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So Solo - Teatro Nacional São João So Solo final.pdf · de diferentes espaços urbanos e arquitectónicos; em Reviravolta (2009), investe na transfiguração da linguagem do folclore

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concepção e

dramaturgia

Robert Castle

Alejandra Orozco

Clara Andermatt

coaching

Alejandra Orozco

música

João Lucas

cenografia

João Calixto

desenho de luz

Rui Horta

figurinos

Aleksandar Protic

direcção técnica

Anatol Waschke

operação de som

Ângelo Lourenço

operação de luz

João Chicó

produção executiva

ACCCA – Alexandra

Sabino, Andreia

Carneiro

O espectáculo inclui

passagens de Talk to Me

Like the Rain and Let Me

Listen, de Tennessee

Williams (1953).

co ‑produção

ACCCA

Culturgest

TNSJ

estreia [11Dez2009]

Culturgest (Lisboa)

qui+sex 21:30

dur. aprox.

[1:10]

classif. etária

M/12 anos

Dia Mundial

da Dança

So SoloDiRe CçãO e iNTeRPR eTAçãO C LARA ANDe RMATT

Teatro Nacional São João

29+30 Abr2010

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Se a palavra “percurso” tem um significado ele encontra ‑se no modo como evoluiu a dança de Clara Andermatt. Vi ‑a dançar pela primeira vez na Companhia de Dança de Lisboa, então dirigida por Rui Horta (1984 ‑1988). Recordo, ainda, a primeira coreografia dela a que assisti. Estávamos em 1987 e foi na Mostra Portuguesa de Artes e Ideias. Nesses anos, os pioneiros da “nova dança portuguesa” iniciavam ‑se na criação independente.

Mas será a partir de En­‑Fim (Madrid, 1989) que se prenuncia a identidade da intérprete e da coreógrafa. Do período posterior, retenho uma série de impressões: coreografias onde uma fisicalidade vibrante e extratensiva desafia presenças vocais e musicais intensas; imagens audazes alimentam um instintivo, por vezes desconcertante, sentido do espectáculo. Corpos convulsivos onde o desejo e a sexualidade, o dramático e o risível se cruzam em alegorias da tragicomédia existencial; representações de uma certa portugalidade e do imaginário católico. E havia, sobretudo, um óbvio – quase ostensivo – prazer de representar o corpo em movimento. Nos temas e modos de operar, a linguagem de Andermatt contrastava com os circunspectos corpos da “nova dança portuguesa” de então.

Os anos 90 marcariam uma inflexão. A sua dança torna ‑se mais despojada, e a energia de alta voltagem ganha espessura e interioridade. Andermatt direcciona ‑se para o confronto com a diferença (individual, cultural), da qual se esquiva a limar arestas; a coreografia expande ‑se a novos contextos e a outros corpos. Esta etapa evidencia ‑se entre Dançar­Cabo­Verde (1994) e Dan­Dau (1999). Das residências no Mindelo e da colaboração com intérpretes e músicos de Cabo Verde germinaria uma linguagem de síntese, que auspiciava o desbravar de um novo ciclo na conjuntura artística do Portugal pós ‑colonial, onde a nova dança parecia reverberar os processos

socio culturais subsequentes ao 25 de Abril. Este “ciclo cabo ‑verdiano” constitui, ainda hoje, um caso singular na dança contemporânea portuguesa.

A partir dos anos 2000, defronta com desassombro a diversidade física, etária ou as competências performáticas dos intérpretes: em O­Grito­do­Peixe (2005), cria uma peça com jovens estudantes de Olhão; em Levanta­os­Braços­como­Antenas­para­o­Céu (2005), trabalha com um grupo de intérpretes com e sem deficiência (Grupo Dançando com a Diferença); em Natural (2005), aborda o tópico do envelhecimento, com a Company of Elders do Sadler’s Wells; em Meu­Céu (2008), desenvolve um ritual comunitário que se apropria de diferentes espaços urbanos e arquitectónicos; em Reviravolta (2009), investe na transfiguração da linguagem do folclore nacional, com o Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (campo criativo, aliás, praticamente intocado na nossa dança contemporânea). Trazer para cena corpos habitualmente remetidos à invisibilidade ou subtraídos ao escrutínio do olhar alheio, os corpos não treinados e imperfeitos das pessoas comuns incita, nestas peças, à reflexão em torno dos cânones da criação e dos padrões estéticos. E retoma um tópico de novo pertinente nos dias de hoje: a função social da arte.

