clima em relação à indústria cultural naqueles anos:

“Havia uma certa ambiguidade no meio artístico da época, inclusive no meio artístico de esquerda. De um lado manter uma postura crítica em relação não só à ditadura, mas ao próprio capitalismo. De outro, buscar inserção na indústria cultural que então se consolidava no Brasil.

A percepção crítica de uma indústria cultural foi ignorada pelo meio culto cinematográfico desde os anos 50 e, depois, pelo pessoal do Cinema Novo.”18

Essa busca de inserção se atrela a um desejo de modernidade, a uma antecipação em

chave quase mítica dos desenvolvimentos técnicos. O tropicalismo pareceu dar forma

crítica a esse problema muitas vezes transformando os elementos teoricamente avançados

do “mundo” em fetiches, configurando dinâmicas de elevação quase religiosas enquanto

tematizavam aspectos urbanos cotidianos, ou da constituição nacional. O que parece

problemático, no entanto, é que esse teor crítico parece se perspectivar de um lugar não

muito diferente daquele que é objeto dessa intenção crítica: modernizar a nação em chave

não muito distinta da modernização que se operava quase naturalmente por meio da

indústria cultural. O que gera esse delírio específico parece, no fundo, um

desenvolvimentismo com 40ºC de febre. A possibilidade mesma de um “pensamento

avançado”, crítico – ou que tenha essa aparência – é dada pela falta de efetividade de

qualquer debate, de qualquer coisa poder ser dita – até algo verdadeiramente crítico – sem

que isso tenha quase nenhuma reverberação na experiência social. É como se já

estivéssemos funcionando desde sempre no ritmo da “mentira manifesta”, ou do grau zero

de ideologia, como queria Adorno. A crítica contrastada, agressiva, que muitos tropicalistas

realizavam, acaba tendo um funcionamento bastante particular no país. Se a indústria

cultural promove um tipo de “rebeldia realista” que “torna-se a marca registrada de quem

tem uma nova idéia a trazer à atividade industrial”19, isso, atrelado ao atraso nacional, joga

a possibilidade crítica para um terreno bastante complicado e difícil de trilhar. Uma espécie

de encenação racional, ou de um funcionamento ideológico particular que Machado de

18 BERNARDET, Jean-Claude. “Entrevista”. Revista Margem Esquerda 3 . São Paulo: Boitempo, 2004, p. 24. 19 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 123.

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Assis já trazia ao centro da sua composição no século XIX, parece ganhar algum tipo de

validação, ou de fôlego extra, quando se cruza com o funcionamento da Indústria cultural.

A base de constituição desses processos que se cruzam são de ordens distintas – a nossa

dinâmica do favor, por um lado, e seu funcionamento ideológico de segundo grau que se

prolonga em alguma medida para o século XX – e por outro o Capital com sua feição

monopolística na indústria cultural americana na primeira metade do século XX, antes de

se espalhar pelo mundo, no seu funcionamento ideológico de grau zero, como formularam

Adorno e Horkheimer. Mas parece que isso aponta para rearranjos interessantes entre a

má-formação nacional e a pseudoformação como Adorno a pensou em relação à cultura no

século XX.

A negatividade e o pessimismo parecem só poder comparecer na palestra de Veloso

na medida em que conduzam a um otimismo que os purifique. Depois do balanço da

negatividade tropicalista, com a volta dos “tais infernos”, Veloso começa a exposição das

suas “visões utópicas”20. O ponto inicial dessa dá-se quando, rumo ao exílio em 1969, após

sua prisão, passa por Sesimbra, em Portugal para conversar com um alquimista e

sebastianista e comunica-lhe na íntegra a letra da canção Tropicália. Para a sua surpresa o

alquimista não percebeu nenhuma ironia, nem pessimismo, “nenhum desejo da denúncia

do horror que vivíamos até então”21. Tudo foi interpretado na chave de um destino

grandioso para o Brasil que aos poucos foi fascinando o autor:

Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração que na minha canção eu descrevia um monstro e que esse monstro confirmara sua monstruosidade agredindo-me a mim era algo que à medida que ia acontecendo ia-se-me tornando mais fascinante do que irritante.22

A canção Tropicália parece o centro em relação ao qual emana uma negatividade

difícil de se adequar à “esperança” modernizante que se abria ao Brasil no começo dos anos

90. É curiosa, na afirmação do autor, a falta de distância que Veloso estabelece em relação à

voz que diz eu na canção. A voz é ele, ou torna-se ele, sem nenhum tipo de mediação. Essa

canção23, bastante interessante, tem a composição organizada por dois momentos musicais

20 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 52. 21 Idem. Ibidem. p. 53. 22 Idem. Ibidem. 23 Uma análise musical mais cuidadosa dessa canção e das outras dos LPs tropicalistas de 1968 – Caetano Veloso

(1968), Gilberto Gil (1968) e Grande liquidação de Tom Zé (1968) – foi realizada pelo autor na dissertação “Canção popular e processo social no tropicalismo” (Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, 2008).

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bem marcados e contrastantes: o primeiro com uma tensão maior construída

principalmente pelo arrastar grave dos instrumentos de sopro enquanto se canta a letra; e o

refrão, em um segundo, que dilui esse primeiro momento com uma percussão sincopada.

Essa alternância se mantém, com pequenas transformações, relativamente fixa até certo

trecho em que a primeira parte musical, onde a letra é cantada, desaparece e tudo vira uma

tensa distensão sincopada. Isso se dá quando o monstro que Veloso cita na palestra – ou o

monumento-monstro que se autonomizou – coloca “os olhos grandes” sobre aquele que

canta. O indivíduo que rumava em direção a Brasília24, aquele que antes na canção

organizava, orientava e inaugurava, vai para uma situação bem diferente: ele passa para a

condição de observado por um outro de “olhos grandes” dando uma satisfação aos ouvintes

– da canção e dos “cinco mil alto-falantes” – da posição de objeto de um olhar que o acua de

forma quase paranóica. O eu lírico aparece ainda uma segunda vez, depois de sua estreia

potente no começo da canção, dentro da mítica da moda25. No momento máximo de

elevação da música, História, sujeito, nação etc. perdem o contorno ou a resistência e se

convertem em elementos justapostos, esvaziados, no cotidiano organizado, principalmente,

pela televisão. A canção seria – é, se ignorarmos o que seu autor diz dela – um achado

estético e crítico se tivesse a distância irônica que o arranjo parece conferir à letra. Mas,

segundo a perspectiva de Veloso, que assume a voz sem qualquer mediação, é pura

negatividade que conduz a constatação fatalista da impotência nacional, de que o “mundo”

é isso e temos que nos adaptar a ele, ou, nos versos do próprio autor no mesmo LP de

Tropicália só que limpos de qualquer ambiguidade: “e não há segredo, a vida é assim

mesmo”.

O que parece a primeira vista senso crítico se revela, novamente, como a quase

nenhuma reverberação de uma posição crítica na experiência social do país. A falta de

distância que Veloso tem dos materiais que em alguma medida quer, ou quis, como ele

próprio diz, expor em chave de denúncia é reveladora desses limites da circulação das idéias

nas esferas públicas nacionais. Continuando a palestra ele comenta:

De modo que, em Sesimbra, eu passei gradativamente do espanto de ver a minha canção “Tropicália” resgatada por uma visão que anulava sua contundência crítica à relativa adesão à perspectiva dessa visão: comecei a ver “Tropicália” Ŕ e a pensar o tropicalismo Ŕ também à luz do sebastianismo, ou melhor, da minha versão do sebastianismo.26

24 Sobre a cabeça os aviões / Sob os meus pés os caminhões / Aponta contra os chapadões / Meu nariz / Eu

organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / Eu inauguro o monumento / No Planalto Central do país. 25 O monumento é bem moderno / Não disse nada do modelo do meu terno. 26 VELOSO, Caetano. O mundo não é chato, op. cit., p. 56.

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É curiosa a forma como a modernização que Veloso empreende na canção buscando

um lugar urbano nacional particularizado para perspectivá-la a partir de Alegria, alegria –

lugar esse que ganha força, é bem verdade, por se contrapor em alguma medida ao universo

rural tão valorizado pelas canções da MMPB dos anos 60 – acabe por reeditar aspectos

místicos e religiosos da cultura rural. O que parece avançado e crítico nas composições

tropicalistas de Veloso acaba se convertendo, segundo ele e para ele, na necessidade de se

afirmar um novo encantamento do mundo nos moldes religiosos rurais, ou algo nessa

direção. E é daí que se dará o “aproveitamento da originalidade de nossa condição tomada

em sua complexidade desafiadora”27 ou a sua profecia.

Nesse momento da palestra Veloso passa a uma leitura dos descaminhos das

civilizações mediterrâneas para justificar, dentro da nossa origem portuguesa, a sua frase

de que “Nunca chegamos a ser um país bom”28. Disso recompõe em ritmo de almanaque a

forma como o capitalismo se constituiu nos países frios e a vantagem que o Brasil teve em

escapar de uma escravidão maior que poderia ter se dado caso o país estivesse mais

próximo ao desenvolvimento da racionalidade dos países do centro:

Considerar vantajosas até mesmo as condições adversas que a História nos presenteou.29

Essas vantagens estão confinadas, como a figuração do país como um artista superior

deixa entrever, apenas à dimensão cultural – que internamente ganhou um estatuto

relativamente autônomo no final dos anos 60, no contexto do tropicalismo, dentro da

profissionalização do meio cultural no país. E, externamente, as vantagens estão associadas

ao cultural turn operado com a mão de obra dos desmobilizados de Maio de 68.30

Só na perspectiva do país artista superior que nós temos o dever de perceber que a História nos sugere que sejamos é que podemos revalorar aspectos do nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma escravidão maior no misterioso desvelar do nosso destino.31

Veloso continua fazendo uma contraposição da canção “Tropicália” com a “País

tropical” de Jorge Ben – sempre na chave de tentar redimir o pessimismo e a negatividade

27 Idem. Ibidem, p. 43. 28 Idem. Ibidem, p. 57. 29 Idem. Ibidem, p. 59. 30 ARANTES, Paulo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004. p. 210. 31 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 60.

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da própria canção e do movimento que ajudou a fundar – enquanto qualifica seu “herói

estético e psicológico”32, o próprio Jorge Ben, como o homem que habita o país utópico

trans-histórico. Essa comparação surge como forma de abrir espaço para abordar esse

mesmo país utópico, ou para que possa especificar a forma como concebe o país “hoje” –

começo dos anos 90. O centro da sua visão encontra na filosofia de Antonio Cicero dados

que a confirmam. A tensão entre entropia e caos, que o filósofo usa como um dos centros

para desdobrar sua reflexão, encontra certa semelhança com a tensão que perpassa as

composições do autor da palestra, segundo o próprio. Veloso, não como mero escravo das

canções, como diz, acredita que os aspectos entrópicos devam ser superados, e que

O colorido do caos (...) é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada, a estamparia das vestes do povo desse país do futuro.33

Muitas músicas tropicalistas apontam para o problema que existe em resolver as

contradições do presente em um futuro redentor, tema que se encontra em outros

compositores em um período anterior e concomitante ao tropicalismo. Em um artigo de

1968, Walnice Nogueira Galvão expõe e analisa essa questão mostrando que as saídas de

Veloso para escapar desse encontro marcado com o futuro possuem um aspecto

desmistificador daquela realidade:

O essencial Ŕ o caráter consolador dela [MMPB] Ŕ nunca é mencionado. Mas, na nebulosidade da MMPB, surge uma única vez, quase subliminarmente, uma fulguração de lucidez: “...e uma canção me consola...” . Tiremos o chapéu a Caetano Veloso: dentre nós todos, só ele ousou confessá-lo.34

Veloso parecia ter consciência desse problema a ponto de transformá-lo em matéria

de suas composições: no verso de “Tropicália” – meu coração balança um samba de

tamborim – está condensada a crítica do autor ao samba como a solução mágica das

contradições políticas do país assim como, em chave semelhante, o trecho de “Alegria,

alegria” apontado pela autora. Eles, música que termina seu LP de 1968, apresenta a crítica

ao dia de amanhã e ao maniqueísmo de alguns grupos de esquerda de forma muito mais

explícita. O futuro é tão certo nessa construção que a música apresenta – Eles desde já

32 Idem. Ibidem. p. 60. 33 Idem. Ibidem. p. 62. 34 GALVÃO, Walnice N. “MMPB: uma análise ideológica” in:__. Saco de gatos. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p.

