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Imprensa e golpe militar no Brasil: a campanha dos jornais da Rede da Democracia contra o governo Goulart (1961-64) O golpe de Estado que ocorreu em 1964 apresenta uma característica marcante: tomou a forma de uma operação militar comandada por oficiais de alta patente das Forças Armadas que assumiram o governo após a queda de Goulart. É verdade que a execução do golpe foi essencialmente militar, em que pese as motivações políticas. 1 Todavia, o movimento para a articulação das forças que intervieram no Estado se realizou sob os efeitos da ação interpretativa de diversas publicações jornalísticas. Importantes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo cerraram fileiras com o movimento civil e militar que depôs o presidente João Goulart. Um lado menos conhecido dessa articulação se deu em torno da Rede da Democracia, idealizada João Calmon, deputado do PSD e vice-presidente dos Diários Associados. Criada no Rio de Janeiro em outubro de 1963, a Rede da Democracia era um programa radiofônico comandado pelas rádios cariocas Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e, sobretudo, O Jornal. A Rede da Democracia simboliza no campo da imprensa a busca de novas formas de atuação, em face dos desafios colocados pela crise política que envolveu o governo Goulart. Seu surgimento é uma forte evidência de que os representantes da imprensa liberal se colocaram como atores políticos no governo Goulart. Criada logo após o presidente solicitar ao Congresso o Estado de Sítio e denunciar que estava em andamento uma conspiração golpista, esse amplo sistema de comunicação nacional deu voz aos representantes políticos, militares, empresários, jornalistas, professores, intelectuais, sindicalistas e estudantes, possibilitando a articulação no campo discursivo dessas emissoras e jornais do Rio de Janeiro com partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente com a UDN, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que financiava as campanhas eleitorais dos candidatos anticomunistas. A rede era uma versão conservadora da Voz da Legalidade, criada por Brizola em 1961, cujas emissoras haviam mobilizado a opinião pública pela posse de Goulart na crise de 61 após a renúncia de Jânio Quadros e, em seguida, passaram a pregar a antecipação do plebiscito com a volta do presidencialismo. Programa radiofônico que criticava as concepções nacionalistas e reformistas, bem como as decisões do governo Goulart, a Rede da Democracia reagiu às forças que incentivavam a maior participação popular na vida política e, sobretudo, amadureceu mudanças que deveriam ser efetivadas na natureza do regime democrático. Com base no diagnóstico de que estava em andamento a subversão das estruturas da sociedade brasileira, os representantes da imprensa carioca construíram propósitos comuns com relação aos temas políticos que precederam o golpe de 1964. A criação da Rede da Democracia significou, portanto, uma aproximação entre as linhas editoriais de O Jornal, O Globo e Jornal do Brasil, voltados para a articulação de uma comunicação oposicionista que conferia funções políticas à imprensa, num ambiente em que os militares estavam sendo chamados a intervir no Estado. Os 1 Soares entende que o golpe foi uma conspiração dos militares com apoio dos grupos econômicos brasileiros. Ver SOARES, Gláucio Ary Dillon. “Golpe de 64”. In SOARES, Gláucio Ary Dillon e D’ARAUJO, Maria Celina. 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro. FGV, 1994.

Soares entende que o golpe foi uma conspiração dos ...paperroom.ipsa.org/papers/paper_1005.pdf · Seu surgimento é uma forte evidência de que os representantes da ... comunismo,

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Imprensa e golpe militar no Brasil: a campanha dos jornais da Rede da Democracia contra o governo Goulart (1961-64)

O golpe de Estado que ocorreu em 1964 apresenta uma característica

marcante: tomou a forma de uma operação militar comandada por oficiais de alta patente das Forças Armadas que assumiram o governo após a queda de Goulart. É verdade que a execução do golpe foi essencialmente militar, em que pese as motivações políticas.1 Todavia, o movimento para a articulação das forças que intervieram no Estado se realizou sob os efeitos da ação interpretativa de diversas publicações jornalísticas. Importantes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo cerraram fileiras com o movimento civil e militar que depôs o presidente João Goulart. Um lado menos conhecido dessa articulação se deu em torno da Rede da Democracia, idealizada João Calmon, deputado do PSD e vice-presidente dos Diários Associados. Criada no Rio de Janeiro em outubro de 1963, a Rede da Democracia era um programa radiofônico comandado pelas rádios cariocas Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e, sobretudo, O Jornal.

A Rede da Democracia simboliza no campo da imprensa a busca de novas

formas de atuação, em face dos desafios colocados pela crise política que envolveu o governo Goulart. Seu surgimento é uma forte evidência de que os representantes da imprensa liberal se colocaram como atores políticos no governo Goulart. Criada logo após o presidente solicitar ao Congresso o Estado de Sítio e denunciar que estava em andamento uma conspiração golpista, esse amplo sistema de comunicação nacional deu voz aos representantes políticos, militares, empresários, jornalistas, professores, intelectuais, sindicalistas e estudantes, possibilitando a articulação no campo discursivo dessas emissoras e jornais do Rio de Janeiro com partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente com a UDN, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que financiava as campanhas eleitorais dos candidatos anticomunistas. A rede era uma versão conservadora da Voz da Legalidade, criada por Brizola em 1961, cujas emissoras haviam mobilizado a opinião pública pela posse de Goulart na crise de 61 após a renúncia de Jânio Quadros e, em seguida, passaram a pregar a antecipação do plebiscito com a volta do presidencialismo. Programa radiofônico que criticava as concepções nacionalistas e reformistas, bem como as decisões do governo Goulart, a Rede da Democracia reagiu às forças que incentivavam a maior participação popular na vida política e, sobretudo, amadureceu mudanças que deveriam ser efetivadas na natureza do regime democrático. Com base no diagnóstico de que estava em andamento a subversão das estruturas da sociedade brasileira, os representantes da imprensa carioca construíram propósitos comuns com relação aos temas políticos que precederam o golpe de 1964.

A criação da Rede da Democracia significou, portanto, uma aproximação entre

as linhas editoriais de O Jornal, O Globo e Jornal do Brasil, voltados para a articulação de uma comunicação oposicionista que conferia funções políticas à imprensa, num ambiente em que os militares estavam sendo chamados a intervir no Estado. Os 1 Soares entende que o golpe foi uma conspiração dos militares com apoio dos grupos econômicos brasileiros. Ver SOARES, Gláucio Ary Dillon. “Golpe de 64”. In SOARES, Gláucio Ary Dillon e D’ARAUJO, Maria Celina. 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro. FGV, 1994.

discursos apresentados pelos seus proprietários e representantes no dia da inauguração, em 25 de outubro, deixam claro que o eixo central se deu em torno do combate ao comunismo, considerada uma ideologia totalitária que visava à desestruturação do regime representativo, com o fim dos mecanismos jurídicos que garantiam os direitos individuais, em especial os relacionados à liberdade e à propriedade. O termo comunismo apareceu associado à revolução, em contraposição à idéia reformista aceita pelos jornais, que percebiam no governo omissão no combate a esta ideologia, colocando-se, desse modo, em confronto com a legalidade constitucional e com os tradicionais valores de liberdade da sociedade brasileira. De fato, Nascimento Brito prognosticou que forças políticas tentariam obter “o consentimento popular para fazerem do Brasil a experiência infeliz que o nazismo, o fascismo e o comunismo impuseram a outros povos”.2 Nessa linha discursiva também se expressou Roberto Marinho, para quem os brasileiros estavam sendo “vítimas de uma deformação, intencional por parte de uma minoria de demagogos e de comunistas empenhados em envenenar as nossas relações com os países do mundo ocidental”.3 E João Calmon, representando Assis Chateaubriand dos Diários Associados, viu no rádio o instrumento político contra o comunismo para ganhar “a batalha da propaganda, que é o episódio mais importante da Guerra Fria”.4

A Rede da Democracia pregou uma mentalidade de guerra para combater o

comunismo e colocou a imprensa no centro dos debates sobre reorganização do regime político. Os representantes da imprensa do Rio de Janeiro haviam perdido a convicção no regime representativo, com seus diversos instrumentos constitucionais de limitação dos poderes, sobretudo após o plebiscito ter decidido pelo retorno ao presidencialismo em janeiro de 1963. A partir daí, uma coalizão forças, envolvendo trabalhistas e comunistas, passou a apostar na mobilização sindical com greves, manifestações de rua e ações políticas extra-institucionais a fim de pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base, em particular a reforma agrária. Predominava a percepção de que a ativação política das massas estava articulada ao projeto intervencionista do governo e de que este estimulava o confronto com as tradicionais instituições representativas, colocando na ordem do dia a construção de um tipo de democracia plebiscitária inspirada em Rousseau, como forma de aferição da vontade das grandes maiorias. Diante desse quadro, surgiram impulsos para se repensar os rumos do Estado, cujas estruturas administrativas estariam sendo apropriadas pelas forças partidárias de apoio ao governo, assim como se exercia controle sobre a máquina sindical com fins políticos considerados antidemocráticos. Apelos para intervenção militar tornaram-se constantes e foram acompanhados de um questionamento sobre os canais de representação da sociedade, num movimento de valorização da própria imprensa. Portanto, nesse momento de crise política encontram-se os elementos de uma nova forma de regime que então começava a nascer na consciência liberal.

Com essa preocupação, este trabalho analisa a participação de O Globo, O

Jornal e Jornal do Brasil durante o governo Goulart, imbuído da convicção de que os representantes da imprensa liberal fizeram da crítica uma prática por meio da qual disputaram com as instituições políticas o monopólio da representação da opinião pública. Na disputa pela hegemonia da representação da opinião pública, se apropriaram 2 Ver: OBJETIVOS da Rede da Democracia, desde ontem no ar: “Desmascarar a tentativa de eliminar a liberdade em nome da justiça social”. O Jornal, 26out1963, p.3. 3 Idem. 4 Idem.

de diversos discursos sociais, colocando-se na posição de sujeitos políticos responsáveis pela construção da legitimidade do Estado. Para investigar, portanto, o modo de inserção assumido pelos representantes da imprensa liberal durante a crise institucional no governo Goulart, vamos analisar o discurso adotado com relação ao lugar que eles próprios imaginavam ocupar naquele cenário político. Que papel os jornais cariocas atribuíram à própria imprensa naquele cenário de crise das instituições políticas representativas e questionamento do regime democrático?