Outras incursões houve. Poderíamos acrescentá ‑las a esta breve tentativa de inventário. É nessa contínua necessidade de enveredar por novos territórios, de se reinventar como intérprete, que inscrevo esta sua primeira investida – ao fim de mais de 20 anos de carreira – num difícil género performativo: o solo.

A dança a solo proliferou na cena da dança teatral euro ‑americana a partir do início do século XX, e afirmou ‑se como espaço privilegiado de representação da relação do sujeito com o mundo. Uma busca de “verdade” sem intermediações reflecte também a atomização do indivíduo nas sociedades contemporâneas. Andermatt procura justamente neste ponto de intersecção, onde o auto ‑exploratório se prolonga, revê ou pode conectar ao colectivo, o lugar onde ancorar esta nova peça, a zona de transição do espaço privado para o espaço público.

So­Solo. Um título de onde brotam múltiplas leituras: “tão só”, “então só”, “tão (a) solo”; um solo no seu superlativo; conjugar solidão na primeira pessoa do plural.

Estes e outros pensamentos animaram a conversa que tivemos a poucos dias da estreia. LR

“Uma arena de observação das solidões do mundo”

Entrevista com Clara AndermattPor Luísa Roubaud*

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Luísa Roubaud Sempre foste intérprete e coreógrafa da tua dança, mas, nos últimos 10 anos, tens apostado mais na tua vertente de coreógrafa. Porque surge agora a vontade de criar um solo para ti própria?Clara Andermatt As minhas coreografias sempre se desenvolveram na relação entre a energia do meu corpo e a dos corpos dos meus intérpretes, mesmo quando eu não estou em cena. Interagir com pessoas é algo que tem a ver com a minha natureza. Mas como nos últimos anos tenho dançado menos nas minhas peças, sentia uma profunda necessidade de explorar outras dimensões performativas, de investir de novo na minha vertente de intérprete. O convite da Culturgest foi essa oportunidade…

Como foi esse processo de criação solitário?Estar sozinha em estúdio, organizar a minha própria dramaturgia envolveu processos muito diferentes dos de outras criações. Há um confronto mais vincado com a nossa subjectividade e isso espoleta introspecção, viagens interiores. Mas sucedeu uma coisa curiosa. Estes meses de pesquisa e ensaios foram tudo menos solitários. Estive

sempre num diálogo tão estreito com todos os meus colaboradores que ocasiões houve em que precisei imperiosamente de algum tempo para trabalhar sozinha as cenas, experimentar soluções…

Calculo que esse diálogo com os colaboradores, a perspectiva do olhar externo, tenha sido parte fundamental na criação deste solo…A colaboração do Robert [Castle] foi fundamental no modo como parti para esta aventura. Tinha frequentado, há cerca de um ano, um workshop de interpretação com ele e essa experiência extraordinária relaciona ‑se com o convite para este projecto. Como ele viaja muito por causa das solicitações que tem, trabalhámos intensamente durante os períodos em que esteve em Lisboa. Mas foi a Alejandra Orozco, a encenadora e actriz que é também a sua mulher, com quem fundou a IT New York,1 que me acompanhou diariamente ao longo destes meses. Ocupou ‑se de tudo: anotações e feed­‑backs constantes em relação a detalhes de interpretação e construção das cenas, filmar ensaios, etc. É o tipo de apoio essencial quando se está em processo de criação… Nunca

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lhe estarei suficientemente grata. Depois, eles são perfeitamente complementares na visão que têm da composição dramatúrgica. De certa forma, representam a perspectiva feminina e masculina da coisa, e isso foi ‑me muito útil… [Risos.]

