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SOARES, M. Letramento - um tema em três gêneros

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Copyright © 1998 by Magda Soares

PROJETO GRAFICO

Cristiane Línhares

CAPA

Mirella SpinelliRejane Dias(Sobre o quadro "As Meninas" de Renoir)

COORDENAÇAo

CEALE/FaE - UFMG

EDITORAÇAO ELETR6NICA

C/arice Maia Scotti

REVISAo

Luiz PrazeresRosa Maria Drumond CostaAna Carolina Uns Brandão

Sumário

EDITORA RESPONSAvEL

Rejane Dias

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópiaxerográfica sem a autorização prévia da editora.

APRESENTAÇÃO 09AUTÊNTICA EDITORA lTDA.

Rua Aimorés, 981, 80 andar. Funcionários30140-071. Belo Horizonte. MGTel: (55 31) 3222 68 19TELEVENDAS: 0800 283 13 22www.autenticaeditora.com.br Letramento em verbete

O QUE É LETRAMENTO?

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do livro)

CDU-372.4

Letramento em texto didáticoO QUE É LETRAMENTO

EALFABETIZAÇÃO

27Soares, Magda.Letramento: um tema em três gêneros / Magda Soares. - 3. ed. -Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.128p.

ISBN 978-85-86583-16-2

1. Alfabetização. 2. Leitura. 3. Escrita. I. Título.

S6761 Letramento em ensaioLETRAMENTO: COMO DEFINIR,COMO AVALIAR, COMO MEDIR

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Apresentando a coleção 17

Apresentando a coleção

LINGUAGEM & EDUCAÇÃO

o CEALE, Centro de Alfabetização, Leitura e Escritada Faculdade de Educação da UFMG, criado em 1991,tem procurado produzir e socializar o conhecimento sobrea alfabetização, a leitura, a escrita e o ensino da línguaportuguesa e da literatura brasileira nas escolas. Para issotem realizado cursos, seminários, conferências, debates, as-sim como viabilizado diferentes tipos de publicações quepossibilitem essa socialização.

A Coleção Linguagem & Educação, que o CEALEinaugura - em parceria com a Editora Autêntica - com olivro Letramento: um tema em três gêneros, propõe-se asocializar estudos a respeito das relações entre os fenôme-nos da linguagem, a escola e a sociedade, realizados porpesquisadores tanto da UFMG como de outras instituiçõesnacionais e do exterior. Coloca-se, assim, como um espa-ço aberto para interlocuções nessa área de estudos.

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8 I Letramento Apresentação I 9

A decisão pela escolha do tema fetramento para inau-gurar o primeiro número da coleção apoia-se na necessi-dade de se responder a inquietaçôes sobre os usos daleitura e da escrita, cada vez mais colocadas pelas socie-dades atuais. O número restrito de trabalhos sobre o tema,e a excelência dos textos da professora Magda Soares,respeitada pesquisadora na área de linguagem e educa-ção, justifica plenamente a nossa escolha.

CEALEApresentação

UM TEMA, TRÊS GÊNEROS

Ler um texto, como você está fazendo agora, é instau-rar uma situação discursiva. Aliás, no caso deste texto quevocê lê agora, essa situação discursiva já se iniciou nomomento mesmo em que você tomou nas mãos este livro,observou a capa, uma ilustração, certas cores, um título,um nome próprio, o da autora, folheou as primeiras pági-nas, viu um sumário, que anuncia três textos ... e, sob ainfluência desses elementos, chega a esta página e come-ça a ler esta Apresentação - que leitura estará você produ-zindo deste texto?

É a relação que agora se está estabelecendo entre nós -entre mim, autora, e você, leitor ou leitora - que construiráo sentido deste texto. Mas eu busco controlar esse sentidoque você construirá tomando as minhas precauçôes: estouescrevendo este texto para um certo leitor, não para umqualquer leitor genérico e abstrato, e é buscando interagircom esse leitor, que imagino e pretendo, que escrevo este

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10 I LetramentoApresentação I I I

texto como o estou escrevendo - neste estilo, com estaorganização, distribuindo assim as ideias, dividindo-as emperíodos e parágrafos assim como estou fazendo, lançandomão de certos "protocolos de leitura". O gênero destaApresentação está sendo o resultado da função que atri-buo a ela e das condições especificas em que a produzo;estou supondo: alguém tomou este livro nas mãos, e es-tará se perguntando: um tema em três gêneros? que sen-tido terá "gênero" aqui? e por que um mesmo tema emtrês gêneros? para quê? Porque atribuo a esta Apresenta-ção a função de responder a essas perguntas e porqueestou supondo um certo leitor, com certos interesses, comcertos conhecimentos prévios, com certa disposição paraler esta Apresentação e folhear este livro, escrevo aquicomo estou escrevendo: neste gênero.

Os dois parágrafos anteriores terão deixado claro quegênero aqui tem o sentido que lhe dá Bakhtin: "cada esferade utilização da língua elabora seus tipos relativamente es-táveis de enunciados, sendo isso que denominamos gê-neros do discurso". E terão deixado claro também que ogênero do discurso, no caso da interação por meio da escrita, éresultado da função que o autor atribui ao texto, do leitorespecífico para quem o autor escreve, das condições deprodução do texto. Por isso, um mesmo tema pode serdesenvolvido em diferentes gêneros discursivos. Indo alémdaquilo que é mais frequente dizer-se quando se discute,numa perspectiva discursiva, o texto escrito - que, de ummesmo texto, diferentes leitores constroem diferentes leitu-ras - pretendeu-se aqui evidenciar outra coisa: que sobre ummesmo tema podem (devem?) ser produzidos, em dife-rentes situações discursivas, diferentes textos para dife-rentes leitores, em função dos seus objetivos, interesses,características - um mesmo tema em diferentes gêneros.

Um mesmo tema - letramento, este novo conceito re-cém-introduzido no campo da Educação, das Ciências So-ciais, da História, das Ciências Linguísticas.

Três gêneros - três diferentes textos produzidos em trêsdiferentes condições discursivas, com três diferentes funçõese objetivos, para três diferentes grupos de leitores, anterior-mente publicados em três diferentes portadores.

Em primeiro lugar, um texto produzido para o leitor-professor com o objetivo de esclarecer o significado deletramento; mais especificamente, um texto informativo,descritivo e crítico, produzido para a seção "Dicionáriocrítico da Educação" de uma revista pedagógica - o temaletramento no gênero verbete.

Em segundo lugar, um texto produzido para o professor-leitor-estudante, envolvido em atividades de aperfeiçoa-mento e atualização profissional; mais especificamente,um texto que procura provocar e orientar a reflexão doprofessor, buscando suscitar e acompanhar os diversos enem sempre previsíveis caminhos do processo de apren-dizagem, texto produzido para utilização em cursos, semi-nários, oficinas de formação continuada - o temaletramento no gênero texto didático.

Finalmente, um texto destinado a profissionais respon-sáveis por, em diferentes instâncias, avaliar e medir letra-mento e alfabetização, publicado originalmente como umamonografia elaborada para um organismo internacional(Unesco), portanto, para um técnico-leitor internacionalem busca de suporte teórico para suas atividades de ava-liação e medida de letramento e alfabetização; mais espe-cificamente, um texto analítico, argumentativo, questionador,em que ideias são submetidas a cuidadoso escrutínio - otema letramento no gênero ensaio.

Informações mais detalhadas sobre os objetivos e con-dições de produção de cada um desses textos precedemcada um deles; mas cabe aqui ainda responder a umaúltima questão que o leitor desta Apresentação certamentegostaria de ver respondida: que objetivo tem este livro emque se propõe um só tema em três gêneros? Ou, dizendo

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12 I Letramento

de outra forma: a que leitor se destina este livro? Há duasrespostas a essa pergunta.

A primeira resposta é que, embora os textos sejam, decerta forma, recorrentes, não se repetem: a especificidadeda relação autor-leitor em cada texto conduz a uma situa-ção discursiva diferente, que constrói um texto tam-bém diferente; assim, os textos antes se somam que serepetem, cada um ampliando, na sequência em que sãoapresentados, o tema único letramento.

A segunda resposta é que o que neste livro se pretende énão apenas discutir uma conceituação de letramento ealfabetização, em suas diferentes facetas e dimensões, mastambém sugerir ao leitor a possibilidade de interações dis-cursivas diferenciadas sobre o mesmo tema, em textos es-critos, em função de diferentes relações autor-leitor ediferentes condições de produção, gerando textos de dife-rentes gêneros.

O leitor pretendido para este livro é, assim, aquele quese interessa por letramento e alfabetização, por habilida-des e práticas sociais de leitura e escrita, e que também seinteressa por uma análise discursiva das práticas de pro-dução de texto e de leitura, e busca compreender asrelações autor - texto - leitor, e suas consequências naprodução de diferentes práticas discursivas e diferentesgêneros discursivos.

LETRAMENTO EMVERBETE:

o QUE É LETRAMENTO?

Texto'publicado no periódico "Presença Pedagógica", v. -l,n. 10,jullâgo: /996, na seção '''Dicionário crítico da educação",. . .

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Verbete 115

Letramento é palavra recém-chegada ao vocabulárioda Educação e das Ciências Linguísticas: é na segundametade dos anos 80, há cerca de apenas dez anos, por-tanto, que ela surge no discurso dos especialistas dessasáreas. Uma das primeiras ocorrências está em livro deMary Kato, de 1986 (No mundo da escrita: uma pers-pectiva psicolínguística, Editora Ática): a autora, logo noinício do livro (p.7), diz acreditar que a língua faladaculta "é consequência do letramento" (grifo meu).': Doisanos mais tarde, em livro de 1988 (Adultos não alfabeti-zados: o avesso do avesso, Editora Pontes), Leda VerdianiTfouni, no capítulo introdutório, distingue alfabetizaçãode letramento: talvez seja esse o momento em que letra-mento ganha estatuto de termo técnico no léxico doscampos da Educação e das Ciências Linguísticas. Desdeentão, a palavra torna-se cada vez mais frequente nodiscurso escrito e falado de especialistas, de tal formaque, em 1995, já figura em título de livro organizado porÂngela Kleiman: Os significados do /etramento: umanova perspectiva sobre a prática social da escrita (grifomeu, ver referência na nota 1).

I Ângela Kleiman levanta a hipótese de que Mary Kato fé que terá cunhado o termoletramento (ver nota ela p.17 em KLElMAN,A. (Org.). Os significados do letrarnento: umanova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado ele Letras, 1995).

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o que explica o surgimento recente dessa palavra? No-vas palavras são criadas (ou a velhas palavras dá-se umnovo sentido) quando emergem novos fatos, novas ideias,novas maneiras de compreender os fenômenos. Que novofato, ou nova ideia, ou nova maneira de compreender apresença da escrita no mundo social trouxe a necessidadedesta nova palavra, fetramento?

Se a palavra letramento ainda causa estranheza a mui-tos, outras palavras do mesmo campo semântico semprenos foram familiares: analfabetismo, analfabeto, alfabeti-zar, alfabetização, alfabetizado e, mesmo, letrado e ile-trado. Analfabetismo, define o Novo Dicionário Aurélioda Língua Portuguesa, é o "estado ou condição de analfa-beto", e analfabeto é o "que não sabe ler e escrever", ouseja, é o que vive no estado ou condição de quem nãosabe ler e escrever; a ação de alfabetizar, isto é, segundoo Aurélio, de "ensinar a ler" (e também a escrever, que odicionário curiosamente omite) é designada por alfabeti-zação, e alfabetizado é "aquele que sabe ler" (e escre-ver). Já fetrado, segundo o mesmo dicionário, é aquele"versado em letras, erudito", e iletrado é "aquele que nãotem conhecimentos literários" e também o "analfabeto ouquase analfabeto". O dicionário Aurélio não registra a pa-lavra "letramento". Essa palavra aparece, porém, num di-cionário da língua portuguesa editado há mais de umséculo, o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguc-sa, de Caldas Aulete: na sua 3ª edição brasileira," o verbete

"letramento" caracteriza a palavra como "ant.", isto é, "an-tiga, antiquada", e lhe atribui o significado de "escrita"; overbete remete ainda para o verbo "letrar" a que, comotransitivo direto, atribui a acepção de "investigar, soletran-do" e, como pronominal "letrar-se", a acepção de "adqui-rir letras ou conhecimentos literários" - significados bemdistantes daquele que hoje se atribui a fetramento (que,como já dito, não aparece no Aurélio, como também nelenão aparece o verbo "letrar").

Certamente, pois, não fomos buscar no "letramento"dicionarizado por Caldas Aulete, e já por ele consideradovocábulo antigo, antiquado, o termo fetramento com osentido que hoje lhe damos. Onde fomos buscá-Ia? Trata-se,sem dúvida, da versão para o Português da palavra dalíngua inglesa literacy.

Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim lit-tera (letra), com o sufixo -cy, que denota qualidade, con-dição, estado, fato de ser (como, por exemplo, eminnocency, a qualidade ou condição de ser inocente). NoWebster's Diciionary, literacy tem a acepção de "the condi-tion of being literate", a condição de ser literate.' e literateé definido como "educated; especially able to read andwrite", educado, especialmente, capaz de ler e escrever.Ou seja: literacy é o estado ou condição que assume aque-le que aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceitoestá a ideia de que a escrita traz consequências sociais,culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas,quer para o grupo social em que seja introduzida, querpara o indivíduo que aprenda a usá-Ia. Em outras pala-vras: do ponto de vista individual, o aprender a ler e es-crever - alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se

2 o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas Aulete teve as slIastrês primeiras edições em Lisboa (1881, 1925 e 1948); a quarta edição, l" I'rillll"irabrasileira, é de 1958 (a segunda edição brasileira é de 1963 e a terceira, dl:lda 110texto, é ele 1974). Como o dicionário sofreu numerosas modificações ao 1<lllgo dl"suas sucessivas edições, só uma pesquisa nessas edições permitiria den-nnin.u Sl' :I

palavra letramento aparece desde a primeira edição, ou se foi introduzidn vm "di<"loposterior, ou se sofreu mudança em sua acepção ao longo do tempo. I'l'S'ILliS;ISdessa natureza em dicionários contribuem sobremaneira para a d;Jr:H,'~'I() dv f:Itn,c.; ,idéias e fenômenos e para a identificaçào do processo de transform"(11I dessesfatos, ideias e fenômenos ao longo do tempo.

3 Enquanto já incorporamos ao português a palavra letramento, correspondente aoinglês iiteracy, ainda não temos palavra correspondente ao inglês lüerate, quedesigna aquele que vive em estado ou na condição de saber ler e escrever; a palavraletrado ainda conserva, em Português, o sentido de "versado em letras, erudito".

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181 LetramentoVerbete 119

alfabetizado, adquirir a "tecnologia" do ler e escrever eenvolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita _tem consequências sobre o indivíduo, e altera seu esta-do ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais,políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômi-cos; do ponto de vista social, a introdução da escrita emum grupo até então ágrafo tem sobre esse grupo efeitosde natureza social, cultural, política, econômica, linguístí-ca. O "estado" ou a "condição" que o indivíduo ou ogrupo social passam a ter, sob o impacto dessas mudan-ças, é que é designado por literacy.'

É esse, pois, o sentido que tem fetramento, palavra quecriamos traduzindo "ao pé da letra" o inglês literacy. tetre-,do latim littera,e o sufixo -mento, que denota o resultado deuma ação (como, por exemplo, em ferimento, resultado daação de ferir). Letramento é, pois, o resultado da ação deensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condi-ção que adquire um grupo social ou um indivíduo comoconsequência de ter-se apropriado da escrita.

Dispúnhamos, talvez, de uma palavra mais "verná-cula": alfabetismo, que o Aurélio (que não dicionarizaletramen to, como já dito) registra, atribuindo a essa pala-vra, entre outras acepções, a de "estado ou qualidade dealfabetizado". Entretanto, embora dicionarizada, alfabetis-mo não é palavra corrente, e, talvez por isso, ao buscaruma palavra que designasse aquilo que em inglês já sedesignava por literacy, tenha-se optado por verter a pala-vra inglesa para o português, criando a nova palavra fe-tramento. Curiosamente, em Portugal tem-se preferido otermo literacia, mais próximo ainda do termo inglês. Valea pena citar as palavras de António Nóvoa em prefácio

que faz à obra recente de ]ustino Pereira de Magalhães,'porque elas abonam o uso de literacia e ainda afirmam adiferença entre esse termo e o termo analfabetismo, escla-recendo o sentido do primeiro: António Nóvoa lamentaque Portugal vá "fechar o século XX com níveis intolerá-veis de analfabetismo (talvez da ordem dos 15%) e comníveis ainda mais baixos de literacia, entendida aqui comoa utilização social da competência alfabética" (grifos meus).

É significativo refletir sobre o fato de não ser de usocorrente a palavra alfabetismo, "estado ou qualidade dealfabetizado', enquanto seu contrário, analfabetismo, "es-tado ou condição de analfabeto", é termo familiar e deuniversal compreensão. O que surpreende é que o subs-tantivo que nega - analfabetismo se forma com o prefixogrego a( n) -, que denota negação - seja de uso correntena língua, enquanto o substantivo que afirma - alfabetis-mo - não seja usado. Da mesma forma, analfabeto, quenega, é também palavra corrente, mas nem mesmo temosum substantivo que afirme o seu contrário (já que alfabe-tizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e a escre-ver, não aquele que adquiriu o estado ou a condição dequem se apropriou da leitura e da escrita, incorporandoas práticas sociais que as demandam). A explicaçãonão é difícil e ajuda a clarear o sentido de alfabetismo,ou fetramento.

