"Sinto tudo e não tenho nada?" Por Helly C. Aguida

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Publicado na revista Mente e Cérebro, nº 276, janeiro 2016.A partir de duas vinhetas clínicas, a autora discute as características dos sintomas funcionais, da clínica desses pacientes e, em especial, o enigma com o qual se deparam os profissionais de saúde: “Como pode haver ausência diante da presença insistente e perturbadora de sintomas que desorientam, desorganizam e assolam o corpo?”

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    psicossomtica

    Sofro com intestino preso e com essas do-res h mais de 20 anos. como se tivesse algo se movimentando dentro de mim, querendo sair, mas no sai. Minha barriga

    fica estufada, cheia de gases... No aguento mais. Isso est acabando comigo, afeta toda a minha vida! Essas palavras, em tom de desabafo, so ditas por Maura, no desenrolar de sua primeira consulta comigo. Visivelmente desgastada, a advogada elegante, de 41 anos, confessa estar cansada de fazer exames, procurar inmeros espe-cialistas, seguir todas as prescries e continuar sofrendo e ouvindo as mesmas coisas: Voc no tem nada srio; A sndrome do intestino irritvel (SII) assim mesmo, de difcil tratamento; apenas uma disfuno, nada mais que isso. Por fim, ela me questiona: Terei que simplesmente aceitar e me conformar? Sinto tudo e no tenho nada? Como assim, doutora? .

    Sinto tudo e no tenho

    nada?o sofrimento fsico e mental marca o fenmeno

    psicossomtico, convocando profissionais da sade a considerar suas implicaes, o papel do paciente no processo

    de adoecimento e eventuais desdobramentos. a prpria clnica abre e amplia essa discusso

    por Helly Caram Aguida

    A AUTORAHELLY CARAM AGUIDA mdica, mestre em cirurgia geral pela Santa

    Casa de So Paulo, professora do curso de Psicossomtica

    Psicanaltica do Instituto Sedes Sapientiae, em So Paulo. pe

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    Casos como esse exemplificam os desa-fios cada vez mais frequentes com os quais deparamos na prtica clnica diria. Diante desses questionamentos, o que responder? Como abordar o dilema da ambivalncia do sentir tudo e no ter nada? Maura me fez pensar, especialmente nos possveis signifi-cados de palavras como apenas, nada, tudo.

    Ao afirmar que o paciente apresenta alteraes funcionais, o mdico se refere excluso de doena orgnica, aps extensa investigao diagnstica. Ao dizer apenas uma disfuno, nada srio, a referncia o campo biolgico. Entretanto, a excluso de leses dos rgos e sistemas orgnicos no deve implicar um reducionismo na concepo da desorganizao somtica na verdade, psi-cossomtica. Tampouco minimizar a comple-xidade da condio clnica de pacientes como Maura. Tais situaes demandam a reviso de conceitos e perspectivas de abordagem clnica e teraputica envolvidos no processo do adoecimento, com a incluso da subjetivi-dade, que ultrapassa as fronteiras do clssico modelo biomdico cartesiano (marcado pela dicotomia mente-corpo).

    Sabe-se que a maior parte dos quadros dis-funcionais no apresenta uma causa claramen-te definida. Mltiplos fatores esto envolvidos na fisiopatologia desses distrbios, inclusive aspectos psicossociais. Nesse sentido, o de-senvolvimento tecnolgico e das pesquisas em neurocincia permitiu avanos no campo da psiconeuroimunologia, com grande contri-buio compreenso das ntimas e recprocas associaes entre mente e corpo. As vertentes psicofisiolgicas, ainda que fundamentadas em evidncias biolgicas, abrem caminho para uma interlocuo entre profissionais da medici-na, psicologia, psicanlise. Muitas vezes, til e

    precioso informar o pacien-te a respeito da plasticidade do crebro, de suas cone-xes com rgos e sistemas do corpo, sobre os registros conscientes e inconscientes da memria, com o intuito de proporcionar relaes demonstrveis e, ento, aceitveis, entre crebro e organismo, mente e corpo,

    psiquismo e soma, dor fsica e psquica. No caso da sndrome do intestino ir-

    ritvel, de fato, no se observa alterao metablica ou estrutural da vscera. O papel do sistema nervoso central e autnomo preponderante na funo intestinal, atravs de importantes conexes que modulam as atividades motoras e sensoriais do intestino. Diante de alteraes nesses sistemas regula-dores, ocorrem as disfunes de motilidade, assim como aumento da percepo dos mo-vimentos peristlticos. Por isso, os principais sintomas so dor, desconforto, distenso abdominal, podendo haver constipao, diar-reia ou alternncia entre ambos, em variados nveis de intensidade e comprometimento da sade fsica e mental.