112.

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querem ter guardado / Todo o seu passado / no dia de amanhã Ŕ que se presentifica de

forma perversa imobilizando, inclusive, as próprias perspectivas de transformação que as

canções de protesto acalentavam. Walter Benjamin, em outro contexto histórico, alertou

para um problema de base semelhante em relação à ação, ou à falta dela, que a social-

democracia alemã propunha no contexto posterior à Revolução Russa:

Uma vez definida a sociedade sem classes como tarefa infinita, o tempo homogêneo e vazio transformava-se, por assim dizer, em uma ante-sala, em que podia se esperar com mais ou menos serenidade a chegada de uma situação revolucionária. Na realidade não há um só instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária Ŕ ela precisa apenas ser definida como uma chance específica, ou seja, como chance de uma solução inteiramente nova.35

Existe, forçando a mão e desconsiderando as determinações históricas, certa

afinidade em relação a essa posição e a perspectiva crítica que Veloso tem da organização

do tempo em muitas canções de protesto, pelo que se depreende do tipo de denúncia que

faz em Eles. Só que o limite dessa crítica a um tempo sem presente parece ter como solução

a instauração da temporalidade mítica da moda, também sem presente – ou com um

presente sem determinações históricas, afinado com muitas tendências pós-modernas. O

que parece ironia, ou uma perspectiva crítica, no final da canção Tropicália – ela termina

afirmando uma temporalidade circular ligada à esfera da televisão e da moda depois de

“resolvida” a tensão entre os dois momentos do arranjo –, é, pelo que a palestra parece

indicar, a verdade de fundo do compositor, sua verdade tropical – construída

posteriormente. Veloso foi bastante perspicaz ao perceber e expor criticamente em suas

canções, depoimentos e atitudes como as ideias de povo, nação e, até, revolução estavam se

convertendo naquele momento em acessórios para aumentar as cifras de lucro dos

programas de televisão e da indústria fonográfica. Mas parece que o limite crítico dessa

construção – que teve, ao que parece, um papel desmistificador no final dos anos 60 – se

dava do próprio lugar de onde se perspectivava, a esfera da moda. Walter Benjamin

salientando o aspecto contraditório dessa esfera ainda nas suas teses sobre o conceito de

história salienta que

A moda tem faro para o atual, onde quer que este se mova no emaranhado do outrora. Ela é o salto do tigre em direção ao passado. Só que ele ocorre numa arena em que a classe dominante comanda. O mesmo salto sob o céu livre da história é o salto dialético, que Marx compreendeu como sendo a revolução.36

35 LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 134. 36 Idem. Ibidem. p. 119.

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Parece que o sebastianismo de Veloso – diferente do messianismo cruzado com a

idéia de revolução evocado por Benjamin em suas teses – se alimenta dessa “absurda

superstição do novo”37, ou, como dito antes, de um desenvolvimentismo com 40 graus de

febre. Funciona, talvez, dentro da mesma organização temporal que denuncia. A dimensão

da moda e a esfera do consumo são, como o tempo mostrou e o próprio autor afirma em

diversos momentos da palestra, a sua perspectiva modernizante.

A palestra continua citando um trecho de Cacá Diegues que diz que o paradoxo do

Brasil está

em, sendo capaz de oferecer prefigurações da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente38.

Pondera que talvez isso tenha aparência de fantasia compensatória de um povo

frustrado, mas começa a abrir na imaginação as grandes possibilidades futuras para o país

– seu sebastianismo – até concluir: “Nesse estágio está a minha loucura”39.

Abre, em seguida, um único parágrafo para sua sensatez: “Naturalmente, tenho

capacidade para a sensatez”40. Essa, em linhas gerais, aponta para a necessidade de

defender as conquistas da constituição de 88 com unhas e dentes. Mas Veloso não se “sente

inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das estatais”41. Fiori

apresenta uma leitura da conexão entre esses temas centrais para a história recente do país:

Foi essa crítica liberal [de que a crise dos anos oitenta tinha acontecido em função do “populismo macroeconômico” dos militares] que legitimou o descumprimento por parte dos conservadores, dos compromissos sociais e federativos que haviam assinado junto com a Constituição de 1988. E foi esse diagnóstico - quase ridículo - da crise que orientou o desmonte e depois a destruição, na década de 90, do Estado brasileiro e dos seus instrumentos de intervenção, de uma parte expressiva de suas cadeias industriais e também de boa parte da infra-estrutura construída nos trinta anos desenvolvimentistas.42

A sensatez de Veloso corresponde ao conservadorismo que, com a fachada da

“constituição cidadã” de 88, operou a transferência – e a internacionalização – das

37 Idem. Ibidem. p. 120. 38 Idem. Ibidem. 39 Idem. Ibidem. p. 65. 40 Idem. Ibidem. 41 Idem. Ibidem. 42 FIORI, Brasil no espaço, op. cit. p. 32.

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instâncias das decisões políticas e econômicas nacionais aos ritmos do capital estrangeiro.

O cantor e compositor diz, dando prosseguimento a sua sensatez, que “me interessa saber o

que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer; o modelo econômico para chegar a

esse fortalecimento sendo de importância secundária”43. E termina, dando acabamento ao

seu conservadorismo, afirmando que qualquer experiência socialista em um país como o

nosso significaria uma hecatombe política mundial e só “somaríamos ao sombrio mundo

comunista mais um gigante com cãibras burocráticas e boçalidade policial”44.

Volta no parágrafo seguinte a sua insensatez – como ele mesmo a denomina. Lembra

– a partir da expressão “Portugal já civilizou Ásia, África e América – falta civilizar a

Europa”45 de Agostinho da Silva – das dificuldades políticas, religiosas, econômicas etc. que

a Irlanda passou, mas conclui dizendo que o que se pensa quando esse país vem à cabeça

não é uma simples situação de fracasso, vem não só “Joyce, Wilde, U2, Sinead O‟Connor,

Yeats ou Neil Jordan, que marcaram o mundo usando a língua do opressor – pensa-se no

fogo irlandês, na teimosia, nos cabelos de Maureen O‟Hara e no álcool”46. Os aspectos

culturais vinculados à nacionalidade mais imediata até com certo toque pitoresco são o que

importam, segundo o autor que, ao que parece, confina o seu nacionalismo a uma dimensão

estritamente cultural. Já outras esferas da nação podem ser internacionalizadas e ficar à

mercê dos capitais estrangeiros. No final das contas, já que as decisões econômicas e

políticas são tomadas em grande medida fora do país, seu nacionalismo é desprovido de

nação – ou é algo só cultural, no sentido rebaixado que cultura adquiriu em sua quase total

indiferenciação em relação à economia. Veloso expõe, em seguida, uma possível aliança

entre os países que ficaram à margem do capitalismo e acredita que eles “podem e devem

tomar nas mãos as rédeas do mundo, fazendo-o transcender o estágio nórdico e sua ênfase

bárbara na tecnologia”47.

Na reta final da sua conferência parte para um balanço das suas – e do país –

conquistas relevantes desde o final dos anos 60:

Pensei em como, nos anos 60, lutamos contra as hierarquias e superindividualizamos a moda. Depois, dos anos 70 em diante, sofri ao ver a vulgaridade dos trajes anarquicamente usados em toda parte: senhoras em bermudas apertadas e camisetas com a cara do Mickey entrando em bancos; aeroportos cheios de pernas peludas sustentando verdadeiros cartazes com palavras em inglês (...) imaginei então o Brasil encontrando e inventando naturalmente novas formas de vestir 48.

43 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 65. 44 Idem. Ibidem. p. 66. 45 Idem. Ibidem. 46 Idem. Ibidem. p. 67. 47 Idem. Ibidem. 48 Idem. Ibidem. p. 68.

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(...)

Mas o que eu espero para o Brasil é uma revolução na história do traje, pontuada por algumas personalidades, mas de força coletiva.49

Continua – depois de afirmar novamente a esfera da moda como campo de atuação

privilegiado para o país – justificando o papel que ocupa na indústria cultural dizendo que

se mantém ali para assegurar, ou tentar, um equilíbrio na média das canções, ou para

assegurar um determinado padrão de produção em detrimento de um trabalho

experimental. Mantém-se ali por humildade, por não querer estar “demasiado à frente, ou

acima, ou à margem”50 – quer dirigir sua ambição para a cultura popular de massa. Essa

sofreu importantes transformações no final dos anos 60, no curto período de duração do

tropicalismo, que precisam de alguma especificação. Com a profissionalização de diversos

setores culturais e a transformação nos meios urbanos, acreditou-se que o país estava se

transformando, o que em certo sentido acontecia. Essa modernização em grande medida

suspendeu certa contradição que se armava na realidade brasileira com os desdobramentos

do golpe de 1964, suspensão que teve uma solução positiva dada ao final dessa mesma

década pelo Estado autoritário com o Ato Institucional Número 5 e a televisão funcionando

em rede nacional. Até esse momento, o governo militar tinha conferido certa liberdade de

ação aos intelectuais de esquerda dentro das áreas culturais51, o que funcionou, de certa

forma, como uma colocação externa dos contornos entre as esferas – política e cultural –

que não tinham se formado com consistência até aquele momento, pelo menos não com a

consistência dos países do centro do capitalismo. Esses contornos ajudaram a promover na

prática o isolamento das esferas culturais e políticas que em alguma medida se

potencializaram no final dos anos 50 e em boa parte dos 60. Com esse auxílio do governo

militar, no final da década de 60 o país deu um importante passo rumo à modernização –

49 Idem. Ibidem. p. 69. 50 Idem. Ibidem. 51 Em relação à situação da esquerda após o golpe militar de 1964, Schwarz, em seu famoso artigo, comenta:

“Entretanto para a surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura de direita há relativa hegemonia de esquerda no país”, e, mais para frente: “Os intelectuais são de esquerda, e as matérias que de um lado para as comissões do governo ou do grande capital, e do outro para as rádios, televisões e os jornais do país, não são. É de esquerda somente a matéria que o grupo Ŕ numeroso a ponto de formar um bom mercado Ŕ produz para consumo próprio. Esta situação cristalizou-se em 64 quando grosso modo a intelectualidade socialista, já pronta para prisão, desemprego e exílio, foi poupada. Torturados e longamente presos foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários, camponeses, marinheiros e soldados. Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário de esquerda” (SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969” in:__. O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 65).