Como foi dito inicialmente, novas palavras são criadas, oua velhas palavras dá-se um novo sentido, quando emergemnovos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreenderos fenômenos. Conhecemos bem, e há muito, o "estado oucondição de analfabeto", que não é apenas o estado oucondição de quem não dispõe da "tecnologia" do ler e do

" Na língua francesa, a palavra correspondente a iIliteracy é illettrisme, que sedistingue de analpbabétisme. analpbabête é o que não sabe ler e escrever; illettré éo que lê e escreve mal, e não sabe fazer uso ela leitura e da escrita.

S Ler e escrever no mundo rural do Antigo Regime: um contributo para a bistôria daalfabetização e da escolarização em Portugal. Universidade do Minho, Instituto deEducação, 1994.

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20 ILetramento

escrever: o analfabeto é aquele que não pode exercer emtoda a sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aqueleque a sociedade marginaliza, é aquele que não tem acessoaos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso,grafocêntricas; porque conhecemos bem, e há muito, esse"estado de analfabeto", sempre nos foi necessária uma pa-lavra para designá-Io, a conhecida e corrente analfabe-tismo.Já o estado ou condição de quem sabe ler e escrever,isto é, o estado ou condição de quem responde adequada-mente às intensas demandas sociais pelo uso amplo e dife-renciado da leitura e da escrita,esse fenômeno só recentementese configurou como uma realidade em nosso contexto so-cial. Antes, nosso problema era apenas o do "estado oucondição de analfabeto" - a enorme dimensão desse pro-blema não nos permitia perceber esta outra realidade, o"estado ou condição de quem sabe ler e escrever", e, porisso, o termo analfabetismo nos bastava, o seu oposto _alfabetismo ou fetramento - não nos era necessário. Sórecentemente esse oposto tornou-se necessário, porquesó recentemente passamos a enfrentar esta nova realidadesocial em que não basta apenas saber ler e escrever, épreciso também saber fazer uso do ler e do escrever,saber responder às exigências de leitura e de escritaque a sociedade faz continuamente - daí o recente surgi-mento do termo fetramento (que, como já foi dito, vem-se tornando de uso corrente, em detrimento do termosltebetismoy» Curiosamente, o mesmo fenômeno ocor-reu na língua inglesa, em que illiteracy foi termo corrente

" Um claro indicador de que a palavra letramento é nova no léxico da LínguaPortuguesa e ainda de circulação restrita à área acadêmica é a tradução que se fezrecentemente do termo literacy na versão para o Português da importante obraLiteracy and Orality, editada por David R. Olson e Nancy Torrance (Cultura escritae oraiidade, Editora Ática, 1995): o termo literacy, tanto no título da obra quanto aolongo de todos os capítulos, foi inadequadamente traduzido por "cultura escrita",ignorando-se o termo letramento (ou mesmo alfabetismoj, e prejudicando-se assimenormemente a correta compreensão dos textos, já que a expressão "cultura escrita"de forma nenhuma expressa o conceito que literacy nomeia.

Verbete I 21

muito antes que o termo literacy emergisse: o Oxford En-glish Dictionary registra o termo illiteracy desde 1660, aopasso que seu contrário literacy só surge no fim do séculoXIX. Certamente o surgimento neste momento do termoliteracy representa uma mudança histórica das práticassociais: novas demandas sociais de uso da leitura e daescrita exigiram uma nova palavra para designá-Ias. (Ob-serve-se que o que ocorreu na Grã-Bretanha em fins doséculo XIX, motivando o aparecimento do termo literacy,só agora, em fins do século XX, vem ocorrendo no Brasil,motivando a criação do termo letramento.)

Quanto à mudança na maneira de considerar o signifi-cado do acesso à leitura e à escrita em nosso país - damera aquisição da "tecnologia" do ler e do escrever àinserção nas práticas sociais de leitura e escrita, de queresultou o aparecimento do termo fetramento ao lado dotermo alfabetização - um fato que sinaliza bem essamudança, embora de maneira tímida, é a alteração do cri-tério utilizado pelo Censo para verificar o número de anal-fabetos e de alfabetizados: durante muito tempo,considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de escrevero próprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à per-gunta "sabe ler e escrever um bilhete simples?" que definese o indivíduo é analfabeto ou alfabetizado. Ou seja: daverificação de apenas a habilidade de codificar o próprionome passou-se à verificação da capacidade de usar aleitura e a escrita para uma prática social (ler ou escreverum "bilhete simples"). Embora essa prática seja ainda bas-tante limitada, já se evidencia a busca de um "estado oucondição de quem sabe ler e escrever", mais que a verifi-cação da simples presença da habilidade de codificar emlíngua escrita, isto é, já se evidencia a tentativa de avalia-ção do nível de fetramento, e não apenas a avaliação dapresença ou ausência da "tecnologia" do ler e escrever.

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221 Letramento

A avaliação do nível de fetramento, e não apenas dapresença ou não da capacidade de escrever ou ler (o índi-ce de alfabetização) é o que se faz em países desen-volvidos, em que a escolaridade básica é realmenteobrigatória e realmente universal, e se presume, pois, quetoda a população terá adquirido a capacidade de ler eescrever. Assim, de um modo geral, esses países tomamcomo critério para avaliar o nível de letramento da popu-lação o número de anos de escolaridade completados pe-los indivíduos (4, 5 ou mais, dependendo do país que seesteja considerando e ainda do momento histórico: o nú-mero de anos de escolaridade tomado como critério cresceao longo do tempo, à medida que crescem as demandassociais de leitura e escrita): o pressuposto é que a escola,em 4, 5 ou mais anos, terá levado os indivíduos não só àaquisição da "tecnologia" do ler e do escrever, mas tam-bém aos usos e práticas sociais da leitura e da escrita, auma adequada imersão no mundo da escrita. O que inte-ressa a esses países é a avaliação do nível de fetramentoda população, não o índice de alfabetização, e frequen-temente buscam esse nível pela realização de censos poramostragem em que, por meio de numerosas e variadasquestões, avaliam o uso que as pessoas fazem da leitura eda escrita, as práticas sociais de leitura e de escrita de quese apropriaram.

Sendo assim, é importante compreender que é a tetre-mento que se estão referindo os países desenvolvidosquando denunciam, como têm feito com frequência, Ín-dices alarmantes de illiteracy (Estados Unidos, Grã-Bre-tanha, Austrália) ou de illettrisme (França) na população;na verdade, não estão denunciando, como se costuma crerno Brasil, um alto número de pessoas que não sabem lere escreuer (fenômeno a que nos referimos nós, brasilei-ros, quando denunciamos o nosso ainda alto índice deanalfabetismo), mas estão denunciando um alto número

Verbete 123

de pessoas que evidenciam não viver em estado ou con-dição de quem sabe ler e escrever, isto é, pessoas quenão incorporaram os usos da escrita, não se apropria-ram plenamente das práticas sociais de leitura e de es-crita: em síntese, não estão se referindo a índices dealfabetização, mas a níveis de fetramento. Um exem-plo é a pesquisa desenvolvida na segunda metade dosano 80 nos Estados Unidos, buscando identificar o nívelde letramento (literacy) de jovens americanos (faixa etá-ria de 21 a 25 anos): em primeiro lugar, os instrumentosutilizados avaliaram as habilidades de ler, compreendere usar textos em prosa, como editoriais, reportagens, poe-mas, ete. e de localizar e usar informações extraídas demapas, tabelas, quadros de horários, etc., o que eviden-cia que o objetivo não foi verificar se os jovens sabiamler e escrever - se eram alfabetizados - mas se sabiamfazer uso de diferentes tipos de material escrito, com-preendê-Ias, interpretá-Ias e extrair deles informações -que nível de letramento tinham; em segundo lugar, aconclusão da pesquisa foi que a illiteracy (a incapaci-dade de ler e escrever, isto é, o analfabetismo) não eraum problema entre os jovens, a literacy (a capacidadede fazer uso da escrita, isto é, o letramento) é queconstituía o problema.

A diferença entre alfabetização e fetramento ficaclara também na área das pesquisas em Educação, emHistória, em Sociologia, em Antropologia. As pesquisasque se voltam para o estudo do número de alfabetizadose analfabetos e sua distribuição (por região, por sexo,por idade, por época, por etnia, por nível socioeconômico,entre outras variáveis), ou que se voltam para o númerode crianças que a escola consegue levar à aprendizagemda leitura e da escrita, na série inicial, são pesquisassobre alfabetização; as pesquisas que buscam identifi-car os usos e práticas sociais de leitura e escrita em

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241 Letramento

determinado grupo social (por exemplo, em comunidadesde nível socioeconôrnico desfavorecido, ou entre crian-ças, ou entre adolescentes), ou buscam recuperar, combase em documentos e outras fontes, as práticas de leitu-ra e escrita no passado (em diferentes épocas, em dife-rentes regiões, em diferentes grupos sociais) são pesquisassobre fetramento.

Uma última inferêricia que se pode tirar do conceitode fetramento é que um indivíduo pode não saber lere escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser, de certaforma, letrado (atribuindo a este adjetivo sentido vin-culado a letramento). Assim, um adulto pode ser anal-fabeto, porque marginalizado social e economicamente,mas, se vive em um meio em que a leitura e a escritatêm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura dejornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas queoutros leem para ele, se dita cartas para que um alfabe-tizado as escreva (e é significativo que, em geral, ditausando vocabulário e estruturas próprios da língua es-crita), se pede a alguém que lhe leia avisos ou indica-ções afixados em algum lugar, esse analfabeto é, decerta forma, fetrado, porque faz uso da escrita, envol-ve-se em práticas sociais de leitura e de escrita. Damesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou,mas já folheia livros, finge lê-Ios, brinca de escrever, ouvehistórias que lhe são lidas, está rodeada de material es-crito e percebe seu uso e função, essa criança é ainda"analfabeta", porque não aprendeu a ler e a escrever,mas já penetrou no mundo do fetramento, já é, decerta forma, fetrada. Esses exemplos evidenciam a exis-tência deste fenômeno a que temos chamado tetremen-to e sua diferença deste outro fenômeno a que chamamosalfabetização, e apontam a importância e necessidadede se partir, nos processos educativos de ensino e

Verbete I 25

aprendizagem da leitura e da escrita voltados seja paracrianças, seja para adultos, de uma clara concepção des-ses fenômenos e de suas diferenças e relações.

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TEXTO DIDÁTICO:

o QUE É LETRAMENTOE ALFABETIZAÇÃO

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T_,;_J29

Neste texto, vamos discutir conceitos e, portanto, pala-vras, ou, se quiserem, vamos discutir palavras e, portanto,conceitos: os conceitos alfabetização e letramento, as pa-lavras alfabetização e letramen to.

Em um primeiro momento, gostaria de fazer um "passeio"pelo campo semântico em que se inserem essas palavras,esses conceitos. São palavras de uso comum, conhecidas,exceto talvez letramento, palavra ainda desconhecida oumal entendida, ou ainda não plenamente compreendidapela maioria das pessoas, porque é palavra que entrou nanossa língua há muito pouco tempo.

ALFABETIZAÇÃOALFABETIZAR ALFABETIZADO

ANALFABETISMO ANALFABETO

LETRAMENTO

LETRAMENTO ILETRADO

ALFABETISMO

Não precisamos definir essas palavras, porque estamosfamiliarizados com elas, talvez com exceção apenas dapalavra letramento. Mas vou me deter nelas para conduzirnossa reflexão em direção ao sentido de letramento.

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30 I Letramento

Vejamos as definições que aparecem no dicionário Au-rélio:

ANALFABETISMO:estado ou condição de analfabeto

a(n) + alfabet + ismo~ ~

a-; prefixo grego(acrescenta -se um -n-quando a palavra a queé adicionado começacom vogal)indica:privação, falta deExemplos:acéfalo.sem cabeça, sem cérebroamoral.privado de moral

-ismo. sufixoindica:modo de proceder,de pensarExemplos:heroismo:procedimento de heróiservilismo:procedimento servil

ANALFABETO: que não conhece o alfabeto,que não sabe ler e escrever

a(n) + alfabeto

Nas palavras analfabetismo e analfabeto aparece o pre-fixo a (n)«

Analfabeto é aquele que é privado do alfabeto, a quefalta o alfabeto, ou seja, aquele que não conhece o alfabe-to, que não sabe ler e escrever.

(Ao pé da letra, significa aquele que não sabe nem o alfa, nem obeta - atfa e beta são as primeiras letras do alfabeto grego; emoutras palavras: aquele que não sabe o bê-a-bâ.)

Em analfabetismo, aparece ainda o sufixo -ismo. apalavra significa um modo de proceder como analfabeto,ou seja: analfabetismo é um estado, uma condição, o modode proceder daquele que é analfabeto.

T_~,,~.J.\1

ALFABETIZAR:ensinar a ler e a escrever

alfabet + izar~

-izer. sufixoindica:tornar, fazer com queExemplos:suavizar: tornar suaveindustrializar:tornar industrial

Alfabetizar é tornar o indivíduo capaz de ler e escrever.

ALFABETIZAÇÃO: ação de alfabetizar

Alfabet + iza(r) + ção~

-çêo: sufixo que formasubstantivosindica: açãoExemplos:traição: ação de trairnomeação:ação de nomear

Alfabetização é a ação de alfabetizar, de tornar "alfa-beto".

Causa estranheza o uso dessa palavra "alfabeto", naexpressão "tornar alfabeto". É que dispomos da palavraanalfabeto, mas não temos o contrário dela: temos apalavra negativa, mas não temos a palavra positiva.

É no campo semântico dessas palavras que conhecemosbem - analfabetismo, analfabeto, alfabetização, alfabeti-zar - que surge a palavra letramento. Como surgiu essapalavra e o que ela quer dizer?

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321 Letramento

LETRAMENTO?

Conhecemos as palavras letrado e iletrado.

LETRADO: versado em letras, erudito

ILETRADO: que não tem conhecimentos literários

uma pessoa letrada = uma pessoa erudita, versada em'letras (letras significando literatura, línguas);

uma pessoa iletrada = uma pessoa que não tem conhe-cimentos literários, que não é erudita; analfabeta, ou qua-se analfabeta.

O sentido que temos atribuído aos adjetivos letrado eiletrado não está relacionado com o sentido da palavraletramento.

A palavra letramento ainda não está dicionarizada, por-que foi introduzida muito recentemente na língua portu-guesa, tanto que quase podemos datar com precisão suaentrada na nossa língua, identificar quando e onde essapalavra foi usada pela primeira vez.

Parece que a palavra letramento apareceu pela primei-ra vez no livro de Mary Kato: No mundo da escrita: umaperspectiva psicolinguística, de 1986. [Consulte o rodapé,se quiser a referência completa.]' Na página 7, a autoradiz o seguinte:

Acredito ainda que a chamada norma-padrão, ou língua falada culta,é conseqüência do letramento, motivo por que, indiretamente, éfunção da escola desenvolver no aluno o domínio da linguagem faladainstitucionalmente aceita. (grifo meu)

1 KATO, Mary A. No mundo da escrita: uma perspectiva psicounguisuca. São Paulo:Ática, 1986. (Série Fundamentos)

Texto didático I33

A palavra letramento não é, como se vê, definida pelaautora e, depois dessa referência, é usada várias vezes nolivro; foi, provavelmente, essa a primeira vez que a pala-vra letramento apareceu na língua portuguesa - 1986.

LEIA SE QUISER:

É interessante verificar que a substantivo do verbo letrar, quepalavra letramento aparece há significava o que hoje chamamosum século atrás, no dicionário de soletrar. Estarnos, pois, dianteCaldas Aulete, já ali indica da elo caso de uma palavra quecomo palavra antiga ou anti- "morreu" e "ressuscitou" emquada, palavra fora de uso, e 1986 ... É este um belíssimocom um sentido que não é o exemplo de como a língua éque a palavra letramento tem algo realmente vivo, de como ashoje; segundo o Dicionário Cal- palavras vão morrendo e nascendodas Aulete, letramento significa- conforme fenômenos sociais eva o mesmo que escrita, culturais vão ocorrendo.

Depois da referência de Mary Kato, em 1986, a palavraletramento aparece em 1988, no livro que, pode-se dizer,lançou a palavra no mundo da educação, dedica páginas àdefinição de letramento e busca distinguir letramento dealfabetização: é o livro Adultos não alfabetizados: o avessodo avesso, de Leda Verdiani Tfouni, um estudo sobre omodo de falar e de pensar de adultos analfabetos. [Consulte orodapé, se quiser a referência completa.F

Mais recentemente, a palavra tornou-se bastante cor-rente, aparecendo até mesmo em título de livros, por exem-plo: Os significados do letramento, coletânea de textosorganizada por Ângela Kleiman, livro de 1995; Alfabetiza-ção e letra men to, da mesma Leda Verdiani Tfouni, ante-riormente mencionada, livro também de 1995. [Consulte orodapé, se quiser as referências cornpletas.P

2 TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. São Paulo:Pontes, 1988. (Coleçào Linguagem/Perspectivas),3 KLEIMAN, Ânge1a 13. (org.). Os significados do letrarnento: uma nova perspectivasobre a prática social da escrita, Campinas, SI': Mercado de Letras, 1995.TFOUNI, Leda Verdiani. Alfabetizaçâo e letramento. S'lO Paulo: Cortez, 1.995. (ColeçãoQuestões de nossa época).

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34 I Letramento

Na busca de esclarecer o que seja letramento, talvezseja interessante refletirmos sobre o seguinte: vivemos sé-culos sem precisar da palavra letramento; a partir dosanos 80, começamos a precisar dessa palavra, inventamosessa palavra - por quê, para quê?

Por que aparecem palavras novas na língua?