O discurso dos jornais cariocas sobre o lugar da imprensa naquele momento de crise das instituições representativas durante o governo Goulart teve como eixo a noção liberal de opinião pública. Um estudo mais apurado nos mostraria que a história do conceito de opinião pública coincide com a formação do Estado moderno, quando se dá o desenvolvimento da imprensa, a expansão das culturas liberal e democrática e o nascimento do público político5, como revela a trajetória das nações ocidentais, em especial a Inglaterra, França e Estados Unidos. Entendida como manifestação política de uma sociedade civil em expansão, tendo por base a emergência da classe burguesa, a opinião pública tomou, naquele momento histórico, o sentido de combate à censura e aos segredos do Estado, com o fim de tornar transparentes os atos do governo. A opinião pública se originou num ambiente de questionamento do poder absolutista, no sentido de limitá-lo legalmente através de dispositivos constitucionais. Isso implicou, sobretudo, na definição de um conceito de cidadania correspondente ao contexto de cada nação que então se construía. A desestruturação de um regime de privilégios sociais característicos da legitimidade monárquica foi acompanhada de controvérsias, não só sobre as instituições a serem criadas e as formas que tomariam para a representação de interesses, mas também sobre quem deveria participar da nova comunidade política e quem estava autorizado a falar em seu nome, expressando os valores que lhe davam substância. Com efeito, a legitimidade democrática que emergiu com o advento da sociedade burguesa exigiu a criação de instituições políticas através das quais os cidadãos passaram a eleger seus representantes, autorizando-os ao exercício de governo. O conceito de moderna democracia no pensamento liberal se define pela participação política de seus cidadãos, sendo a eleição dos seus representantes o momento culminante deste processo, por meio do qual se afirmam a soberania do povo e os mecanismos de controle do poder. Isso equivale afirmar que as instituições, leis e princípios do regime democrático constituem a forma pela qual a opinião pública ganha expressão e é representada. Ao aparecer articulada às idéias de soberania, vontade do povo, liberdades públicas e representação, a noção de opinião pública ganha um significado institucional.6

Quando resgatamos a evolução histórica das modernas sociedades ocidentais,

verificamos também que a definição de opinião pública como interlocutor da sociedade foi acompanhada pelo surgimento de uma imprensa que exigia liberdade para exercer a fiscalização sobre o poder público. A liberdade no campo da imprensa passou a representar uma das liberdades as quais o indivíduo tinha direito e surgiu como condição essencial para o desenvolvimento dos debates sobre questões públicas. A busca da verdade numa sociedade que incorporava os valores da razão e do progresso dependeria das garantias dadas à imprensa para que as informações pudessem ser livremente divulgadas, de modo que o confronto de opiniões constituísse a base para as 5 MONZON, Cândido. Opinión pública, comunicación y política. La formación del espacio público. Madri, Editorial Tecnos, 1996, p.18. 6 Op. cit, p. 331.

decisões de governo. O ato de tornar públicas as ações do governo transforma seu exercício numa prática transparente e compreensível ao público. Ao transportar as decisões do poder até as diversas camadas da opinião pública, a imprensa torna visíveis as demandas do público para o poder. Decorre daí uma idéia de representatividade que se diferencia da representatividade institucional encarnada nos partidos, eleições e representantes políticos. A história da opinião pública, portanto, se confunde com a história da imprensa, dando origem ao que estamos chamando de concepção publicista.7 Esta concepção ressalta a existência da imprensa como condição para a publicização das diversas opiniões individuais que constituem o público. Nessa interpretação, a liberdade de imprensa é considerada um valor central.

As questões que envolvem as relações entre imprensa, opinião pública e poder

político ganham particularidades quando transpostas para uma determinada formação social, sobretudo se imaginarmos um país como o Brasil, de tradição oligárquica e com traços culturais herdados do sistema escravista, marcado por fortes desigualdades sociais. No ingresso da modernidade e consolidação do Estado nacional no decorrer do século XX, o país viu-se frente ao desafio de incorporar, pela via da representação institucional, as camadas populares ao sistema político. Desde a fundação da República brasileira, o liberalismo viu no regime representativo com participação restrita o modelo que era adequado à organização política, dadas as peculiaridades de uma formação social em que as massas eram consideradas carentes de educação e qualificação cultural. Embora os partidos formalmente fizessem parte da organização do moderno Estado que se ergueu com a República, sempre foram vistos, até mesmo pelos grupos liberais, mais como instrumentos limitados aos períodos eleitorais para se alcançar o poder do que como meios de representação e organização da vontade nacional.8 Caberia a um governo de elites confiáveis e competentes o papel de expressar os interesses do povo.

A concepção liberal que atribuiu às elites dirigentes responsáveis o papel de

intérprete dos interesses da nação também colocou a imprensa em primeiro plano, enfatizando sua posição central como órgão da opinião pública. De fato, Rui Barbosa defendeu a idéia de que a imprensa “é a vista da nação”. Ele a considerava a garantia de todas as garantias e via na imprensa o meio para se alcançar a verdade, revelada pelo mais elevado espírito público comprometido com o combate à corrupção e ao arbítrio que degeneram as instituições republicanas.9 Isso significa que durante a República Velha ganhou prioridade para a liderança liberal a realização dos ideais expressos no governo das leis, conforme os princípios previstos na Constituição de 1891. Foram constantes as denúncias de fraudes eleitorais e obteve significativo apoio em diversos jornais a campanha civilista de Rui Barbosa10 como candidato à presidência em 1909-

7 Op.cit., p.229. 8 PAIM. Antonio. História do liberalismo brasileiro. SP, Mandarim, 1998, p.150. 9 BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. SP,USP, 1990, p.20. 10 Rui Barbosa e Assis Brasil eram os dois grandes ídolos políticos, por exemplo, do jornal O Estado de São Paulo (CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino. Imprensa e ideologia: jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, Alfa-Omega, 1980, p.31). OESP apoiou a candidatura de Rui Barbosa em 1909 e em 1914, se tornando o porta-voz dos civilistas em São Paulo (ABREU, Alzira Alves de.(Coord.) Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. FGV, CPDOC, 2001, p.2028). Há também uma estreita correspondência entre o programa do candidato Rui Barbosa, derrotado nas eleições presidenciais de 1910, e a linha editorial do jornal A Noite, de oposição ao governo Hermes da Fonseca. O jornal carioca A Noite foi criado em 1911 pelo jornalista Irineu Marinho e é visto como o precursor de O Globo, que foi lançado em 1925 e prestou seu apoio à Aliança Liberal na Revolução de 1930.

1910, que pregava a “luta da inteligência pelas liberdades públicas, pela cultura, pelas tradições liberais contra o Brasil inculto, oligárquico e autoritário” 11. Já organizados nos moldes de uma empresa comercial 12, os jornais que divulgavam idéias liberais e se colocavam na oposição aos governos constituídos voltaram-se para o tema da reforma político institucional e pediram mudanças no sistema eleitoral com a adoção do voto secreto13. Importante eixo da vida política, a imprensa, através de alguns de seus segmentos, adotou em diversos momentos desse período da história republicana a posição de que seria a instituição mais identificada com os anseios da opinião pública14. Esse discurso, formulado e divulgado por órgãos jornalísticos e que desde então se fixou no imaginário social, procurou valorizar o papel da imprensa diante de uma representação política esvaziada15, construída nos marcos de uma cultura que reforçava a noção de Estado como o principal agente de organização e de garantia da unidade da nação16. 11 FAUSTO, Boris. “A crise dos anos vinte e a revolução de 1930”. In FAUSTO, Boris (org), História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III. Brasil Republicano. SP. Difel, 1983. p.405). 12 Nelson Werneck Sodré avalia que a passagem do século assinala, nas capitais brasileiras, o ingresso da imprensa na fase industrial. Ela transformava-se numa empresa, grande ou pequena, mas como uma estrutura comercial inequívoca. (SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. RJ. Maud, 1999, p.275). 13 Foi o caso de O Estado de São Paulo que propugnava uma reforma das instituições republicanas de modo a garantir os princípios liberais (Capelato e Prado, op. cit, p.24 a 31). 14 O jornal O Estado de São Paulo se considerava, na qualidade de órgão de imprensa, o intérprete da opinião pública brasileira. (Capelato e Prado, op. cit, p.94). O discurso de que a imprensa seria o campo privilegiado de manifestação da opinião pública aparece também no jornal A Noite, como revela, por exemplo, a matéria intitulada “O vergonhoso atentado da Bahia e a atitude da imprensa”. Neste caso se faz referência ao fato do governo ter sido criticado pelos jornais que não admitiam a política das intervenções “salvacionistas” nos estados.“Mas ao governo é que talvez não impressione a atitude da imprensa, como não impressionam as sentenças legítimas do Poder Judiciário e como não impressionarão as decisões do poder legislativo, no dia em que o Congresso Nacional deixar de ser uma dócil manada de lanígeros, de olhos fitos no dinheiro do subsidio. Nunca, entretanto, a imprensa representou tão nitidamente a opinião pública como neste ignominioso episodio da nossa vida de Nação livre”. (O vergonhoso attentado da Bahia. A Noite. RJ, 17.01.1912, p.1). Em outra matéria que discute a criação de uma escola de jornalistas, A Noite defende que “É à imprensa, pela sua origem plebéia e pelo seu contato imediato com a multidão, que está confiada, naturalmente, a missão de guiar as massas...”. (SERÁ criada entre nós a escola de jornalistas? A Noite. Rio de Janeiro, 19jun1913, p.1). 15 Na interpretação de Wanderley Guilherme dos Santos, o controle da representação política se deu através do “dispositivo político chamado Comitê de Credenciais, cujo objetivo era rever os resultados eleitorais e reconhecer os eleitos”. Este dispositivo foi sistematizado no governo Campos Sales, quando teve início a chamada “política dos governadores”. (SANTOS, Wanderley Guilherme. Décadas de espanto e uma apologia democrática, Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p.33). Nesse ambiente de fortalecimento do Executivo e perda de significado da representação política, é ilustrativa a matéria publicada em 1º de janeiro de 1912 pelo jornal A Noite, que questiona a funcionalidade do Legislativo e mostra seu distanciamento com relação aos interesses da sociedade. No texto encontra-se a sugestão para o leitor, “...esse ingênuo patrício ...procurar ao Diário do Congresso” a fim de verificar que numa lista de “60 questões....45 ficaram sem solução”. Em seguida, pergunta: “A Câmara as discutiu? Mas que proveito aufere o público dessa discussão?”. Com o objetivo de revelar a morosidade e a incompetência do Legislativo, a matéria avalia que “todos esses assuntos passaram para 1912, passarão para 1913 e assim atravessarão anos e anos, sem serem resolvidos, figurando sempre como trabalho profícuo dos Srs. legisladores.” Após apresentar uma imensa lista dos assuntos, o jornal assinala ironicamente que “nenhuma outra questão de grande e imediata importância para o público mereceu o carinho dos Srs. deputados.” Finalmente, classifica o trabalho dos deputados de “estéreis discussões políticas” e sustenta que “ a ingênua pergunta tem, pois, a razão de ser: - de que nos serve, afinal, o poder Legislativo? (De que nos serve afinal, o poder legislativo. A Noite. Rio de Janeiro, 01jan1912, p.1). 16 Nessa questão o trabalho incorpora a interpretação de que até mesmo os que partiam de premissas liberais, acabavam dando ênfase ao Estado, quando buscaram em modelos republicanos uma alternativa à monarquia. Haveria continuidade na organização política republicana da longa tradição estatista do país, herança portuguesa reforçada pela elite imperial (CARVALHO, José Murilo de. “Entre a liberdade dos

Decorre daí a proposição de que os representantes da imprensa liberal

brasileira apresentam um padrão discursivo que confere pesos diferenciados aos meios de expressão da opinião pública, sobretudo em circunstâncias de crise dos valores da democracia representativa. É o que se observa no governo Goulart com a diferença de que a suposta infiltração comunista com o acirramento da Guerra Fria tornou-se o tema central, superando na concepção liberal as acusações feitas durante o governo Vargas de existência de corrupção como fator que minava a legitimidade das instituições democráticas. Combater o comunismo que penetrava no tecido social e nos órgãos do Estado significou responder aos anseios da opinião pública nacional, quando lideranças comprometidas com o programa de reforma social no governo Goulart estimulavam as camadas populares a exercerem a cidadania não só pela via parlamentar, expressando seu voto nas eleições. Foram empregadas estratégias visando mobilizar os setores populares pela via das ações diretas, assim como foram difundidas ideologias de caráter socialista que contestavam as instituições políticas representativas e colocavam a propriedade privada em questão. Diante desse quadro, os setores imprensa liberal carioca, representados pelos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil, passaram a enfatizar a concepção publicista da opinião pública em detrimento de uma concepção institucional. Atribuíram à própria imprensa o papel de autêntica representante da opinião pública em detrimento do Poder Legislativo.