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conservadora – nos moldes da indústria cultural. A profissionalização dos meios culturais52

nessas condições e com o auxílio do filtro militar possibilitou a incorporação em seus

produtos de elementos como transformação política e social – e/ou qualquer outro material

em ritmo de acessório para valorizá-lo no mercado – em um grau que aponte, talvez, para

uma transformação qualitativa do funcionamento cultural. A denúncia dessa situação,

como dito, estava no horizonte dos tropicalistas. É verdade que a censura intensificou sua

ação com o AI-5, mas ela, em diversos momentos, tinha sido incorporada internamente aos

produtos culturais a ponto de virar uma espécie de interlocutora53 privilegiada nas

construções narrativas – às vezes criticamente, às vezes, também, como acessório externo

para valorização. Por outro lado, quando o objeto apresentava arestas excessivas, a censura

proibia-o ajudando no processo de uniformização da cultura até essa afirmar seu próprio

ritmo54. A própria idéia de nação muda de significado em relação aos projetos nacionais

anteriores – isso ao mesmo tempo em que de certa forma o país se integra por meio da rede

nacional de televisão. Nacional e popular deslocam nesse momento sua significação para,

respectivamente, algo próximo a rótulo de exportação – mais do que já era, pois em ritmo

de mentira manifesta intensificada pela violência militar – e massa consumidora, caso se

tenha algum poder de compra. Isso a ponto de mais de 20 anos depois Veloso poder

afirmar, em uma nova onda de otimismo modernizante – ancorado em última instância na

mesma ênfase bárbara na tecnologia que critica – que a contribuição nacional será nos

trajes para mostrar no “mundo” – ou, trocando em miúdos, para exportação. E nessa

direção continua seu balanço:

a versão tropicalista [da antropofagia de Oswald de Andrade] levou (...) à regeneração do mercado de música popular no Brasil, à elevação do nível intelectual de sua produção e sua crítica, a outro tipo de diálogo com o estrangeiro.55

O caminho que a canção Tropicália faz, com certa consequência crítica ainda que

problemática, como se tentou mostrar, é refeito pela palestra de Veloso que parte de uma

intuição, complicada é verdade, de uma forma de subjetividade com maior capacidade de

decisão forjada no final dos anos 50 – onde a bossa nova de João Gilberto fornece o modelo

52 Sobre o assunto ver: MELLO, Zuza Homem M. A era dos festivais. São Paulo: Ed. 34, 2003. E ORTIZ, Renato. A

Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987. 53 Flora Sussekind comenta a relação particular das produções estéticas com a censura: SUSSEKIND, F. Literatura

e vida literária. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985. 54 “A obrigatoriedade universal dessa estilização [a obrigatoriedade de se falar o idioma da indústria cultural]

pode superar a dos preceitos e proibições oficiais.” ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, op. cit. p. 121.

55 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 70.

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– até uma situação em que a indústria cultural – e a moda – se coloca como natural, como a

verdade possível – sua verdade tropical – que mantém o país preso – vigiado pelos “olhos

grandes” – à heteronomia do “bom gosto” técnico decidido também, em última instância,

no exterior:

O monumento é bem moderno

Não disse nada do modelo do meu terno

O monumento-nação construído em Tropicália termina por afirmar olhos estranhos

que deixam quem fala na letra em uma atitude apenas reativa e de adequação a certos

padrões que se colocam de fora. Essa parece a verdade negativa da canção, a revelação de

que o país entrou em outro ritmo de funcionamento que roubou a frágil margem que

existia, ou pareceu existir, de possibilidade de constituição autônoma – o que em alguma

medida aconteceu no final dos anos 60.

Veloso continua afirmando que devemos em relação à nação – na nova consistência

que esse termo adquiriu – fazer projetos para o futuro e sonhar. Em primeiro lugar

distribuir renda, amadurecer a noção de cidadania e elevar nosso nível de competência. E

sonhar com libérrima originalidade no ritmo do capitalismo estetizado para nos sentirmos

não em um universo, mas em um “pluriverso polimorfo”56. O autor comenta, ainda, o

amadorismo imperdoável dos discos tropicalistas. O amadorismo e a falta de acabamento

dos produtos – que têm como padrão de medida a indústria cultural norte-americana e a

bossa nova de João Gilberto – da cultura nacional parecem uma obsessão do autor em seu

livro Verdade Tropical. Os olhos grandes postos sobre ele dão no final das contas a régua e

compasso que em boa medida validam, ou não, sua verdade tropical. No fim do balanço

parece que a ala vitoriosa da Tropicália se orgulha da preparação – até psíquica – do sujeito

para as novas formas de dominação de um mundo, como se diria hoje, globalizado. O que

não deixa de ser irônico é que esses músicos se colocam como agentes dessa nova realidade

que ao mesmo tempo não comporta mais formas contraditórias no grau que foram as

composições tropicalistas ou os filmes do cinema novo e outras manifestações da década de

60. Os agentes desse processo rebaixaram muito as próprias pretensões, o que gerou

canções que vendem mais – quando são trilha de novela – mas não possuem a espessura e a

complexidade dos primeiros mal acabados LPs. Seus autores tiveram que uniformizar os

aspectos contraditórios das canções e da história recente – como a purificação da

56 VELOSO, O mundo não é chato, op. cit. p. 72.

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negatividade da conferência parece indicar – para se adequarem às mesmas exigências

rebaixadas das quais se acreditam, e foram em certa medida, profetas.

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O dia-a-dia colonizado

Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos

Nils Göran Skare

Este ensaio introduz a teoria lacaniana do discurso em suas quatro modalidades

fundamentais: a do mestre, a do universitário, a da histérica, a do analista e, por fim o

“dialeto” do capitalista. Valendo-nos da noção de cotidiano de Henri Lefebvre,

relacionamos cada um desses discursos com sua manifestação no dia-a-dia. Defendemos

que o cotidiano é eventual. Contudo percebemos que o capitalismo evacua o eventual do

cotidiano, tornando-se um dia-a-dia sem mudanças (discursivas).

**

“ ...a tarefa é construir uma forma de organização a partir de um corpo de produtores colaboradores livres, controlando mental e efetivamente

a ação produtiva comum, regulando-a à sua própria vontade...” - Anton Pannekoek (Conselhos de Trabalhadores)

Introdução Adorno alerta que a lei mais íntima do ensaio é a “heresia”1. A palavra deveria figurar

como um neon brilhante em cima de cada um de tais textos, alertando o leitor de que está

entrando em uma parte da cidade onde mora o heterodoxo. Nossa proposta aqui –

combinar a teoria do discurso lacaniana à noção de cotidiano em Lefebvre – poderia

esbarrar numa certa distância epistemológica entre os dois autores em questão, ou pelo

menos em alguma estranheza. Henri Lefebvre foi um crítico atento e inteligente do

estruturalismo, que soube analisar com sutileza mas sem repudiar in toto. O importante,

como sempre, é manter essa possível contradição no plano da consciência.

“A contradição dialética não é o absurdo lógico. (...) se o pensamento dialético

se baseia (...) naquilo que o lógico declara absurdo, até mesmo impossível, o dialético não concebe esse absurdo ou essa impossibilidade como tais; ao contrário, vê neles um ponto de partida e a inserção numa inteligibilidade que ele declara concreta.”2

1 ADORNO, Theodor W. The Adorno Reader. Nova York: Wiley-Blackwell. 2000. p. 110. 2 LEFEBVRE, Henri. Lógica Formal/Lógica Dialética. São Paulo: Civilização Brasileira. 1995. p. 19. (grifos meus)

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Inteligível e concreta é a colonização da vida pelo capital. Qualquer teoria que possa

informar o projeto que seja crítico da mercadoria pode se beneficiar de uma compreensão

dos diversos discursos na vida cotidiana.

Elementos da teoria lacaniana do discurso

O interesse nas últimas décadas pela teoria da comunicação, em campos que vão da

informática à genética, encontra-se voltado sobretudo para uma comunicação livre de

“ruído”, pelo ideal de uma comunicação perfeita. Esse primeiro paradigma está enraizado

numa certa teoria da informação que se ocupa da entropia dos sistemas e está construída

sobre modelos físico-matemáticos.

Em segundo lugar há o que se convencionou chamar de “análise do discurso”

propriamente dito, um paradigma cujo expoente mais notório é certamente Michel

Foucault. Aqui a ênfase é nas relações entre discurso e poder, e como as rugas de um

discurso passam de cá para lá. Como lembra a título de exemplo Paul Verhaeghe, a Guerra

do Iraque era acompanhada do discurso onipresente dos ataques “cirúrgicos” das smart

bombs. Trata-se aí de uma metáfora de poder do discurso médico presente no discurso da

guerra, com todas as implicações possíveis.

Mas a teoria dos discursos de Lacan difere desses dois projetos. A ênfase em Lacan

não é no conteúdo do discurso, mas em sua formalização. É, antes de mais nada, uma

teoria que entende a linguagem como fundamentalmente incompleta, e portanto sempre

imperfeita. Se nos entendessemos perfeitamente, nada diríamos; porém a partir dessa

impossibilidade de ter a verdade por inteiro na boca surge o impulso para a comunicação.

Então essa é uma teoria que envolve a “imperfeição” da linguagem.

Ao mesmo tempo, ela abarca uma classificação, uma tipologia dos discursos; no

paradigma do poder/discurso, “cada discurso é um discurso”, o que se traduz numa

multiplicidade de agentes. Já a teoria lacaniana envolve um número “n” de discursos, de

formas/discurso e, portanto, uma taxonomia.

Essa teoria do discurso lacaniana envolve posições e elementos.

Quanto às posições: inicialmente há duas posições a serem levadas em conta, a de

que existe um agente do discurso e a de que há um outro a quem essa comunicação se

dirige, ou que sofre a ação desse discurso, o que é evidente.

Agente → Outro

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Esse outro da comunicação sempre resultará em alguma coisa, sempre haverá algo

“feito” a partir dessa situação comunicacional. É o produto da comunicação.

Agente → Outro → Produto

A quarta posição, que na verdade é a primeira, apresenta a posição propriamente

psicanalítica dessa teoria: é a verdade. É a posição da verdade que age como o motor

(inconsciente) de que o agente é o móbil. Não tanto falamos quanto somos falados por essa

verdade que está sempre velada em todo discurso.

“Em cada discurso um agente (indivíduo, grupo, instituição) age ou se dirige para outro (indivíduo, grupo ou instituição). Lacan alega que a posição do agente é uma posição de semblante, já que todo agente é no fim governado ou forçado a agir pelo inconsciente ou o que Lacan chama de „verdade‟ do discurso. A posição da verdade é portanto o agente real do discurso. É simultaneamente o que o discurso tem que velar ou esconder, o que o discurso tem que excluir para funcionar, para ao mesmo tempo ser o que leva adiante o discurso ou que funciona como o „motor‟ do discurso.”3

A situação poderia ser representada assim:

Verdade → Agente → Outro → Produto

Contudo, Lacan representa desta forma, como se fossem frações:

Além disso, entre o agente e o outro há uma impossibilidade. E entre o produto e a

verdade há uma incapacidade ou impotência. Deve-se entender desta forma: o agente

(“ilusório”, ou “faz-de-conta” na medida em que é um semblante) é levado a agir/comunicar

o que sua verdade o impele, e como essa verdade não pode ser completamente verbalizada,

uma comunicação perfeita com palavras é logicamente impossível. Ao mesmo tempo, se

fosse possível ao agente verbalizar perfeitamente seu desejo ao outro, o produto seria

apropriado; como isso não é possível, o produto da comunicação jamais se enquadra na sua

verdade.

Quanto aos elementos: são quatro os elementos na formalização dessa teoria. Eles

são representados desta forma: $, S1, S2 e a. Respectivamente: o sujeito, o significante-

mestre, a cadeia-significante e o objet-petit a, ou objeto pequeno a.

3 BRYANT, Levi R. “Žižek‟s New Universe of Discourse: Politics and the Discourse of the Capitalist”. In: Internation

Journal of Žižek Studies, vol. 2, no 4, 2008. p. 41.