Resposta

Na língua sempre aparecempalavras novas quando fenô-menos novos ocorrem, quan-do uma nova idéia, um novofato, um novo objeto surgem,são inventados, e então é ne-cessário ter um nome paraaquilo, porque o ser humanonão sabe viver sem nomear ascoisas: enquanto nós não asnomeamos, as coisas parecemnão existir.

Um exemplo

Hoje em dia se usa com muitafrequência a palavra globaliza-çâo, abrimos o jornal e lá está apalavra globalização; poucosanos atrás, ninguém usava essapalavra, não no sentido com quea estamos usando atualmente.Por que surgiu a palavra.globa-lização? Porque surgiu umfenômeno novo na economiamundial e foi preciso dar umnome a esse fenômeno novo -surge assim a palavra nova.

VEIA OUTROS EXEMPLOS. SE QUISER:

Um exemplo mais familiar de sur-gimento de uma nova palavra é ocaso da palavra televisão, que foiíntroduzída na língua nos anos 50,época em que apareceu esse novomeio de comunicação e foi preci-so dar um nome a ele.Outros exemplos são as palavrasligadas ao uso do computador: háuma série de palavras que estão

entrando na língua, por exemplo,micreiro; que designa a pessoa usu-ária do mícrocornputador, inter~nauta, ou seja, a pessoa que "na-vega" na Internet, e ainda a intro-dução, no nosso vocabulário coti-diano, de palavras da área da infor-mática, como acessar; significandoestabelecer contato, e dele/ar, quevem substituindo a palavra apagar.

Portanto: o termo letramento surgiu porque apareceuum fato novo para o qual precisávamos de um nome, umfenômeno que não existia antes, ou, se existia, não nos

Textodidático I35

dávamos conta dele e, como não nos dávamos conta dele,não tínhamos um nome para ele.

Três perguntas precisam agora ser respondidas:

Qual é osignificado dessa

palavra letramento?

Por que surgiuessa nova palavra,

letramento?

Onde fomosbuscar essa nova

palavra, letramento?

Comecemos por responder à última pergunta.

ONDE FOMOS BUSCAR A PALAVRA LETRAMENTO?

Na verdade, a palavra letramento é uma tradução parao português da palavra inglesa literacy, os dicionários de-finem assim essa palavra:

LITERACY:the condition of being literate

littera + cyt t

palavra latina = letra -cy: sufixoindica:qualidade, condição, estadoExemplo:innocency.condição de inocente.

Traduzindo a definição acima, literacy é "a condiçãode ser letrado" - dando à palavra "letrado" sentido diferen-te daquele que vem tendo em português. [Recorra à pági-na 32, se precisar recordar qual é esse sentido.] Em inglês,o sentido de literate é:

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361~_~LITERATE: educated; especially able to read and write

educado; especificamente, que tem a habilidadede ler e escrever

Literate é, pois, O adjetivo que caracteriza a pessoa quedomina a leitura e a escrita, e literacy designa o estado oucondição daquele que é literate, daquele que não só sabeler e escrever, mas também faz uso competente e frequen-te da leitura e da escrita.

Há, assim, uma diferença entre saber ler e escrever, seralfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabeler e escrever, ser letrado (atribuindo a essa palavra o senti-do que tem literate em inglês). Ou seja: a pessoa que apren-de a ler e a escrever - que se torna alfabetizada - e quepassa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se naspráticas sociais de leitura e de escrita - que se torna letrada- é diferente de uma pessoa que não sabe ler e escrever - éanalfabeta - ou, sabendo ler e escrever, não faz uso daleitura e da escrita - é alfabetizada; mas não é letrada, nãovive no estado ou condição de quem sabe ler e escrever epratica a leitura e a escrita.

o adjetivo letrado, e seu feminino letrada serão usados norestante deste texto com um significado que não é o quetêm (por enquanto) nos dicionários: serão usados paracaracterizar a pessoa que, além de saber ler e escrever,faz uso frequente e competente da leitura e da escrita.Serão usados também os adjetivos i1etradoliletrada comoseus antônimos.

Estado ou condição: essas palavras são importantes paraque se compreendam as diferenças entre analfabeto, alfabe-tizado e letrado; o pressuposto é que quem aprende a ler e aescrever e passa a usar a leitura e a escrita, a envolver-se empráticas de leitura e de escrita, torna-se uma pessoa diferente,adquire um outro estado, uma outra condição.

T.~,;_J37Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é

a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, ela pas-sa a ter uma outra condição social e cultural - não setrata propriamente de mudar de nível ou de classe social,cultural, mas de mudar seu lugar social, seu modo deviver na sociedade, sua inserção na cultura - sua relaçãocom os outros, com o contexto, com os bens culturaistorna-se diferente.

Há a hipótese de que tornar-se letrado é também tornar-secognitivamente diferente: a pessoa passa a ter uma formade pensar diferente da forma de pensar de uma pessoaanalfabeta ou iletrada.

SE DESEJAR LER PESQUISAS QUE EXPLORAM ESSA HIPÓTESE:

o livro de Leda Verdiani Tfouni Luria, relatada no livro dessejá citado, Adultos não alfabeti- autor traduzido para o portu-zados. o avesso do avesso relata guês como Desenvolvimentopesquisa baseada nessa hípó- cognitivo: seus fundamentostese; uma pesquisa clássica nessa culturais e sociais, São Paulo:área é a do psicólogo russo Ícone, 1990.

Tornar-se letrado traz, também, consequências línguís-ticas: alguns estudos têm mostrado que o letrado fala deforma diferente do iletrado e do analfabeto; por exemplo:pesquisas que caracterizaram a língua oral de adultosantes de serem alfabetizados e a compararam com a lín-gua oral que usavam depois de alfabetizados concluíramque, após aprender a ler e a escrever, esses adultos pas-saram a falar de forma diferente, evidenciando que oconvívio com a língua escrita teve como consequênciasmudanças no uso da língua oral, nas estruturas linguís-ticas e no vocabulário.

SE QUISER LER UM POUCO MAIS SOBRE ISSO:

Mary Kato, no livro já citado, duçào do capítulo, páginas 10No mundo da escrita, trata a 12, e o item "A fala pré-dessa questão no capítulo 1: letramento e pós-letramento",leia, particularmente, a intro- páginas 22-23.

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381 Letramento

Enfim: a hipótese é que aprender a ler e a escrever e,além disso, fazer uso da leitura e da escrita transformamo indivíduo, levam o indivíduo a um outro estado oucondição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo,linguístico, entre outros.

Tentamos responder, até aqui, a uma das três perguntasda página 35:

RESPONDIDA?

Qual é osignificado dessa

palavra letramento?

Por que surgiuessa nova palavra,

letramento?

Onde fomosbuscar essa nova

palavra, letramento?

Busquemos, agora, a resposta à primeira pergunta.

FINALMENTE, UMA DEFINiÇÃO DE LETRAMENTO

Chegamos finalmente à palavra e ao conceito letra-mento:

letra + mento1- 1-

forma portuguesa dapalavra latina littera

-mento: sufixoindica:resultado de uma açãoExemplo:ferimento:resultado da ação de ferir

Portanto: letramento é o resultado da ação de "letrar-se", se dermos ao verbo "Ietrar-se" o sentido de "tornar-seletrado".

Texto didático 139

LETRAMENTO

Resultado da ação de ensinar e aprender aspráticas sociais de leitura e escrita

O estado ou condição que adquire

um grupo socialou um indivíduo

como consequência de ter-se apropriadoda escrita e de suas práticas sociais

Observação importante: ter-se apropriado da escri-ta é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: aprendera ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a decodificar em língua escrita e de decodificar a língua escri-ta; apropriar-se da escrita é tornar a escrita "própria", ouseja, é assumi-Ia como sua "propriedade".

o EXEMPLO ABAIXO PODE TORNAR MAIS CLARA ESSA DIFERENÇA; LEIA-O, SE (ULGAR NECESSÁRIO.

Retomemos a grande diferença entre alfabetização e le-tramento, entre alfabetizado e letrado [se necessário, revejaas pp.36, 38]: um indivíduo alfabetizado não é neces-sariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele

Grupos indígenas são sociedadeságrafas, isto é, sociedades semescrita [observe, na palavra ágrafa,a presença do prefixo grego a-,já discutido: a-grafa = sem grafia,sem escrita].Alfabetizar índios significa dar aeles acesso à tecnologia de leiturae de escrita, o que os tornará alfa-betizados, mas não letrados.Introduzir no grupo práticas

sociais de leitura e de escrita (aleitura de livros, a escrita de car-tas, o registro por escrito de suacultura, a troca documentada emrecibos, a sinalização de habi-tações, caminhos e locais compalavras e frases, ete.) significamudar seu estado ou condição:ele passa a ser um grupo dife-rente nos aspectos cultural, social,político, linguístico, psíquico.

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40 ILetramento

indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, oindivíduo que vive em estado de letramento, é não sóaquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa social-mente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita,responde adequadamente às demandas sociais de leitura ede escrita.

LETRAMENTO DEFINIDO NUM POEMA

Uma estudante norte-americana, de origem asiática, KateM. Chong, ao escrever sua história pessoal de letramento,define-o em um poema; a tradução do poema, com asnecessárias adaptações, é a seguinte [para a referênciado livro em que o poema foi publicado, na língua origi-nal, veja o rodapé]."

.\ Mcl.AUGHUN, M. & VOGT, M.E. Portfolios in Teacber Education. Newark, De:Internatíonal Reading Association, 1996.

Texto didático I41

o QUE É LETRAMENTO?

Letramento não é um ganchoem que se pendura cada som enunciado,não é treinamento repetitivode uma habilidade,nem um marteloquebrando blocos de gramática.

Letrarnento é diversãoé leitura à luz de velaou lá fora, à luz do sol.

São notícias sobre o presidente,o tempo, os artistas da TVe mesmo Mônica e Cebolinbanos jornais de domingo.

É uma receita de biscoito,uma lista de compras, recados colados na geladeira,um bilhete de amor,telegramas de parabéns e cartasde velhos amigos.

É viajar para países desconhecidos,sem deixar sua cama,é rir e chorarcom personagens, heróis e grandes amigos.

É um atlas do mundo,sinais de trânsito, caças ao tesouro,manuais, instruções, guias,e orientações em bulas de remédios,para que você não fique perdido.

Letramento é, sobretudo,um mapa do coração do homem,um mapa de quem você é,e de tudo que você pode ser.

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42 I Letramento

Se você deseja uma explicação do poema, leia estapágina e a página seguinte; se julga desnecessária

essa explicação, passe logo à página 44.

o QUE É LETRAMENTO?

Letramento não é um ganchoem que se pendura cada som enunciado,não é treinamento repetitivode uma habilidade,nem um marteloquebrando blocos de gramática.

Letramento é diversão,É leitura à luz de velaOu lá fora, à luz do sol.

São notícias sobre o presidente,o tempo, os artistas da TV,e mesmo Mônica e Cebolinhanos jornais de domingo.

Letramento não é alfabe-tização: esta é que é um pro-cesso de "pendurar" sons emletras ("ganchos"); costumaser um processo de treino,para que se estabeleçam asrelações entre fonemas e gra-femas, um processo de des-monte de estruturas linguís-ticas ("um martelo quebran-do blocos de gramática").

Letramento é prazer, é lazer,é ler em diferentes lugarese sob diferentes condições,não só na escola, em exer-cícios de aprendizagem.

Letramento é informar-seatravés da leitura, é buscarnotícias e lazer nos jornais,é interagir com a imprensadiária, fazer uso dela, sele-cionando o que despertainteresse, divertindo-se comas tiras de quadrinhos.

É uma receita de biscoito,uma lista de compras, recados colados na

geladeira,um bilhete de amor,telegramas de parabéns e cartasde velhos amigos.

É viajar para países desconhecidos,sem deixar sua cama,é rir e chorarcom personagens, heróis e grandes amigos.

É um atlas do mundo,sinais de trânsito, caças ao tesouro,manuais, instruções, guias,e orientações em bulas de remédios,para que você não fique perdido.

Letramento é, sobretudo,um mapa do coração do homem,um mapa de quem você é,e de tudo que você pode ser.

Texto didático I 43

Letramento é usar a leiturapara seguir instruções (a re-ceita de biscoito), para apoioà memória (a lista daquiloque devo comprar), para acomunicação com quem estádistante ou ausente (o reca-do, o bilhete, o telegrama).

Letramento é ler históriasque nos levam a lugares desco-nhecidos, sem que, para isso,seja necessário sair da camaonde estamos com o livro nasmãos, é emocionar-se com ashistórias lidas, e fazer, dospersonagens, amigos.

Letramento é usar a escritapara se orientar no mundo(o atlas), nas ruas (os sinaisde trânsito), para receberinstruções (para encontrarum tesouro para montarum aparelho para tomar umremédio), enfim, é usar a es-crita para não ficar perdido.

Letramento é descobrir a simesmo pela leitura e pelaescrita, é entender-se, lendoou escrevendo (delinear omapa de quem você é), e édescobrir alternativas e possi-bilidades, descobrir o quevocê pode ser.

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441 Letramento

o poema mostra que letramento é muito mais que alfa-betização. Ele expressa muito bem como o letramento é umestado, uma condição: o estado ou condição de queminterage com diferentes portadores de leitura e de escrita,com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, comas diferentes funções que a leitura e a escrita desempe-nham na nossa vida. Enfim: letramenro é o estado ou condi-ção de quem se envolve nas numerosas e variadas práticassociais de leitura e de escrita.

LEIA SE QUISER:

Há uma palavra que talvez seria palavra alfabetismo. Ao contrá-mais adequada para designar esse rio de letramento, é uma palavraestado ou condição que estarnos dicionarizada, com a seguinte defi-denominando letramento. a nição no Dicionário Aurélio:

Alfabetismo = estado ou qualidade de alfabetizado

De uma forma sintética, é o mes- Uma curiosidade: em Portugal,mo sentido de Ietrameruo. Alfabe- tem-se usado a palavra literacia,USlnO teria a vantagem de apre- não se conhece a palavra letra-sentar-se como o antônimo ele anal- mento - literacia é uma rranspo-fabetismo que, como vimos (página sição muito mais próxima da pala-30), é o "estado ou condição ele anal- vra literacy, do inglês. [Se quiser[abeto". Mas é a palavra letramento um exemplo do uso da palavraque se vem impondo, na área elos literacia na literatura educacionalestudos sobre a leitura e a escrita. portuguesa, leia o rodapé.P

Tentamos responder, até agora, a duas das três pergun-tas da página 35:

, Antônio Nóvoa, um conhecido autor português ele obras na área da Educação,afirma, ao prefaciar Lima obra recente (Ler e escrever no mundo rural do AntigoRegime: um contributo para. a história da alfabetização e da escolarizaçâo emPortugal, de justir.o Pereira de Magalhães, 1994):

"Portugal vai fechar O século XX com níveis intoleráveis ele analfabetismo (talvez ela ordemdos 15%) e C0111 níveis ainda mais baixos de literacia, entendida aqui como a utilizaçãosocial ela competência alfabética." (grífos meus). A citação faz mais que comprovar o usoela palavra lüeraaa em Portugal: se pensarmos na situação brasileira, concluiremos quetambém nós fecharemos o século XX na mesma situação - com níveis intoleráveis deanalfabetismo e níveis baíxíssimos de letrarnenro, ou lireracia, ou alfabetísrno.

Texto didático 145

RESPONDIDA? RESPONDIDA?

Qual é osignificado dessa

palavra letramento?

Por que surgiuessa nova palavra,

letramento?

Onde fomosbuscar essa nova

palavra, letramento?

Qual é a resposta para a última pergunta?

POR QUE SURGIU A PALAVRA LETRAMENTO?

A palavra analfabetismo nos é familiar, usamos essapalavra há séculos, ela já está presente em textos do tem-po em que éramos Colônia de Portugal. É um fenômenointeressante: usamos, há séculos, o substantivo que nega(recorde a análise da palavra analfabetismo na página 30:a(n) + alfabetismo = privação de alfabetismo), e não sentí-amos necessidade do substantivo que afirmasse: alfabetis-mo ou letramento. Por que só agora, no fim do séculoXX, a palavra letramento tornou-se necessária?

Como já foi dito anteriormente [recorde o item "Por queaparecem palavras novas na língua?" Página 34], palavrasnovas aparecem quando novas ideias ou novos fenômenossurgem, Convivemos com o fato de existirem pessoas quenão sabem ler e escrever, pessoas analfabetas, desde o BrasilColônia, e ao longo dos séculos temos enfrentado o proble-ma de alfabetizar, de ensinar as pessoas a ler e escrever;portanto: o fenômeno do estado ou condição de analfabe-to nós o tínhamos (e ainda temos ... ), e por isso sempretivemos um nome para ele: analfabetismo.

À medida que o analfabetismo vai sendo superado, queum número cada vez maior de pessoas aprende a ler e aescrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedadevai se tornando cada vez mais centrada na escrita (cadavez mais grafocêntrica), um novo fenômeno se evidencia:não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas sealfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessa-riamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não

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461 Letramento

necessariamente adquirem competência para usar a leiturae a escrita, para envolver-se com as práticas sociais deescrita: não lêem livros, jornais, revistas, não sabem redigirum ofício, um requerimento, uma declaração, não sabempreencher um formulário, sentem dificuldade para escreverum simples telegrama, uma carta, não conseguem encon-trar informações num catálogo telefônico, num contrato detrabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio ... Essenovo fenômeno só ganha visibilidade depois que é minima-mente resolvido o problema do analfabetismo e que o de-senvolvimento social, cultural, econômico e político traznovas, intensas e variadas práticas de leitura e de escrita,fazendo emergirem novas necessidades, além de novas alter-nativas de lazer. Aflorando o novo fenômeno, foi precisodar um nome a ele: quando uma nova palavra surge nalíngua, é que um novo fenômeno surgiu e teve de ser nome-ado. Por isso, e para nomear esse novo fenômeno, surgiu apalavra letramento.