O governo Goulart assistiu a demonstrações sociais que ensaiavam romper

com os tradicionais formatos de manifestação da opinião pública. A política extrapolou as vias institucionais e irrompeu nas ruas. Provocou mobilizações dos trabalhadores, estudantes e, sobretudo, de sargentos e soldados, questionando os princípios de disciplina e da hierarquia sobre os quais se organizavam as corporações militares. No campo sindical, houve rompimento das regras estabelecidas. Foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), cuja existência confrontava a estrutura oficial erguida por Vargas na década de 30, controlada pelo Ministério do Trabalho. Entidade não reconhecida oficialmente, o CGT passou a orientar a atuação das massas trabalhadoras e greves decretadas foram utilizadas como meio de pressão para se atingir fins econômicos e políticos, entre eles, o de consolidar a posição de representação dos trabalhadores na interlocução com o poder. O meio rural que era tradicionalmente controlado pelas forças conservadoras também registrou o crescimento das atividades políticas. Organizados em torno das Ligas Camponesas, os trabalhadores rurais passaram a ocupar propriedades consideradas improdutivas. E no ambiente propriamente político surgiram movimentos extra-institucionais, sobretudo após as eleições legislativas de 1962, quando foi criada a Frente de Mobilização Popular, que era articulada ao CGT e vista como alternativa de poder.

A tradicional forma de representação institucional foi questionada pelos

setores considerados radicais, articulados em torno das correntes trabalhistas e comunistas, dispostos a acelerar o ritmo e ampliar a extensão das reformas sociais. A antigos e a dos moderno: a República no Brasil”. DADOS-Revista de Ciências Sociais, RJ, vol.32, n.3, 1989, p. 273). Essa linha de pensamento possibilita entender porque, no campo da imprensa, A Noite, embora divulgasse os princípios liberais desenvolvidos por Rui Barbosa, teve em seus quadros profissionais como articulista o publicista e pensador Alberto Torres, que pregava a revisão constitucional do país. Importante representante do pensamento autoritário no Brasil, Alberto Torres defendia a necessidade de um Estado tutelar, sem o abandono, todavia, dos antigos valores liberais, os quais ele criticava, mas não os negava. (IGLÉSIAS, Francisco. “Prefácio à terceira edição”. In TORRES, Alberto. A organização nacional. Brasília, UNB, 1982, p. 29).

ativação das camadas populares promovida pelas lideranças das forças de esquerda desdobrou-se num questionamento do regime e sobre o tipo de democracia a ser construído. Mais do que o acirramento da concorrência entre interlocutores para prevalecer suas falas, esse processo revela que o espírito da negociação democrática com base na argumentação racional dava lugar ao confronto aberto. Em contrapartida, representantes da imprensa carioca alegavam que a pressão sobre os representantes políticos e o Poder Legislativo tomava a forma de coação. Acusavam o governo de omissão e falta de autoridade para manter a ordem pública e argumentavam que a opinião pública estava saturada. Nossa idéia é que, nesse momento, os representantes da imprensa carioca resgataram a tradição inscrita no discurso liberal. A essa postura corresponde a concepção de que a organização do governo é uma questão de administração e de competência das elites responsáveis e não expressão dos conflitos oriundos dos interesses que afloram no tecido social. Esse pensamento contribui para estimular a percepção comumente divulgada de que falta credibilidade à representação política e explica a prioridade dada às alianças com os militares e o apelo autoritário para que as Forças Armadas intervenham no Estado diante da avaliação da existência de ameaças à ordem social dominante.

Nosso estudo está orientado pela idéia de que os representantes da imprensa

liberal carioca passaram a enfatizar, durante o governo Goulart, a concepção publicista em detrimento da concepção institucional de opinião pública, quando viram na participação direta das massas populares e na intervenção governamental orientada pelos valores igualitários os focos de desagregação do regime representativo e da ordem social capitalista. Esta proposição tem por base o argumento de que os agentes situados na imprensa adotaram seletivamente um conjunto de idéias pertencentes ao universo da cultura liberal. Os jornais cariocas percebiam as transformações no Brasil da segunda metade do século XX sob o ponto de vista de uma emergente sociedade de massa, o que implicou no resgate de uma noção já contemplada no século anterior pelos pensadores clássicos, qual seja, a de que a opinião pública pode também designar uma instância que ameaça as liberdades do indivíduo. Assim, colocaremos em discussão os conceitos liberais de opinião pública e de liberdade de imprensa divulgados durante o governo Goulart, na expectativa de ampliar a compreensão que os estudos históricos com base em análise de textos jornalísticos vêm oferecendo sobre o liberalismo na organização social e política brasileira. Além do tema da opinião pública e do papel atribuído à imprensa, procuramos analisar os juízos que foram emitidos sobre o Congresso, considerado a instituição central do sistema político na atribuição de representar os interesses sociais. Para verificar a validade de nossa proposição, escolhemos como fonte os jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil do período de setembro de 1961 a março de 1964, quando Goulart exerceu a presidência da República. Estamos partindo do pressuposto de que os jornais O Globo, Jornal do Brasil e O Jornal se identificavam com o ideário liberal, de forte tradição na história política brasileira. Em termos gerais, eles expressariam o ponto de vista dos segmentos das elites e dos setores médios, de tendência liberal no campo econômico, mas conservador nos campos social e político, ao defenderem um regime representativo com participação restrita. Todavia, essas publicações imprimiram diferentes significados sobre questões políticas conjunturais, refletindo a diversidade no interior da ideologia liberal.

Uma das controvérsias entre os representantes da imprensa liberal se deu em

torno da política externa adotada pelo governo Goulart, que era apoiada pelo Jornal do Brasil e vista pelos jornais O Globo e O Jornal como a porta de entrada para o

comunismo. Considerada uma ideologia totalitária, um mal que dividia a nação e pregava a violência revolucionária das massas populares, o comunismo trouxe para o centro do debate a questão da segurança nacional. Com Goulart na Presidência, acentuaram-se os conflitos de opinião sobre que papel os militares deveriam desempenhar naquele contexto de Guerra Fria, quando os dirigentes trabalhistas e comunistas encontraram a oportunidade nas condições democráticas para colocar em prática um programa popular de reformas socais. Nesse quadro de debates sobre a extensão e o alcance das reformas, O Globo e O Jornal legitimaram a oposição liderada pela UDN. Ao mesmo tempo, os textos jornalísticos apresentaram um diagnóstico sobre as Forças Armadas como instituição, assim como fizeram sobre o Congresso e a imprensa. O Globo e O Jornal desenvolveram a idéia de que a preservação da instituição militar encontrava-se ameaçada, revelando em seus textos uma constante associação entre a ativação política das massas populares, o maior envolvimento dos militares em questões políticas e o acirramento dos conflitos internos da nação.17 O diagnóstico de que as Forças Armadas eram o principal sustentáculo da Constituição e corriam risco de desintegração foi acompanhado pelas denúncias de politização das instituições militares a partir da infiltração comunista.18 Nesse ponto cabe uma observação: o acirramento dos conflitos internos de classes promovidos pelo comunismo e o papel histórico ou missão das Forças Armadas de preservação da ordem constituíam as questões centrais contempladas na Doutrina de Segurança Nacional, então eram aprimoradas na Escola Superior de Guerra.

Os ensinamentos sobre guerra revolucionária formulados pela ESG ganharam

espaço público19 durante o governo Goulart e jornais como O Globo defenderam um programa de ação contra o comunismo divulgado pela instituição militar, em favor das tradições conquistadas pela sociedade brasileira, diante das ameaças representadas pelas “Doutrinas exóticas, livremente difundidas... que corrompem as mentes dos estudantes e trabalhadores, semeando ódio, armando a violência”.20 Isso significa que os jornais passaram a valorizar a atuação da ESG, instituição militar que vinha pregando um novo papel para as Forças Armadas na organização da sociedade. Todavia, a avaliação de que a infiltração comunista durante o governo Goulart era forte a ponto de estar causando a desestabilização das instituições, bem como o estímulo à intromissão dos militares na esfera política foram questões que distanciaram os jornais O Globo e O Jornal do Jornal do Brasil, pelo menos na fase parlamentarista. Os três jornais declararam apoio à emenda parlamentarista após a renúncia de Jânio, vendo nesta decisão uma forma legal de conciliação para a resolução da crise. O Jornal do Brasil entendeu que a legalidade tinha triunfado diante da crise da renúncia de Jânio Quadros, quando a sociedade e instituições políticas reagiram à tentativa dos ministros militares de tutelarem a nação. Desse modo, valorizava o que o jornal definia como a manifestação da autêntica opinião pública do país, envolvendo as atuações da imprensa, do Congresso, dos

17 CAMPO aberto. O Jornal, 27nov1962, p.4. 18 A intentona de 35 e a situação atual. O Globo, 22nov1961, p.1. 19 O conceito de guerra revolucionária constituiu o eixo em torno do qual se desenvolveu a conferência do general Muricy para oficiais da Guarnição de Natal entre 9 e 15 de junho de 1963. Um dos oficiais responsáveis pela articulação do complexo IPES/ IBAD nas Forças Armadas, integrante da ESG e comandante das unidades do Estado do Rio Grande do Norte (DREIFUSS, Armand René. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis. Vozes, p. 371), o general Muricy viu durante cinco dias suas palestras serem publicadas na íntegra pelo O Jornal. GUERRA Revolucionária I, general Muricy fala aos oficiais da Guarnição de Natal. O Jornal, 9jun1963, p.6. 20 O Globo exaltou no seu editorial o discurso do professor Moniz de Aragão, patrono dos diplomandos da ESG no final do ano de 1962. ROTEIRO para 63. O Globo.31dez1962, p.1.

partidos políticos e das associações da sociedade civil na resolução da crise que levou João Goulart à presidência junto com a instituição do sistema de governo parlamentarista.21

O discurso do Jornal do Brasil em defesa de um modelo liberal de governo

representativo, equilibrado entre os interesses individuais e as exigências sociais correspondeu à adoção de uma linha editorial de apoio às reformas de base, até mesmo da reforma agrária, levando em conta a necessidade de superar os obstáculos para o desenvolvimento econômico.22 O Jornal do Brasil prestou apoio à reforma com o argumento de que o país exigia mudanças nas estruturas sociais, na condição de que se realizasse pela via legal do entendimento parlamentar e no âmbito de um programa de estabilização econômica, com ênfase no controle da inflação. 23 O Jornal do Brasil também marcou posição contrária a de O Jornal na investigação da CPI sobre o IBAD, que acabou tendo suas atividades suspensas para em seguida ser dissolvido por determinação do Poder Judiciário, em dezembro de 1963. O Jornal do Brasil acreditava que as lideranças do PSD e da UDN estavam permitindo que o inquérito sobre o IBAD se transformasse numa farsa. Denunciava que era de conhecimento público a intervenção do IBAD na campanha eleitoral, despejando dinheiro para eleger políticos de vários partidos. Classificava o IBAD de “estranha organização” que tumultuava o debate político, se opunha às reformas de base e utilizava a luta contra o comunismo como um pretexto para exercer atividades antinacionais. Denunciava que as atividades de propaganda do organismo se estendiam por todo o território nacional, “ocupando horas em emissoras de televisão e rádio, fornecendo camionetas, alto-falante, faixas e cartazes, publicando livros, folhetos, panfletos e revistas, assinando contratos com jornais...”24 Em contrapartida, O Jornal sustentava através de artigo que o inquérito sobre o IBAD estava a “serviço de Moscou”, defendia sua ampliação de modo que também investigasse as fontes de financiamento das campanhas dos deputados comunistas e classificava os diretores do IBAD de “homens de bem”, chamando de covardes os “deputados democratas” que não lhes davam apoio.25 O Globo interpretava como demagogia a permissão do Congresso realizar a CPI do IBAD e IPES,26 “organismos que combatem o comunismo”27 e cujas “atividades são praticadas à luz do dia e com finalidades conhecidas e legitimas”28.