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Passa pelo sujeito o que se chama de Spaltung; isto é, há uma divisão no sujeito

entre consciente e inconsciente. O sujeito é sempre dividido pela linguagem. E ele não pode

ser estudado “em termos objetivos”, reificado; ele é também uma unicidade, uma

singularidade. Ao mesmo tempo, Lacan identifica seu sujeito como o sujeito cartesiano da

ciência moderna, o sujeito do cogito. Ele é também “sujeito”, no sentido de assujeitado

(ambiguidade igualmente produtiva em Althusser), o sujeito só existe pela mediação do

Outro, da ordem simbólica. Ser um sujeito é reconhecer-se um sujeito entre sujeitos, no

registro da linguagem e da Lei.

Em toda ordem socio-simbólica existe um significante sem significado, isso a que

Lacan denomina significante-mestre. O Outro é castrado, jamais completo. E sem essa falta

no Outro o próprio desejo não poderia existir, é o que permite a não-alienação do sujeito –

dá-lhe um “espaço para respirar”. Na falta do Outro o sujeito identifica sua própria falta.

Esse significante-mestre é um significante “puro” que Lacan representa pelo símbolo

algébrico S(A) e é grafado aqui na teoria dos discursos como S1. É um pequeno pedaço de

nonsense materializado. Nessa medida a identificação do sujeito com esse “pedacinho do

Real”4, dá segurança ao indivíduo entre as desrazões da existência. Assim, não importa

quantos significantes sejam reunidos numa cadeia significante, é sempre e somente a falta,

“materializada” no significante-mestre, que a completa. A rigor, todo significante – isso que

é passível do jogo das metáforas e metonímias – pode ser substituído por qualquer outro

significante. O significante-mestre, nesse sentido, é essa unidade mínima dos sintagmas e

paradigmas pelo qual o sujeito se esforça para ser representado no simbólico, o registro da

linguagem e da Lei. Isso é o que sustenta a compreensibilidade de um discurso. Como point

de capiton, o significante-mestre amarra diversas narrativas num ponto, permitindo

alguma estabilidade de self para a pessoa em meio à caótica e por vezes perigosa rede de

saberes da sociedade. Em cada conjunto de significantes há pelo menos um que é o

significante da própria falta do significante, e que dessa forma evita o deslizamento que

ocorre na ordem simbólica, produzindo um significado estável. Para fazermos uma

analogia, o significante-mestre é como uma moeda estrangeira, uma coisa sem valor

econômico, “inútil”, mas que recorda a seu dono de um modo especial uma viagem feita a

um país no exterior – ele “tampa” a ordem simbólica dos significantes referentes àquela

viagem.

4 ŽIŽEK, Slavoj. Looking Awry: an introduction to Jacques Lacan through Popular Culture. Cambridge: MIT

Press, 1992. p. 30.

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O terceiro elemento é a cadeia-significante, S2. Ele representa o resto da cadeia de

significantes de uma determinada ordem simbólica, e com isso simboliza também o saber.

Por fim, o sempre elusivo objet-petit a, representada pela letra a. Ele é ao mesmo

tempo o objeto e a causa do desejo, uma negatividade radical (desejar é faltar) tornada

“positiva” num “objeto”.

“O objet petit a funciona como o objeto causa do desejo. Porque o sujeito é dividido, ele deseja. Ele deseja não ser dividido, mas ser inteiro. De fato, a divisão de sua subjetividade pode ser pensada como não sendo nada mais do que esse desejo. Porque o sujeito deseja ser um todo, ele não quer reconhecer que sua divisão é constituinte de sua subjetividade. Ele quer ser uma sujeito „indiviso‟. Ele quer acreditar que há alguma coisa externa que explicaria essa divisão.”5

Embora pareça (e seja) uma articulação bastante complexa, os discursos propostos

por Lacan são formados com simplicidade colocando esses elementos nas diferentes

posições, gerando assim uma estrutura discursiva própria.

Mestre, Universitário, Histérica, Analista e Capitalista

O primeiro discurso a que Lacan se refere, e que serve de base para todos os outros, é

o discurso do mestre. Ele é representado desta forma:

Discurso do Mestre

A arbitrariedade do poder é a marca do discurso do mestre, arbitrariedade igual à do

significante a que estamos todos constrangidos. O agente é ocupado por esse pedaço de

nonsense que é o significante-mestre, assim o discurso do mestre é um discurso a ser

obedecido “porque sim”. O discurso amparado pelo mestre é um discurso que esconde a

castração, que ilusoriamente se acredita indiviso. Dessa forma ele tenta se escorar num

conhecimento que seria natural, “dado”: inquestionavelmente natural e naturalmente

inquestionável. Na expressão de Jacques-Alain Miller, o mestre é um “mestre cego”, que

governa para não ver – seu ser incompleto, cindido pela linguagem, pela rede de

significantes incapaz de uma totalidade final.

Repetidas vezes em seu Seminário XVII Ŕ O avesso da psicanálise Jacques Lacan

nos chama a atenção para a situação do escravo na Antiguidade, de que o exemplo

5 SCHROEDER, Jeanne Lorraine. The Four Lacanian Discourses: Or Turning Law Inside Out. Abingdon: Taylor &

Francis, 2008. p. 18.

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paradigmático é provavelmente o Mênon6: o escravo obedece ao senhor gerando um a-

mais, o gozo de que o mestre tenta se apropriar. A formatação do discurso do mestre pode

se prestar também à narrativa edipiana, agora a criança forçada a obedecer o “porque sim”;

ou no machismo, onde a mulher é o outro sujeitado; em suma, em relações

comunicacionais marcadas por uma univocidade, por crer-se unívoco ao mascarar a divisão

do sujeito. Para Lacan:

“O sujeito participa do real, justamente, por ser aparentemente impossível. Ou, melhor dizendo, (...) diria que ocorre com ele o que ocorre com o elétron, no ponto em que este se propõe a nós na junção da teoria ondulatória com a teoria corpuscular. Somos forçados a admitir que é precisamente como sendo o mesmo que esse elétron passa ao mesmo tempo por dois buracos distantes.”7

O elétron que é partícula/onda é o sujeito em sua (in)divisão, velada e evidente, sua verdade.

O sujeito “é” completo, unitário; e “é” dividido pela linguagem. Žižek chama a atenção, ainda no

campo da física subatômica, para o efeito Einstein-Podolsky-Rosen, em que uma partícula cujo spin

é ligado ao de outra partícula muda seu spin coerentemente “antes” da outra partícula fazê-lo. O

filósofo esloveno formula assim que nem a mais “pura” física subatômica consegue escapar do

impasse fundamental da simbolização:

“(...) nosso conhecimento do universo, a maneira como simbolizamos o real, é no fim sempre ligada e determinada pelos paradoxos próprios à linguagem; a divisão entre “masculino” e “feminino”, isto é, a impossibilidade de uma linguagem “neutra”, não marcada pelas diferenças, impõe-se porque a simbolização como tal é por definição estruturada ao redor de uma certa impossibilidade central, um beco sem saída que não é nada além da estruturação dessa impossibilidade.”8

No discurso do mestre o sujeito sonha com sua completude, e se julga portador de

uma linguagem indivisa. Esse sonho é, naturalmente, sempre confrontado com a realidade

de que as palavras não são idênticas a si mesmas. Forma discursiva que coloca o Outro na

posição de escravo, busca tirar desse servo um saber de mestre que aproxima-se da ciência

– embora Lacan identifique esta propriamente ao discurso da histérica – excluindo o mito.

“Por isso, a episteme resultante desse discurso se reduz a um saber teórico.”9 Contemplação

que busca o sistema, o saber do mestre é um saber expropriador.

O próximo discurso é chamado de discurso do universitário:

6 Ver PLATÃO. Mênon. Editora PUC Rio/Edições Loyola, 2001. p. 53 em diante. 7 LACAN, Jacques. O Seminário Livro XVII Ŕ O avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor, 1992. p. 109. 8 ŽIŽEK, Slavoj. Looking Awry. p. 47. 9 BUENO, Cleuza Maria de Oliveira. Entre-vista: espaço de construção subjetiva. Ed. PUC-RS, 2002. p. 99.

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Discurso do Universitário

A posição do agente, a posição dominante é ocupada pelo saber. “Esse discurso é o

lugar onde todas as formas de complexidade e ambigüidades são mapeadas no domínio do

conhecimento.”10 É o discurso da burocracia, daquele que quer fazer do Outro “um sujeito”,

ou, como se dizer, “formar” um aluno.

Não há nada pequeno demais ou grande demais para o discurso do universitário. Ele

estrutura a ciência, a burocracia, o capitalismo de estado, toda a aparelhagem de

reprodução do capital: o capitalismo é o irmão-gêmeo da universidade.

O objeto do discurso do universitário é uma preocupação com o Outro – que

compreende como todo-poderoso e ao mesmo tempo frágil, que deve ser preservado a todo

custo – de modo que não é de estranhar que, se por um lado pensadores como Žižek

identificarão o fascismo como uma reação do discurso do mestre ao liberalismo moderno,

por outro lado o estalinismo será visto como a chegada ao poder do discurso do

universitário11. O universitário é o novo mestre no sentido de um mestre “sem

arbitrariedades”; o universitário se coloca como servo do povo para quem, sacerdote do

conhecimento último, revela as inescapáveis leis da ciência, da sociedade, do progresso. Se

o discurso do mestre era o discurso “sem razão” da dominação, para o discurso do

universitário tudo tem uma razão. É o próprio discurso da tecnocracia, da racionalização,

da racionalidade como instrumentação do discurso do mestre; ele está a favor do

significante-mestre e armado com praticamente qualquer argumento, sob a forma da razão.

O discurso da universidade se coloca contra qualquer instância engajada, a que acusa

de “dogmática” e “sectária”. “Ele não pode aceitar a escolha de apenas um único significante

para monopolizar a posição de comando do sujeito do enunciado. Ao julgar que essa

posição deve ser democraticamente partilhada pela sabedoria de todos os significantes, o

discurso da universidade se revolta contra a apropriação autocrática de apenas um

significante.”12 O discurso da universidade renega (Verleugnung) sua ação, observa Žižek

em algum lugar, como se sua decisão política fosse completamente fruto de um

conhecimento técnico-científico. Na perversão o sujeito foge da realidade do trauma

10 LIU, Catherine. “Lacan‟s Afterlife: Jacques Lacan meets Andy Warhol” In: RABATÉ, Jean-Michel. The Cambridge

Companion to Lacan. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 254. 11 SHARPE, Matthew; BOUCHER, Geoff. Zizek and Politics: a Critical Introduction. Edimburgo: Edinburgh

University Press, 2010. p. 94. 12 CUELLAR, David P. From the Conscious Interior to an Exterior Unconscious: Lacan, Discourse Analysis and

Social Psychology. Londres: Karnac Books, 2010. p. 265.

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recusando-o e admitindo-o ao mesmo tempo, de forma que não se percebe a ausência

como constitutiva do desejo, acreditando-se que o desejo é causado por uma presença (o

fetiche)13. Assim, o professor educa a criança para “o Brasil do futuro”, ou para “uma nova

sociedade”, sempre para o grande Outro. Unidirecional, esse discurso é para Lacan a atual

forma do discurso do mestre.

O discurso seguinte é o discurso da histérica.

Discurso da Histérica

Este não é apenas um discurso proferido “patologicamente” por uma histérica, mas é

aquele liame social onde um sujeito está inscrito como agente. Isto é, o agente é o sujeito

cindido, é o sintoma. Ele se dirige ao mestre, ao significante-mestre para produzir

conhecimento. Sua verdade é seu desejo. O analista, durante a psicoterapia, precisa

“histericizar” o discurso de seu paciente, justamente para que o sintoma se manifeste.