Além do Robert e da Alejandra, na equipa constam nomes há muito associados ao teu trabalho. Como foi gerir tantas variáveis e múltiplos pontos de vista?Tenho uma relação de enorme cumplicidade pessoal, humana e artística com o João [Lucas], o Rui [Horta], o João [Calixto] e o Aleksandar [Protic], e uma total confiança na competência técnica do Anatol [Waschke] e do Ângelo [Lourenço]. Eles têm as suas próprias ideias e um percurso artístico mais do que firmado, mas são pessoas capazes de se ouvir entre si. Sabem arriscar, mas também transformar ou mudar de ideias. Quando se está em criação, as escolhas a fazer acarretam imensas incógnitas, e esta sinergia funcionou entre o desafio constante e um agradável conforto. Houve uma generosidade espantosa de todos no acolhimento do Robert e da Alejandra nesta “família de longa data”.

Mas o próprio Robert, que tem a sua perspectiva própria sobre o “método” [de Lee Strasberg], é também maleável e disponível para se adaptar ao intérprete, a outras propostas, enfim, a cada contexto de trabalho. Foi tão especial ver isto tudo acontecer, tão importante para mim, que me sentiria pessimamente se estas frases soassem àquele lugar‑‑comum (que é verdadeiro) em que se diz que “a equipa foi fantástica” ou “não estaria aqui sem eles”. [Risos.]

Por falar em lugares ‑comuns. Tornou ‑se um cliché dizer que toda a arte é autobiográfica. Mas um solo, mais do que qualquer outro género performativo, pode suscitar esse tipo de expectativa, ainda que subliminar. Como se cruza a tua história com a(s) da(s) personagem(s) que interpretas?Estou longe de pretender fazer uma catarse em cena. As personagens que represento terão um bocado de mim, mas não sou eu. O próprio método de trabalho com o Robert suscita a auto ‑exploração, (re)encontrar a nossa memória sensorial; ir ao fundo e voltar à superfície. Nesse movimento

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podem ‑se contactar verdades tão essenciais que, se bem trabalhadas, poderão tocar a cada um, individualmente, e nesse ponto criar uma zona de partilha. Mas é evidente que um solo nesta fase da carreira implica algo de balanço de vida…

E recorres a algumas auto citações…Quem conhecer o meu trabalho encontrará uma alusão clara ao Cio­Azul [1993]. Ao fim de mais de 20 anos a dançar e coreografar, é inevitável aparecerem referências à própria biografia artística, seja de forma deliberada ou inconsciente. E talvez seja uma piscadela de olho, uma private­joke para aqueles que têm acompanhado esta jornada…

Mas voltemos à relação entre solo e biografia…Optei por um solo porque achei que seria um meio apropriado para tratar o tema da solidão. Quis construir esta peça como uma arena de observação das solidões do mundo. Sejam elas do foro do quotidiano, do existencial, do espiritual – ou mesmo do sensorial –, constituem, afinal, uma experiência comum, colectiva. Por isso, a peça é atravessada por imagens e estados de espírito onde perpassam o medo, a revolta, a alegria, a esperança, o desalento, o risível, a luta… No limite, a questão da escolha, da sobrevivência, da possibilidade de transformação, a morte e os renascimentos, os ciclos da vida; deixar de amar, amar e ficar, amar e ir embora… são experiências inexoravelmente individuais, solitárias, mas que são vividas por todos nós em determinados momentos do caminho…