As divergências entre os jornais cariocas não impediram, entretanto, a

definição de um campo comum de valores em torno de uma concepção de opinião pública. O fato de as mobilizações populares em favor das reformas sociais assumirem cada vez mais formas diretas de participação, sobretudo após o governo adquirir maior autonomia com o plebiscito de 1963, aproximaram as linhas editoriais desses jornais. O Jornal do Brasil cultivava a percepção também desenvolvida pelos jornais O Globo e O Jornal sobre a existência de dois campos de forças políticas com pretensões de falar em nome dos interesses e sentimentos do povo brasileiro. Os jornais viam-se participando do campo democrático e justificavam essa posição em defesa das tradicionais liberdades do país, encarnadas nas instituições representativas, através das quais se deveriam 21 SILÊNCIO. Jornal do Brasil. 20set1961, p.6. 22 REFORMAS. Jornal do Brasil, 20set1961, p.6. 23 REFORMA agrária e inflação. Jornal do Brasil, 07fev1962, p.6 24 IBAD. Jornal do Brasil, 01jun1963, p.6. 25 ANDRADE, Theophilo. O IBAD e os outros. O Jornal, 08ago1963, p.6. 26 O seminário da subversão. O Globo, 01jul1963, p.1. 27 DINHEIRO do povo para a destruição do regime. O Globo, 29jun1963, p.3. 28 O seminário da subversão. O Globo, 01jul1963, p.1.

buscar alcançar um consenso político. Em contrapartida, os jornais reconheciam nos agrupamentos de esquerda que pregavam uma revolução das estruturas sociais a existência de uma tendência denominada de totalitária, embora essa tendência evocasse a idéia de soberania popular e até utilizasse também o termo democrático quando falava acerca do formato de um futuro regime socialista. Os jornais entendiam que esse campo acabava por negar a própria noção de opinião pública, uma vez que enfatizava não os meios institucionais legais de argumentação pública, mas a ação política direta voltada para ativar as massas como instrumento de pressão na definição das reformas sociais. Podemos observar com clareza essa percepção no editorial de O Jornal intitulado “Opinião Soberana”, no qual colocava o general Osvino Ferreira Alves na condição de um militar que era ligado a Goulart e desrespeitara as regras da corporação. Assim, ele se opunha à legítima noção de opinião pública. O então comandante do I Exército teria pronunciado um discurso de teor político dentro de um quartel após o plebiscito que definiu a volta do presidencialismo em janeiro de 1963. Segundo O Jornal, a opinião pública que exprimia os autênticos sentimentos e ideais do povo brasileiro se manifestava pela imprensa, pelos discursos parlamentares e pelos comícios eleitorais. Em oposição a essa opinião pública institucionalizada estaria a concepção opinião pública osviniana, originada dos ideais comunistas e articulada a organismos considerados ilegais como o Comando Geral da Greve.29

Na visão de O Globo e de O Jornal havia uma opinião nacionalista radical que

ampliava influência no aparelho do Estado, mais precisamente no interior do Exército, da qual faria parte o general Osvino Ferreira Alves. Ele enquadrava-se naquele tipo que os representantes da imprensa liberal denominavam de general do povo, um militar de alta graduação que valorizava o contato direto com a tropa e identificava-se com os ideais nacionais populares.30 O país experimentava ainda os reflexos dos resultados das eleições de outubro de 1962 e do plebiscito de janeiro de 1963 quando O Jornal escreveu o editorial sobre o general Osvino. A vitória dos setores que defendiam a volta do presidencialismo com maiores poderes para Goulart somou-se aos resultados favoráveis alcançados pelos trabalhistas no pleito de 1962. O principal beneficiado das eleições de outubro de 1962 foi o Partido Trabalhista Brasileiro que elegeu 116 deputados, tornando-se o segundo partido nacional em termos de cadeiras no Congresso Nacional.31 Todavia, o crescimento do PTB não significou uma alteração radical no equilíbrio de forças no interior do Congresso. A UDN e o PSD juntos alcançaram 54% das cadeiras.32 Nesses partidos como no PTB existiam grupos moderados, que se manifestavam através de uma opinião legalista e reformista.33 Skidmore argumenta que as eleições de outubro de 1962, assim como as eleições para governadores de 11 Estados confirmaram a força do centro, apesar da tendência à polarização de opiniões. O autor sustenta que a maioria dos brasileiros ainda se encontrava no centro e aceitava ampliar o sistema político, mas com cautela.34

As eleições de 1962 também se tornaram o motivo para O Globo desenvolver

uma avaliação do sistema político, vendo nas suas instituições o campo legítimo de 29 OPINIÃO soberana 11abr1963, P.4. 30 ABREU, Alzira (org.), op. cit.,p.181. 31 D’ARAUJO, Maria Celina (Orgs). “Raízes do golpe: ascesão e queda do PTB”. In SOARES, Galucio Ary Dillon e D’ARAUJO, Maria Celina (Orgs). 21 anos de regime militar: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro, FGV, 1994, p.61. 32 FERREIRA, Jorge, op. cit.,p.360. 33 SKIDMORE, Thomas, op. cit., p.284. 34 Idem, p.277.

manifestação da opinião pública. Ao estimular uma “vasta mobilização das correntes de opinião pública, dentro e fora dos partidos”, as eleições constituíam para o jornal “o instrumento através do qual se executa a regra da temporariedade dos mandatos públicos. Por intermédios delas é que se formulam as consultas ao povo para que ele aponte não só seus representantes preferidos no parlamento ou nos postos executivos, senão principalmente os rumos que deseja ver inpressos à marcha da administração.” Neste editorial, O Globo resgatou a trajetória do processo eleitoral brasileiro. Não deixou de reconhecer que no “Brasil, até 1930 as práticas de coação tornavam uma farsa as eleições”. Estas não representariam a vontade popular, pois com o “sufrágio a descoberto, falhava uma das garantias fundamentais para a sua pureza – o sigilo.” Em seguida, assinalou que nas lutas no interior da “Aliança Liberal, matriz da revolução de 30”, estava a razão do não cumprimento de uma bandeira extraída do “lema de Assis Brasil – Representação e Justiça”. Sobre a Constituinte de 1934 o jornal observava “os primeiros frutos, que afinal se consolidariam em 1946, quando da escolha dos constituintes da Terceira República”, fase durante a qual “o processo de seleção só tem se aperfeiçoado de tal modo que, sob esse aspecto formal, as eleições passaram a ser, no Brasil, quanto possível perfeitas.”35

O Globo se refere no texto à Justiça Eleitoral criada em 1932 sob o impulso da

Revolução de 1930 que tinha entre suas bandeiras a moralização das eleições, sintetizada no binômio cunhado por Assis Brasil, "representação e justiça". Com a organização da Justiça Eleitoral os poderes Executivo e Legislativo foram afastados da administração e do controle do processo eleitoral, e das Câmaras Legislativas foi retirada a prerrogativa da verificação dos mandatos. A criação da Justiça Eleitoral, em 1932, possibilitou não só maior eficácia na contenção da violência nas disputas eleitorais, mas propiciou um resultado eleitoral com mais legitimidade. Embora tenha sido extinta durante o Estado Novo, a Justiça Eleitoral foi novamente instituída com a Constituição de 1946, o que levou O Globo a reconhecer na organização do processo eleitoral originado com a Constituição de 1934 um aperfeiçoamento do regime representativo. Assim, em oposição ao que O Globo via como expressão da opinião pública institucionalizada originada através das eleições, partidos e representação política estariam os líderes de esquerda identificados pelo jornal com o comunismo e com a política de ativação das massas que estariam colocando em questão o regime representativo. No centro dos ataques dos representantes da imprensa carioca esteve Leonel Brizola que de fato resumia de forma dramática as ambigüidades das lideranças trabalhistas de esquerda, divididas entre os métodos de mobilizações de massas e a utilização da representação institucional para pressionar o governo em favor das reformas de base. 36

As pressões do movimento sindical sobre o sistema político aumentaram no decorrer do governo Goulart. O crescimento das atividades sindicais e das greves por melhorias salariais pode ser tomado como um claro indicador de que os trabalhadores reivindicavam ter voz sobre as decisões do governo. Todavia, na percepção dos representantes da imprensa liberal havia uma forte conexão entre o crescimento das atividades sindicais e a postura de omissão do governo, que estaria disposto a ampliar sua base social para impor o programa de reformas de base e, assim, consentia diante da atuação das lideranças trabalhistas e comunistas consideradas radicais na orientação das reivindicações sociais. Dessa forma, os jornais cariocas centraram seus ataques no 35 A paz interna ou a subversão. O Globo, 25abr1962, p.3. 36 ANDRADE, Thephilo de. Missão libertária, O Jornal, 22mai1963, p.4.

CGT, entidade que via na greve uma forma legítima de pressão. Criado em agosto de 1962, o CGT se dizia favorável a um governo nacionalista e democrático e era integrante da Frente de Mobilização Popular, liderada por Brizola. Em diversos editoriais os jornais alertaram para o caráter ilegal do CGT e costumavam invocar Rui Barbosa na defesa da ordem constitucional.37, entendendo que a entidade era um instrumento político ilegal do detentor do Executivo, ora submetido às suas ordens, ora pressionando este poder.38 Acreditamos que disputa para monopolizar a representação da opinião pública acabou levando não apenas O Jornal e O Globo, mas também o Jornal do Brasil a imprimirem uma conotação negativa à emergência de uma opinião concorrente manifestada pela mobilização social dos setores sindicais no cenário político. Assim, perguntavam: “Que pretendem os dirigentes sindicais? Acham, por acaso, que estão em condições de conquistar o poder? (...) A nação não quer a luta de classes.”39 Os jornais entendiam que a maior participação dos setores populares, trabalhadores da cidade e do campo, estimulada pelas lideranças de esquerda era um confronto às tradicionais instituições estabelecidas, na medida em que propiciaria as bases para uma edificação de um suposto tipo de regime despótico de base sindicalista ou comunista. Nesse sentido, é possível encontrar semelhanças entre os textos dos jornais cariocas e o pensamento de representantes do liberalismo europeu do século XIX, que atribuíram uma conotação negativa ao ingresso das massas no cenário social e político e sinalizaram para os perigos do totalitarismo.