A histeria é:

“o fato da linguagem se admitirmos que quem quer que fale seja

histérico. Podemos ir além e dizer que o sujeito que pede para ser reconhecido é um fato da linguagem (...). A histérica não apenas solicita que a linguagem seja usada como um meio para explicá-la; ela também insiste em ser reconhecida como um ser da fala”14.

A histérica sabe a verdade sobre o desejo que existe no discurso do mestre. Se no

discurso do mestre a jouissance é colocada no lugar do reprimido, no discurso da histérica

ela é colocada no lugar da verdade. Porém o discurso da histérica ainda se encontra

amarrado aos significantes-mestres da sociedade. A pessoa desse discurso ainda exige seus

significantes do Outro, ao invés de produzi-los ela mesma15.

Por fim, o último dos quatro discursos propostos por Lacan é:

Discurso do Analista

Este é o chamado discurso do analista. Aqui podemos notar que o objeto-causa do

desejo, o objet-petit a, está na posição do agente. Em outras palavras, o sujeito se coloca

13 Ver FREUD, Sigmund. “Fetichismo” In: FREUD, S. Escritos sobre a psicologia do inconsciente, volume III. Rio

de Janeiro: Imago, 2007. (pp. 161-166). 14 ŽIŽEK, Slavoj. Jacques Lacan. Londres: Routledge, 2003. p. 88. 15CHAITIN, Gilbert D. Rhetoric and culture in Lacan. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 251.

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como causa do desejo do outro, esse outro dividido e castrado. O discurso do analista está

sempre gerando nonsense, já que S1 ocupa o espaço do produto, do resíduo da comunicação.

E para testemunhar o bom resultado da análise, o analista precisa estar perante uma fala

completa e coerente; livre dos lugares-comuns e clichês do Outro, e ao mesmo tempo

articuladamente, o sujeito dividido pela linguagem precisa lidar com sua própria castração

na fala. Ele produz uma verdade (S1) subjetiva, ele permite um significante-mestre na vida

do analisando capaz de gerar novos significantes-mestres para sua vida; ao mesmo tempo, o

analista é tido como o sujeito-suposto-saber (S2). O discurso do analista subverte o discurso

do mestre.

“Enquanto o analista lacaniano usa o simbólico para trabalhar no

real da jouissance do analisando, o discurso do mestre nega o real de um obstáculo, fazendo piada, dizendo que não é assim (...). Porém obstáculos concretos foram colocados tijolo por tijolo. Constituem as trilhas do conhecimento inconsciente que cortam a continuidade. E porque deslindam o ego, produzindo ansiedade, as pessoas fazem tudo para negar o real, para negá-lo a todo custo.”16

A comunicação do analista pode ser simplesmente o silêncio. É a descoberta de

Freud a respeito da histeria: deixar o sintoma falar. Com isso, Freud descobriu o discurso

do analista.

Tratamos portanto dos quatro discursos para Lacan: do mestre, do universitário, da

histérica e do analista. Contudo, há ainda um quinto discurso, que bem pode ser

compreendido como um “dialeto” do discurso do mestre, como propõe Levi Bryant, e que é

apresentado por Lacan em seu discurso em Milão como um discurso típico da sociedade

dita “pós-moderna”: é o discurso do capitalista.

Discurso do Capitalista

A formalização lacaniana do discurso do capitalista deve ser entendida em dois

sentidos: no paradigma da produção e no paradigma do consumo.

Na produção o trabalhador ($) se dirige aos meios de produção (S2) e com eles

produz mercadorias (a), que nunca são suficientes. Elas são apropriadas pelos donos da

empresa ou pelos acionistas (S1) e usadas para acumular mais e mais capital. Esse a-mais,

contudo, precisa ser reempregado para aumentar a eficiência da produção e vencer a

16 APOLLON, Willy; FELDSTEIN, Richard. Lacan, politics, aesthetics. Nova York: Suny Press, 1996. p. 139.

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competição. É um círculo vicioso.

No consumo agora o agente é o consumidor, ele é posto para desejar os bens infinitos

do sistema capitalista de produção. Contudo, ao identificar um desejo a uma mercadoria, o

consumidor só pode necessariamente produzir um resíduo de insatisfação, algo elusivo que

sempre lhe escapa. Nenhuma mercadoria pode satisfazer um desejo. Mas assim ludibriado

o consumidor é levado a querer satisfazer algo em sua posição de verdade (S1) que deve ser

entendido como o super-ego. O super-ego é uma instância psíquica que não tanto proibe e

impede, como faz crer o senso comum, mas ao contrário obriga o sujeito a gozar. Levado

pela propaganda o consumidor deseja o produto “x”, que no entanto sempre decepciona e

frustra; mas o super-ego comanda o sujeito a gozar isso. Claramente, ao se obedecer a

injunção do super-ego, gera-se mais um círculo vicioso. Esse é o humanismo da

mercadoria, na justa expressão de Guy Debord, que subitamente trataria o trabalhador

“como adulto”17 no papel de consumidor. Porém aquilo que não pode ser criado na

atividade não pode ser desfrutado na passividade.

Cotidiano e Discurso

O cotidiano não envolve senão o vivido, e mesmo o teórico como vivido. Espaço da

rotina, do irrepetível, do rotineiramente irrepetível, o cotidiano seria um conceito,

delimitável e passível de recorte por uma ciência especializada? Seria o espaço da ação

política, do homem na polis, agora tragada pelo sorvedouro de shopping-centers e

condomínios fechados? Ou antes, como isso que não se destaca da vida, não seria tarefa de

uma filosofia? Pois a filosofia é um saber da vida e não competiria à filosofia uma inserção

compreendida e compreensiva do indivíduo no espaço cotidiano? Mas a filosofia tem um

julgamento bastante severo sobre o cotidiano: não fala Heidegger da dispersão do Dasein

em sua cotidianidade? O mundo como representação mais ou menos ilusória em

Schopenhauer? Mesmo se a filosofia clássica estiver inserida solidariamente na cidade

antiga e sua política, ela não pensará o vivido como simulacro em uma caverna platônica?

Ora, se não há pensamento vivendo no/do cotidiano, então as conseqüências práticas são

duras para “as pessoas”.

“Sabem o que querem? Sim, mais e mais claramente, são menos e

menos enganados. Conhecem claramente sua situação, suas relações sociais? Não. Um caso: quanto mais o espaço e os lugares são importantes, mais a massa das pessoas desconhece o espaço, pois tudo contribui a destacá-los dele: as mídias, as imagens, os transportes, a abstração geral. Não

17 DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. Rebel Press: 1983. p. 22.

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compreendem socialmente senão o escalão inferior e imediatamente superior a eles na hierarquia.”18

O cotidiano é assim um espaço duplo de revelação e ocultamento, de poder e de

alienação. Um saber que questione o cotidiano não pode naturalmente se colocar como

dono de um saber que o formaria: a isso se pode bem dar o nome de colonização desse

cotidiano. Ele de fato existe, mas não como conhecimento crítico-prático, de uma filosofia a

ser realizada na acepção marxista (talvez aí uma “metafilosofia” diria Lefebvre); antes, os

conhecimentos parcelados e fragmentários orientam a invasão tecno-mercadológica de

elementos desejados pelo discurso capitalista, ao mesmo tempo que esses organizam e

distribuem práticas que enredam o sujeito entre “o andar de cima e o de baixo”. Estamos

falando naturalmente do que conceituamos como o discurso do universitário, que invade o

cotidiano. Mas é preciso aguardar para desenvolvermos este ponto.

Pensar o cotidiano é então perguntar pelo tempo e pelo espaço do vivido, mas em

suas determinações concretas, como espaço de vivência qualitativa do indivíduo. Ou antes,

diremos que um pensamento não é ainda uma teoria, uma crítica; mas como crítica,

portanto, não pode tratar o cotidiano como resíduo, como “produto”. Contudo também essa

formulação se reconfigura, já que há um “resíduo” (agora no sentido oposto) da praxis

hegemônica sobre o cotidiano, ou melhor dizendo, com Lefebvre, há um “espaço

diferencial”19.

De fato, mesmo a noção comum do cotidiano pede por um espaço de rotina, por

topoi sobre os quais decalcar atos, atividades, e em última instância afetos e gestos. Se a

vida cotidiana se esvai sem consciência e sem deixar memória, então só pode ser a vitória

do espaço sobre o tempo. Nas palavras de Cláudio R. Duarte:

“No nível mais imediato, a hegemonia do tempo de trabalho acarreta

a degradação da experiência: o tempo (...) aparentemente evacua-se quando deixa apenas traços apagados e dissimulados no espaço existente. Apaga-se então como realidade „percebida‟ pela consciência social e „vivida‟ pelos sujeitos (o tempo como durée), tendendo para a fragmentação e o esquecimento.”20

No discurso capitalista o sujeito agente se dirige aos meios de produção gerando

como produto as mercadorias em excedente apropriado pelo capital, em círculo vicioso. Se

traduzimos este paradigma para a vida cotidiana, o discurso capitalista “consome

18 LEFEBVRE, Henri. Critique de la Vie Quotidienne III Ŕ De la modernité au modernise (Pour une

métaphilosophie du quotidien). Paris: L‟Arche Editeur. 1981. p, 26. 19 Ver LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford: Blackwell Publishing. 1991. pp. 352-400. 20 DUARTE, Cláudio R. “Espaço Social e sobrevivência do capitalismo: a teoria da reprodução social de Henri

Lefebvre”. Sinal de Menos. Ano 2, no 5, 2010.

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produtivamente” o cotidiano produzindo alienação. Debord liga isso ao espetáculo: “A

função social do espetáculo é a fabricação concreta da alienação.”21 O espetáculo portanto

nada mais é que a verdade do cotidiano do capitalista contemporâneo.

O discurso do capitalista também pode ser compreendido no paradigma do

consumo. Agora o cotidiano é consumido como mercadoria: as festas sem alegria genuína, o

entretenimento e a indústria cultural, a vida noturna e seus “estilos de vida”, os

relacionamentos transformados em networking, o hedonismo e as drogas; o que seria

cotidiano não consegue prover a Erfahrung que foi desperdiçada quando da produção:

consumir o espaço não recupera o tempo perdido. O que se produz é a angústia.

A angústia se relaciona ao medo de fragmentação que a criança sente no estádio do

espelho perante o (des)conhecimento (méconnaissance) de sua imagem especular22.

Debord novamente, ligando o espetáculo a uma imagem especular que reflete a política da

mercadoria, afirma: “Aqui se põe em cena a falsa saída num autismo generalizado.”23 O

cotidiano capitalista é, nesse sentido, esquizofrênico.

Havíamos mencionado o discurso universitário como colonizador do cotidiano. O

colonizador, de fato, incorpora diferentes figuras universitárias. O colonizador é aquele que

domina, mas domina em nome de; em nome do progresso, em nome do cristianismo, em

nome do white men‟s burden. Essa última expressão é particularmente feliz, já que há

sempre um tom de sacrifício, de “altruísmo” temperado com certa auto-comiseração no

discurso do universitário/colonizador. Como dissemos, o agente desse discurso sempre se

comunica/age “pelo bem” do Outro, que é infantilizado/glorificado/fetichizado.

O discurso do universitário com relação ao cotidiano é de domínio. Tudo existe para

ser “colocado em seu lugar”, “formatado”, “organizado”. É também o paradigma do bio-

poder, se entendemos aqui uma situação para controlar e fazer funcionar diversas

instâncias disciplinantes, da informatização dos presídios às carteirinhas de identificação

em escolas e hospitais. É a colonização do cotidiano pelo discurso universitário que nos faz

ouvir que: “no Brasil faltam leis mais duras”, ou “os alemães no sul do Brasil evoluíram

porque são mais esforçados”. É também o discurso da nova classe média ligada à produção

de “bens imateriais”, e portanto ciosa do know-how que lhe confere um degrau nas

escadarias tecnocráticas. Ao mesmo tempo, perante o cotidiano, esse discurso produz um

resíduo: a ignorância.