    Considerando a situao de Maura, ela acordava de madrugada por causa da dor, sentia algo se movimentando dentro do abdome, sem possibilidade de evacuao, de alvio. Em sua peregrinao pelos consul-trios mdicos, a dor, apenas de carter funcional, foi se tornando algo sem impor-tncia, sem remdio, sem soluo, associa-do ao nada. Como lidar com a sensao de nulidade, coisa nenhuma, quando se sente tudo? possvel encontrar alvio e consolo nessa condio, mesmo com a excluso de algo grave? Como pode haver ausncia dian-te da presena insistente e perturbadora de sintomas que desorientam, desorganizam e assolam o corpo?

    Outra paciente, Ldia, de 38 anos, de incio se identificava como um caso difcil e complicado de SII. Ela se mostrava apreen-siva e com muito medo do diagnstico. Pesquisou sobre o assunto e ficou apavo-rada diante da condio debilitante vivida por muitas pessoas com a sndrome. Ldia contou ter perdido o emprego por causa de sua dificuldade de concentrao no trabalho, j que tinha fortes clicas abdominais que precediam as idas frequentes ao banheiro. Seus sintomas no melhoravam com medi-camentos e restries dietticas. Sinto-me num beco sem sada, a caminho do caos. Eu sei que isso tudo tem a ver com meu emocional, sou muito nervosa, tudo que eu tenho por causa da minha ansiedade. E, por fim, disse: Sou a responsvel por estar

    Como pode haver ausncia diante da presena insistente e perturbadora de sintomas que desorientam, desorganizam e assolam o corpo?

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    assim, toda estragada!. Fiquei impactada e perguntei o porqu de uma afirmao to contundente. Ela disse que sempre ouviu de todos sua volta parentes, colegas, mdicos, psiclogos que isso psicolgico, emocional, psicossomtico; isso por causa do seu estresse, de sua ansiedade. Eu me pergunto: isso o qu? Ou o que isso? Percebo que saber disso no a ajudou a compreender o que isso significa.

    O caso de Ldia aponta o surgimento de outro sintoma: se sentir responsvel por estar toda estragada a opresso da culpa, que adoece ainda mais o corpo e a alma. Esse um aspecto que demanda ateno e cuidado. Ldia carregava um rtulo, o estigma de ser um caso difcil e complicado, uma pessoa problemtica, doente, mas sem doena alguma, ape-nas com distrbio funcional, nada alm disso. H mais angstia e sofrimento medida que as possibilidades de extirpa-o da causa e da to esperada cura se tornam cada vez menos tangveis.

    Na verdade, muitas pessoas sofrem com a cronicidade de suas dores, seus desarranjos e disfunes e vivem procura do porqu de seus transtornos. Quando o mdico se d conta do esgotamento de suas possibilidades teraputicas e da provvel in-fluncia de fatores psquicos, possvel que faa encaminhamentos para profissionais da sade mental. A questo como o prprio mdico concebe a necessidade e o papel do acompanhamento psicolgico.

    Como o foco buscar e tratar a causa, muitos encaminhamentos se resumem a indicaes para esse fim, sem que se com-preenda ao certo como a psicoterapia pode ajudar a combater a dor no corpo, que no do corpo. No raramente h a crena de que, se a ento procurada e misteriosa causa psicolgica, j no do fsico, da cabea; no somtico, psquico; no do corpo, da mente; no do mdico, do psiclogo! Permanece a dicotomia, a ciso, com a mesma sutileza que diferencia os con-tedos dos termos psico-soma e psicossoma. A presena do hfen traz apenas associao, enquanto sua ausncia, integrao. Sem

    dvida, no caminho da compreenso do fenmeno psicossomtico importa inicial-mente associar psique e soma, para que se possa ligar, integrar, constituir a unidade psicossomtica, representativa do que possa ser humano, ainda que disfuncional.