É possível ver afinidades dos discursos jornalísticos cariocas com o

pensamento de Ortega y Gasset, autor preocupado em evitar o que denominava de ausência de opinião pública e, conseqüentemente, seu preenchimento pela força bruta representada pela ação das massas. O filósofo espanhol dá ênfase à noção de conformismo, como característica de uma sociedade na qual a participação direta das massas pode se desdobrar na instauração de regimes despóticos de tipo “cesarista”.40 Ortega y Gasset reconhece no sindicalismo e no fascismo movimentos políticos típicos da moderna sociedade de massa que apresentam tendências incivis, ao não valorizarem o método das discussões para a resolução das questões do Estado. O autor vê nesse comportamento atribuído às massas a desvalorização de uma forma de convivência que implica o acatamento de normas objetivas, que está presente tanto na conversação como no Parlamento. Além de observar que a constituição de um mando fica impossibilitada numa sociedade em conflito, “dividida em grupos discrepantes”, o autor avalia que a desordem social e a desorganização da convivência humana só podem ser evitadas sob a condição de que a elite assuma o papel que lhe foi reservado pelo destino: o de dirigir e representar as massas. 41

A visão conservadora e catastrófica de que a participação política das massas sem orientação das tradicionais elites acabaria por provocar uma regressão social, colocando em risco a moderna civilização e a cultura ocidental, encontrou receptividade em textos jornalísticos dos representantes liberais. O Jornal do Brasil relacionava a crise do regime no governo Goulart à irresponsabilidade das elites de não exercerem as tarefas de direção do Estado, deixando que as organizações revolucionárias de massa de orientação comunista se impusessem através de ações diretas sobre os espaços 37 FIDELIDADE. Jornal do Brasil, 9abr1963, p.6. 38 CGT ilegal, Jornal do Brasil, 8dez62, p.6. 39 PREGOEIROS da desordem, Jornal do Brasil, 12jul1962, p.6 40 COHN, Gabriel. Sociologia da Comunicação. Teoria e ideologia. SP. Livraria Pioneira,1973, p.64. 41 Idem.

institucionais reservados ao debate e à racionalidade decisória. Para o jornal, as classes dirigentes estavam desorientadas, agindo irracionalmente diante de um processo vertiginoso de ascensão das massas sociais. 42

Até aqui vimos exemplos de práticas discursivas que aceitavam o conflito de opiniões como fundamento das decisões políticas, desde que as opiniões não tivessem origem nas formas de mobilização popular e não se contrapusessem aos poderes instituídos e às regras que preservavam a democracia formal. Nas concepções de opinião pública que foram divulgadas pelos jornais cariocas verifica-se a existência de dois campos. De um lado, o Legislativo, os partidos, eleições, instituições que compõem o quadro de representação política, considerados meios legítimos, assim como a imprensa de natureza privada, defensora da economia de mercado, comprometida com uma opinião que não politizasse o espaço social e ameaçasse a ordem dominante. Em contrapartida, as organizações sindicais não reconhecidas legalmente como o CGT, as greves e mobilizações principalmente nas ruas, de conteúdo político que desafiassem a ordem social, bem como as frentes políticas como a Frente de Mobilização Popular e lideranças consideradas populistas, ganham um caráter de ilegitimidade como canais de expressão de opinião coletiva. Considerada um confronto à concepção institucional de opinião pública, a participação popular direta e autônoma das massas, na cidade e no campo, atribuída às correntes trabalhistas e aos comunistas, inviabilizavam, segundo os jornais liberais, o funcionamento e o aperfeiçoamento do regime representativo.

Os representantes da imprensa liberal defendiam o conceito de democracia

formal, em contraposição à democracia substancial, para utilizar os termos de Norberto Bobbio. Enquanto os jornais cariocas reduziam a democracia a um conjunto de regras de procedimentos para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas, as lideranças de esquerda do campo nacional popular se voltavam para a defesa de conteúdos socialistas, pretendendo superar o formalismo das regras jurídicas. As distinções entre esses conceitos de democracia fundamentaram os posicionamentos jornalísticos com relação à definição de quem representaria legitimamente a opinião pública. Os liberais associaram as concepções de opinião pública à manutenção das regras do sistema político, reconhecidamente restrito, e à preservação das suas instituições. Deslegitimavam, portanto, qualquer iniciativa de manifestações diretas e coletivas da opinião que pudessem influenciar as decisões políticas. O liberalismo, segundo Bobbio, entende o sufrágio universal, em seu desenvolvimento histórico, como o ponto de chegada do processo de democratização do Estado, enquanto na teoria marxista constitui apenas o ponto de partida. Diz o filósofo que “as doutrinas socialistas incorporam os temas da democracia direta num movimento de crítica à democracia apenas representativa, solicitando também que a participação popular e o controle do poder a partir de baixo se estenda dos órgãos de decisão política aos de decisão econômica”.43 42 “Um dos mais graves problemas do Brasil contemporâneo é o da falta de percepção pelas classes dirigentes dos seus objetivos e das suas responsabilidades... há quem veja, com maior ou menor nitidez, o que está ocorrendo no Brasil – ou seja: um processo, quase vertiginoso, de ascensão das massas sociais. Mas, de um modo geral, as classes dirigentes ainda não souberam compreender o que acontece....E, nervosamente, buscam abrigo à sombra confortável dos slogans. De classes dirigentes passam, então, a classes dirigidas. Deixam-se governar por impulsos, agem por reflexo, reagem irracionalmente.” Ver: A grande missão. Jornal do Brasil, 12ago1962, p.6. 43BOBBIO, Norberto. “Democracia”. In Bobbio, Norberto et ali. Dicionário de Política. Brasília, UNB, 1998, p.328.

O Congresso e a imprensa constituíam para O Jornal, O Globo e Jornal do Brasil

os pilares sobre os quais se manifestava a opinião pública e se assentava o regime representativo. O reconhecimento do Legislativo como instituição central do regime representativo não impediu, todavia, que os representantes da imprensa liberal carioca questionassem da atuação do Congresso como instituição política cuja função é representar o interesse público. Os discursos jornalísticos se manifestaram pela percepção de que era baixa a funcionalidade da instituição no sentido da resolução das reformas de base. Todavia, a avaliação do funcionamento do Legislativo deve ser entendida no âmbito das mudanças do sistema político com a instituição do parlamentarismo, quando Goulart assumiu o governo em 1961. Como principal representante do trabalhismo, o presidente se enquadrava dentro da corrente de pensamento que remontava a Vargas, reconhecido pelo papel preponderante que atribuía ao Estado nas transformações sociais. No novo sistema de governo adotado para limitar os poderes presidenciais, esperava-se que o Congresso desempenhasse de fato o papel de contra-poder ao Executivo, assumindo mais enfaticamente as iniciativas governamentais, que eram garantiam pelas prerrogativas conferidas pelo Ato Adicional. O fato de o Congresso não preencher tais expectativas motivou os jornais cariocas a vê-lo como uma instituição que “vivia o paradoxo de governar a Nação e..., sofrer um constante desgaste que o inibe de levar avante as decantadas reformas de base preconizadas por muito dos seus líderes”.44 Após as crises dos gabinetes parlamentaristas que se sucediam, avaliava-se que a ineficiência das atividades dos representantes políticos explicava a falta de credibilidade do Legislativo. O projeto de Lei de Remessa de Lucros era condenado e os projetos de Reforma Agrária, Eleitoral e Tributária embora fossem considerados de extrema urgência, estariam “dormindo na gaveta dos relatores, ou paralisados pela ausência de uma firma vontade para tocá-los adiante no Parlamento”.45

A reforma agrária se transformou no tema mais conflituoso das reformas de

base, dando substância ao argumento de que o “Congresso não está mais cumprindo o seu dever”. O decreto de desapropriação, visto como um recurso político cujo objetivo seria “liquidar economicamente as bases eleitorais do PSD”, faria parte de um processo de desestruturação do regime em que o Executivo invadia as atribuições do Legislativo. Este processo institucional com base em decretos-lei estaria sendo acompanhado de mobilização das “cúpulas sindicais ilegais”, “de propaganda em torno de idéias subversivas... destinada a acovardar a burguesia nacional”. 46 A omissão do Congresso foi também detectada por ocasião dos debates em torno do anúncio, já no ano de 1964, do decreto preparado pela Superintendência de Política Agrária sobre a desapropriação de terras. Os jornais entendiam que as reformas por decretos ofereciam riscos institucionais e pediam que o Congresso assumisse o comando da política reformista, e modo a evitar a invasão de competência constitucional pelo Executivo.47 O fato de não reagir contra o abuso de poder por parte do Executivo colocava o Congresso, segundo O Jornal, na condição de uma instituição que estava contemporizando com a subversão do regime.48 Como poder soberano, o Congresso, segundo O Jornal, deveria reagir “diante da mensagem do presidente da República, propondo reformas em termos 44 PANORAMA, Jornal do Brasil, 31dez1961, p.6. 45 OMISSÃO sistemática, O Jornal, 23abr1962, p.4. 46 THEOPHILO, Andrade. Vigília Cívica do Congresso. O Jornal, 21jan1964, p.4. 47 .DIVISÃO de trabalho. Jornal do Brasil, 21jan1964, p.6. 48 RESSURREIÇÃO do Congresso. O Jornal, 29mar1964, p.4.

cominatórios...”.49 A falta de vontade política reformista no Legislativo era, para o Jornal do Brasil, a causa do impasse na instituição, problema que remetia à crise de representatividade da classe política, “do presidente da República ao raro militante partidário, em geral desorientado por um diálogo político de baixo índice racional”.50

O discurso de crítica ao funcionamento do Congresso apareceu associado à

avaliação de que a instituição legislativa estava coagida por forças localizadas no próprio executivo e nas mobilizações sindicais. Desse modo, acabava-se por sugerir que a tendência à paralisação das atividades legislativas, impedindo o Congresso de responder às demandas da opinião pública, encontrava sua razão não só na falta de articulação e negociação entre os parlamentares, mas, sobretudo, no crescimento das pressões externas à instituição, originadas da maior participação dos setores sociais liderados pelos trabalhistas e comunistas, com a conivência do presidente da República. Não se pode deixar de levar em conta que o discurso liberal da época era anticomunista, adotando a idéia de que existia uma estratégia internacional comandada do exterior pela União Soviética, visando infiltrar esta ideologia no país e confrontar os seus tradicionais valores. A luta por uma sociedade mais justa e igualitária encampada pelas lideranças trabalhistas e comunistas estaria sendo compreendida como uma política para estimular os conflitos entre as classes sociais a fim de prejudicar o desenvolvimento econômico capitalista do país e colocar em questão as instituições nacionais, entre elas o Congresso. Segundo os jornais, a coação exercida sobre setores da sociedade através de greves, paralisando as atividades produtivas, se desdobrava no plano do sistema político com as mobilizações que ameaçavam às liberdades das atividades legislativas, desequilibrando o “jogo dos pesos e contrapesos do regime.. que protege e alicerça as instituições democráticas”.51

A noção de contrapesos empregada pelos jornais cariocas é central no

pensamento constitucionalista. Em Locke ganhou o significado de limitação do poder do Executivo, tendo em vista a necessidade de preservar os direitos naturais dos indivíduos, representados pelos direitos à liberdade e à propriedade. Em Montesquieu correspondeu à existência de um específico arranjo institucional: um governo moderado que é derivado da dissociação do poder soberano e da sua partição com base nas três funções fundamentais do Estado – a legislativa, a executiva e a judiciária (Bobbio,1980:126). Em Tocqueville, as associações políticas e civis e a liberdade de imprensa são consideradas recursos institucionais que garantem o desenvolvimento de uma democracia liberal. No âmbito desse pensamento, os jornais cariocas avaliavam que as ameaças ao equilíbrio entre os poderes e, portanto, às liberdades se originavam tanto da ação revolucionária das massas quanto do intervencionismo do Estado. Os jornais condenavam a prática política de ação direta manifestada através da participação sindical e dos setores populares. Ela era considerada uma coação e estaria tendo efeitos de intimidação sobre as instituições representativas, em particular sobre o Congresso. Por fim, a mobilização sindical e popular estaria sendo orientada pelos comunistas e trabalhistas e incentivada ou pelo menos tolerada pelo governo, fornecendo as bases sociais para a implantação de um regime totalitário. Nos textos dos representantes da imprensa liberal é forte a identificação da expressão totalitarismo com comunismo para designar uma prática de domínio absoluto do Estado sobre a sociedade, caracterizada

49RESISTIR para não acabar. O Jornal, 17mar1964, p.4. 50 REPRESENTATIVOS e aptos. Jornal do Brasil, 31jan1964, p.6. 51 EM defesa do Congresso. O Jornal, 21jun1962, p.4

pelo desprezo das tradicionais instituições liberais representativas. No intuito de alimentar tal diagnóstico, o articulista e diretor de O Jornal, desenvolveu, nesse contexto de crescente mobilização social e ampliação do campo de ação dos poderes públicos, uma interpretação em defesa do “Contrato Social” de Roussseau, enfatizando as liberdades individuais em detrimento das questões da soberania popular, da igualdade social e da vontade geral.