LEIA SE OUISER:

Também na língua inglesa, apalavra que nega - illiteracy -foi usada muito antes que a queafirma - literacy: desde o sécu-lo XVII os dicionários de línguainglesa registram a palavra illi-teracy, enquanto só no final doséculo XIX passam a registrar

literacy. Isso quer dizer que ofenômeno que se evidenciouentre nós neste fim do século XX,exigindo a palavra letramento,já se evidenciara nos EstadosUnidos e na Inglaterra no final doséculo XIX... estamos atrasadosem "apenas" um século ...

Estarão agora respondidas as três perguntas da página 35?

RESPONDIDA? RESPONDIDA?RESPONDIDA?

Qual é osignificado dessa

palavra letramento?

Onde fomosbuscar essa nova

palavra, letramento?

Por que surgiuessa nova palavra,

letramento?

Compreendido o que é letramento, por que surgiu a pa-lavra letramento, qual a origem da palavra letramento, pode-se voltar à diferença entre letramento e alfabetização:

Texto didático 147

ALFABETIZAÇÃO: ação de ensinar/aprender a ler e a escrever

LETRAMENTO: estado ou condição de quem não apenas sabe ler eescrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita

cultiva = dedica-se a atividades de leitura e escritaexerce = responde às demandas sociais de leitura e escrita

Precisaríamos de um verbo "letrar"para nomear a ação delevar os indivíduos ao letramento ... Assim, teríamos alfabeti-zare letrarcomo duas ações distintas, mas não inseparáveis,ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensi-nar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais daleitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, aomesmo tempo, alfabetizado e letrado.

LEIA, SE OUISER APROFUNDAR-SE NAS DIFERENCAS ENTRE "ALFABETIZADO" E "LETRADO":

Um adulto pode ser analfabeto eletrado:não sabe ler nem escrever,mas usa a escrita: pede a alguémque escreva por ele, dita umacarta, por exemplo (e é interes-sante que, quando dita, usa asconvenções e estruturas linguís-ticas próprias da língua escrita,evidenciando que conhece aspeculiaridades da língua escrita)- não sabe escrever, mas conheceas funções da escrita, e usa-as,lançando mão de um "instru-mento" que é o alfabetizado (quefunciona como uma máquina deescrever. ..); pede a alguém queleia para ele a carta que recebeu,ou uma notícia de jornal, ou umaplaca na rua, ou a indicação doroteiro de um ônibus - não sabeler, mas conhece as funções daescrita, e usa-a, lançando mão doalfabetizado. É analfabeto, masé, de certa forma, letrado, ou temum certo nível de letramento.Uma criança pode ainda não seralfabetizada, mas ser letrada:

uma criança que vive num con-texto de letramento, que convivecom livros, que ouve históriaslidas por adultos, que vê adultoslendo e escrevendo, cultiva eexerce práticas de leitura e deescrita: toma um livro e fingeque está lendo (e aqui de novoé interessante observar que,quando finge ler, usa as conven-ções e estruturas linguísticaspróprias da narrativa escrita),toma papel e lápis e "escreve"uma carta, uma história. Ainda nãoaprendeu a ler e escrever, mas é,de certa forma, letrada, tem jáum certo nível de letramento.Uma pessoa pode ser alfabeti-zada e não ser letrada: sabe lere escrever, mas não cultiva nemexerce práticas de leitura e deescrita, nào lê livros, jornais,revistas, ou nào é capaz deinterpretar um texto lido: temdificuldades para escrever umacarta, até um telegrama - é alfa-betizada, mas não é letrada.

Page 24: SOARES, M. Letramento - um tema em três gêneros

48 I letramento

Alfabetizado e/ou letrado - uma nova pergunta se im-põe:

Como diferenciar o apenas alfabetizado do letrado?

É difícil a resposta a essa pergunta, porque letramentoenvolve dois fenômenos bastante diferentes, a leitura e aescrita, cada um deles muito complexo, pois constituídode uma multiplicidade de habilidades, comportamentos,conhecimentos:

Ler É um conjunto de habilidades e comporta-mentos que se estendem desde simplesmentedecodificar sílabas ou palavras até ler Gran-de Sertão Veredas de Guimarães Rosa ...uma pessoa pode ser capaz de ler um bi-lhete, ou uma história em quadrinhos, e nãoser capaz de ler um romance, um editorialde jornal. .. Assim: ler é um conjunto dehabilidades, comportamentos, conhecimen-tos que compõem um longo e complexocontinuum: em que ponto desse continuumuma pessoa deve estar, para ser considera-da alfabetizada, no que se refere à leitura?A partir de que ponto desse continuumuma pessoa pode ser considerada letrada,no que se refere à leitura?

Escrever É também um conjunto de habilidades ecomportamentos que se estendem desde sim-plesmente escrever o próprio nome até es-crever uma tese de doutorado ... uma pessoa

Texto didático 149

pode ser capaz de escrever um bilhete, umacarta, mas não ser capaz de escrever umaargumentação defendendo um ponto de vis-ta, escrever um ensaio sobre determinadoassunto ... Assim: escrever é também umconjunto de habilidades, comportamentos,conhecimentos que compõem um longo ecomplexo continuum: em que ponto dessecontinuum uma pessoa deve estar, para serconsiderada alfabetizada, no que se refere àescrita? A partir de que ponto desse conti-nuum uma pessoa pode ser consideradaletrada, no que se refere à escrita?

Conclui-se que há diferentes tipos e níveis de letramen-to, dependendo das necessidades, das demandas do indi-víduo e de seu meio, do contexto social e cultural.

LETRAMENTO É UMA PALAVRA PLURAL? LEIA SE QUISER:

Na literatura educacional e linguís- o que evidencia o reconhecimentotica em língua inglesa, a palavra de que há diferentes tipos e níveisliteracy vem sendo frequente- de lueracy. Deveríamos talvez usarmente usada no plural - literacies, letramento no plural - tetrameruosi

analfabeto e alfabetizado, alfabetizado e letrado:conceitos imprecisos

Page 25: SOARES, M. Letramento - um tema em três gêneros

50 I Letramento

Eleições de 1996. O jornal Folha de São Paulo, em 19de julho de 1996, publica a seguinte notícia:

BAURU

Candidaturassãoinnpugnadasapõsteste de alfabetização

da Ag~nda Folha. em BaUIU

o juiz eleitoral de Itapetininga[airo Sampaio Incane Filho, 38,impugnou 20 dos 80 candidatosa prefeito e vereador das cidadesde ltapetininga, Sarapuí e Alam-bari, na região de Sorocaba (87km a oeste de São Paulo).

A impugnação foi motivadapelo fato de os candidatos teremsido reprovados em um teste dealfabetização realizado pelo juiz,no Fórum de Itapetininga.

Ineane Filho disse que fez otexto com base na exigência con-

tida na Lei Complementar nO64/90, de 1992, do TRE (TribunalRegional Eleitoral), que proíbeanalfabetos de serem candidatosa cargos eletivos.

O juiz afirmou que convocouos 80 candidatos que disseramter l- grau incompleto e mostra-ram dificuldades no preenchi-mento doa documentos para oregistro de suas candidaturas.

Os testes com os candidatos fo-ram feitos individualmente.Seus nomes são mantidos em si-gilo. "Pedi a todos que lessem einterpretassem um texto de um

jornal infantil. Em seguida, pedique cada um redigisse um texto,expondo sua lógica", disse.

Segundo lncane Filho, errosgramaticais Dio foram levadosem conta. "Apenas observei se ocandidato tem condições de en-tender um texto, pois uma vezeleito, ele YlÚ ter de trabalharcom leis edocurnentos."

A assessoria de imprensa doTRE informou que o tribunaltransmitiu uma recomendaçãoaos juízes para que "em caso dedúvida", laçam "um teste de al-fabetização" nos candidatos.

Texto didático \5\

Baseado numa lei que "proíbe analfabetos de serc 111

candidatos a cargos eletivos", o juiz submeteu candidatosa prefeito e a vereador a "um teste de alfabetização".

Que razões levaram o JUIZ asupor que 80 candidatos eramanalfabetoS?

Duas razões:1ª) tinham 1Q grau incompleto;2ª) mostraram dificuldades no

preenchimento dos docu-mentos para o registro desuas candidaturas.

Portanto: para o juiz, um alfabetizado seria alguém quetivesse o 1º grau completo e preenchesse formulários semdificuldades.

No entanto, o juiz admitiu que, embora não tendo o 1ºgrau completo e revelando dificuldades para preencherdocumentos de registro de candidatura, o candidato a pre-feito ou vereador poderia ser considerado alfabetizado:

Segundo o juiz, que compor-tamentos o candidato deveriademonstrar, para não ser con-siderado analfabeto?

o candidato deveria:• Ler e interpretar um texto;• redigir um texto sobre o

texto lido.

O juiz definiu ainda o nível do texto que o candidatodeveria ser capaz de interpretar e o critério de correçãodas respostas do candidato:

Segundo o juiz, o candidatodeveria ser capaz de ler e in-terpretar que tipo de texto?

Segundo o juiz, com que crité-rios os resultados do candida-to deveriam ser avaliados?

• texto de um jornal infantiL.

• não levar em conta errosgramaticais;

• verificar se o candidato tinhaentendido o texto.

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521 Letramento

o juiz admitiu, pois, que um candidato a prefeito oua vereador poderia não ter o 1º grau completo, poderiaenfrentar dificuldades para preencher documentos,mas deveria ser capaz de ler e interpretar um texto dejornal infantil, e de redigir um texto sobre o que lera,mesmo cometendo erros gramaticais; e justificou essescritérios:

Por que o juiz considerou queser capaz de entender um tex-to era o critério adequado paraavaliar se o candidato a pre-feito ou vereador poderia serconsiderado alfabetizado?

• Porque, se eleito, ele teria detrabalhar com leis e docu-mentos (que deveria saberler e interpretar).

o juiz mostrou ter dois conceitos de alfabetização:um conceito genérico, aplicável a qualquer pessoa - ter o

1º grau completo e ser capaz de preencher documen-tos, sem dificuldades;

um conceito especifico, aplicável a pessoas que exercem afunção de prefeito ou vereador - ser capaz de ler einterpretar textos legais e documentos oficiais.

TALVEZ VOCÊ QUEIRA REFLETIR UM POUCO MAIS SOBRE ESSE EPISÓDIO:

• A alfabetização que o juizconsidera necessária a prefei-tos e vereadores estará sendoavaliada num teste que medea capacidade de ler e inter-pretar um texto ele jornalinfantil?

• Fica claro que, para o juiz, aspráticas sociais que envolvema língua escrita necessárias aprefeitos e vereadores são asde leitura ele textos legais e

documentos oficiais - é estauma concepção adequada?

• Será que se pode concordar queo nível de alfabetização de umindivíduo deve ser definido pelasexigências das práticas sociaisespecíficas que ele precisa ter coma escrita, segundo sua inserçãono mundo elo trabalho?

• Pense: o juiz procura avaliar o nívelde alfabetização ou o nível deletramento dos candidatos?

Texto didático 153

Mas continuemos, porque o episódio não termina aí.Cerca de vinte dias depois, em 7 de agosto, o mesmojornal Folha de São Paulo publica a seguinte notícia:

ALFABETlZAÇAO

TREaprovacandidaturade reprovadosem teste

da Reportagem Local

o plenário do Tribunal RegionalEleitoral aprovou ontem a candi-datura de 30 políticos que foramreprovados em um teste de alfabe-tização aplicado pelo juiz eleitoralde Itapetininga, [airo Sampaio In-cane Filho, 38.

O juiz havia impugnado as can-didaturas de políticos das cidadesde Itapetininga, Sarapuí e Alamba-ri, todas na região de Sorocaba (87km a oeste de São Paulo). Eles tive-ram que ler o texto de um suple-mento infantil de um jornal e es-crever algo sobre o que leram .

Incane Filho convocou para esseteste 80 candidatos que afirmaramnão ter o primeiro grau completo.Os testes se basearam na lei com-plementar n!! 64/90, de 1992, queproíbe analfabetos de serem can-didatos a cargos eletivos.

O TRE reformou a sentença dojuiz, considerando que os candi-datos tinham "rudimentos" da al-fabetização e que, portanto, nãopoderiam ser considerados analfa-betos. Para chegar a essa conclu-são, os juizes utilizaram a defini-ção do dicionário Aurélio para apalavra "analfabeto".

O TRE deverá julgar hoje outrosonze recursos apresentados peloscandidatos impugnados daquelascidades, A aplicação de testes de al-fabetização é uma orientação dopróprio TRE a todos os juizes elei-torais do Estado.

Entre os candidatos impugnadospelo juiz Incane Filho, havia umex-prefeito e seis vereadores. JoséLuiz Holtz (PSDB), ex-prefeito deSarapuí, considerou a decisão dojuiz de Itapetininga "um absur-do". Seu candidato a vice tambémfoi impugnado.

Segundo o juiz Incane Filho, oteste que aplicou não levou emconsideração os erros gramaticais,mas apenas a capacidade dos can-didatos de entender um texto.

"Depois de eleitos, eles terão detrabalhar com leis e documentos",afumou o juiz.

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54 I Letramento

o Tribunal Regional Eleitoral - TRE - foi contrário aoconceito de alfabetização do juiz, considerando que oscandidatos reprovados não eram analfabetos porque tinham"rudimentos da alfabetização":

Qual o critério do TRE paraconsiderar que os candidatosnão eram analfabetos?

A definição do didonário Auréliopara a palavra "analfabeto".

Recorde a definição de analfabeto do dicionário Aurélio(página 30):

ANALFABETO: que não conhece o alfabeto,que não sabe ler e escrever

Portanto: o TRE considerou que os candidatos sabiamler e escrever (já que tinham alguma ou algumas séries do1º grau e, embora com dificuldades, enfrentaram os docu-mentos de registro da candidatura) e, assim, não eramanalfabetos.

O juiz eleitoral e o TRE mostraram ter conceitos diferentesde alfabetização: o juiz eleitoral avaliava antes o letramentoque a alfabetização dos candidatos - embora desconhecesseo conceito de letramento, preocupava-se com as práticassociais de leitura e escrita que eles deveriam ter; o TREavaliouapenas a alfabetização dos candidatos, porque se satisfezcom os "rudimentos" de leitura e escrita que tinham, desco-nhecendo seu nível de letramento, pois não considerou suashabilidades de usar a leitura e a escrita.

Esse episódio evidencia:

Texto didático I 55

• a imprecisão do conceito de alfabetização - pessoasou grupos têm conceitos diferentes, o conceito varia deacordo com a situação, com o contexto;

• o fenômeno do letramento ainda é pouco percebidoem nossa sociedade.

Analfabeto-alfabetizado, letrado-iletrado:variações segundo as condições sociais e históricas

Um bom exemplo da variação do conceito de alfabeti-zação ao longo do tempo e da dependência entre o fenô-meno do letramento e as condições culturais e sociais é acomparação entre os critérios que foram no passado utili-zados e os que hoje são utilizados para definir quem éanalfabeto ou quem é alfabetizado nos recenseamentos dapopulação brasileira.

Até a década de 40, o formulário do Censo definia oindivíduo como analfabeto ou alfabetizado perguntando-lhese sabia assinar o nome: as condições culturais, sociais epolíticas do país, até então, não exigiam muito mais queisso de grande parte da população. As pessoas aprendiama desenhar o nome, apenas para poder votar ou assinarum contrato de trabalho.

A partir dos anos 40, o formulário do Censo passou a usaruma outra pergunta: sabe ler e escrever um bilhete simples?Apesar da impropriedade da pergunta [se quiser saber porquê, leia o quadro a seguir], ela já expressa um critério paradefinir quem é alfabetizado ou analfabeto que avança emrelação ao critério de apenas saber escrever o nome: definircomo analfabeto aquele que não sabe ler e escrever um bi-lhete simples indica já uma preocupação com os usos sociaisda escrita, aproxima-se, pois, do conceito de Ietramento, erevela uma outra expectativa com relação ao alfabetizado-uma expectativa de que seja também letrado.

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56 I Letramento

A IMPROPRIEDADE DA PERGUNTA DO CENSO - LEIA SE QUISER::

Reflita sobre as seguintesquestões:

• Quais podem ser as atitudesdos indivíduos diante da per-gunta "Você sabe ler e escre-ver um bilhete simples:" Apessoa pode dizer que sim,por envergonhar-se de dizerque não; ou pode dizer quenão, por temer que lheapresentem um "bilhete sim-ples" e lhe peçam para lê-Io ...Pode-se confiar nas respostasa essa pergunta?

• Um outro problema: em cadadomicílio, um indivíduo res-ponde por todos que ali habi-tam, ou seja, um indivíduo ava-lia a habilidade de todos osoutros de "ler e escrever umbilhete simples"; pode-se con-fiar nessa avaliação?

• Ainda um terceiro problema:o que é "um bilhete simples"?é um bilhete com poucas pa-lavras? com apenas duas ou trêslinhas? com apenas oraçõessimples, ou coordenadas, semsubordinadas? com apenaspalavras de uso comum?

• Mais um problema: saber "ler eescrever um bilhete simples" é serapenas alfabetizado? ou é já terum certo nível de letramento?

• Finalmente: nas atuais condi-ções da sociedade brasileira,basta saber "ler e escrever umbilhete simples" para ser consi-derado alfabetizado? ou para serconsiderado letrado:

Conclua: que inrerpretacão pode-sedar aos índices de analfabetismoda população brasileira definidospelo Censo?