    Georg Groddeck, mdico contemporneo de Freud, profundamente interessado na teoria psicanaltica e em suas implicaes teraputicas tambm nas doenas orgnicas, j apontava de forma crtica os impasses do pensamento causalista, procura de causas internas ou externas. Aps uma diviso assim to ntida, nos jogamos com verda-deira fria sobre as causas externas, isto : os bacilos, os resfriamentos, o excesso de comida, de bebida, os acidentes de trabalho e sabe-se l mais o qu. E a causa interna foi sem

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    completamente esquecida! Por qu? Porque muito desagradvel olhar para dentro de si mesmo e apenas em si mesmo que en-contramos as poucas fagulhas que iluminam as trevas da causa interna...

    De fato, no fcil nem simples acessar causas internas. Apesar de todas as dificulda-des, esforos e do valor inerentes formao e capacitao do profissional mdico, se pre-para mais para conhecer, acessar, interpretar, tratar, extirpar o que est fora do que o que est dentro. Nesse contexto, perceptvel uma contradio no discurso de muitos pacientes: falam de seus rgos como algo que est dentro, mas de fora. comum ouvir meu intestino preguioso e indisciplinado; no me obedece; no sei o que fazer com ele!. Apesar de a referncia ser a um rgo interno, como se representasse um objeto externo, uma pea do organismo, que requer avaliao

    e conserto. E, quando o problema cons-tatado, a causa externa est assegurada. Talvez por essa razo, o encontro de uma doena orgnica, que legitima o sofrimento no corpo, pode parecer mais confortante do que sua excluso. A excluso simplifica por um lado e complica por outro; expe a sensao de vazio e insegurana quando a esperada primazia da causa externa descartada.

    Considerando esses aspectos, como podemos compreender a demanda e o contedo do apelo implcitos no desaba-fo de Maura ao dizer sinto tudo e no tenho nada?. Creio que o seu verdadeiro anseio por ajuda tinha uma relao muito estreita com essa frase, to enigmtica e desafiadora para um mdico. Trata-se de uma pergunta ou de uma afirmao? A excluso da causa externa reduz a nada o tudo que sentido no corpo? Entendo haver um clamor pelo sentido intensamen-te contraditrio de nada e tudo, pelo significado de tamanha desorganizao, de um existir (ou no existir) catico. Na verdade, algo circula por todo o seu corpo e o desorganiza: uma excitao sem desti-no, sem nome, sem reconhecimento, sem fim. Ser essa excitao o tudo irrepresen-tvel, oculto e inominado, que se expressa como nada no corpo?

    Pensar essas questes somente se tornou possvel com o reconhecimento da necessidade de ajuda por parte do que cuida para compreender e conceber a dimenso do que possa significar ser pessoa. E isso foi se revelando em meu percurso pessoal e profissional atravs do encontro com os contedos da psicossomtica psicanaltica, que mobilizam profundas reflexes.

    Na verdade, a obra freudiana propor-cionou as bases para o desenvolvimento da escola psicossomtica do sculo 20. O psicanalista Sndor Ferenczi desenvolveu conceitos importantes como patoneurose, neurose de rgo, apontou as relaes entre pensamento e descarga motora e ressaltou a importncia da dinmica psquica em toda e qualquer doena orgnica. Groddeck estava certo de que no existem doenas orgni-cas e doenas psquicas, pois corpo e alma cas

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    ao estudo das fases iniciais do desenvol-vimento, das funes materna e paterna, fundamentais para a ligao entre psique e soma, para a construo e constituio do self, o verdadeiro eu, que possibilita o reconhecimento de si mesmo. Os estudos evidenciaram a necessidade de equilbrio do par presena-ausncia da me na relao com seu beb, ou seja, excesso de presena e excesso de ausncia so profundamente de-sorganizadores, com impacto na organizao psicossomtica de todo indivduo.

    No incio deste texto, foi proposta uma reflexo em torno das palavras apenas, nada, tudo, presentes no discurso de Maura. Nes-te momento, acrescento lista a palavra excesso. Maura e Ldia sofriam de excessos. Excesso de presena no remete a tudo, e excesso de ausncia, a nada, ambos desor-ganizadores, com contedos difusos, sem possibilidade de nomeao e representao psquica? Seus distrbios funcionais so apenas disfunes? Do corpo, da mente, ou de ambos?