“Compreendendo o conflito entre interesse individual e o social, traçou

Roussseau a finalidade da ciência social: ‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum, a personalidade e os bens de cada associado, e pela qual cada um unindo-se a todos, não obedeça a não ser ele mesmo, e permaneça tão livre quanto antes’.

Colocada a questão nestes termos, vemos quão atual continua sendo Rousseau. Porque o que pregava era a necessidade de organização social. Isto é, do Estado respeitar o indivíduo e a sua liberdade. É este o grande problema do século XX, quando vemos que, em nome da igualdade, foram criados os Estados comunistas em que o indivíduo desaparece, reduzido que foi a simples peça de uma máquina governada por uma burocracia toda poderosa. O Estado totalitário de hoje (fascista ou comunista) é muito mais poderoso e tirânico do que o Estado dos reis absolutos, contra que pregou Rousseau(...) 52

A mensagem é clara. A voz que defendeu o respeito ao indivíduo e sua

liberdade diante do Estado nos tempos dos reis absolutos se mostrava atual na luta contra a tirania moderna, identificada com o totalitarismo comunista. Em questão, uma disputa pelo legado de Rousseau, já que o artigo de O Jornal seguia uma linha editorial de ataque à esquerda revolucionária brasileira que pregava a democracia direta e desprezava as instituições representativas clássicas. Um outro artigo sobre Rousseau publicado no jornal O Globo explica que vontade geral é mais do que a soma das vontades individuais e observa que o filósofo não admite os representantes ou deputados na posição de intermediários entre a vontade geral e os funcionários executivos. Ou seja, Rousseau não admite a existência do “parlamento, do poder legislativo”, pois “sendo a lei a declaração da vontade geral”, “o poder legislativo, o povo, não pode ser representado”. O artigo exalta a atualidade do “Contrato Social”, uma vez que continuaria a influenciar a política do mundo. O “Contrato Social” é interpretado como a “expressão de um ideal de democracia pura, perfeita, total, integral”. Segundo o autor, o livro suscitava fortes reações no ocidente e no oriente. Enquanto para “muitos ocidentais é o livro mais perigosamente revolucionário”, “para os russos e para os chineses, se o deixassem de ler, seria uma alegação contra-revolucionária, porque destruiria os alicerces de suas ditaduras totalitárias”.53

Portanto, no crescimento do poder do Estado centralizado, burocratizado e no maior poder de ação das massas, se encontravam as duas principais tendências do cenário político brasileira no governo Goulart que, previam os jornais, desaguariam num tipo de tirania ou despotismo político. As ações diretas das massas, bem como um tipo de estado intervencionista submetido às sua vontades se apresentavam como perigos para a civilização, tal como formulado por Ortega y Gasset. Assim, os jornais sugeriam as questões que deveriam ganhar prioridade na agenda de oposição ao 52 Theophilo de Andrade. O Contrato Social. O Jornal, 02set1962, p.4. 53 ZULUETA, Luís de. “O Contrato Social: um ideal inatingível que ainda influencia o mundo”. O Globo, 30jul1962.

governo Goulart, visto como incapaz de impedir a expansão da ideologia comunista. Dentro da linha de interpretação que enfatiza os perigos para a civilização e a cultura da liberdade na moderna sociedade brasileira, O Jornal publicou um artigo no qual via a decadência dos debates parlamentares no Brasil, tanto nas Assembléias estaduais, quanto no próprio Congresso. A queda da eloqüência parlamentar constituiria, segundo o artigo, um fenômeno mais amplo da sociedade massificada, dominada por demagogos e evidenciaria o declínio da cultura de liberdade, compreendida como uma paixão e uma modalidade de atividade política, característica dos espíritos mais elevados, que colocava a consciência individual em contato com os interesses públicos. Tomando como parâmetro oradores do Brasil do Segundo Reinado até meados da República, considerados notáveis (José Bonifácio, Silveira Martins, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Silveira Martins, João Neves de Fontoura, João Carlos Machado e Maurício Cardoso), o artigo percebia o declínio da prática argumentativa na vida nacional, seja no parlamento, no púlpito, no júri, como na cátedra e na praça pública. A queda da eloqüência parlamentar significaria que a liberdade estava em agonia. “Não há oratória digna desse nome porque já não há paixão da liberdade”.54

Ao discutir a decadência dos debates parlamentares no Brasil e alimentar a

nostalgia de uma opinião pública formada por homens de elevado espírito crítico, comprometidos com o interesse público, O Jornal acabou criando afinidades com pensamento de Tocqueville que, em seus estudos, percebeu o aparecimento em multidão de homens notáveis quando rebentou a revolução na América. Com a expansão da democracia, todavia, o caráter nacional dos americanos teria passado a sofrer os efeitos perniciosos da ação sempre crescente do despotismo da maioria, impedindo o surgimento de uma opinião pública regulada pela liberdade de crítica.55 . No âmbito do pensamento liberal devemos ainda recordar que Mill também reconheceu na moderna sociedade um crescente nivelamento social. Mill chama a atenção que os perigos do despotismo social representariam apenas uma parte dos problemas que desafiavam o mundo civilizado. A cultura da liberdade estava ameaçada pela possibilidade do despotismo político. As opiniões das massas e o crescimento da ação dos governos, como manifestação política do sentimento dominante das massas, colocavam em risco a expressão da individualidade criativa (Mill,1991:48), conforme as concepções desenvolvidas pelos pensadores ao analisar a moderna sociedade ocidental no século XIX. Assim como Tocqueville, Mill elaborou medidas compensatórias no plano político de modo “a manter a opinião pública dentro dos limites da razão e da justiça, e para protegê-la das várias influências degradantes que ameaçam o lado frágil da democracia.”(Mill,1981:80), considerando que o Parlamento deveria atuar como contrapeso à coação da opinião pública massificada, dominada pelas vontades das maiorias populares.

A reação à ampliação dos espaços institucionais de manifestação da opinião

pública, no sentido de preservação das regras que limitavam a expressão da opinião popular, foi a marca característica do discurso dos representantes da imprensa liberal no governo Goulart. O Jornal condenou o direito de voto para os analfabetos no âmbito da reforma política, argumentando que faria parte de um programa socialista de governo.56 Na concepção de O Jornal, não se justificava “dar direito de voto aos analfabetos, quando os semi-analfabetos já votam tão mal, por falta de discernimento, que levaram 54 ANDRADE, Theophilo. Eloqüência e liberdade. O Jornal, 4jun1963, p.4. 55 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. SP; EDUSP, 1977, p.198. 56 REFORMAS de Base. O Jornal, 14mar1963, p.4

ao parlamento deputados russos”.57 Assim também repercutiu o texto do Jornal do Brasil que manifestou o receio da universalização do direito de voto, num país em que a população atingia 70 milhões, mas apenas 18 milhões votavam. O Jornal do Brasil publicou em primeira página o resultado de uma pesquisa realizada em parceria com a Marplan, Pesquisa e Estudos de Mercado, afirmando que “a maioria do povo do Rio de Janeiro era contra o voto do analfabeto”.58. Na concepção do jornal“ (...) a ampliação do caráter representativo da “democracia, consegue-se... pela alfabetização e não pela universalização do sufrágio dos analfabetos. Assim, procedem os países civilizados.”59 O analfabeto não era visto em condições de definir os seus interesses de forma autônoma, de realizar uma escolha racional e sua “incapacidade cultural constituirá um campo propício à fraude, à corrupção e à coação, aumentando os riscos do sistema eleitoral”60

A resistência à universalização do direito de voto é um claro indicador de que os jornais pretendiam preservar a natureza excludente das instituições políticas. Dessa perspectiva, podemos entender o discurso adotado pelos representantes da imprensa liberal, desacreditados nas instituições da democracia, quando as tradicionais esferas de formação de opinião pública sofriam concorrência não só através da maior participação dos setores populares, mas também de um Estado que, sob o governo Goulart, assumiu uma política de conteúdo nacional e reformista e justificava a intervenção nos domínios econômico e social em nome dos interesses do povo. Compartilhamos, portanto, da posição de que a intensificação ativação política das camadas populares, somada à existência de um governo que carecia de legitimidade em setores das classes dominantes, agiu como catalisador de uma reação conservadora no âmbito dos liberais brasileiros, sempre dispostos a exercer forte controle no plano social de modo a garantir, no plano das decisões políticas, um acordo reservado entre elites, 61tradicionalmente contra a ampliação da democracia.

Alguns traços desse cenário político já haviam surgido no segundo governo

Vargas, com a diferença de que a luta contra a corrupção tornou-se o tema prioritário para a oposição liderada pela UDN. Os liberais agrupados neste partido avaliavam que o sistema político criado por Vargas após 1945 funcionava com base na corrupção, carecendo, portanto de legitimidade.62 Vimos também que em alguns segmentos da imprensa liberal carioca tais como O Globo, O Jornal e a Tribuna da Imprensa, a reação ao governo Vargas, vitorioso nas eleições democráticas de 1950, se manifestou num discurso que questionava a legitimidade do presidente e expressava desconfiança com relação à representação política. Isso nos leva a aceitar que o liberalismo, apesar de constituir um forte traço do funcionamento das instituições brasileiras, revela claros limites em direcionamento à democracia. A contestação dos resultados eleitorais, as 57 ANDRADE, Theophilo. Bolchevização do PTB. O Jornal, 21mar1963, p.4. 58 Com base nos critérios de educação e de classes sociais, a pesquisa indicava que 62% dos cariocas eram contrários à concessão do direito de voto ao analfabeto, idéia que tinha apoio somente de 36% da população. As pessoas de instrução primária e secundária formavam o maior contingente dos adversários da concessão do direito de voto ao analfabeto, tendo mais defensores entre os formados (42%) do que entre os que cursavam apenas a escola primária (26%) ou entre aqueles que conseguiram chegar à escola secundária. A pesquisa indicava ainda que entre os ricos não houve indecisão, opinando contra a idéia 67%, ao passo que 33% se declaram a favor. MAIORIA do Rio é contra o voto do analfabeto,.revelou a 8ª pesquisa JB-Marplan. Jornal do Brasil, 7mai1962, p.4. 59 FRENTE institucional. Jornal do Brasil, 22dez1963, p.6. 60 ABRANCHES, Carlos A. Dunshee de. Contra o voto do analfabeto. Jornal do Brasil, 2fev1964, p.6. 61 CARVALHO, Aloysio Castelo de. A opinião pública e a CPI da Última Hora. O governo Vargas (1951-1954, São Paulo, FFLCH/USP, 2000 (Tese de Doutorado). 62 SANTOS, Wanderley Guilherme, op. cit, p.42.

reservas quanto à extensão da participação nas decisões e o apelo à intervenção militar constituiriam, segundo Maria Victoria Benevides, traços evidentes da prática liberal representada pela UDN, que justificava o golpismo em nome do liberalismo. Não há como separar as rupturas institucionais apoiadas pelos udenistas da crença difundida pelos liberais na superioridade das elites, na imaturidade do povo para votar e na identificação das reivindicações sociais com a anarquia. Os limites impostos à incorporação de novos atores sociais e políticos na arena decisória fazem parte da herança liberal. O resgate da tradição liberal conservadora, expressada pela idéia de uma democracia de feição elitista, é um dos pontos do documento de fundação da UDN, o “Manifesto Mineiro”, cujas fontes de inspiração seriam, entre outros, Tavares Bastos, Rui Barbosa e Assis Brasil.63