A mudança de critério para a avaliação dos índicesde analfabetismo no Brasil revela mudanças históricas,sociais, culturais. A comparação dos critérios utilizadosaqui com os utilizados em países do Primeiro Mundopode ser esclarecedora.

ANALFABETISMO NO PRIMEIRO MUNDO?

É surpreendente quando os jornais noticiam a preocu-pação com altos níveis de "analfabetismo" em países comoos Estados Unidos, a França, a Inglaterra; surpreendenteporque: como podem ter altos níveis de analfabetismopaíses em que a escolaridade básica é realmente obriga-tória e, portanto, praticamente toda a população concluio ensino fundamental (que, nos países citados, tem dura-ção maior que a do nosso ensino fundamental- 10 anos

Texto didático 157

nos Estados Unidos e na França, 11 anos na Inglaterra). Éque, quando a nossa mídia traduz para o português apreocupação desses países, traduz illiteracy (inglês) eilletrisme (francês) por analfabetismo. Na verdade, nãoexiste analfabetismo nesses países, isto é, o número depessoas que não sabem ler ou escrever aproxima-se dezero; a preocupação, pois, não é com os níveis de anal-fabetismo, mas com os níveis de letramento, com a difi-culdade que adultos e jovens revelam para fazer usoadequado da leitura e da escrita: sabem ler e escrever,mas enfrentam dificuldades para escrever um ofício, pre-encher um formulário, registrar a candidatura a um em-prego - os níveis de letramento é que são baixos.

QUER SABER COMO SE AVAUA O NíVEL DE LETRAMENTO DA POPULAÇÃO?

Na segunda metade dos anos 80, e usar informações de váriosrealizou-se, nos Estados Unidos, tipos de texto - editorial deuma pesquisa para definir a nível jornal, notícias, poemas - e ques-de literacyde jovens adultos ame- tões para avaliar a habilidaderícanos; o instrumento por meio de extrair corretamente infor-do qual esse nível foi avaliado mações de quadros de horá-evidencia o que se considera ser, rio, de mapas, de tabelas.nesse país, literate ou illiterate: Obviamente, não se avaliava oo teste incluiu questões para ava- nível de alfabetização dos jovensliar a capacidade de interpretar e adultos ..

No Brasil, há já algumas poucas pesquisas que procuramavaliar o nível de letramento de jovens e adultos; a ten-dência tem sido considerar como alfabetizado (o termo maisadequado seria letrado) o indivíduo que tenha pelo menoscompletado a 4ª série do ensino fundamental, com baseno pressuposto de que são necessários no mínimo quatroanos de escolaridade para a apropriação da leitura e daescrita e de seus usos sociais. Quando se calcula o analfa-betismo no Brasil com base nesse critério, o índice cresceassustadoramente ...

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581 Letramento

CONDiÇÕES PARA O LETRAMENTO

Termos despertado para o fenômeno do letramento-estarmos incorporando essa palavra ao nosso vocabulárioeducacional - significa que já compreendemos que nossoproblema não é apenas ensinar a ler e a escrever, mas é,também, e sobretudo, levar os indivíduos - crianças e adul-tos - a fazer uso da leitura e da escrita, envolver-se empráticas sociais de leitura e de escrita.

No entanto, infere-se, de tudo que foi dito, que o nívelde letramento de grupos sociais relaciona-se fundamen-talmente com as suas condições sociais, culturais e econô-micas. É preciso que haja, pois, condições para ofetramento.

Uma primeira condição é que haja escolarização real eefetiva da população - só nos demos conta da necessida-de de letramento quando o acesso à escolaridade se am-pliou e tivemos mais pessoas sabendo ler e escrever,passando a aspirar a um pouco mais do que simplesmenteaprender a ler e a escrever.

Uma segunda condição é que haja disponibilidade dematerial de leitura. O que ocorre nos países do TerceiroMundo é que se alfabetizam crianças e adultos, mas nãolhes são dadas as condições para ler e escrever: não hámaterial impresso posto à disposição, não há livrarias, opreço dos livros e até dos jornais e revistas é inacessível,há um número muito pequeno de bibliotecas. Como épossível tornar-se letrado em tais condições? Isso explicao fracasso das campanhas de alfabetização em nosso país:contentam-se em ensinar a ler e escrever; deveriam, emseguida, criar condições para que os alfabetizados passas-sem a ficar imersos em um ambiente de letramento, paraque pudessem entrar no mundo letrado, ou seja, num mundoem que as pessoas têm acesso à leitura e à escrita, têmacesso aos livros, revistas e jornais, têm acesso às livrarias e

Texto didático \ 59

bibliotecas, vivem em tais condições sociais que a leitura ea escrita têm uma função para elas e tornam-se uma ne-cessidade e uma forma de lazer.

EIS DOIS EXEMPLOS - LEIA-OS SE QUISER COMPROVAÇÃO DESSAS AFIRMAÇÕES;

LETRAMENTO E ESCOLA,

LETRAMENTO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

• Quais as conseqüências de tudo isso para a escola?

• Para a educação de jovens e adultos?

• O que significa alfabetizar?• O que significa "letrar'?• Quais as diferenças entre alfabetizar e "letrar"?

• Como alfabetizar "letrando"?• Quando se pode dizer que uma criança ou um adulto

estão alfabetizados? Quando se pode dizer que estãoletrados?

• Quais são as condições para que o aprender a ler e aescrever seja algo que realmente tenha sentido, uso efunção para as pessoas?

Lembre-se do Mobral: pesquisasmostraram que pessoas alfabeti-zadas por esse movimento esta-vam, um ano depois, "desalfa-betizadas": tinham aprendido aler e a escrever, mas, por im-possibilidade de uso da leitura eda escrita, por ausência, em seumeio, de demandas de leitura eescrita, por falta de acesso amaterial impresso, tinham perdidoa habilidade de ler e escrever.Tinham sido alfabetizadas, masnão lhes foi possibilitado torna-rem-se letradas.

o contrário aconteceu, por exem-plo, em Cuba: quando houve alia revolução e independência, noinício dos anos 60, fez-se no paísuma campanha de altabetízaçãointensa, que realmente alfabetizoutoda a populaçãoem pouco tempo;mas não se fez só isso, produzi-ram-se materiais de leitura queeram levados aos mais longínquosríncões do país, qualquer pequenapovoação recebia livros para darcontinuidade à campanha de alfa-betização.O povo cubano tornou-se alfabetizado e letrado.

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60 ILetramento

É sempre bom terminar com perguntas e não com solu-ções; diz o grande escritor português Saramago:

"Tudo no mundo está dando respostas,o que demora é o tempo das perguntas. "

Aí estão as perguntas; busquemos as respostas,

LETRAMENTO EMENSAIO:

LETRAMENTO:COMO DEFINIR, COMOAVALIAR, COMO MEDIR

Monografia elaborada por solicitação da Seção de Estatística daUNESCO, em Paris, publicada em inglês, em março de /992. com

o título "Literacy Assessmentand its implications for StatisticiJlMeasurement", traduzidapara o francês e o espanhol; aqui se.

apresenta pela primeira vez a tradução para o português,Tradução preliminar para o português: Raquel Luciana de Souza e Roberval Araújo de Oliveira.

Revisão ela tradução preliminar: Sueli Campos Paiva. Versão para o português da autora.

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Ensaio 163

INTRODUÇÃO

o permanente desafio, enfrentado mundialmente, paraa universalização do letramento - do acesso pleno às habi-lidades e práticas de leitura e de escrita - está intimamenterelacionado com um outro desafio: o de avaliar e medir oavanço em direção a essa meta. Dados tornam-se, assim,necessários, tanto para evidenciar se os objetivos estãosendo alcançados como para estabelecer políticas ou con-trolar programas de alfabetização e letramento. Por essarazão, desde escolas até instituições e organizações nacio-nais e internacionais estão continuamente buscando dadose produzindo índices e estatísticas sobre níveis de domíniode habilidades de leitura e de escrita e de uso de práticassociais que envolvem a escrita, por meio de avaliações emedições.

Os processos de obtenção desses dados apresentam,porém, sérios problemas de natureza técnica, conceitual,ideológica e política.

Problemas de natureza técnica são, sem dúvida, os maisevidentes e urgentes: relacionam-se com os processos detomada de decisão para a definição de procedimentos deavaliação, a construção de instrumentos de medida, a or-ganização e processamento dos dados.

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64 I Letramento

Entretanto, apesar da evidência e urgência desses pro-blemas de natureza técnica, há uma série de problemasconceituais que deveriam servir de base para buscar-lhesa solução; equivocadamente, esses problemas conceituaissão geralmente negligenciados, em virtude exatamenteda imperativa necessidade de solução imediata dos pro-blemas técnicos.

Um primeiro e essencial problema conceitual é a pró-pria definição de letramento. Antes de coletar dados ouproduzir estatísticas sobre letramento, uma questão centralprecisa ser respondida: que letramento é esse que se bus-ca avaliar e medir? A avaliação e medição do letramentotem de fundamentar-se numa definição precisa do fenôme-no; contudo, essa definição será possível?

Um segundo problema conceitual, intimamente ligadoao primeiro, é a escolha dos critérios a serem usados paraa avaliação e medição adequadas do letramento. Tradicio-nalmente, o letramento é avaliado e medido em contextosescolares, em censos demográficos nacionais e em pesqui-sas por amostragem. Que critérios são utilizados para ava-liá-lo em cada uma dessas situações? E que conceito deletramento conduziu a esses critérios? Em outras palavras,de que modo a avaliação do letramento em contextos esco-lares e extra-escolares (censos da população nacional oupesquisas por amostragem) enfrenta o problema dadefinição de letramento para, a partir dela, determinar oscritérios para avaliá-lo?

Finalmente, como decorrência dessas questões, surge umterceiro problema. Por um lado, a importância e a neces-sidade da avaliação e medição do letramento não podemdeixar de ser reconhecidas; por outro lado, cumprir ospré-requisitos para fazê-lo - ou seja, definir letramento comprecisão e especificar critérios confiáveis para avaliá-lo e medi-10 - é uma questão bastante controversa. Como enfrentaresse paradoxo?

Ensaio I 65

A finalidade deste estudo é levantar e discutir essas ques-tões conceituais. Na primeira parte, examina-se o conceitode letramento como um fenômeno multifacetado e extrema-mente complexo; argumenta-se que o consenso em tomode uma única definição é impossível. Em seguida, discutem-se a avaliação e a medição do letramento em contextosescolares, censos dernográficos nacionais e pesquisas poramostragem, apontando-se deficiências e pressupostos equi-vocados na definição de critérios para o planejamento eexecução dessa avaliação e medição. Por fim, na últimaparte do estudo, a partír de argumentos a favor da avaliaçãoe da medição do letramento, sugerem-se formas de enfrentaro conflito entre, de um lado, a importância e necessidadede sua avaliação e, de outro lado, a dificuldade de atenderaos pré-requisitos para a realização dessa tarefa. Conclui-seenfatizando os aspectos ideológicos e políticos da definiçãode letramento e de sua avaliação e medição; na verdade,o propósito deste texto é sugerir uma base conceitualpara a discussão dessas questões ideológicas e políticasque, sem dúvida, constituem o ceme do problema.

LETRAMENTO:EM BUSCA DE UMA DEFINiÇÃO

Qualquer processo de avaliação ou medição exige umadefinição precisa do fenômeno a ser avaliado ou medido.Sem dúvida, a maior parte das dúvidas e controvérsias emtorno de levantamentos e pesquisas sobre níveis de letra-mento têm sua origem na dificuldade de formular uma defi-nição precisa e universal desse fenômeno e naimpossibilidade de delimitá-lo com precisão. Essa difi-culdade e impossibilidade devem-se ao fato de que o le-tramento cobre uma vasta gama de conhecimentos,habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais;

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66 I Letramento

o conceito de letramento envolve, portanto, sutilezas ecomplexidades difíceis de serem contempladas em umaúnica definição. Isso explica por que as definições deletramento diferenciam-se e até antagonizam-se e con-tradizem-se: cada definição baseia-se em uma dimensãode letramento que privilegia. Confrontem-se estes doisautores:

Para estudar e interpretar o letramento c. .. ), três tarefas são ne-cessárias. A primeira é formular uma definição consistente quepermita estabelecer comparações ao longo do tempo e atravésdo espaço. Níveis básicos ou primários de leitura e escrita consti-tuem os únicos indicadores ou sinais flexíveis e razoáveis pararesponder a esse critério essencial c. .. ) o letramento é, acima detudo, uma tecnologia ou conjunto de técnicas usadas para a co-municação e para a decodificação e reprodução de materiaisescritos ou impressos: não pode ser considerado nem mais nemmenos que isso. (Graff, 1987a, p. 18-19, grifos do original).As tentativas de definição (de letramento) estão quase semprebaseadas em uma concepção de letramento como um atributodos indivíduos; buscam descrever os constituintes do letramentoem termos de habilidades individuais. Mas o fato mais evidentea respeito do letramento é que ele é um fenômeno social C. .. ) Oletramento é um produto da transmissão cultural C. .. ) Uma defi-nição de letramento C. .. ) implica a avaliação do que conta comoletramento na época moderna em determinado contexto social...Compreender o que "é" o letramento envolve inevitavelmenteuma análise social... (Scribner, 1984, p.7-8, grifas do original).

Subjacentes a essas definições estão as duas principaisdimensões do letramento: a dimensão individual e adimensão social. Quando o foco é posto na dimensãoindividual, o letramento é visto como um atributo pessoal,parecendo referir-se, como afirma Wagner (1983, p.5), à"simples posse individual das tecnologias mentais com-plementares de ler e escrever". Quando o foco se deslocapara a dimensão social, o letramento é visto como umfenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais queenvolvem a língua escrita, e de exigências sociais de usoda língua escrita. Na maioria das definições atuais deletramento, uma ou outra dessas duas dimensões é prio-rizada: põe-se ênfase ou nas habilidades individuais de

Ensaio 167

ler e escrever, ou nos usos, funções e propósitos da línguaescrita no contexto social.'

Mas identificar essas duas dimensões que estão por trásde diferentes definições é apenas um primeiro passo parao enfrentamento do problema de formular uma definiçãoadequada de letramento. Sem dúvida, a identificação de duasamplas categorias de definições - aquelas que enfocam adimensão individual do fenômeno e aquelas que enfocamsua dimensão social- lança alguma luz sobre o problema,mas não é suficiente para sua completa elucidação, pois épreciso ainda considerar a complexidade e a natureza he-terogênea de cada dimensão.

As duas seções seguintes enfocam essa natureza com-plexa e heterogênea das dimensões individual e social doletramento.

A DIMENSÃO INDIVIDUAL DO LETRAMENTO

Mesmo que apenas sob a perspectiva da dimensão in-dividual, é difícil definir letramento, devido à extensão ediversidade das habilidades individuais que podem ser con-sideradas como constituintes do letramento.

Uma primeira fonte de dificuldade, que atinge o cernemesmo da questão, é que o letramento envolve dois pro-cessos fundamentalmente diferentes: ler e escrever. Naspalavras de Smith:

Ler e escrever são processos frequentemente vistos como imagensespelhadas uma da outra, como reflexos sob ângulos opostos deum mesmo fenômeno: a comunicação através da língua escrita.Mas há diferenças fundamentais entre as habilidades e conheci-mentos empregados na leitura e aqueles empregados na escrita,assim como há diferenças consideráveis entre os processos

1 A habilidade de fazer uso do sistema numérico é, às vezes, incorporada ao concei-to de letramento (ler, escrever, contar); neste estudo, porém, letramento está sendotomado em seu sentido literal, referindo-se exclusivamente à escrita e à leitura.

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68 I Letramento

envolvidos na aprendizagem da leitura e os envolvidos na apren-dizagem da escrita. (Srnith, 1973, p.117)

Apesar dessas diferenças "fundamentais", as definiçõesde letramento frequentemente tomam a leitura e a escritacomo uma mesma e única habilidade, desconsiderando aspeculiaridades de cada uma e as dessemelhanças entreelas (uma pessoa pode ser capaz de ler, mas não ser ca-paz de escrever; ou alguém pode ler fluentemente, masescrever muito mal).

Por outro lado, as definições de letramento que conside-ram as diferenças entre leitura e escrita tendem a concentrar-se ou na leitura ou na escrita (mais frequentemente na leitura),ignorando que os dois processos são complementares: sãodiferentes, mas o letramento envolve ambos. Bormuth (1973),por exemplo, declara que "letramento é a habilidade de colo-car em ação todos os comportamentos necessários para de-sempenhar adequadamente todas as possíveis demandas deleiturd' (p.72, grifo nosso), e Kirsch e Guthrie 0977-1978)argumentam que "seria prudente usar o termo letramentopara referir-se à leitura, e a expressão competência cognitiuapara referir-se a habilidades gerais de ouvir, ler, escrever ecalcular" (p.505, grífos do original).

Não levar em conta a coexistência, no conceito de le-tramento, desses dois constituintes heterogêneos - leiturae escrita - torna-se ainda mais sério, se se considera quecada um desses constituintes é um conjunto de habilidadesbastante diferentes, e não uma habilidade única.

A leitura, do ponto de vista da dimensão individual deletramento (a leitura como uma "tecnologia"), é um con-junto de habilidades linguísticas e psicológicas, que seestendem desde a habilidade de decodificar palavras escri-tas até a capacidade de compreender textos escritos. Essascategorias não se opõem, complementam-se; a leitura éum processo de relacionar símbolos escritos a unidades desom e é também o processo de construir uma interpreta-ção de textos escritos.