    Para Kreisler, na histeria, o corpo fala; na clnica psicossomtica, o corpo sofre..., exatamente porque no fala. necessrio que algum escute e possa compreender o no dito. Por isso, ao que cuida, mais do que in-formao, necessrio formao, para alm da aquisio de saberes especficos dos especia-listas, inclusive em psicossomtica. Chamo ateno para a possibilidade de um verdadeiro encontro, no mais de um profissional bem informado com um organismo fragmentado, ou partes dele, sem vida. Refiro-me ao precio-so e singular encontro de uma pessoa bem formada, constituda na qualidade de sujeito, com outro sujeito, muitas vezes aos pedaos e disfuncional, que carrega no prprio corpo as marcas de sua histria. Quem sabe, a partir de ento, seja possvel o caminhar em um percurso que possibilite a esse outro o encontro de si mesmo.

    Em 1923, Freud escreveu: A psicanlise nunca pretendeu ser uma panaceia ou pro-duzir milagres. Para alm de seus efeitos de cura, ela pode recompensar os mdicos atra-vs de uma compreenso insuspeitada sobre as relaes entre o psquico e o somtico. Certamente, recompensou.

    PARA SABER MAIS

    Psicossomtica e psican-lise: casos clnicos, cons-trues. Ana Maria Soares, Cristiana Rodrigues Rua, Rubens Marcelo Volich, Maria Elisa Pessoa Labaki (orgs.). Escuta, 2015.Corpo. Maria Helena Fer-nandes. Casa do Psiclo-go, 2011.Psicossomtica: de Hip-crates psicanlise. Ru-bens Marcelo Volich. Casa do Psiclogo, 2010.Psicossoma I: psicanlise e psicossomtica. Flvio Carvalho Ferraz, Rubens Marcelo Volich (orgs.). Casa do Psiclogo, 2005. Psicossoma II: psicos-somtica psicanaltica. Rubens Marcelo Volich, Flvio Carvalho Ferraz, Maria Auxiliadora de A. C. Arantes (orgs.). Casa do Psiclogo, 2007.

    adoecem simultaneamente. O neurologista Paul Schilder (1886-1849) afirmou: Utilizei o insight que nos dera a psicanlise com seus mecanismos psquicos para elucidar proble-mas da patologia do crebro. Segundo Wi-lhelm Reich (1897-1957), as relaes entre as esferas somtica e psquica so resultantes de um paralelismo psicofsico toda expe-rincia psquica apresenta uma ancoragem fisiolgica. Franz Alexander (1891-1964), psi-canalista hngaro, representante da escola de psicossomtica de Chicago, anunciava que toda doena psicossomtica, pois os fatores emocionais influenciam todos os processos fisiolgicos pelas vias nervosas e humorais. O consagrado psiquiatra infantil e psicanalista Ren Spitz postulava que o organismo opera fisiolgica e psicologica-mente como um sistema binrio.

    No mesmo possvel separar funciona-mento mental de funcionamento orgnico. Os estudos do francs Pierre Marty, morto em 1993, e colaboradores, fundadores da es-cola de psicossomtica de Paris, ampliaram os conceitos psicanalticos, com nfase na importncia de aspectos do funcionamento mental nos processos de somatizao. A manifestao de sintomas somticos e de doenas se associa aos movimentos de organizao e desorganizao psquicas, na dependncia da qualidade e quantidade dos recursos presentes e disponveis. Essas capacidades variam entre as pessoas, assim como em um mesmo indivduo, dependendo do momento de sua vida. Posteriormente, Michel Fain retoma e salienta a noo de trauma, em que uma sobrecarga de excita-o pode exceder os limites de resposta do psiquismo, do ego, e transbordar para o corpo. De fato, uma das principais funes do aparelho psquico possibilitar a assi-milao de traumatismos ao longo da vida, transformar as excitaes em representaes psquicas. Essas consideraes apontam para a importncia do infantil, das vivncias primitivas, do acontecer vivenciado no corpo: nico, singular.

    Neste momento no cabe aprofundar, mas ressaltar a importncia das pesquisas realizadas por autores como Spitz, Donald Winnicott, Leon Kreisler, que se dedicaram