Poderemos entender um pouco mais a tradição dessa corrente de pensamento

no Brasil se colocarmos em foco as figuras de Assis Brasil e Rui Barbosa citadas pelos jornais cariocas no governo Goulart. Ao encarnarem os ideais liberais, Assis Brasil e Rui Barbosa eram identificados, durante a República Velha, como os exemplos da mais alta expressão política das elites intelectuais. Eles eram reconhecidos como portadores de cultura e integridade moral, representando assim os valores que deveriam estar presentes nos indivíduos participantes da vida política. É o que revelam os textos do jornal O Estado de São Paulo, entre os anos de 1927 e 1937, período que abrange a crise, o desmanche do então sistema liberal oligárquico e a reorganização do regime em moldes autoritários. No diagnóstico de O Estado de São Paulo, se a República penetrara numa fase de decadência, isso se devia a ausência de elites intelectuais do porte de Rui Barbosa, Rio Branco ou Rodrigues Alves, que seriam legados da monarquia. Ou seja, O Estado de São Paulo viu na ausência das elites intelectuais uma das causas fundamentais do caos político vivenciado pelo país, o que levou o jornal a propor a criação de universidades para o seu preparo. Assim, a educação se tornava para o jornal o recurso principal através do qual seria possível encontrar soluções para as questões nacionais. A partir da imprensa, da cátedra ou da literatura, as elites intelectuais, mesmo quando afastadas do contato direto com a política, formariam e dirigiriam a massa inculta, forjando a opinião pública e definindo o destino da nação.64

Nas páginas do jornal Estado de São Paulo na década de 20, o lugar de Rui

Barbosa foi ocupado por Assis Brasil 65, que era defensor do presidencialismo, mas percebia que esse sistema de governo se desvirtuara, nos tempos iniciais da República, na direção do despotismo, de acordo com seu trabalho “Do governo Presidencial na República brasileira”, de 1896. É o que observa José Murilo de Carvalho, para quem Assis Brasil via um conflito inevitável entre Executivo o Legislativo, uma vez que o presidente como chefe de partido era eleito pelo voto direto. Como decorrência, havia disputa entre os dois poderes sobre qual seria o detentor maior da representação popular. Para evitá-la, o presidente deveria ser escolhido de maneira distinta do Congresso, através da eleição indireta pelo Parlamento. Dessa forma o presidente seria desacreditado como instrumento de representação e deteria apenas um poder de execução.66

63 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo. Ambigüidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). RJ, Paz e Terra, 1981, 241. 64 CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino. Imprensa e ideologia: jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, Alfa-Omega, 1980, p.31, 121 a 123. 65 Idem, p.31. 66 CARVALHO, José Murilo, op. cit., p.24.

Assis Brasil era visto pelos liberais como um modelo de democrata, fazendo

parte de uma corrente de pensadores que nas primeiras décadas do século XX admitia a existência no Brasil de “uma opinião pública vigorosa...que...porém, não tem como seu melhor instrumento a eleição, entre nós, devido à pouca ou má educação do povo, ao escasso hábito do exercício da liberdade...e...às leis eleitorais...obra-prima de sofisma e fraude geral... A eleição entre nós, em regra, só serve para sagrar o arbítrio dos que governam...”67. Embora nesse discurso, apresentado por ocasião da criação do Partido Republicano Democrático em 1908, Assis Brasil tenha sistematizado a crítica liberal aos princípios autoritários do castilhismo, suas reflexões, segundo Paim, não se voltaram para formular “uma autêntica doutrina da representação”.68

O liberalismo de Rui Barbosa também foi tomado pela ilusão de que a ênfase

na questão legal seria suficiente para conter as práticas oligárquicas e autoritárias. Adepto da crença de que um bom ordenamento jurídico cria instituições eficientes e moraliza os costumes políticos, Rui Barbosa, assim como Assis Brasil, não desenvolveu uma doutrina da representação69 compatível com a diversidade de interesses vigentes na sociedade. Segundo Paim, tanto Rui Barbosa quanto Assis Brasil estariam influenciados pelo “comtismo” e desse modo “jamais abandonaram a idéia de que o governo era uma questão de competência e não a disputa entre interesses diversos.”70 Desse ponto de vista, a política perde espaço como o campo privilegiado para a resolução das questões políticas. As lutas e as negociações entre as forças sociais e políticas através de suas instituições representativas devem dar lugar, na resolução dos conflitos, a uma estrutura governamental despolitizada, cuja administração deve ficar a cargo dos que detêm formação cultural e conhecimento qualificado para dirigir o Estado.

O resgate de alguns momentos da história do liberalismo brasileiro durante o período republicano nos deu elementos para apresentar a seguinte questão. No âmbito de uma cultura de tradição elitista que impõe restrições ao acesso da vontade popular às instituições políticas e vê com desconfiança a representação política, que papel O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil atribuíram à própria imprensa durante o governo Goulart? Nossa proposição é a de que ocorreu uma valorização por parte de O Jornal, O Globo e Jornal do Brasil do modo de representatividade expressado pela imprensa em detrimento da representatividade institucional. Ocorreu por parte desses órgãos jornalísticos uma exaltação da própria imprensa como modelo de instituição representativa da opinião pública, porque se viram mais comprometidos com a preservação da ordem social liberal. Os jornais cariocas construíram uma imagem positiva da imprensa em detrimento da divulgada sobre o Congresso. Passaram a exaltar a imprensa como campo privilegiado para debater os rumos do país e conferiam a ela um lugar estratégico como contrapeso a um governo que preconizava maior intervenção do Estado, estaria se mostrando omisso diante da infiltração comunista e se dispunha a estimular a ação política das massas. Em outras palavras, os jornais se consideravam o espaço público ideal para a argumentação, em contraposição à retórica dita populista e comunista que teria se expandido no governo Goulart e estaria comprometida com a desestruturação das instituições, sobretudo do Congresso. Os jornais se colocaram na posição de porta-vozes autorizados e representativos de todos os setores sociais 67 Extraído de PAIM, Antonio. História do liberalismo brasileiro. SP, Mandarim, 1998, p.152. 68 Idem. 69 Idem, p.150. 70 Idem.

comprometidos com uma opinião que preservasse os tradicionais valores da sociedade brasileira ancorados na defesa da liberdade e da propriedade privada. É possível detectar, desde os momentos iniciais do governo, o discurso que enfatiza o papel de resistência da imprensa, como no caso da votação em novembro de 1961 pela Câmara dos Deputados da Lei de Remessa de Lucro. Segundo O Jornal, a instituição parlamentar teria “praticado um ato de suicídio perante à opinião pública”... “Sucede, porém, que as forças de defesa da república ainda não se renderam ao comunismo, como acaba de fazê-lo a maioria da Câmara do Deputados. Basta que se leiam os jornais de todo o país, depois da votação da lei amaldiçoada ”71 O Jornal marcou presença com um discurso apoiado na idéia de que o governo desrespeitava a opinião pública, que “é sentimental e ideologicamente contra Fidel Castro e seu comunismo”72 A exaltação do papel da imprensa como autêntica representação da opinião pública fica nítida quando o foco da crítica se volta para o PSD, a UDN que, pelo seu programa, deveriam assumir a oposição à política externa do governo, mas “estão traindo o seu eleitorado e conspurcando a nobre bandeira de vigilância pela liberdade”.73 Enquanto “a imprensa livre e democrática adverte e mostra os erros...os partidos políticos..., continuam inertes, remetidos a completo silêncio, abonando com esse procedimento de renúncia e omissão o processo de destruição política e moral do regime.”.74 Para reafirmar o papel institucional da imprensa como canal privilegiado de manifestação de uma opinião pública insatisfeita com os rumos políticos do país, diante de um Parlamento qualificado de “hesitante e tartamudo”75, O Jornal tomou como exemplo o governo americano que “é sensível à opinião pública e se deixa conduzir pelas suas reações. Congresso e Poder Executivo não ousam nunca contrariá-la, temendo republicanos e democratas os seus pronunciamentos nas urnas”. A fim de dar consistência ao argumento, O Jornal evocou os autores clássicos, afirmando que “De Tocqueville e Lorde Bryce mostraram como apesar do regime presidencialista submeter-se à inflexibilidade dos mandatos e por isso parecer menos maleável aos efeitos das variações da opinião, como sucede nos parlamentarismos europeus, nos Estados Unidos os governos condicionam invariavelmente as suas decisões aos resultados da auscultação da vontade e do sentimento do povo, rigorosamente traduzidos pela imprensa”.76

Na concepção dos representantes liberais cariocas, a imprensa deveria

desempenhar o papel central na regeneração das instituições, tendo em vista que as liberdades estariam ameaçadas com as políticas do governo, identificadas com um programa intervencionista, de conteúdo socialista. Numa homenagem ao centenário de nascimento de Julio Mesquita, Roberto Marinho reproduziu o texto do jornalista de O Estado de São Paulo ao reconhecer que “A República não é isto que aí está: ...tudo isto é a contrafação da República, não é a República de nossos sonhos”. Decorreu desse diagnóstico um movimento de exaltação da imprensa para se contrapor a um governo que, segundo O Globo, buscava através das reformas de base impor a igualdade social, política e econômica. Segundo o jornal, “mais do que nunca cresce de importância a missão da imprensa... da imprensa livre, democrática, cristã, da verdadeira imprensa brasileira de que é expoente O Estado de São Paulo. É preciso, como preliminar da

71 TRAIÇÃO à democracia e ao Brasil. O Jornal, 5dez1961, p.4 72 INSISTÊNCIA no erro. O Jornal, 6jan1962, p.4. 73 SUA alma, sua palma. O Jornal, 18jan1962, p.4 74 COVARDIA e incapacidade. O Jornal, 31jan1962, p.4 75 GALERA egípcia. O Jornal 12mai1962, p.4. 76 O Brasil e a opinião americana. O Jornal 2mar1962, P.4.

recuperação nacional, restabelecer a verdade, deturpada pelos demagogos, pelos agitadores, pelos inimigos da democracia.”77 Assim, O Globo conferiu uma missão política para imprensa diante de uma República que se desestruturava na perspectiva liberal conservadora. Tratava-se de garantir a reprodução dos autênticos valores da sociedade brasileira encarnados na defesa da iniciativa privada e no modelo de regime representativo defendido pelos jornais. Em pronunciamento pela Rede da Democracia, Roberto Marinho pediu que se atendesse o “quanto antes, ao dramático apelo da Sociedade Interamericana da Imprensa que, através de sua Comissão de Liberdade de Imprensa, em sua última reunião, exortou os jornalistas do continente a que detenham, sem mais demora, o avanço comunista na América” 78. Nesse ambiente de apelos anticomunistas, o tema da liberdade de imprensa ganhou destaque em diversos editoriais dos jornais cariocas para persuadir o público não só de que a imprensa de natureza privada estava ameaçada pelas práticas do governo, mas de que estava sendo pavimentado o caminho para um tipo de despotismo, o que colocaria em risco todas as outras liberdades.

Com efeito, os representantes da imprensa liberal carioca não apenas se auto-

afirmaram no campo da representação em relação ao Legislativo, mas sua investida contra o Executivo ganhou um caráter específico manifestado através da defesa da liberdade de imprensa, embora, como observou Stepan, “nunca se exerceu uma censura efetiva sobre a imprensa”79 no período que antecede o golpe. Articulada num clima de desconfiança da representação política, a bandeira da liberdade de imprensa teve o objetivo de agendar o tema do intervencionismo do Estado em todos os campos da vida social e, conseqüentemente, ampliar o debate público sobre o suposto caráter autoritário do governo. A Rede da Democracia originou-se dessas duas frentes de conflitos travados no campo da imprensa, que envolveram o Legislativo e o Executivo. Portanto, O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil distinguiram-se durante o governo Goulart em três aspectos. Além de valorizarem a imprensa como expressão da opinião pública e defenderem a liberdade de imprensa contra o que denominavam de Estado intervencionista, os jornais promoveram com a Rede da Democracia a comunicação política de oposição ao governo trabalhista.