Nesta peça percorres um conjunto de modos de enunciação (a “dança” aparece como um elemento entre outros) que a aproximam, diria, da performance ou do teatro físico. Continuas a considerar este um trabalho coreográfico?Do meu ponto de vista, continuo a fazer dança. Se vires bem, os procedimentos estruturantes da peça são os da composição coreográfica. O que faço, essencialmente, é buscar modalidades expressivas do corpo no espaço e no tempo, e através disso produzir sentidos… e isto é, no limite, julgo, a essência da dança. Os textos, as falas, ou as vocalizações, por exemplo, estão lá, mas submetem ‑se a uma organização dramatúrgica que tem a ver com a gestão de fluxos de energia. E esse modo de operar, talvez mais sensorial, é, antes de mais, coreográfico. Olha: será porventura este um

dos pontos em que me identifico com o método do Robert. Mas é verdade que o interesse nas técnicas teatrais sempre me acompanhou, e é provável que as minhas peças transmitam isso. Do teatro guardo a importância que dou aos aspectos dramáticos. Mas o corpo é um denominador comum ao teatro e à dança; há muitos processos de um território que se podem enxertar no outro. Mas, afinal, o que me importa, enquanto criadora, é partilhar uma mensagem. As classificações de género são menos importantes.

Do que dizes, posso depreender que te distancias de uma certa dança pós ‑moderna que advoga o aleatório em detrimento da intencionalidade… Por paradoxal que pareça, aqui só recorro ao acaso se ele servir uma intenção, não conceptual, mas dramática. De qualquer modo, se nesta peça se evidenciam modos de operar que fazem parte do trabalho de actor, da construção de personagens, isso são, como disse antes, meios e não fins. Esta peça é uma espiral de acções e transformações de onde tento erradicar ao máximo o aleatório e encontrar sempre um motivo para as coisas acontecerem.

Mas, ainda assim, sinto que primeiro as vocalizações, depois as falas e finalmente o texto vão ganhando volume e espessura ao longo da peça. E, num outro momento, referiste textos (Bernard Shaw, Lorca e Tennessee Williams, entre outros) como pontos de partida para este trabalho. Como “coreografas” palavra e texto?Numa fase inicial da pesquisa, usei alguns desses textos como motor de busca para espoletar estados de alma, desencadear diferentes disposições físicas e mentais. Depois, ao longo do processo de trabalho, foram ‑se desconstruindo e submetendo, lá está, a uma lógica coreográfica. Posso dar ‑te um exemplo: em certo momento, “servi ‑me” da figura da Joana d’Arc (inspirei ‑me no texto homónimo de Bernard Shaw). Mas não existe na peça qualquer referência directa a essa figura. Desvaneceu ‑se. Ficou o que ela representa, enquanto símbolo ou atitude. O trecho que utilizo, de modo talvez mais literal, retirei ‑o de Tennessee Williams. Mas, sublinho de novo, não quero ilustrar os textos; quero sim usá ‑los como mais um instrumento de trabalho. Há ainda outras falas, expressões verbais ou vocais, que surgiram da improvisação.

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Esta peça é bilingue. Que critérios seguiste para te exprimires em português ou em inglês?Há algo de íntimo e emocional no português, que deriva de ser a minha língua materna. Em certos momentos da peça preciso de uma verdade que só consigo no meu idioma. Por outro lado, o inglês é mais “global”, comporta outro tipo de imaginário, distintos universos referenciais, e isso é ‑me muito proveitoso em certas ocasiões. Mas há falas que posso dizer indiferentemente em ambas. Como uso excertos de textos originais em inglês, a expressão das personagens nessa língua torna ‑se mais natural. Contudo, pelo que disse no início, por exemplo no caso de Talk­to­Me­Like­the­Rain…, preferi a tradução… Outro factor foi o de, ao longo destes meses de intensa convivência e proximidade com a Alejandra e o Robert, o inglês ter sido a “língua franca”, adquirindo, no contexto desta criação, uma espécie de familiaridade…