Ensaio 169

Desse modo, a leitura estende-se da habilidade de tra-duzir em sons sílabas sem sentido a habilidades cognitivase metacognitivas; inclui, dentre outras: a habilidade dedecodificar símbolos escritos; a habilidade de captar signi-ficados; a capacidade de interpretar sequências de ideiasou eventos, analogias, comparações, linguagem figurada,relações complexas, anáforas, e, ainda, a habilidade defazer previsões iniciais sobre o sentido do texto, de cons-truir significado combinando conhecimentos prévios e in-formação textual, de monitorar a compreensão e modificarprevisões iniciais quando necessário, de refletir sobre osignificado do que foi lido, tirando conclusões e fazendojulgamentos sobre o conteúdo.

Acrescente-se a essa grande variedade de habilidades deleitura o fato de que elas devem ser aplicadas diferenciada-mente a diversos tipos de materiais de leitura: literatura,livros didáticos, obras técnicas, dicionários, listas, enciclo-pédias, quadros de horário, catálogos, jornais, revistas, anún-cios, cartas formais e informais, rótulos, cardápios, sinaisde trânsito, sinalização urbana, receitas ... Como declara Smith(973), a leitura pode ocorrer nas mais diversas situações,"de um recital público de poesia ao exame privado de listasde preço e horários de ônibus" (p.103).

Assim como a leitura, a escrita, na perspectiva da di-mensão individual do letramento (a escrita como uma "tec-nologia"), é também um conjunto de habilidades linguísticase psicológicas, mas habilidades fundamentalmente dife-rentes daquelas exigidas pela leitura. Enquanto as habili-dades de leitura estendem-se da habilidade de decodificarpalavras escritas à capacidade de integrar informaçõesprovenientes de diferentes textos, as habilidades de es-crita estendem-se da habilidade de registrar unidades desom até a capacidade de transmitir significado de formaadequada a um leitor potencial. E, assim como foi obser-vado em relação à leitura, essas categorias não se opõem,complementam-se: a escrita é um processo de relacionar

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unidades de som a símbolos escritos, e é também umprocesso de expressar ideias e organizar o pensamentoem língua escrita.

Desse modo, a escrita engloba desde a habilidade detranscrever a fala, via ditado, até habilidades cognitivas emetacognitivas; inclui a habilidade motora (caligrafia), aortografia, o uso adequado de pontuação, a habilidade deselecionar informações sobre um determinado assunto ede caracterizar o público desejado como leitor, a habili-dade de estabelecer metas para a escrita e decidir qual amelhor forma de desenvolvê-Ia, a habilidade de organizarideias em um texto escrito, estabelecer relações entre elas,expressá-Ias adequadamente.

Além disso, as habilidades de escrita, tal como as deleitura, devem ser aplicadas diferenciadamente à produçãode uma variedade de materiais escritos: da simples assinatu-ra do nome ou elaboração de uma lista de compras até aredação de um ensaio ou de uma tese de doutorado.

À luz dessas considerações sobre o grande número dehabilidades e capacidades cognitivas e metacognitivas queconstituem a leitura e a escrita, a natureza heterogêneadessas habilidades e aptidões, a grande variedade de gê-neros de escrita a que elas devem ser aplicadas, fica claroque é extremamente difícil formular uma definição consis-tente de letramento, ainda que nos limitássemos a formu-lá-Ia considerando apenas as habilidades individuais deleitura e escrita: quais habilidades e aptidões de leitura eescrita qualificariam um indivíduo como "letrado"? quetipos de material escrito um indivíduo deve ser capaz deler e escrever para ser considerado "letrado"?

Respostas a tais questões são bastante problemáticas.As competências que constituem o letramento são distri-buídas de maneira contínua, cada ponto ao longo dessecontínuo indicando diversos tipos e níveis de habilidades,capacidades e conhecimentos, que podem ser aplicados a

-171diferentes tipos de material escrito. Em outras palavras, oletramento é uma variável contínua, e não discreta oudicotômica. Portanto, é difícil especificar, de uma manei-ra não arbitrária, uma linha divisória que separaria o in-divíduo letrado do indivíduo iletrado. Já em meados dosanos 50, a monografia da UNESCO World Illiteracy atmid-century (1957) reconhecia que "o conceito de letra-mento é muito flexível e pode cobrir todos os níveis dehabilidades, de um mínimo absoluto a um máximo inde-terminado" (p.19), e concluía que é de fato impossívelconsiderar pessoas letradas e iletradas como duas cate-gorias distintas.

Contudo, as definições de letrado e iletrado apresenta-das pela UNESCO em 1958, com o propósito de padroni-zação internacional das estatísticas em educação, são umatentativa de fazer tal distinção:

É letrada a pessoa que consegue tanto ler quanto escrever comcompreensão uma frase simples e CUltasobre sua vida cotieliana.É iletrada a pessoa que não consegue ler nem escrever comcompreensão uma frase simples e curta sobre sua viela cotidia-na. (UNESCO, 1958, p.4)

Considerando apenas a dimensão individual do letra-mento, essas definições determinam quais habilidades deleitura e escrita caracterizam uma pessoa letrada (ler eescrever com compreensão), e a que tipo de material es-crito essas habilidades devem ser aplicadas (uma frasesimples e curta sobre sua vida cotidiana). Entretanto, adefinição é arbitrária: qual é o fundamento para selecionaruma certa habilidade (ler e escrever com compreensão - eatente-se para a imprecisão da expressão "com compreen-são") e um tipo específico de material escrito (uma frasesimples e curta sobre a vida cotidiana de alguém) comoo ponto do contínuo que define uma pessoa como letra-da? Essa pergunta conduz à discussão apresentada naseção seguinte.

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nl,-""_A DIMENSÃO SOCIAL DO LETRAMENTO

Aqueles que priorizam, no fenômeno letramento, a suadimensão social, argumentam que ele não é um atributounicamente ou essencialmente pessoal, mas é, sobretudo,uma prática social: letramento é o que as pessoas fazemcom as habilidades de leitura e de escrita, em um contextoespecífico, e como essas habilidades se relacionam comas necessidades, valores e práticas sociais. Em outras pala-vras, letramento não é pura e simplesmente um conjuntode habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociaisligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envol-vem em seu contexto social.

Mas há interpretações conflitantes sobre a natureza dadimensão social do letramento: uma interpretação progres-sista, "liberal" - uma versão "fraca" dos atributos e impli-cações dessa dimensão, e uma perspectiva radical,"revolucionária" - uma versão "forte" de seus atributos eimplicações.

De acordo com a perspectiva progressista, "liberal" dasrelações entre letramento e sociedade, as habilidades deleitura e escrita não podem ser dissociadas de seus usos,das formas ernpíricas que elas realmente assumem na vidasocial; o letramento, nessa interpretação "fraca" de suadimensão social, é definido em termos de habilidades ne-cessárias para que o indivíduo funcione adequadamenteem um contexto social - vem daí o termo letramentofuncional (ou alfabetização funcional), difundido a partirda publicação do estudo internacional sobre leitura e es-crita realizado por Gray, em 1956, para a UNESCO. Gray(1956) enfatiza a natureza pragmática do letramento quan-do adota o conceito de letramento funcional que, comoafirma, surgira a partir de pesquisas e experiências sobreleitura desenvolvidas nas duas ou três décadas anteriores.Gray define o letramento funcional como sendo os co-nhecimentos e habilidades de leitura e escrita que tornam

Ens,J73

uma pessoa capaz de "engajar-se em todas aquelas ativi-dades nas quais o letramento é normalmente exigido emsua cultura ou grupo".

O enfoque na funcionalidade como o atributo essencialdas habilidades de leitura e escrita influenciou significativa-mente a definição de letramento da Unesco, já citada, for-mulada com o objetivo de padronização internacional deestatísticas educacionais. Revendo, em 1978, a Recomenda-ção de 1958, a Conferência Geral da Unesco julgou necessá-rio introduzir um novo grau de letramento: embora mantendoa definição de 1958 de uma pessoa letrada, baseada emhabilidades individuais, anteriormente citada, introduz o con-ceito de "pessoa funcionalmente letrada", fundamentado nosusos sociais da leitura e escrita:

Uma pessoa é funcionalmente letrada quando pode participarde todas aquelas atividades nas quais o letrarnento é necessá-rio para o efetivo funcionamento de seu grupo e comunidadee, também, para capacitá-Ia a continuar usando a leitura, aescrita e o cálculo para seu desenvolvimento e o de sua comu-nidade. (Unesco, 1978a, p.I)

Letramento funcional significa, pois, adaptação, comona metáfora de Scribner (Scribner, 1984): "Esta metáfora(letramento como adaptação) é proposta para caracterizarconceitos de letramento que enfatizam seu valor pragmáti-co ou de sobrevivência." (p.9) Scribner reforça a impor-tância do letramento funcional ou de sobrevivência:

A necessidade de habilidades de letramento na nossa vida diá-ria é óbvia; no emprego, passeando pela cidade, fazendo com-pras, todos encontramos situações que requerem o uso da lei-tura ou a produção de símbolos escritos. Não é necessárioapresentar justificativas para insistir que as escolas são obriga-elas a desenvolver nas crianças as habilidades de letramentoque as tornarão aptas a responder a estas demandas sociaiscotidianas. E os programas de educação básica têm também aobrigação de desenvolver nos adultos as habilidades que de-vem ter para manter seus empregos ou obter outros melhores,receber o treinamento e os benefícios a que têm direito, e assu-mir suas responsabilidades cívicas e políticas. (p.y)

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741 Letramento

Assim, letramento envolve mais do que meramente ler eescrever. Como Kirsch e Jungeblut (1990) afirmam, letra-mento não é simplesmente um conjunto de habilidades deleitura e escrita, mas, muito mais que isso, é o uso dessashabilidades para atender às exigências sociais. Acreditandono poder do letramento para conduzir ao progresso social eindividual, os autores definem-no como "o uso de informa-ção impressa e manuscrita para funcionar na sociedade,para atingir seus próprios objetivos e desenvolver seus co-nhecimentos e potencialidades." (p.1-8)

Subjacente a esse conceito liberal, funcional de letramento,está a crença de que consequências altamente positivas ad-vêm, necessariamente, dele: sendo o uso das habilidades deleitura e escrita para o funcionamento e a participação ade-quados na sociedade, e para o sucesso pessoal, o letramentoé considerado como responsável por produzir resultados im-portantes: desenvolvimento cognitivo e econômico, mobili-dade social, progresso profissional, cidadania. 2

Uma perspectiva diferente sobre as relações entre letra-mento e sociedade é proposta por aqueles que se filiam àvertente anteriormente denominada de uma interpretaçãoradical, "revolucionária" dessas relações - sua versão "for-te". Enquanto que, na interpretação liberal, progressista (aversão "fraca"), letramento é definido como o conjunto dehabilidades necessárias para "funcionar" adequadamente empráticas sociais nas quais a leitura e a escrita são exigidas ,na interpretação radical, "revolucionária", letramento não podeser considerado um "instrumento" neutro a ser usado naspráticas sociais quando exigido, mas é essencialmente umconjunto de práticas socialmente construídas que envolvem

a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais am-plos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores,tradições e formas de distribuição de poder presentes noscontextos sociais.

Street (1984), um dos representantes desta interpretaçãoalternativa da dimensão social do letramento, caracteriza-acomo o "modelo ideológico" de letramento, em oposiçãoao "modelo autônomo". De acordo com Street, letramento é"um termo-síntese para resumir as práticas sociais e con-cepções de leitura e escrita" (p.I), tem um significado polí-tico e ideológico de que não pode ser separado e não podeser tratado como se fosse um fenômeno "autônomo" (p.8).Street afirma que a verdadeira natureza do letramento são asformas que as práticas de leitura e escrita concretamenteassumem em determinados contextos sociais, e isso depen-de fundamentalmente das instituições sociais que propõeme exigem essas práticas.

Provavelmente, a postura mais radical no quadro do "mo-delo ideológico" de letramento é a de Lankshear (1987).Colocando-se contra a pressuposição de que o letramento éum "instrumento" de que as pessoas simplesmente lançammão para responder às exigências das práticas sociais, Lank-shear afirma que é impossível distinguir letramento do con-teúdo utilizado para adquiri-lo e transrnítí-Io, e de quaisquervantagens ou desvantagens advindas dos usos que são fei-tos dele, ou das formas que assume (p.40). O que oletramento é depende essencialmente de como a leitura e aescrita são concebidas e praticadas em determinado contex-to social; letramento é um conjunto de práticas de leitura eescrita que resultam de uma concepção de o quê, como,quando e por quê ler e escrever.

Do ponto de vista desse conceito, as qualidades ine-rentes ao letramento e suas consequências positivas, enfati-zadas por aqueles que afirmam sua funcionalidade comoum instrumento para responder a demandas sociais e pararealizar metas pessoais, são negadas. Nessa perspectiva, o

2 A afirmação frequente de que o letramento traz, como consequência, a elevaçãodos níveis cognitivo, econômico e social tem sido questionada por numerososestudos nas áreas da Psicologia, da Etnografia, da História: embora importante, adiscussão dessa questão ultrapassa os objetivos cio presente estudo. Para uma revi-são sobre este tema, ver Akinnaso, 1981.

Ensaio I 75

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761 Letramento Jnpressuposto é de que as consequências do letramento es-tão intimamente relacionadas com processos sociais maisamplos, determinadas por eles, e resultam de uma formaparticular de definir, de transmitir e de reforçar valores,crenças, tradições e formas de distribuição de poder. As-sim, os partidários da versão "forte" das relações entreletramento e sociedade argumentam que as consequênciasdo letramento são consideradas desejáveis e benéficasapenas por aqueles que aceitam como justa e igualitáriaa natureza e estrutura do contexto social específico noqual ele ocorre. Quando não é esse o caso, isto é, quan-do a natureza e a estrutura das práticas e relações sociaissão questionadas, o letramento é visto como um instru-mento da ideologia, utilizado com o objetivo de manteras práticas e relações sociais correntes, acomodando aspessoas às condições vigentes. Por exemplo: aqueles quecriticam as sociedades capitalistas afirmam que o letra-mento funcional, tal como é concebido nessas socieda-des, apenas reforça e aprofunda as relações e práticasque proporcionam ou vantagens ou desvantagens eco-nômicas, relações e práticas estruturadas socialmente;como Lankshear afirma, o letramento funcional "desig-na um estado mínimo, essencialmente negativo e passi-vo: ser funcionalmente letrado é ser capaz de estar àaltura das pequenas rotinas cotidianas e dos comporta-mentos básicos dos grupos dominantes na sociedadecontemporânea". Cp.64)

Resultam dessa concepção alternativas "revolucionárias"ao conceito liberal, progressista de "Ietramento funcio-nal". Paulo Freire 0967, 1970a, 1970b, 1976) foi um dosprimeiros educadores a realçar esse poder "revolucioná-rio" do letramento, ao afirmar que ser alfabetizado étornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como ummeio de tomar consciência da realidade e de transfor-má-Ia. Freire concebe o papel do letramento como sen-do ou de libertação do homem ou de sua "domestícação",

dependendo do contexto ideológico em que ocorre, ealerta para a sua natureza inerentemente política, defen-dendo que seu principal objetivo deveria ser o de promo-ver a mudança social.

Essa nova maneira de conceber o letramento foi pro-posta no Simpôsio Internacional para o Letramento, acon-tecido em Persépolis, em 1975, com o apoio da Unesco.'Um conceito mais amplo de letramento funcional foi entãosugerido pelos participantes, propondo

...uma distinção entre as duas principais categorias de funciona-lidade: a primeira, de caráter econômico, relacionada com a pro-dução e as condições de trabalho; a outra, de caráter cultural,relacionada com a transformação da consciência primária emconsciência crítica (o processo de "conscientízação") e com aativa participação dos adultos em seu próprio desenvolvimento.(citado em Street, 1984, p.187)

Seguindo essa distinção, a Declaração de Persépolisconsiderou o letramento como sendo

...não apenas o processo de aprendizagem de habilidades deleitura, escrita e cálculo, mas uma contribuição para a liberaçãodo homem e para o seu pleno desenvolvimento. Assim concebi-do, o letramento cria condições para a aquisição ele uma cons-ciência crítica elas contradições da SOCiedade em que os ho-mens vivem e dos seus objetivos; ele também estimula a iniciati-va e a participação do homem na criação de projetos capazesde atuar sobre o mundo, de transformá-lo e de definir os objeti-vos de um autêntico desenvolvimento humano. (citado em Bhola,1979, p.38)

Lankshear (987), citado anteriormente, em uma posi-ção ainda mais radical, e endossando a distinção de O'Neilentre "adequadamente letrado" e "inadequadamente letra-do" (O'Neil, 1970), mas dotando-a de maior força política,afirma que "o letramento adequado aumenta o controle

3 Um estudo exaustivo de como os conceitos de lerramento e os programas para suapromoção evoluíram na Unesco, de ]946 a 1987, é desenvolvido por jones (1988).

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78 I Letramento

das pessoas sobre suas vidas e sua capacidade para lidarracionalmente com decisões, porque as torna capazes deidentificar, compreender e agir para transformar relações epráticas sociais em que o poder é desigualmente distribuí-do" (p.74). Levine (982) faz a mesma afirmação, quandoenfatiza o papel do letramento no processo de "produzir ereproduzir - ou de falhar em reproduzir - a distribuiçãosocial do conhecimento" (p.264, grifo nosso).