21 DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. p. 16. 22 Ver LACAN, Jacques. “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu” In: ZIZEK, Slavoj (Org.) Um

Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto. 1999. pp. 97-103. 23 DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. p. 118.

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Na medida em que esse discurso colonizador tem sempre-já uma “resposta para

tudo”, um conhecimento do qual ele parte de antemão, o cotidiano é “recortado” de modo a

deixar escapar exatamente esse aspecto teórico-crítico, esse saber obscenamente dialético,

em última instância sua própria humanidade. Lefebvre cunha o termo cibernântropo para

tratar dessa situação de um discurso de um autômato que é a realização no “máximo grau

tecnocrático” do universitário.

“Sejamos precisos. O cibernântropo não é o autômato. É o homem que recebe uma promoção: ele se compreende graças ao autômato. Vive em simbiose com a máquina. Encontrou nela seu duplo real.”24

Que a sociedade se reproduza sem obstrução é o anseio maior desse cibernântropo,

articulado por Lefebvre ao autômato como “duplo”. Notamos que a presença do autômato

ligado à repetição, para Lacan, diz respeito à pulsão. Lacan, a partir da década de 60:

“(...) focaliza a atenção mais e mais na pulsão como um tipo de conhecimento „acefálico‟ que traz satisfação. Esse conhecimento não envolve nenhuma relação inerente com a verdade, nenhuma posição subjetiva de enunciação – não porque dissimula a posição subjetiva da enunciação, mas porque é em si não-subjetivada, ou ontologicamente prévia à própria dimensão da verdade (...) Verdade e conhecimento estão assim relacionados como desejo e pulsão (...)”25

Cabe então ao cibernântropo em última medida abrir mão de sua “humanidade”, ao

se tornar um conhecimento “acéfalo”, uma “máquina de repetição”. E justamente aí está a

verdade do discurso colonizador do cotidiano. O cibernântropo tem um cotidiano de

máquina. E a máquina aqui tem o sentido do gadget, esse aparelhinho “mais engenhoso do

que útil”26, engenhoca que se perpetua pela esquizofrenia capitalista; mas também o

sentido do garrote, instrumento de suplício imposto para sufocar um discurso antes que ele

“diga a verdade” ao Outro.

Qual o discurso da histérica perante o cotidiano? Justamente a de questioná-lo, de

interrogá-lo em busca de seu desejo. O que é isso que há no cotidiano que poder ser a

verdade a ser interrogada? As instituições tradicionais fornecem alguma base – ora em

descrédito, ora ressurgentes – para o discurso da histérica. A família, a igreja, as tradições

aí no cotidiano são interpeladas histericamente e produzem como resultado ritos. Toda

relação histérica com o cotidiano produz ritos27, produz uma repetição, porém diferente da

24 LEFEBVRE, Henri. Posição: Contra os Tecnocratas. São Paulo: Editora Documentos. 1969, p. 186. 25 ŽIŽEK, Slavoj. Desire: Drive = Truth: Knowledge. (http://www.lacan.com/zizek-desire.htm, grifos meus.

Acessado em 15 de julho de 2010). 26 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva. 2002.

Versão 1.0.5 – CD-ROM: verbete “Gadget”. 27 Sem os problematizarmos antropologicamente a fundo, nós os definiremos apenas como processos simbólicos.

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do cibernântropo. A histérica de fato não perdeu completamente a noção do tempo como

durée, ela apenas busca os elementos dessa “vivência” no cotidiano imediato; e pode-se

dizer que ela não o encontra? Esse discurso pode se manifestar desde a rotina da igreja no

domingo à tarde, até lavar obsessivamente as mãos. Mas para além de uma psicopatologia

do cotidiano, o discurso da histérica procura no cotidiano uma classificação, porém

igualmente distinta da ordem do cibernântropo. Buscam:

“uma classificação das coisas, reais ou ideais, que representam os homens, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados igualmente por dois termos distintos que traduzem as palavras profano e sagrado.”28

Aqui é preciso pisarmos com cautela. O histérico, por exemplo, mesmo num ato

semelhante ao do capitalista (ou do universitário para todos os efeitos), age e sente

diferente. Assim a aquisição de um automóvel novo no discurso capitalista estará

indissociavelmente ligado à esquizofrenia imposta por essa situação de consumo cotidiano.

Ao mesmo tempo, o discurso histérico envolveria a atribuição ao carro, senão de um caráter

sagrado, ao menos à ação de um princípio superior ao profano. Diversos fenômenos na vida

cotidiana estão aí na histeria: o artista ou esteta em sua fruição artística, alguns idealismos

na política, ou simplesmente a permanência de um sonho durante o dia traduzem um

mesmo aspecto histérico em relação ao cotidiano. A juventude é histérica, se não é

cooptada29.

Os ritos diários são essas cristalizações histéricas do cotidiano. São elas que dizem

que isso está “acima das outras coisas”. O cotidiano histérico na verdade é sagrado,

constrói-se sobre o sagrado. O que certamente não exclui os sacrifícios, as crucificações, os

flagelamentos. Hegel (o “mais sublime dos histéricos” nas palavras de Žižek) já chamava a

atenção para o caráter libertador da rotina para o espírito, permitindo que esse

incorporasse aos poucos um conjunto de saberes até dominá-los perfeitamente.

Podemos recorrer a alguns lugares-comuns da cultura popular para ilustrar certas

diferenças, como os personagens recorrentes nas histórias de terror: o zumbi, o vampiro e o

alienígena.

O zumbi é justamente o ser da repetição, e o frisson desse tipo de filme é ver o bom e

velho amigo do protagonista enfim transformado num zumbi desmiolado, condenado a se

arrastar sem parecer ou agir como um humano. Zumbis são seres da pulsão, como o

cibernântropo. Já os vampiros levam uma vida de dia, escondidos do sol, e outra de noite.

28 DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France. 1968.

p. 50. 29 Ver LEFEBVRE, Henri. Introdução à Modernidade: Prelúdios. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1969. pp. 185-196.

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Como no discurso do capitalista (é metáfora recorrente associar os dois), são “eternamente

jovens”, já que o tempo não lhes altera, a vida é simplesmente uma sucessão monótona e

parasita de um tempo homogêneo. Já o discurso da histérica se assemelha ao alienígena: o

ser extra-terrestre toma conta do corpo de um terráqueo e parece e age como ele, mas não

é. Como a histérica, sua verdade “não é deste planeta”, ela está além das cercanias

imediatas, ela obedece a uma “ordem cósmica” sobrepujante.

Ao dominar o cotidiano, o mestre se orienta pelo aspecto propriamente simbólico

deste. Falar no simbólico é falar do lugar de reconhecimento entre os indivíduos. “A

consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer

dizer, só é como algo reconhecido.”30 As eleições da política dita democrática, o “fluxo” de

imagens da mídia, o aparelho repressivo; em cada símbolo se esconde a possibilidade de

assujeitar.

Esta situação remete imediatamente à crítica da ideologia feita por Althusser que,

como já mencionamos previamente, trabalha com a ambiguidade do sujeito. O cerne da

teoria althusseriana (que logo submeteremos à crítica) diz respeito à noção de interpelação:

“Observa-se que a estrutura de qualquer ideologia, ao interpelar os indivíduos como sujeitos em nome de um Sujeito Único e Absoluto, é especular, ou seja, é uma estrutura em espelho, e duplamente especular: essa duplicação em espelho é constitutiva da ideologia e garante seu funcionamento. O que equivale a dizer que toda ideologia é centrada, que o Sujeito Absoluto ocupa o lugar singular do Centro e interpela a seu redor a infinidade de indivíduos a se tornarem sujeitos, numa dupla relação especular, de tal ordem que sujeita os sujeitos ao Sujeito, ao mesmo tempo que lhes dá, no Sujeito em que cada sujeito pode contemplar sua própria imagem (presente e futura), a garantia de que isso realmente concerne a eles e a Ele (...)”31

Notamos que a teoria althusseriana, não mais do que esboçada aqui, contém um

defeito fundamental: a saber, que se trata de uma teoria ainda imaginária da ideologia.

Tal qual no estádio do espelho em que se processa a alienação do ego e

posteriormente o ocultamento dessa mesma alienação, o (des)conhecimento

(méconnaissance) atua também no momento da interpelação ideológica em que o indivíduo

vê o Mim que conhece (mé-connaissance) no limiar de transformá-lo em sujeito ao Sujeito.

Contudo o indivíduo também é simbólico e como tal à mercê do enigmático Outro cuja

trama de significantes, cujo (en)jeu-des-mots desloca suas certezas ao mesmo tempo que

permite a existência do desejo.

30 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, parte I. Petrópolis: Editora Vozes, 6 ed. 2001. p. 126. 31 ALTHUSSER, Louis. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma Investigação)” In: ZIZEK,

Slavoj (Org.) – Um Mapa da Ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. p. 137.

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Dessa forma, gostaríamos de sugerir o neologismo contraduzir, para propor a

relação do indivíduo com as diversas interpelações ideológicas com as quais se depara sem

necessariamente ser reduzido à sua dimensão unicamente imaginária: o indivíduo tem atos

e atividades que traduz com a interpelação que lhe é dirigida, e também contra aduz ao

Sujeito suas razões. Nessa crítica estamos com Lefebvre32, que ao introduzir a noção de

nível e dimensão propôs uma crítica coerente, pro et contra, do estruturalismo,

especialmente no caso de Althusser.

O produto do discurso do mestre é justamente, então, a ideologia. Em seu cotidiano

o mestre gera ideologemas e não é de estranhar que o “fim das ideologias” e o declínio do

mestre sejam concomitantes. Na medida em que o mestre contraduz de Deus Suas

verdades, o mestre é um “santo” cujo significante-mestre é notoriamente conhecido de

todos, de toda a “congregação”.

Falando da decadência do mestre, no cotidiano mesmo a política representativa já

não é terreno dele; a figura do político não defende um significante-mestre claro. O

professor e as lideranças religiosas tampouco se reúnem atrás de uma bandeira que

contraduza seus sujeitos na verdade de seu Estado. Sob o discurso cotidiano do mestre, o

aparelho estatal sempre prestes a reproduzir as condições de produção do cotidiano e

ampliá-lo, no sentido da “sobrevivência ampliada” debordiana.

Não, talvez antes de falarmos da decadência do discurso do mestre, devemos falar de

sua transformação, da emergência do Estado “carcerário” ou “penal” que, como nota

Duarte, externaliza seus custos na busca de uma eficiência “empresarial”33. O mestre, como

nos livros de auto-ajuda para executivos, segue princípios de “sucesso”; a ideologia que

resta a ser produzida é essa, a do sucesso que pode ser obtido sabendo-se de alguns

segredos (palavra onipresente na lista dos livros mais vendidos). O Estado secreto de

dominação e a dominação de um Estado secreto: os “dossiês” em época de eleição e as

sessões a portas fechadas – ali onde o discurso do mestre contraduz ao Sucesso, ele só pode

existir, em última análise, na cabeça dos outros. É um pensamento de fora, uma para-noia.

Já o discurso do analista aborda o cotidiano como exceção, como algo que só pode

ser “diagnosticado individualmente”, sem nosologias, sem a classificação do conhecimento.

Análise, portanto, justamente do concreto, do sólido em cada situação cotidiana. A

capacidade poética desse discurso reside, então, na possibilidade de elevar o cotidiano à

“dignididade de uma escuta”, como poderia dizer Heidegger, se este não se colocasse no

32 Ver LEFEBVRE, Henri. Posição: Contra os Tecnocratas. Parte 2. 33 DUARTE, Cláudio R. “Espaço social e sobrevivência do capitalismo: a teoria da reprodução social de Henri

Lefebvre”, op. cit., p. 97.