Há pouco sublinhaste que erradicas o aleatório do processo de construção da peça. No entanto, ele parece presente em certas acções. Isso leva ‑me a perguntar ‑te sobre o que motiva os objectos e materiais que ocupam a cena.Essa diversidade de objectos e materiais prende ‑se com vários aspectos. Permite organizar o espaço de acção (por ampliação ou retracção), e qualificá ‑lo. Metal, areia, madeira, borracha ou acrílico; transparência ou opacidade; formas redondas ou lineares; mobilidade ou estabilidade; dimensões maiores ou menores. Tudo isso está lá para introduzir novos dados, diferentes percepções, sensações ou energias. Para criar complementaridades e contrapontos. Os objectos podem ainda funcionar como interlocutores; desmoronar ‑se e reerguer ‑se… No que toca à atribuição de sentidos, a areia pode remeter para praia ou deserto; as bolas podem ser células, pessoas, planetas, ou simplesmente objectos… O seu movimento imprevisível pode remeter para a ideia de azar ou sorte, de acaso, de continuidade, de jogo; o bowling ou o snooker; enfim, a vida… Mas, bem…, não quero de todo fechar leituras. As projecções são pessoais e imponderáveis…

As tuas peças têm um ponto de partida muito físico e, como temos visto, uma forte marca teatral. Tens a noção de que, sobretudo num solo, a atenção recai inexoravelmente sobre

o desempenho do intérprete. Qual é a tua perspectiva sobre a questão do treino do intérprete contemporâneo?Continuo a considerar fundamentais as rotinas quotidianas do treino convencional nesta profissão, independentemente do grau de exigência física de cada peça. A disponibilidade do corpo do intérprete dá ‑lhe liberdade de escolha. Ainda que, na dança e performance actuais, ser versátil e dominar diferentes linguagens tenha ocupado o espaço de um virtuosismo puramente físico. Por isso, é importante associar às rotinas do treino outro tipo de técnicas ou experiências, que ajudem a expandir o vocabulário. No meu caso, a actividade física faz parte de mim, preciso dela para me sentir “eu”, saudável. Procuro fazer uma aula diária de ballet e de contemporâneo, mas também pratico ioga e pilates; faço cursos e frequento workshops em técnicas de dança/movimento, ou de voz, de teatro… quando posso. É muito complicado conciliar estas rotinas com o facto de estar sempre a viajar… De qualquer modo, o corpo muda, evoluímos profissionalmente, e não poderia nem me interessaria ir para cena fazer o mesmo que há 20 anos atrás… Mas, em Portugal, deparo ‑me com outro problema. Ao contrário de outras grandes cidades da Europa ou EUA, não há grande oferta de aulas estimulantes para quem está nesta etapa da carreira. Estar em forma e em permanente reinvenção exige constante incitação e uma grande autodisciplina; tenho de me dispor, muitas vezes, a sessões de treino e de pesquisa, sozinha, em casa ou no estúdio…

Foram recorrentes, ao longo da nossa conversa, as referências ao universo do teatro. É evidente o teu gosto pela construção dramática e criação de personagens. Arrisco dizer que existe em ti uma actriz em potência. Poderemos ver ‑te um dia a fazer “teatro clássico”?E porque não?

* “Clara Andermatt, Aquém e Além de So­Solo”. In So­Solo:­[Programa].

Lisboa: Culturgest, 2009. p. 5 ‑10.

1 A International Theatre New York é uma escola experimental de

interpretação, criada em 1995 por Robert Castle e Alejandra Orozco.

Desenvolvem um método de formação de actores inspirado nas teorias

de Stanislavski e de Lee Strasberg, a cuja exploração da “memória

emocional” acrescentam a “memória sensorial”. O intérprete constrói

uma memória para a personagem, uma biografia ou história, paralela

à sua. O objectivo é, através de técnicas específicas, e com recurso à

imaginação, a representação do actor adquirir verdade e organicidade.

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Em tempos vi Nureyev dançar o Don Juan. Embora naquela noite houvesse outros grandes bailarinos no palco, Nureyev destacava ‑se, não se conseguia tirar os olhos dele. A diferença era que aquele homem era um actor, e com isso quero dizer que ele viveu o seu papel, momento a momento, interiormente, bem como expressivamente. Ele era mais interessante, mais humano, mais comovente do que os outros, apesar de todos eles terem uma técnica extraordinária. Comecei a ver o mesmo fenómeno com Judith Jamison e outros bailarinos que trabalharam com Alvin Ailey. E foi assim que para mim se tornou interessante trabalhar com bailarinos e especialistas em teatro físico, aplicando princípios de interpretação orgânica derivados de Stanislavski e Strasberg, para insuflar vida interior mesmo no desempenho mais abstracto.Trabalhar com Clara Andermatt e com os seus colaboradores tem sido ideal, a este nível. Ela é uma actriz de profundidade e ousadia, o que confere à sua coreografia e performance a dimensão acrescida de uma forma muito pessoal, independentemente do seu grau de abstracção. •