Com a criação da Rede da Democracia, alguns dos representantes da imprensa

no Rio de Janeiro assumiram mais abertamente a postura de atores políticos. As lideranças mais expressivas do campo jornalístico carioca criaram um amplo sistema de comunicação para articular no campo discursivo os diversos setores sociais e o conjunto dos representantes da imprensa em todo o país como oposição ao governo, ao mesmo tempo em que fecharam ideologicamente seus discursos, pedindo a intervenção do Exército para conter a influência comunista no país. A Rede da Democracia não adquiriu um caráter de debate ou de confronto de opiniões para o esclarecimento da opinião pública. A missão de informar o público foi substituída pela propaganda política. Foi o próprio João Calmon, deputado pelo PSD e idealizador da Rede da Democracia, que justificou o uso do rádio como instrumento de propaganda política anticomunista. Num pronunciamento para a Rede da Democracia, gravado quando se encontrava na República Federal da Alemanha, como integrante da delegação da Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal, ele exaltou o desenvolvimento deste país em comparação com o da Alemanha comunista e justificou porque na 77 MARINHO, Roberto. O Globo, 1set1962, p.3. 78 MARINHO, Roberto. Bandeira, democracia e liberdade. O Globo, 19nov.1963, p.1. 79 STEPAN, op. cit, p.124.

República Federal da Alemanha compreendia o acerto da iniciativa representada pela Rede da Democracia. 80

Um dos temas mais divulgados pela Rede da Democracia, que revela registros de intensa atividade até meados de março de 1964, foi o da reforma agrária, compreendida em diversos pronunciamentos como um pretexto para se alterar a Constituição e o direito de propriedade, considerado a base do regime representativo. A oposição ao projeto de reforma agrária do governo, sobretudo nos meses que antecederam o golpe, apareceu vinculada à ameaça comunista, idéia que esteve presente na grande maioria das matérias publicadas e nos pronunciamentos81 veiculados pela Rede da Democracia.82 A luta anticomunista foi transformada numa questão de segurança nacional, a partir do argumento de que uma guerra revolucionária se espalhava pelo país. Isso explica a prioridade dada no campo discursivo às alianças com os militares e o apelo para que as Forças Armadas interviessem no Estado. De fato, no âmbito das homenagens aos militares mortos na Intentona Comunista de 1935, o jornalista Roberto Marinho apelou através da Rede da Democracia, no final do ano de 1963, para que “as comemorações se transformassem numa demonstração de civismo, em que civis unidos aos militares ameaçados, agora também ou mais do que há 28 anos pela traição vermelha, afirmem a sua devoção à pátria em perigo”. O jornalista terminou o pronunciamento pedindo que o “povo brasileiro” “comparecesse às romarias e manifestações” em favor da liberdade e da democracia. 83

No início do trabalho nos perguntamos sobre o papel que O Globo, O Jornal e

Jornal do Brasil atribuíram à imprensa no governo Goulart, naquele cenário de crise das instituições políticas representativas e questionamento do regime democrático. Procuramos mostrar que os jornais cariocas enfatizaram a concepção publicista da opinião pública em detrimento de uma concepção institucional. Além de ressaltarem a noção de opinião pública, utilizando-a como eixo central de seus discursos, os jornais liberais valorizaram a própria imprensa no papel de representante da sociedade e responsabilizaram o governo pelo crescimento das tensões políticas. Diante das pressões sociais sobre o sistema político e da avaliação de que o Congresso encontrava-se paralisado, os jornais entenderam que a instituição legislativa, fragmentada e sofrendo os reflexos da polarização política e ideológica, perdera a condição de lugar central onde se desenvolvia uma argumentação voltada para a defesa dos tradicionais valores da sociedade brasileira. Ao não tomar a iniciativa de negociar e aprovar um projeto alternativo de reformas sociais, o Legislativo não estaria cumprindo a função política de contrapeso às investidas do Executivo, que ameaçavam os direitos de 80“Não esqueçamos que Hitler ascendeu ao poder graças a utilização eficiente deste fabuloso instrumento que é o rádio. E chego à conclusão que devemos empenhar-nos cada vez mais na batalha da propaganda” para combater os totalitários de direita ou de esquerda que manipulam tal arma com maior dinamismo e eficiência...” Ver : CALMON à Rede da Democracia: Desenvolvimento da RFA desmente falsos nacionalistas do Barsil. O Jornal, 03dez1963, p.3. 81 Recolhemos todas as matérias sobre os pronunciamentos veiculados pela Rede da Democracia e publicados pelo O Jornal entre o dia 22 de outubro de 1963 e 22 de março de 1964. Obtivemos 72 matérias, somando no total 204 pronunciamentos. O material encontra-se na parte final do trabalho (Ver anexo). 82 Jean-Marie Domenach cita em seu livro uma frase de Goebbels que é bastante elucidativa do que é propaganda política: “Fazer propaganda é falar de uma idéia por toda a parte, até nos bondes”. Domenach analisou a propaganda política do tipo leninista e hitlerista. DOMENACH, Jean-Marie. La propaganda política. Buenos Aires. Editorial Universitária de Buenos Aires, 1962. 83Ver : Roberto Marinho na Rede da Democracia: “Data da intentona não só lembra a traição, mas advertência e decisão” O Jornal, 10nov1963, p.3.

propriedade privada. Nesse ambiente, a imprensa foi colocada na posição de guia da nação, portadora da racionalidade, considerada o espaço público ideal para debater os rumos políticos do país.

No âmbito da interpretação em que os representantes da imprensa liberal

pretendiam ser reconhecidos como a principal expressão legítima da opinião pública, porque mais comprometidos não só com a preservação das vigentes estruturas econômico-sociais capitalistas, mas com a adoção de um modelo de desenvolvimento sem restrições à entrada dos investimentos do capital estrangeiro e favorável a um alinhamento internacional liderado pelos Estados Unidos, procuramos explicar a criação da Rede da Democracia, cujos esforços se voltaram para articular ideologicamente os setores civis e militares oposicionistas ao governo. A Rede da Democracia colocou a imprensa no centro das mobilizações para a reorganização do poder político e pregou uma mentalidade de guerra para combater o comunismo, entendido como uma forma de despotismo típica da contemporaneidade que ameaçava o ideal de liberdade sob o qual se desenvolveu a moderna civilização ocidental. A Rede da Democracia é uma evidência de que os representantes da imprensa liberal assumiram formas de ação direta no cenário político, o que confere a eles características de atores no sistema pretoriano.84 Vasto sistema de comunicação organizado por todo o país e comprometido com a propaganda política anticomunista, a rede sinalizou no campo discursivo a existência de uma coalizão conservadora disposta a lutar pela preservação da ordem social dominante e conter as investidas do Executivo contra os princípios que regem a propriedade privada. Portanto, os representantes da imprensa carioca não se restringiram às tradicionais funções de intermediação jornalística, ao dar publicidade às decisões parlamentares e aos atos do governo. Ao mesmo tempo em que questionaram a credibilidade das instituições representativas e exaltaram a si próprios como representantes da opinião pública, os jornais se organizaram politicamente através da Rede da Democracia e fomentaram a intervenção das Forças Armadas, quando ideais igualitários estimulavam as camadas populares a reivindicarem sua incorporação no processo decisório do país.

As análises dos textos de O Jornal, O Globo e Jornal do Brasil mostraram que

os representantes cariocas resgataram a tradição do discurso liberal. Foi possível encontrar semelhanças entre os textos dos jornais e o pensamento de representantes do liberalismo europeu e americano, que atribuíram uma conotação negativa ao ingresso das massas no cenário social e político. Pensadores como Mill e Tocqueville, ao qual o texto jornalístico fez referência, bem como Ortega y Gasset, reagiram às mudanças da natureza do público com o avanço das pressões democráticas, além de enfatizarem o papel das elites na formação de uma consciência crítica como base para a liberdade do indivíduo. No âmbito do pensamento liberal brasileiro, Assis Brasil e Rui Barbosa foram considerados pelos jornais referências históricas, ambos representando a tradição elitista que dá prioridade ao problema da governabilidade em relação ao da representatividade.

Ao resgatarem a tradição liberal, os jornais acabaram por reproduzir o papel

ambíguo desse discurso na cultura política brasileira. Não só vocalizaram demandas por liberdade, mas também apelaram para a intervenção repressiva do Estado. Isso nos leva a aceitar que a imprensa de natureza privada, defensora da economia de mercado, soube

84 HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudanças. USP, 1975, p.208.

articular no momento de crise das instituições representativas os discursos liberal e autoritário. Os representantes da imprensa se apropriaram desses discursos sociais e assim agiram para evocar dois tipos de legitimidade, de modo a responder aos desafios colocados à dominação capitalista sobre o Estado. Os jornais defenderam a preservação das instituições representativas liberais, mas evocaram a legitimidade da luta contra o comunismo e a necessidade de ordem interna como condição para a retomada do desenvolvimento econômico. Isso significa que os jornais compartilharam temas abordados pela Doutrina de Segurança Nacional desenvolvida pela Escola Superior de Guerra, que discutia um novo papel para os militares na sociedade brasileira. Instituição de referência na formulação do pensamento anticomunista, a ESG foi valorizada nos textos de O Globo e O Jornal. Vimos que a Doutrina de Segurança Nacional resgatou elementos do moderno pensamento militar formulado pelo general Góis Monteiro, segundo o qual as corporações militares e os valores de disciplina e hierarquia constituíam um modelo superior para organizar a sociedade e integrar a nação. De conteúdo conservador, a Doutrina de Segurança Nacional não apenas criou no contexto de Guerra Fria e de uma suposta guerra revolucionária comunista a base comum para a interpretação da crise política. Ela justificava a intervenção militar pelo argumento de que a natureza conflituosa da sociedade confrontava o projeto de elevar o Brasil ao patamar de potência capitalista ocidental. Nos moldes do pensamento autoritário, tal como formulado por Alberto Torres e Oliveira Vianna, a doutrina valorizou a idéia de que a sociedade brasileira necessitava, naquele contexto de acirramento dos conflitos entre as classes, ser tutelada para se modernizar economicamente. Ela enfatizava a competência de uma elite militar e civil que, preparada e educada segundo os valores de segurança nacional, deveria desempenhar as tarefas de governo, de modo a definir os caminhos que se deveria percorrer para alcançar o progresso do país.

Com base nessas concepções sobre os fundamentos do poder que atribuem

uma conotação negativa aos conflitos sociais, encontra-se não só a proposição do Estado como agente catalizador de mudanças, projetando valores e disciplinando a sociedade, de forma a conter as ameaças comunistas e garantir o desenvolvimento econômico. Nesse ambiente de guerra ideológica observou-se a exaltação do caráter representativo da imprensa. Assim, o paradoxo dos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil, organizados na Rede da Democracia, consistiu no fato de que eles combateram o intervencionismo social e econômico do governo Goulart na suposição de que este estava associado aos movimentos populares de massa comandados pelos trabalhistas e comunistas, visando ao desmanche das instituições representativas e à edificação de um tipo de Estado de inspiração rousseauniana, autoproclamado expressão da vontade coletiva e sem limites para se sobrepor aos direitos dos indivíduos. Ao mesmo tempo, os jornais cariocas demandaram a intervenção militar e valorizaram a imprensa como via de representação da opinião pública em detrimento do Legislativo. Desse modo, eles conferiram ao discurso jornalístico um sentido político próprio e justificaram uma posição de predominância no esquema de poder que então se configurava com a conspiração civil-militar contra o governo. Alguns dos representantes da imprensa liberal podem ter visto a oportunidade de exercer a hegemonia sobre a representação da opinião pública, alimentado expectativas de ocupar um lugar central nas mediações da sociedade com o Estado delineado no imaginário conservador.