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desprezo da cotidianidade. Se a histérica possui uma rotina, ou antes, ritos impulsionados

pelo sagrado de sua verdade, o analista trata o cotidiano em singularidade; mesmo o termo

na cosmologia, indicando a “região do espaço-tempo na qual as conhecidas leis da física

cessam de viger e a curvatura do espaço se torna infinita”34 é apropriado, na medida em que

seja possível nesse discurso chegar ao limiar do cotidiano, àquele ponto onde o tempo se

torna história. Nesse sentido o discurso do analista é aparentado da burguesia, como

primeira classe histórica, mas ao contrário desta ele não nega o uso desse tempo. Vem do

analista, portanto, uma poiesis mais do que uma praxis exatamente. Assim como os

junguianos falam em “alquimia” analítica, remetendo a práticas de “análise” simbólicas,

assim também é possível dizer de uma “ascese”, de uma “depuração” do sujeito a partir da

consciência que adquire.

Criar consciência é o processo político/psicanalítico por excelência, e onde há

consciência o cotidiano, mesmo rotineiro, “tem seu encanto”, como nos filmes de Yasujiro

Ozu. A consciência do cotidiano, portanto, no sentido em que perguntávamos por uma

ciência ou saber que lhe compreendesse, fala do discurso do analista. Este pode se colocar

como objeto-causa do cotidiano e, ao se dirigir a ele, criar consciência. Os encontros sociais

entre iguais e longes da massificação da multidão, a arte não-espetacular, as frestas de fato

nas muralhas da dominação cotidiana, são momentos em que o discurso do analista pode

existir. Ele envolve naturalmente um projeto comunitário, pois em sua verdade transfere

necessariamente de um ser humano para outro, num ato de amor (agapé, caritas). Nesse

sentido, a verdade do discurso cotidiano do analista é um amor compassivo; este não se liga

a uma “pureza” – “o desejo do analista não é um desejo puro” (Lacan) – mas a uma ética

que se constrói no próprio ato de se fazer ética de um discurso. No cotidiano resta o

encontro com os amigos ou mesmo instâncias onde o erótico não tenha sido colonizado. O

cibernântropo, contrariamente, só é dotado de pulsão, não de desejo; em grau máximo, o

discurso do analista envolveria um desejo inescapável e irrealizável, transformando todas as

pequenas tribulações do dia-a-dia em instâncias menores.

Podemos agora formular a tese central deste texto: o cotidiano é eventual.

Conclusão

É preciso recordamos que o discurso é um elo social. Assim, o sujeito pode passar de

um discurso a outro. Cada uma dessas passagens é um evento (cotidiano). Para recorrermos

34 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva. 2002.

Versão 1.0.5 – CD-ROM: verbete “singularidade”.

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novamente às definições cosmológicas, diremos que um evento é um “ponto no espaço-

tempo provido de quatro dimensões”35, ou uma “virada” discursiva, o trilhar de um novo

dis-curso.

A micro-história do cotidiano é palmilhada desses eventos e eventualidades. É claro

que o fato de um “evento” já ser objeto de administradores, promoters, designers e

especialistas em espetáculos apenas atesta para a colonização esquizofrênica do

tempo/espaço, ou, desprovida de qualquer mudança real, a mudança é institucionalizada

como uma infinidade de pseudo-eventos, de banalidades eventuais. Todo evento do

cotidiano capitalista é medíocre na medida em que não faz a “roda do discurso” girar, em

que é inexpressivo justamente porque só exprime seu círculo patológico de acúmulo.

Se a família subjugada pelo capitalismo só pode conversar sobre os “eventos” da

novela à noite, se o papo no ponto de ônibus se restringe ao futebol em sua “montagem

perversa”36, se mesmo as discussões ditas “políticas” se restringem à citação deste ou

daquele “escândalo” neste ou naquele jornal, então nos resta constatar que em termos

discursivos, o capitalismo é um sistema rígido, provido de uma ossatura que atrai o

sujeito rumo à não-eventualidade de seu cotidiano.

Não estamos, naturalmente, propondo “transgressões” românticas em busca de uma

jouissance perdida, soluções “contraventoras” que recaem em novos tribalismos e uma

marginalização impotente. Atentamos apenas para um fato. Qual? Que uma força

gravitacional atrai o discurso capitalista para um verdadeiro buraco-negro: o discurso do

capitalista é o menos eventual de todos, é o menos capaz de mudar. Uma compreensão nos

presentes termos do discurso capitalista precisaria conseguir informar o evento que

poderia, como na análise, histericizar seu discurso. Mas os ritos não se sustentam no

cotidiano capitalista. Como canta Villon:

Prince, n‟enquerrez de semaine Où elles sont, ni de cet an, Qu‟à ce refrain ne vous remaine: Mais où sont les neiges d‟antan? [Príncipe, nem esta semana Buscai sabê-lo, nem agora, Pois o refrão vos desengana: Mas onde estais, neves d‟outrora?]37

35 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Objetiva. 2002.

Versão 1.0.5 – CD-ROM: verbete “evento”. 36 Ver DUARTE, Cláudio R. “Futebol, Capital, Sadomasoquismo: o espetáculo como pseudo-jogo e montagem

perversa”. Sinal de Menos. Ano 2, no 5, 2010. 37 François Villon. Ballade des Dames du Temps Jadis [Balada das Damas Doutros Tempos]. In: VEIGA, Cláudio

(Organização e Tradução) Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX). Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 64-67.

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Os ritos são substituídos, viram rotinas, hábitos, modas, por fim gestos imitados ao

espetáculo; perdidos no mar se afogam mutuamente, debatendo-se sem ponto fixo. O

cotidiano capitalista é eventual na sua falta de eventos. A colonização do cotidiano sob o

capitalismo é o esvaziamento de sua eventualidade. É o Estado carcerário no cotidiano do

discurso. O que explica também, sob a ótica que já lançávamos, o gosto pela “transgressão”,

naturalmente recuperado/mercantilizado.

Talvez Lacan tenha de fato razão em propor o declínio do discurso do mestre. O

vampiro é um ser mais poderoso, imortal talvez; porém em sua existência tediosa, a-

eventual, o outro existe sempre para ele como objeto a ser mordido, violentado, parasitado.

E se porventura o amor surgir, ele está condenado à farsa da perpetuação da a-

eventualidade.

Embora a histericização do capitalista possa parecer à primeira vista impossível, é

uma tática cotidiana numa estratégia razoável. Não temos como dizer a natureza desse

evento, mas ele pede que a consciência se faça dialética, e portanto é prático.

O cotidiano liberado só pode existir numa formação consciente de seus eventos. Mas

esse não é um projeto utópico, é uma proposta que existe no seio da contradição capitalista

como projeto mútuo de existência compartilhada. Na medida em que os indivíduos mantêm

a consciência de seus atos, sem se atomizarem, e se articulam coletivamente, sem serem

manipulados como multidão, podem reencontrar um cotidiano eventivo posto que

inventivo. Aí, e somente aí, podem criar um mundo e a si mesmos, reconhecendo-se como

iguais perante um destino.

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Variante da abertura de O Castelo Franz Kafka

O estalajadeiro saudou o hóspede. Um quarto estava preparado no primeiro andar.

– “O quarto para príncipes” – disse o estalajadeiro.

Era um quarto grande com duas janelas e uma porta de vidro entre elas,

atormentadoramente grande em sua nudez. Os poucos móveis por ali espalhados tinham

pés estranhamente delgados; ter-se-ia podido crer que eram de ferro, mas eram de madeira.

– Por favor, não entre na varanda – disse o estalajadeiro ao ver que o hóspede,

depois de ter olhado a noite pela janela, aproximava-se da porta de vidro.

– A viga está um pouco frágil.

Entrou a criada e enquanto mexia no lavatório perguntou se o quarto estava quente o

suficiente. O hóspede fez que sim com a cabeça. Mas, embora não tivesse até o momento

feito nenhuma crítica, continuava completamente fechado no sobretudo e conservando na

mão o chapéu e o cajado, andando de lá para cá, como se não estivesse certo ainda se iria

ficar. O estalajadeiro estava junto à camareira; de súbito, o hóspede caminhou para trás dos

dois e exclamou:

– Por que estão sussurrando?

O estalajadeiro disse assustado:

– Eu apenas estava dando à moça instruções em relação à roupa de cama. O quarto,

infelizmente só agora eu o vejo, não está tão cuidadosamente preparado como eu teria

desejado. Mas tudo será arrumado em seguida.

– Não é essa a questão – disse o hóspede. – Eu não esperava outra coisa senão um

buraco sujo e uma cama repugnante. Não tente me distrair. Eu só quero saber uma coisa:

quem lhes anunciou a minha chegada?

– Ninguém, senhor – disse o estalajadeiro.

– Você me esperava.

– Eu sou um estalajadeiro e espero hóspedes.

– O quarto estava preparado.

– Como sempre.

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– Muito bem, você não sabia de nada, mas eu não fico aqui. E abriu com força uma

janela e gritou para fora. – Não desatrelem, seguimos viagem! Mas, quando correu para a

porta, a camareira entrou no caminho, uma moça franzina, delicada, ainda muito jovem, e

disse de cabeça baixa:

– Não vá embora. Sim, nós estávamos à sua espera; só não respondemos porque

somos inábeis para responder e porque não sabemos com certeza quais são os seus desejos.

A aparência da moça comoveu o hóspede, suas palavras eram-lhe suspeitas.

– Deixe-me a sós com a moça – ele disse ao estalajadeiro.

O estalajadeiro hesitou, depois se foi.

– Vem – disse o hóspede à moça, e sentaram-se à mesa.

– Qual é o seu nome? – perguntou o hóspede, e por cima da mesa pegou a mão da

moça.

– Elizabeth – disse ela.

– Elizabeth – disse ele. Ouça-me bem. Eu tenho diante de mim uma difícil tarefa à

qual dediquei toda a minha vida. Eu faço isso alegremente, não peço compaixão a ninguém.

Mas porque isso é tudo o que eu tenho – ou seja, esta tarefa – reprimo, sem consideração

alguma, tudo o que pudesse perturbar sua execução. Nesta falta de consideração posso

chegar até a loucura.

Ele apertou sua mão, ela o olhou e anuiu com a cabeça.

– Você então entendeu – disse ele. – E agora me explique como souberam de minha

chegada. É só isso o que eu quero saber; não pergunto sobre as suas intenções. Estou aqui

para lutar, mas não quero ser atacado antes de minha chegada. Então, o que se passou

antes que eu chegasse?

– Toda a aldeia sabe de sua chegada, eu não posso explicar como; já desde semanas

atrás todo mundo o sabe, deve ter vindo do castelo, mais que isso eu não sei.

– Esteve aqui alguém do castelo e me anunciou?

– Não, ninguém esteve aqui, os senhores do castelo não tratam conosco; mas talvez a

criadagem lá de cima tenha falado sobre isso e pode ser que as pessoas da aldeia o tenham

escutado e desse modo isso tenha se espalhado. Tão poucos forasteiros chegam a este lugar,

fala-se muito de um forasteiro.

– Poucos forasteiros? – perguntou o hóspede.

– Ah! – disse a moça sorrindo, com um ar ao mesmo tempo familiar e estranho –

não vem ninguém, é como se o mundo nos tivesse esquecido.

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– E por que haveriam de vir aqui – disse o hóspede – há alguma coisa para se ver

aqui?

A moça retirou lentamente sua mão das dele e disse:

– Você ainda não tem confiança em mim.