Resumindo, os conceitos de letramento que enfatizamsua dimensão social fundamentam-se ou em seu valor prag-mático, isto é, na necessidade de letramento para o efetivofuncionamento na sociedade (a versão "fraca"), ou em seupoder "revolucionário", ou seja, em seu potencial paratransformar relações e práticas sociais injustas (a versão"forte"). Apesar dessa diferença essencial, tanto a versão"fraca" quanto a versão "forte" evidenciam a relatividadedo conceito de letramento. porque as atividades sociaisque envolvem a língua escrita dependem da natureza eestrutura da sociedade e dependem do projeto que cadagrupo político pretende implementar, elas variam no tem-po e no espaço. Graff 0987a) afirma que o significado econtribuição do letramento não pode ser pressuposto, ig-norando "o papel vital do contexto socio-bistorico" (p.17).Nas palavras dele:

Estudos históricos documentam as mudanças deconcepção de letramento ao longo do tempo." estudosantropológicos e etnográficos evidenciam os diferentes usosdo letramento, dependendo das crenças, valores e práticasculturais, e da história de cada grupo social." Como afirmaScribner 0984}

Em certo momento, a habilidade de escrever o próprio nomeera a comprovação de Ietrarnento, hoje, em algumas partes domundo, a habilidade de memorizar um texto sagrado é a prin-cipal demanda de letramento. O letramento não tem uma es-sência estática nem universal. (p.8)

O principal problema, que retarda muitíssimo os estudos sobre oletramento, seja no passado ou no presente, é o de reconstruiros contextos de leitura e escrita: como, quando, onde, por que epara quem o letramento foi transmitido; os significados que lheforam atribuídos; os usos que dele foram feitos; as demandas dehabilidades de letramento, os níveis atingidos nas respostas aessas demandas; o grau de restrição social à distribuição e difu-são do Ietrarnento, e as diferenças reais e simbólicas que resulta-ram das condições sociais de letramento entre a população. (p.23)

Do ponto de vista histórico e antropológico, é, porexemplo, significativo que a língua inglesa tenha incorpo-rado o termo illiteracy (ausência de letramento) muito an-tes que surgisse o termo literacy (letramento): segundoCharnley & jones (979), o Oxford English Dictionaryregistra o termo illiteracy desde 1660, enquanto que o ter-mo positivo literacy só aparece registrado no final do sé-culo 19 (p.8). O surgimento do termo literacy nessa épocareflete certamente uma mudança histórica nas práticas so-ciais: novas demandas sociais de uso da leitura e escritaexigiram uma nova palavra para designá-Ias. Conse-quentemente, um novo conceito foi criado.

É interessante observar que, em países onde demandassociais complexas de uso da leitura e escrita não estãoainda amplamente disseminadas, a língua não oferece umtermo equivalente a literacy, no português do Brasil, porexemplo, circulam os termos negativos "analfabeto" e "anal-fabetismo" há muito tempo, mas só recentemente foramcriados termos equivalentes a literacy - "alfabetismo", "le-tramento". O conceito oposto a "analfabetismo", signifi-cando mais do que ser capaz de assinar o próprio nome

É, assim, impossível formular um conceito único deletramento adequado a todas as pessoas, em todos os lu-gares, em qualquer tempo, em qualquer contexto culturalou político.

4 Ver, por exemplo: Graff 0987a, 1987b), Schofield (1968), Resnick & Resnick (977),Furet & Ozouf (977), Chartier & Hébrard (989), Chartier (1985).

, Ver, por exemplo: Goody 0968,1987), Levíne 0982, 1986), Heath (1983), Finnegan(1988), Scribner & Cole (981), Wagner 0983, 1986, 1991), Schieffelin & Gilmore (986).

Ensaio I 79

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80 ILetramentoEnsaio 181

ou ler e escrever uma sentença simples, vai-se constituin-do à medida que novas demandas de comportamento le-trado vão surgindo no contexto social.

Pode-se concluir, então, que há diferentes conceitos deletramento, conceitos que variam segundo as necessidadese condições sociais específicas de determinado momentohistórico e de determinado estágio de desenvolvimento.

Além disso, do pomo de vista sociológico, em qualquersociedade, são várias e diversas as atividades de letramentoem contextos sociais diferenciados, atividades que assumemdeterminados papéis na vida de cada grupo e de cada indi-víduo. Assim, pessoas que ocupam lugares sociais diferentese têm atividades e estilos de vida associados a esses lugaresenfrentam demandas funcionais completamente diferentes:sexo, idade, residência rural ou urbana e etnia são, entreoutros, fatores que podem determinar a natureza do com-portamento letrado. Consequentemente, definir um conjun-to universal de competências que evidenciassem o domíniode um "letramento funcional" é problemático: que parârne-tros escolher para selecionar e definir essas competências?Da mesma forma, na perspectiva de um letramento "paraa libertação", pessoas ou grupos que têm ideologias dife-rentes e, consequentemente, diferentes objetivos políticospropõem diferentes práticas de letramento, determinadaspor seus valores, afirmações, ideais. Por exemplo: o con-ceito de letramento em sociedades em processo de mu-dança revolucionária (como em Cuba, nos anos 60, emNicarágua, nos anos 80) não é o mesmo que nos paísespoliticamente estáveis.

SOCiaiS e competências funcionais e, ainda, a valoresideológicos e metas políticas.

Reconhecendo esses múltiplos significados e varieda-des de letramento, Scribner (1984) defende a conveniênciade "desagregar" seus diversos níveis e tipos em um pro-cesso de decomposição (p.I8). A sugestão que faz Har-man de uma definição de letramento que distinga trêsdiferentes estágios representa uma tentativa de realizar essa"desagregação":

o primeiro (estágio) é a concepção de letrarnento como uminstrumento. O segundo é a aquisição do letramento, a aprendi-zagem das habilidades de ler e escrever. O terceiro é a aplicaçãoprática dessas habilidades em atividades significativas para oaprendiz. Cada estágio é dependente do anterior; cada um é umcomponente necessário do letramento. (Harman, 1970, p.228)

Um segundo exemplo de tentativas de "desagregar" o le-tramento é a tendência contemporânea, sobretudo em paísesdesenvolvidos, de qualificar o termo, fazendo distinções en-tre letramento básico e letramento crítico, letramento ade-quado e inadequado, letramento funcional e integral,letramento geral e especializado, letramento domesticador elibertador, letramento descritivo e aoaliatiuo, etc.

Uma tentativa mais radical de "desagregar" o letra-mento nos seus componentes é aquela proposta por au-tores que, em vez de considerarem o letramento comoconstituído de "estágios" ou componentes, ou como ne-cessitando ser qualificado, argumentam que é mais ade-quado referir-se a letramentos, no plural, e não a umúnico letramento, no singular:

É POSSíVEL UMA DEFINiÇÃO?

... seria, provavelmente, mais apropriado referirmo-nos a"letrarnentos" do que a um único "letramento", (Street, 1984, p.S)... devemos falar de letramentos, e não de letramento, tanto nosentido de diversas linguagens e escritas, quanto no sentido demúltiplos níveis de habilidades, conhecimentos e crenças, nocampo de cada língua e/ou escrita. CWagner, 1986, p.259)... deveríamos identificar e estudar diferentes letramentos e nãosupor 01.1 presumir um único letramento. (Lankshear, 1987, p.48)

A discussão anterior permite concluir que o conceitode letramento envolve um conjunto de fatores que variamde habilidades e conhecimentos individuais a práticas

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821 Letrameoto

.-183Pode-se concluir que definir letramento é uma tarefa al-

tamente controversa; a formulação de uma definição quepossa ser aceita sem restrições parece impossível. Contudo,como observa Cervero (1985), "afirmar que uma definiçãogeral e comum a todos não é possível. .. não quer dizer quenão haja necessidade de uma definição geral e comum atodos" (p.53). Uma definição geral e amplamente aceita énecessária, especialmente quando se pretende avaliar e me-dir níveis de letramento: sem ela, como determinar critériosque estabeleçam a diferença entre letrado e iletrado, entrediferentes níveis de letramento? Na seção seguinte, algunscritérios comumente utilizados para avaliar e medir o letra-mento serão examinados do ponto de vista dessa controvér-sia conceitual.

Kirsch & Jungeblut, 1990); de acordo com estatísticas edu-cacionais, tanto em países desenvolvidos quanto em paí-ses em desenvolvimento, um número alarmante de criançasnão alcança o letramento nos primeiros anos do ensinofundamental.? Entretanto, que letramento (ou não letra-mento) está por trás desses dados? Se o letramento é umcontínuo que representa diferentes tipos e níveis de habi-lidades e conhecimentos, e é um conjunto de práticassociais que envolvem usos heterogêneos de leitura e es-crita com diferentes finalidades, que ponto, nesse contí-nuo, deve separar adultos letrados de iletrados, em censospopulacionais e pesquisas por amostragem, ou criançasbem sucedidas de crianças mal sucedidas na aquisiçãodo letramento, em contextos escolares?

As principais tentativas de enfrentamento desse pro-blema são discutidas abaixo. Como a avaliação e medi-ção do letramento dependem essencialmente de seupropósito, a discussão é apresentada segundo as seguin-tes categorias: avaliação e medição do letramento emcontextos escolares, em censos demo gráficos nacionais eem pesquisas por amostragem.

AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO:EM BUSCA DE CRITÉRIOS

Sendo difícil ou mesmo impossível definir letramento,enfrenta-se a falta de uma condição essencial para suaavaliação e medição: uma definição precisa que permitadeterminar os critérios a serem utilizados para distinguirpessoas letradas de iletradas, ou para estabelecer diferen-tes níveis de letramento.

Na ausência dessa condição, as avaliações e mediçõesde letramento realizadas, quer através de censos popula-cionais, quer de pesquisas por amostragem, quer, ainda,em sentido mais restrito, realizadas por sistemas escola-res ou escolas, produzem dados imprecisos. Segundo oscensos populacionais, quase um bilhão de membros dapopulação mundial adulta (de idade acima de 15 anos)são iletrados (Unesco 1990); conforme pesquisas poramostragem, o letramento é hoje um grande problemaaté mesmo em países desenvolvidos (ver, por exemplo,

AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO

EM CONTEXTOS ESCOLARES

Nas sociedades contemporâneas, a instância respon-sável por promover o letramento é o sistema escolar (em-bora não seja impossível, como Scribner & Cole (1981)

6 Por exemplo: no Brasil, assim como em muitos países do Terceiro Mundo, umagrande porcentagem de crianças (em torno de 50%) repetem o primeiro ano deescolaridade, porque são consideradas não alfabetizadas; McGill-Franzen & Alling-ton (991) informam que, na América do Norte, "um número jamais alcançado decrianças estão repetindo os primeiros anos, basicamente porque estão "atrasadas"no desenvolvimento da leitura" (p.87). Para lima revisão crítica de dados referentesà América Latina, ver Roca (1989).

1.11

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841 Letramento

demonstraram, ser letrado sem ter tido escolarização), se-gundo Cook-Gumperz (1986), "é consenso social, nos diasde hoje, que o letramento é tanto o objetivo quanto oproduto da escolarização" (p.16)J Mas o que se entendepor esse letramento proposto como objetivo e produtoda escolarização, e como é ele avaliado e medido emcontextos escolares?

Para resolver o conflito entre a falta de uma definiçãoprecisa de letramento e a necessidade de sua avaliação emedição, o sistema escolar enfrenta condições simultanea-mente favoráveis e desfavoráveis.

Condições favoráveis advêrn do fato de que o letramen-to é, no contexto escolar, um processo, mais que um pro-duto; consequentemente, as escolas podem fazer uso deavaliações e medições em vários pontos do contínuo que éo letramento, avaliando de maneira progressiva a aquisi-ção de habilidades, de conhecimentos, de usos sociais eculturais da leitura e da escrita, evitando, assim, o proble-ma de ter de escolher um único ponto do contínuo paradistinguir um aluno letrado de um iletrado, uma criançaalfabetizada de uma não alfabetizada.

Por outro lado, da natureza "teleológica" do sistemaescolar advêm condições desfavoráveis para o enfrentamentodo conflito entre a falta de uma definição precisa de letra-mento e a necessidade de sua avaliação e medição. As esco-las são instituições às quais a sociedade delega aresponsabilidade de prover as novas gerações das habilida-des, conhecimentos, crenças, valores e atitudes considera-dos essenciais à formação de todo e qualquer cidadão. Paraalcançar tal objetivo, o sistema escolar estratifica e codificao conhecimento, selecionando e dividindo em "partes" o

que deve ser aprendido, planejando em quantos períodos(bimestres, semestres, séries, graus) e em que sequênciadeve se dar esse aprendizado, e avaliando, periodicamente,em momentos pré-determinados, se cada parte foi suficien-temente aprendida. Desse modo, as escolas fragmentam ereduzem o múltiplo significado do letrarnento: algumashabilidades e práticas de leitura e escrita são selecionadase, então, organizadas em grupos, ordenadas e avaliadasperiodicamente, através de um processo de testes e provastanto padronizados quanto informais. O conceito de letra-mento torna-se, assim, fundamentalmente determinado pelashabilidades e práticas adquiridas através de uma escolari-zação burocraticamente organizada e traduzidas nos itensde testes e provas de leitura e de escrita. A consequênciadisso é um conceito de letramento reduzido, determinadopela escola, muitas vezes distante das habilidades e práti-cas de letramento que realmente ocorrem fora do contextoescolar - um letramento escolar, nas palavras de Cook-Gumperz (986):

A instituição escola redefiniu o letramento, tornando-o o queagora se pode chamar de letramento escolar, ou seja, um siste-ma de conhecimento descontextualizado, validado através dodesempenho em testes (p.14).

Essa estreita relação entre letramento e escolarizaçãocontrola mais do que expande o conceito de letramento, eseus efeitos sobre a avaliação e medição do letramento sãosignificativos, embora não sejam os mesmos em países de-senvolvidos e em desenvolvimento.

Nos países desenvolvidos, onde os sistemas escolaressão rigorosamente organizados, o letramento escolar é,em geral, definido por meio do estabelecimento de deter-minados padrões de progresso desejado em leitura e es-crita, e os níveis alcançados pelos estudantes tendo comoparâmetro esses padrões são considerados uma represen-tação adequada de letramento. Devido ao caráter "teleoló-gico" do sistema escolar, esses padrões de progresso são

, A história das relações entre letramento e escolarização esclarece bastante os atuaisprocedimentos de avaliação e medição cio letramento em contextos escolares, masessa discussão ultrapassa os objetivos deste texto; para uma revisão crítica, ver Cook-Gumperz (1986).

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definidos, em grande parte, por testes padronizados e/ouinformais; como consequência, o fenômeno complexo emultifacetado do letramento é reduzido àquelas habilida-des de leitura e escrita e àqueles usos sociais que os testesavaliam e medem. Desse modo, os critérios segundo osquais os testes são construídos é que definem o que életramento em contextos escolares: um conceito restrito efortemente controlado, nem sempre condizente com ashabilidades de leitura e escrita e as práticas sociais necessá-rias fora das paredes da escola.

Essa é, provavelmente, uma explicação (dentre ou-tras) para o fato de o letramento ainda ser um grandeproblema entre adultos de países desenvolvidos, apesarde, neles, a educação fundamental obrigatória atingir prati-camente a todos: tendo alcançado um letramento esco-lar, os adultos são capazes de comportamentos escolaresde letramento, mas são incapazes de lidar com os usoscotidianos da leitura e da escrita em contextos não esco-lares. Por exemplo, Kirsch & ]ungeblut (1990) alegamque os problemas de leitura e escrita identificados emadultos jovens na América do Norte evidenciam um do-mínio limitado das habilidades e estratégias de processa-mento de informação necessárias para que os adultossejam bem-sucedidos ao enfrentarem uma vasta gama deatividades no trabalho, em casa, em suas comunidades.Do mesmo modo, uma análise dos problemas de leiturae escrita de jovens adultos na Grã-Bretanha (ALBSU,1987)revela que eles enfrentam dificuldades na vida cotidianae também no trabalho, o que sugere que, talvez, o con-ceito de letramento adotado pela escola esteja de certaforma em dissonância com aquilo que é importante paraas pessoas em sua vida diária.

Nos países em desenvolvimento, os efeitos da estrei-ta relação entre escolarização e letramento são bastantediferentes.

Em primeiro lugar, a maioria dos países em desenvolvi-mento ainda não provê educação fundamental para todos e,obviamente, esse fato tem sérias implicações para a avalia-ção e mesmo para a conceituação de letramento. Por umlado, como a escolarização é a principal responsável, nassociedades contemporâneas, por promover e garantir o le-tramento, a incapacidade do sistema escolar em ofereceruma escolarização universal resulta em altos índices de anal-fabetismo e baixos níveis de letramento: quase toda a popu-lação analfabeta do mundo encontra-se em países emdesenvolvimento, enquanto que o índice de analfabetismonos países desenvolvidos pode ser considerado desprezível(Unesco, 1990, p.4). Por outro lado, e como consequênciado fato de o analfabetismo resultar da falta de escolariza-ção, o conceito de letramento nos países em desenvolvi-mento é bastante diferente do conceito mais difundido nospaíses desenvolvidos: nesses, ser iletrado significa ter difi-culdades para ler e escrever; naqueles, ser iletrado significaser incapaz de ler e escrever. Por essa razão, enquanto quenos países desenvolvidos o letramento é o principal pro-blema, e não o não-letrarnento (o analfabetismo), como afir-mam Kirsch & ]ungeblut (990), nos países emdesenvolvimento, pelo contrário, o não-Ietramento (o anal-fabetismo) é o principal problema, não o letramento.