Robert CastleNovembro­de­2009

O processo parte de um ponto central, a essência da personagem, o princípio onde tudo é novo e ainda por descobrir; um ser atirado para uma viagem. Ela encontra ‑se numa espiral de tempo fragmentado, à procura, num contínuo processo de crescimento e transformação. Através de obstáculos, confrontações, forças antagónicas de resistência e prazer, conflito e rendição, ela inicia um diálogo interior em busca de temperança e equilíbrio. E descobre a possibilidade de transformar a sua realidade, já que nunca está completa, à medida que evolui para o ciclo seguinte. •

Alejandra OrozcoNovembro­de­2009

O bailarino como actor

A espiral

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So Solo, ou a crise de afectividade de um corpo de afectos

João Garcia Miguel

A tensão criada entre os crescentes factores de racionalidade da organização social – a que não são alheios o desenvolvimento do individualismo do séc. XIX e os factores de individuação subjectiva – conduz em simultâneo ao recrudescer de “eventos” emocionais e de respostas técnicas e científicas de tendências pragmatistas e globalizantes. Esta tensão tem por base vários fenómenos, entre os quais se pode sublinhar uma crise­de­afectividade – que tem, por sua vez, como fundo a tomada crescente de consciência do homem perante si mesmo, e perante os outros com os quais constrói a sociedade onde vive, e a transformação do meio em que está inserido através do conhecimento científico e do consequente desenvolvimento tecnológico. A necessidade de percorrer caminhos afectivos – sejam eles interiores e do domínio dos sentimentos, na busca de um equilíbrio e descoberta emocional individual; sejam do domínio das relações sociais que se complexificam quotidianamente; sejam ainda do domínio da necessidade de sobreviver tecnicamente e percepcionar de modo objectivo o mundo natural – decorre daquele conjunto de causas que provoca primariamente essa crise­de­afectividade.

Num texto intitulado Anarquismo, Fernando Pessoa coloca estas mesmas questões, de modo poético é certo, mas suficientemente assertivo. A compreensão de que fazemos parte de uma corrente de acontecimentos – nos quais participamos e dos quais somos consequência, que nos projectam no futuro, ligando ‑nos ao mesmo tempo ao passado – constitui ‑se numa tomada de consciência alargada que possui o duplo efeito de moralização individual e criação exacerbada de uma angústia existencial

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que dá substância à referida crise­de­afectividade. Transcrevemos uma parte desse texto, para melhor compreender os contornos do que dizemos:

A Noite e o Caos são parte de mim. Dato de antes da Realidade. Pertenço ao silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tamanho do Universo e que o excede, talvez. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas aves, nos campos e nas cidades, nos actos, nas palavras e nos pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram. Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto, mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.1

Ao viver no paradoxo contemporâneo de estender a sua intuição a tudo o que não compreende, de querer e efectivamente julgar poder ser tudo, de estar em todos os acontecimentos e em todo o lado, e simultaneamente compreender que a uma maior definição e crescimento do ser e das suas capacidades corresponde uma perda dos limites e das experiências anteriores, o Homem lança ‑se num vazio existencial sem precedentes. Este espaço vazio imenso – “o que não falta por aí é vazio”, diz Estragon em À­Espera­de­Godot – transporta o homem para e por dentro do caos que nele existe, conduzindo ‑o para o centro da nuvem, para o centro da crise, fazendo dele mesmo o espaço da crise, tornado agora o seu próprio epicentro. A consciência disso é por fim: o ser igual a nada e o ser igual a Deus. Compreender ‑se enquanto homem e enquanto criador de universos, com toda a angústia que daí advém pela responsabilidade de ser autónomo e solitário em aberto conflito criativo consigo mesmo, procurando em cada instante da vida conjugar o real objectivo com a subjectiva interioridade. O mundo transforma ‑se, assim, a cada instante, numa representação conscientemente mais elaborada e constantemente recriada. Esta crise­de­afectividade é também uma crise da corporalidade e da percepção que se tem dela. “To be a body, is to be tied to a certain world… Our body is not primarily in space: it is of it.” (Merleau ‑Ponty) O corpo é do espaço em si mesmo, no qual se desenrolam os fenómenos caracterizadores desta crise.