– Com muita razão – disse o hóspede erguendo-se. – Vocês todos são da mesma laia,

porém você é mais perigosa ainda que o estalajadeiro. Você foi enviada especialmente pelo

castelo para me servir.

– Enviaram-me do castelo? – disse a moça. – Quão pouco você conhece as nossas

condições! E, devido à desconfiança, agora irá embora, pois agora provavelmente está de

partida.

– Não – disse o hóspede, arrancando de si o sobretudo e atirando-o sobre uma

poltrona – não parto, nem mesmo isto, nem mesmo me expulsar daqui vocês conseguiram.

Subitamente, entretanto, ele cambaleou, ainda se sustentou alguns passos e então

caiu sobre a cama. A moça correu para ele:

– O que você tem? – sussurrou ela, e já correu para o lavatório, e trouxe água e

ajoelhou-se junto a ele e lavou o seu rosto.

– Por que vocês me atormentam assim? – disse ele com dificuldade.

– Mas nós não te atormentamos – disse a moça. Você quer algo de nós e nós não

sabemos o que seja. Fale abertamente comigo e eu lhe responderei abertamente.

**

(Tradução: Cláudio R. Duarte.

Texto-base: KAFKA, Franz. Das Schloss. Apparatband. Frankfurt am Maim: S. Fischer,

2002, pp. 115-7).

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A bailarina e o corpo

Alfred Döblin

Aos onze anos ela foi destinada à dança. Por sua habilidade em deslocar seus

membros, fazer caras e bocas e por seu temperamento peculiar, ela parecia perfeita para

essa profissão. Até então esquisita em seu modo de caminhar, ela aprendeu a forçar seus

ligamentos flexíveis e suas articulações suaves; ela se insinuava cuidadosa e pacientemente

em seus dedos, tornozelos, joelhos, cada vez mais, ela dominava avidamente os ombros

estreitos e a flexão dos braços esguios, espreitava atenta o movimento do corpo rígido. Ela

conseguia, sobre a dança mais voluptuosa, aspergir frieza.

Aos dezoito anos, ela tinha uma figura pequena e suave, enormes olhos negros. Seu

rosto alongado, quase como de menino, com traços fortes. A voz talhada claramente, sem

sedução ou música; um passo veloz e impaciente. Ela era desprovida de afeto, via com

clareza suas colegas inábeis e se entediava com suas reclamações.

Aos dezenove anos, apossou-se dela uma enfermidade pálida, de forma que seu rosto

cintilava insolitamente anêmico contra o coque preto-azulado. Seus membros se tornaram

pesados, mas ela continuava dançando. Quando estava sozinha, batia com força os pés no

chão, ameaçava seu corpo e lutava contra ele. A ninguém ela falava de sua fraqueza. Ela

rangia os dentes de raiva do ser lerdo e infantil que ela tinha aprendido a dominar.

Quando Ella mordia os lábios de dor, a mãe se jogava sobre o sofá e chorava horas a

fio. Depois de uma semana, a velha mulher tomou uma decisão e disse à sua filha, olhando

para o chão, que aquilo deveria acabar e ela deveria ir ao hospital. A isso Ella não respondeu

uma palavra, apenas lançou um olhar rancoroso àquele rosto enrugado e desesperançado.

Logo no dia seguinte ela foi ao hospital. No carro, ela chorava de raiva debaixo do seu

cobertor. Ela queria cuspir no seu corpo doente, com amargura zombava dele; tinha nojo da

carne apodrecida, à qual estava associada. Com medo silencioso, ela abriu os olhos,

enquanto tocava os membros que lhe escapavam. Como ela era impotente, ah, como ela era

impotente. Elas chacoalharam pelo pavimento do pátio. Os portões do hospital se fecharam

às suas costas. A bailarina olhava com aversão médicos e doentes. As enfermeiras a

colocaram cuidadosamente na cama.

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Então, a bailarina desaprendeu a falar. Ela não escutava mais o tom autoritário de

sua voz. Tudo acontecia a despeito de sua vontade. Mas todas as manifestações de seu corpo

eram observadas, tratavam-no com uma excessiva seriedade. Todos os dias, quase todas as

horas, perguntavam à bailarina sobre os problemas dele, escreviam com cuidado nos

prontuários, o que, no começo, deixava-a indignada, depois, cada vez mais magoada. Ela

logo entrou em um estado de profundo medo e inconstância; foi tomada por horror a esse

corpo. Ela não ousava tocar nele, limpá-lo, fitava seus braços, seus seios, e estremecia

quando se examinava longamente no espelho. Sua boca engolia os remédios que ela lhe

dava de beber; ela acompanhava as gotas amargas, como escorriam, e se perguntava o que

ele fazia delas, ele, o corpo, o infantil, ah, o imperioso, o tenebroso. Ela ficou pequena como

uma mosca; e, à noite, o pavor ficava atrás da sua cama. Seus olhos, que fitavam o

desconhecido1, tornaram-se rígidos. A garota sarcástica com o rosto de menino se tornara

piedosa e orava antes do irromper da noite com as enfermeiras. A mãe se assustou quando a

visitou. Sua filha nunca estivera tão abatida e carente. “Nós estamos todos nas mãos de

Deus”, dizia a mãe para consolar a agonizante, que se agarrava a ela. “Sim”, murmurava a

bailarina, “nós estamos todos nas mãos de Deus”.

A movimentação regular à sua volta a tranquilizou novamente, o pavor desapareceu

rapidamente, assim como havia surgido. Sua aversão aos doentes da ala se intensificou. E a

indignação persistia ainda mais intensa, porque dedicavam tanto respeito ao podre e

apodrecido, e evitavam olhá-la, como se estivesse morta. Isso ofendia a imperiosa. Ela

aprisionava o corpo, o atava a correntes. Era sim o seu corpo, sua propriedade, da qual ela

podia dispor. Ela morava nessa casa; deviam deixar sua casa em paz. Todos os dias batiam

com martelos em seu seio e escutavam o que dizia seu coração. Eles desenhavam seu

coração sobre o seio, para que todos pudessem vê-lo. Arrancavam a luz que havia se

escondido lá dentro. Ah, ela era roubada. A cada pergunta, arrancavam um pedaço dela. Ela

era infiltrada com venenos mais finos do que agulhas e sondas. Tendo desvendado dela os

segredos, repeliam-na completamente para sua toca. Tiravam tudo dela, aqueles ladrões, e

por isso ela não se admirava que a cada dia jazesse mais fraca e pálida. Então, ela ficou

amargurada e se defendeu. Ela mentia aos médicos, não respondia a suas perguntas, ela

dissimulava sua dor. E quando queriam fazer mais perguntas, ela enrijecia seu corpo sobre

a cama, repelia as enfermeiras, até mesmo ria, em um acesso de raiva fulgurante, na cara

dos médicos, daqueles que meneavam a cabeça, e lançava-lhes uma careta sarcástica.

1 Unheimliches (N.d.T.).

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Mas ela não podia sustentar por muito tempo essa postura convulsivamente

corajosa. Todos os dias passavam sem descanso os casacos brancos pelas salas, batiam

levemente nos pacientes, anotavam tudo. Todos os dias e todas as horas vinham as

enfermeiras, traziam sua comida e medicamentos: isso enfraquecia a bailarina. Ela entrou

no jogo novamente; com um desdém apático, deixava que fizessem o que quisessem. Não

lhe dizia respeito, aquilo que acontecia. Jazia lá um ser infantil, que a deixava infeliz; por

que ela deveria lutar por ele, por que invejaria sua dignidade? Débil, ela repousava em sua

cama. O corpo continuava estendido, um pedaço de carcaça, embaixo dela; ela não se

preocupava com suas dores. Quando, à noite, ele a feria e atormentava, ela lhe dizia: “Fique

calmo até a hora da visita amanhã; fale para os médicos, para seus médicos, deixe-me em

paz”. Eles cuidavam de assuntos diversos; o corpo sabia como lidar com os médicos. “Isso

logo será registrado.” Com isso ela cortava da importunação a palavra.

Muitas vezes ela sentia uma compaixão risonha por essa criança estúpida e doente,

que jazia em sua cama. Ela comunicava com calma e cuidado o que o afligia. Com

indiferença e leve ironia, observava os médicos e constatava, irônica, o fracasso de seus

esforços. Uma ansiedade e hilaridade se apoderaram dela novamente; sentia uma alegria

sádica, selvagem e inquieta com os infortúnios dos médicos e o apodrecimento do corpo. Se

ela apertava, em um acesso de risos, sua boca contra o travesseiro, retomava seu antigo

ímpeto de escárnio e sua frieza.

Quando, ao meio-dia, soldados passaram pelo hospital com uma sonora marcha

militar, a bailarina se sentou de repente na cama, com olhos brilhantes, os lábios cerrados,

totalmente curvada sobre si mesma. Depois de um tempo, uma voz penetrante, ainda que

baixa, chamou a enfermeira à cama. A bailarina queria bordar e pediu seda e linho. Com um

lápis, lançou sobre o pano branco um desenho extraordinário. Havia três figuras: um torso

redondo e disforme sobre duas pernas, sem braços ou cabeça, nada além de uma esfera

gorda e bípede. Ao seu lado erguia-se um homem dócil e alto, com óculos enormes, que

tocava o corpo com um termômetro. Mas enquanto ele se ocupava atentamente do corpo,

do outro lado, uma pequena garota, que saltava de pés descalços, fazia-lhe um gesto de

escárnio com a mão esquerda e, com a direita, cravava uma tesoura pontuda, de cima para

baixo, no corpo, de forma que o corpo exauria-se, como um barril, em um jato espesso.

Com linhas vermelhas, a bailarina bordava grosseiramente o quadro e ria com

vontade, para si mesma, de quando em quando.

Ela queria novamente dançar, dançar.

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Como outrora – quando ela aspergia frieza sobre qualquer voluptuosidade da dança,

quando seu corpo rígido ondulava como uma chama –, ela queria sentir sua vontade

novamente. Ela queria uma valsa muito suave dançar com aquele que tinha se tornado seu

senhor, com o corpo. Com um gesto de sua vontade, ela conseguiu agarrá-lo mais uma vez

com as mãos, o corpo, o animal inerte, jogá-lo, rodopiá-lo, e ele não era mais o dono dela.

Um ódio triunfante a agitou desde seu íntimo; ele não mais ia para a direita e ela para a

esquerda, mas eles – eles saltavam juntos. Ela queria rolá-lo pelo chão, o barril, o

homenzinho claudicante, rodá-lo repentinamente, encher de areia sua boca.

Ela chamou, com uma voz que de repente ficara gutural, o doutor. Inclinada sobre si

mesma, ela fitou de baixo o rosto dele, viu como ele observava espantado o bordado, e lhe

disse em uma voz calma: “Você... seu idiota... seu idiota, seu frouxo.” E cravou, atirando de

lado o cobertor, a tesoura de costura no seio esquerdo. Um grito agudo se fixou em algum

lugar no canto da sala. Mesmo na morte a bailarina mantinha na boca a expressão fria e

desdenhosa.

**

(Tradução: Gabriela Siqueira Bitencourt

Texto-base: DÖBLIN, Alfred. „Die Tänzerin und der Leib“ (Março, 1910). Die Ermordung

einer Butterblume. Ausgewählte Erzählungen. 1910-1950. Olten und Freiburg im Breisgau:

Walter-Verlag, 1962, p. 17-21.)

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SINAL de MENOS ISSN 1984-8730

Edição:

Cláudio R. Duarte (São Paulo)

Daniel Cunha (Delft)

Felipe Drago (Porto Alegre)

Joelton Nascimento (Cuiabá)

Raphael F. Alvarenga (São Paulo)

Rodrigo Campos Castro (Berlim)

E-mail: [email protected]