É desta qualidade do­corpo­ser­do­espaço, de ser do espaço em que estão os performers e a audiência – de ser do espaço comum da crise – e de todos os outros espaços que nela participam; de convergir na mesma existência temporal com eles, quer sejam as personagens visíveis do drama ou de outros corpos ‑espaços convocados, que convivem contemporaneamente numa permanente crise­afectiva, que é feito o espectáculo de Clara Andermatt. O que nos é dado a assistir é uma corporalidade que se faz teatro ‑filme de um corpo em constante transformação. Vemos a bailarina, a performer, a vizinha, o gato, o objecto, a criança que foi, a amante que sofre, a janela pela qual se espreita, a amante que decide afastar ‑se e sofrer para poder continuar a viver e a amar; vemos o candeeiro que se apaga e que nos atira para o escuro que é, afinal, o espaço onde tudo o que víamos e ao qual nos agarrávamos desaparece; vemos o grito que lançamos para saber que ainda estamos ali, vivos; vemos as memórias do passado misturadas com as histórias do futuro, e tudo aquilo nos toca e nos dói, porque somos assim mesmo e diferentes. Vemos um corpo de afectos em crise de afectividade. Este entrançado de crises é tanto do real em que se vive como da relação que se tem com ele. É tanto uma crise das mediações tecnológicas e das visões do mundo que lhe estão associadas, como é uma crise do corpo enquanto organismo vivo e da sua biologia­emocional; como é uma crise da sua inscrição no tempo e no espaço em que se vive. •

Torres Vedras, Abril de 2010

1 Citado por Richard Zenith. In Fernando Pessoa – Prosa­Íntima­e­de­

Autoconhecimento. Ed. Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.

p. 451 ‑452.

2 Citado por Simon Shepherd. In Simon Shepherd – Theatre,­Body­and­

Pleasure. London: Routledge, 2006. p. 7.

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Sozinha em palco, Clara Andermatt dá corpo a uma nova peça que, apesar de manter traços autorais antes desenvolvidos e reconhecidos, assinala na sua longa carreira um momento muito particular. É uma obra com valor autobiográfico, onde se misturam questões da pessoa e da arte contemporânea, que reflecte sobre um trajecto individual e o seu impacto no mundo a que pertence. Mas tem igualmente um poder essencial de divergência que possibilita, no encontro com o olhar e interpretação do espectador, o transporte destas questões para outras vidas, indo bem mais além da fonte originária e remetendo para debates da actualidade.

Um exemplo interessante é o comentário feminista que emana na sequência de vermos uma guerreira aos gritos ser tentada a renunciar à sua

força e a valorizar ‑se como objecto sexual – proposta redutora feita por uma voz masculina atraente que vem do alto e à qual ela responde com desdém, optando por continuar obstinada e solitária.

So­Solo é uma construção muito complexa onde converge um colectivo requintado de criadores (para a luz, som, figurinos, cenários, coreografia e encenação) e é formado um discurso que se transmite com intencionalidade e clareza, assinalando uma conjugação de domínios artísticos e modos de operar bem sucedidos e muito produtivos.

A complementaridade é óbvia de diferentes maneiras: o som de mascar dentro da boca é amplificado e sugere a escuridão da floresta; a cena, intimista e rodeada de cortinas pretas, transforma ‑se numa sala monárquica luxuosa pela ligação súbita de potentes luzes vermelhas; uma bola pode ser um poleiro, uma pessoa ou uma seringa, dependendo da acção, que atribui significados temporários aos objectos, em função de objectivos dramatúrgicos.

Não obstante uma atmosfera de mistério e ambiguidade, que requer associações constantes para se gerar sentido, a mensagem evidencia ‑se

Sete solidões capitaisPaula Varanda*

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ao longo do espectáculo: a solidão é uma questão significativa da existência humana, tem um poder imenso de clausura e pode ser tão imposta pelos outros como criada pelo indivíduo.

Andermatt fala ‑nos disto interpretando diferentes personalidades, com referências ligadas à história, à psicologia ou à sociologia, que parecem rever o problema em várias perspectivas: está ‑se só porque se é desconfiado, ou perfeccionista, ou paranóico, ou irreverente, ou destemido, ou autodestrutivo, ou marginal.

A coreógrafa tem o papel fundamental de acolher no seu corpo e expressar com uma disponibilidade notável – como actriz e como bailarina – uma vastidão de registos, emoções, eventos e ideias subjacentes. So­Solo termina com uma dança tocante e inteligente, onde surgem coreograficamente organizados num trecho único os movimentos antes dissolvidos em quadros distintos da peça, o que afirma uma possibilidade refrescante de evasão e continuidade. •

* In Público:­P2. (15 Dez. 2009). p. 8.

Clara Andermatt

Considerada uma das pioneiras do movimento da Nova Dança Portuguesa, a carreira de Clara Andermatt revelou, ao longo dos anos, uma identidade artística singular no panorama artístico nacional e internacional, e um percurso que imprimiu a sua marca na história da dança contemporânea portuguesa e lhe trouxe o devido reconhecimento público.Iniciou os seus estudos de dança com Luna Andermatt. Diplomada pelo London Studio Centre e pela Royal Academy of Dancing (Londres, 1980 ‑84), foi bailarina da Companhia de Dança de Lisboa, sob a orientação de Rui Horta (1984 ‑88), e da Companhia Metros de Ramon Oller (Barcelona, 1989 ‑91).Em 1991, cria a sua própria companhia, coreografando um vasto número de obras regularmente apresentadas em Portugal e no estrangeiro. Em 1994, inicia a sua colaboração com Cabo Verde, organizando várias acções de formação e realizando diversos espectáculos com bailarinos e músicos daquele país; uma cooperação que se prolongou no tempo, para além dos vários projectos então realizados (1994 ‑2000).É regularmente convidada a criar para outras companhias, a leccionar em diversas escolas e a participar como coreógrafa em peças de teatro e cinema. O seu percurso revela uma predilecção pelo contacto com outras áreas, especialmente pelas zonas de fronteira entre géneros e estilos, entre o corpo treinado e o não treinado, pelo desejo de aproximação ao outro.Ao longo da sua carreira, tem sido distinguida com diversos prémios, dos quais destaca os seguintes: Bolsa Bridget Espinosa (Londres, 1982 ‑83); The Best Student Award do London Studio Centre e o 2.º Prémio de Coreografia do London Studio Centre por Cake­Walk (Londres, 1983); o 1.º Prémio do III Certamen Coreográfico de Madrid por En­‑Fim (1989); a Menção Honrosa do Prémio ACARTE/Madalena Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian pela coreografia Mel (1992); o Prémio ACARTE/Madalena Azeredo Perdigão por Dançar­Cabo­Verde, obra realizada em conjunto com Paulo Ribeiro (1994); o Prémio Almada, atribuído pelo Ministério da Cultura, por Uma­História­da­Dúvida, coreografia eleita Espectáculo de Honra do Festival Internacional de Almada (1999). Em 2009, com o espectáculo VOID, é nomeada para os Prémios Autores 2010 da SPA/RTP, na categoria de Melhor Coreografia. •

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F i CHA TéCNiCA TNSJ

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A Associação Cultural Companhia Clara

Andermatt é uma estrutura financiada

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Não é permitido filmar, gravar ou fotografar

durante o espectáculo. O uso de telemóveis,

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