Em segundo lugar, nos países em desenvolvimento,apesar de os sistemas escolares serem em geral rigidamen-te regulamentados, a adesão às normas e regulamentosnão é rigorosamente controlada, de modo que se tornadifícil assegurar padrões de resultados. No caso do le-tramento, a ausência de padrões estabelecidos de formamais geral permite a utilização de critérios vagos e aleató-rios de avaliação e medição, de modo que alunos da mes-ma faixa etária ou série evidenciam o domínio dehabilidades de leitura e escrita bastante diferenciadas eníveis variados de letramento escolar. Quase sempre, nospaíses em desenvolvimento, em geral sociedades com

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J.__divisões sociais marcantes, os padrões de letramento defini-dos pelas escolas variam de acordo com o status social e/ou econômico do aluno: os padrões são, quase sempre,consideravelmente mais altos para os alunos das classesaltas. Assim, tornar-se letrado ou mesmo apenas alfabeti-zado numa escola de classe alta tem um significado bas-tante diferente de tornar-se letrado ou alfabetizado numaescola de classe trabalhadora; de fato, os alunos das clas-ses trabalhadoras são sub-escolarízados e sub-letrados emcomparação com os alunos das classes altas. Desse modo,como afirma Lankshear (1987), "a transmissão e a prática doletramento na escola contribuem para a manutenção depadrões desiguais de distribuição de poder e de vantagensdentro da estrutura social" Cp.131).8

Em síntese, dois pontos principais devem ser enfati-zados em relação à avaliação e medição do letramento emcontextos escolares. O primeiro deles diz respeito ao con-ceito de letramento escolar, que decorre dos critérios defi-nidos pela escola para avaliar e medir as habilidades deleitura e escrita: um conceito limitado, em geral insuficien-te para responder às exigências das práticas sociais queenvolvem a língua escrita, fora da escola. O segundo pon-to diz respeito aos diferentes efeitos educacionais e sociaisdesse letramento escolar em países desenvolvidos e emdesenvolvimento: nos países desenvolvidos, sistemas edu-cacionais fortemente organizados prescrevem padrões es-tritos e universais para a aquisição progressiva de níveisde letramento, enquanto que, nos países em desenvolvi-mento, um funcionamento inconsistente e discriminatórioda escola gera padrões múltiplos e diferenciados de aqui-sição de letramento.

K Na verdade, Lankshear não se refere, nessa citação, exatamente aos países emdesenvolvimento, mas sim às SOCiedades capitalistas modernas; entretanto, apesarele O problema que ele aponta não se limitar, certamente, apenas aos países emdesenvolvimento, ele é, sem dúvida alguma, mais acentuado nesses países.

11'Ensaio I 89

Essas questões têm uma influência significativa na defi-nição de critérios para a avaliação e medição do Ietrarnen-to em censos populacionais, como se discute a seguir.

AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO

EM CENSOS POPULACIONAIS

Afirmar que um conceito único de letramento não épossível, tanto para a sociedade como um todo quantoem contextos escolares, não implica que esse conceitoúnico não seja necessário; de fato, uma definição precisaé indispensável para fundamentar programas de coletade dados sobre o letramento, como no caso de censosdemográficos nacionais.

Nesses casos, o problema a enfrentar é que, apesar de oletramento, como foi discutido, não ser algo que as pesso-as ou têm ou não têm - ele é um contínuo, variando donível mais elementar ao mais complexo de habilidades deleitura e escrita e de usos sociais - em levantamentos censi-tários, questões práticas exigem que o letramento seja trata-do como uma variável discreta e não contínua. Como umdos propósitos dos censos demográficos é fornecer infor-mação estatística sobre letramento e analfabetismo, os ins-trumentos de avaliação não podem deixar de determinar umponto de cisão no contínuo do letramento que distinga pes-soas alfabetizadas ou letradas de analfabetas ou iletradas, enão podem deixar de usar a enganosa dicotomia "alfabeti-zado", "letrado", versus "analfabeto", "iletrado",

Tradicionalmente, os levantamentos censitários coletamdados sobre o letramento basicamente através de um dedois processos: o primeiro é a autoavaliação, ou seja, opróprio informante responde se é alfabetizado, letrado, ouse é analfabeto, iletrado; o segundo é a obtenção de infor-mação sobre a conclusão, ou não, pelo informante, deuma determinada série escolar, ou seja, a obtenção de dado

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~ I LetramentoEnsaio 191

sobre a escolarização formal. A definição de letramento eos critérios para avaliá-Io variam, assim, enormemente, poisdependem do ponto específico escolhido, seja pelo recen-seado seja pelo recenseador, como linha divisória entre in-divíduos alfabetizados e analfabetos, letrados e iletrados, aolongo do contínuo que é o letramento.

Na verdade, a decisão sobre que ponto escolher comolinha divisória é determinada pelo estágio histórico da so-ciedade em análise, ou seja, por suas condições culturais,sociais e econômicas específicas num determinado mo-mento, e depende das práticas reais de usos da leitura e daescrita e dos processos através dos quais esses usos sãotransmitidos naquelas condições específicas e naquelemomento. Assim, a linha divisória escolhida para distinguiro "alfabetizado", o "letrado" do "analfabeto", do "iletrado"varia de sociedade para sociedade: pessoas classificadascomo alfabetizadas ou letradas em um determinado paísnão o seriam em outro. Mais ainda: em um mesmo país,os conceitos de alfabetizado e analfabeto, de letrado eiletrado variam ao longo do tempo: à medida que as con-dições sociais e econômicas mudam, também as expecta-tivas em relação ao letramento mudam, e aquelesclassificados como alfabetizados ou letrados em detenni-nado momento podem não sê-lo em outro.

A própria escolha entre coletar dados sobre o letramen-to através de autoavaliação ou de identificação de nível deescolarização depende do estágio de desenvolvimento so-cial e econômico da sociedade e, consequentemente, deseu sistema escolar.

Os países em desenvolvimento optam, em geral, pelacoleta de dados através do processo de autoavaliação 3A aavaliação feita pelo próprio informante sobre suas habilida-des de leitura e escrita é considerada a mais adequada, porvárias razões: primeiramente, porque as práticas sociais deleitura e escrita não estão suficientemente difundidas entre apopulação, não sendo pertinente, por isso, pretender avaliar

nível ou níveis de letramento; em segundo lugar, porque aeducação fundamental universal e obrigatória ainda nãofoi inteiramente alcançada, de modo que o critério de ní-vel de escolaridade seria improcedente; além disso, e emterceiro lugar, porque os sistemas escolares estão organi-zados de modo inconsistente e não são homogêneos, fun-cionando em níveis de qualidade muito diferentes, de modoque haveria pouca concordância sobre o que pode signifi-car a conclusão de determinada série escolar em diferentesregiões, em diferentes escolas.

Os países desenvolvidos, ao contrário, geralmente utili-zam-se de dados sobre nível de escolarização para aferir ograu de letramento da população: considera-se necessária aconclusão de um certo número de anos de escolarizaçãoformal para caracterizar a população letrada, porque a vidasocial exige habilidades e práticas de letramento em inúme-ras e diferentes ocasiões, a educação fundamental básica paratodos já foi praticamente atingida, e os sistemas escolaressão rigorosamente organizados.

Entretanto, tanto a autoavaliação quanto informaçõessobre conclusão de série escolar são processos problemá-ticos para a coleta de dados a respeito do letramento,como se discute a seguir.

Autoava'iação

Informações sobre o letramento através de auto avalia-ção, coleta das em censos demográficos nacionais, são ob-tidas por meio de uma ou mais perguntas feitas aoindivíduo, perguntas que traduzem uma definição préviadaquilo que se convencionou ser letramento. Entretanto,apesar da tentativa de garantir confiabilidade aos dadosderivando as perguntas de uma definição de letramentodecidida previamente, as informações através de autoava-liação sofrem de algumas deficiências sérias.

A primeira deficiência é resultado da aplicação errôneada definição de letramento mais amplamente utilizada em

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92 I Letramento

censos demográficos, definição que gera as perguntas ea aferição das respostas. Apesar de países diferentes uti-lizarem definições diferentes, a fonte primária é invaria-velmente a recomendação da Unesco: "é letrada a pessoaque consegue tanto ler quanto escrever com compreen-são uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana"(Unesco, 1978a). Contudo, o uso dessa definição básicapara fins de autoavaliação não deixa de ser problemáti-co: como se pode traduzi-Ia em uma ou mais perguntasbreves a serem incluídas no questionário censitário?

A fim de evitar esse problema, na maioria dos países apergunta do censo sobre o letramento é simplesmente se apessoa sabe ler e escrever ("Você sabe ler e escrever?"),sem qualquer referência a o quê a pessoa é capaz de ler eescrever ou à compreensão do que é lido ou escrito; oresultado é que o significado da resposta "sim" ou não" doinformante é, na melhor das hipóteses, dúbio." Como ob-serva o estudo técnico das Nações Unidas de 1989 sobre aavaliação do letramento:

Como determinar se a resposta inclui o requisito de "com com-preensão", aplicado a "uma frase simples e curta sobre suavida cotidiana", é uma questão diferente e complexa. Fre-qüentemente, presume-se simplesmente que este é o caso; àsvezes, a questão ou as questões especificam um contexto am-bíguo tal como em: "Você sabe ler uma mensagem simples?"(United Nations, 1989, p.85)

No Brasil, por exemplo, o manual de instrução queorienta o recenseador inclui uma definição de "alfabeti-zado" a ser usada no preenchimento do questionário,definição que é, na verdade, uma versão simplificada dadefinição da Unesco. uma pessoa deve ser consideradaalfabetizada se for capaz de ler e escrever uma mensagem

? Sociedades multilíngues e multiletraclas enfrentam ainda um outro problema: emque língua o indivíduo deve saber ler e escrever? Para uma discussão dessa questão,ver Wagner (1990), United Natíons (1989), Unesco (1978b).

J~simples na sua própria língua (IBGE, 1991). Na prática,contudo, os recenseadores geralmente não seguem es-tritamente as instruções e confiam exclusivamente naresposta afirmativa ou negativa do informante à questãoconcisa que aparece no questionário: "Você sabe ler eescrever?" Uma das razões que pode explicar a descon-sideração da definição proposta no manual de instruçãoé provavelmente a dificuldade de saber exatamente oque ela significa: qual deveria ser a extensão de "umamensagem simples"? quantas unidades de informaçãoela deveria incluir? em que nível de proficiência eladeveria ser lida ou escrita? o que quer dizer "com com-preensão"? etc.

Um segundo obstáculo à confiabilidade das informa-ções obtidas através de autoavaliação é a impossibilidadede, com base apenas na resposta afirmativa C'sim") ounegativa ("não") à pergunta sobre a habilidade do infor-mante de ler e escrever, captar distinções importantes emtermos de habilidades e processos (por exemplo, leituraversus escrita; diferença entre decodíficação e compre-ensão ou interpretação; diferença entre apenas ser capazde transcrever unidades sonoras e ser capaz de comuni-car-se por escrito com um leitor potencial). Na verdade, asrespostas "sim" ou "não" a perguntas a respeito das pró-prias habilidades de leitura e escrita dependem, funda-mentalmente, da avaliação que o informante faz de suashabilidades, competências e práticas pessoais de letramento.Deve-se salientar aqui um ponto importante: essa avalia-ção que o informante faz de si mesmo é frequentementeinfluenciada por um conceito de letramento definido pelaescola, isto porque, nas sociedades contemporâneas, comofoi dito antes, as escolas são "árbitros dos padrões deletramento" (Cook-Gumperz, 1986, p.34), de modo que oinformante tende a descrever-se como alfabetizado/analfa-beto, letrado/iletrado, tendo como parâmetros as habilida-des e práticas de letramento que são tipicamente ensinadase medidas nos contextos escolares, ou seja, de acordo com

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um conceito de letramento escolar e não em função dashabilidades e práticas aprendidas e usadas de fato na vidacotidiana fora da escola."

Uma outra consideração a ser feita é que as perguntasde autoavaliação nos levantamentos censitários não sãorespondidas por cada indivíduo separadamente, mas porum morador do domicílio que responde por todos os ou-tros moradores. Assim, a classificação de um indivíduocomo "alfabetizado" ou "analfabeto", "letrado" ou "iletra-do" baseia-se não apenas na avaliação que o informantefaz de suas próprias habilidades de letramento, mas tam-bém na estimativa que faz das habilidades dos outros mo-radores: com que critérios o informante classifica a si mesmoe aos outros como dominando ou não as habilidades ne-cessárias para que o indivíduo seja considerado alfabetiza-do ou letrado?

Finalmente, as respostas do informante às perguntasdo censo sobre letramento podem não corresponder àssuas condições reais, devido a inibições sociais e psico-lógicas e atitudes de censura. Como os informantes des-confiam frequentemente das motivações do recenseador,podem dar respostas desejáveis em vez de respostas sin-ceras; por exemplo, pessoas analfabetas muitas vezespreferem esconder que não sabem ler e escrever, porvergonha de admitir, diante de um estranho, sobretudoalguém que veem como exercendo um papel de autori-dade, o que consideram ser uma deficiência; ou, pelocontrário, pessoas alfabetizadas ou letradas podem de-clarar não saber ler e escrever pelo temor de vir a seremsubmetidas a um teste ou alguma outra forma de medi-ção direta. Como afirma Schofield (1968):

Como na maioria das investigações atuais sobre o letramento, osdados desses relatórios (relatórios estatísticos) são medidas dasopiniões das pessoas sobre suas competências de letramento, talcomo foram declaradas a estranhos, e não constituem uma evi-dência direta da existência dessas competências. O perigo deresultados pouco confiáveís nesses casos, sobretudo quando seestabelece uma relação entre status e posse de competências deletramento, sequer precisa ser enfatizado. (p.319)

À luz dessas considerações, pode-se concluir que, ape-sar das tentativas de garantir a confiabilidade dos dados, asinformações sobre índices de letramento baseadas em au-tovaliação são muito imprecisas. A principal causa disso éque o marco divisório que distinguiria pessoas alfabetiza-das, letradas, de pessoas analfabetas, iletradas, ao longo docontínuo do letramento, varia enormemente nas pesquisasfeitas para censos demográficos, porque sua caracterizaçãodepende de fatores diversos e frequentemente discrepantes:a aplicação (ou má aplicação) pelo recenseador da defini-ção de letramento pré-estabelecida e da qual deveria deri-var-se esse marco divisório; a decisão do próprio informantesobre esse marco divisório, ao descrever a si mesmo e aoutros membros da família como alfabetizados ou analfabe-tos; os aspectos psicológicos e sociais relacionados com ostatus do letramento na sociedade.

Essas restrições às informações sobre letramento obti-das por autoavaliação têm conduzido ao procedimentoalternativo de medir competências e práticas de letramen-to com base na escolarização e na conclusão de deter-minada série escolar.

Conclusão de série escolar

Definir, avaliar e medir o letramento em termos de anosde escolarização apresenta algumas vantagens conceituaisem relação a fazê-lo com base em autoavaliação.

A principal vantagem é que, enquanto a autoavaliaçãofundamenta-se essencialmente na suposição de que existeum ponto específico, num contínuo de habilidades e

10 Até mesmo em países do Terceiro Mundo, embora o ensino fundamental paratodos ainda não tenha sido alcançado, uma grande maioria da população temalgum tipo de contato com a escolarização elementar, de modo que os parâmetrosda escola para avaliação do letramento são em geral bastante conhecidos e ampla-mente ínternalízados.

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práticas, que separa o alfabetizado, o letrado, do analfabeto,do iletrado, o critério baseado em número de anos de escolari-dade, embora tenha também o objetivo, no caso dos levanta-mentos censitários, de distinguir alfabetizado, letrado, deanalfabeto, iletrado, traz em si, intrinsecamente, o reconheci-mento de que o letramento é uma série ou um contínuo decompetências e práticas, de certa forma escapando, assim, àdicotomia artificialletramento versus analfabetismo. Na verda-de, avaliar e medir o letramento com base no número de anosde escola fundamental concluídos é reconhecer que é gradual-mente que as pessoas passam do analfabetismo, do não letra-mento, ao letramento, e que isso ocorre ao longo de um certoperíodo de tempo e através de vários estágios.

Uma outra vantagem de avaliar o letramento em termosde anos de escolarização é que a responsabilidade de classi-ficar indivíduos como alfabetizados, letrados, ou analfabetos,iletrados é transferida para um árbitro provavelmente maisconfiável: enquanto a informação baseada em autoavaliaçãofundamenta-se basicamente na avaliação do próprio infor-mante sobre suas competências de leitura e escrita, comodiscutido anteriormente, o critério de conclusão de sérieescolar atribui a avaliação ao sistema escolar, aproximando-se, dessa forma, de uma estimativa mais imparcial.

Entretanto, o número de anos de escolaridade concluí-dos, como critério para a avaliação e medição do letra-mento, suscita um problema crucial: é necessário selecionaruma determinada série escolar como linha divisória entreo analfabetismo, o não letramento e o letramento, e essaseleção é inevitavelmente arbitrária. Hillerich (1978) expressaesse problema nos seguintes termos:

Os dados abaixo, relativos a estimativas de letramento nosEstados Unidos, fomecidas por Newman & Beverstock (1990),11reforçam o argumento de Hillerich:os dados ilustram a arbitra-riedade da seleção de uma determinada série cuja conclusãoindicaria letramento adequado ou satisfatório:

Nos anos 30, o Civílian Conseniation Corps utilizou a conclusãoda terceira série como padrão de letramento. No início da Segun-da Guerra Mundial, a conclusão da quarta série foi consideradacomo indicativo de letramento suficiente para a entrada no exérci-to. Contudo, à medida que a guerra avançava, as exigências deletramento foram alteradas, de modo que um número suficientede soldados pudesse ser incorporado. O censo especial de 1947estabeleceu como nível indicativo de letramento cinco anos deescolarização, e 13.5 por cento da população masculina não atin-giu esse nível. O censo de 1949 tomou como critério a quintasérie, e o de 1952, a sexta série. Na década de sessenta, o Depar-tamento de Educação dos Estados Unidos estabeleceu como ní-vel indicativo de letramento oito anos de escolarização. Conside-rando 9 anos de escolarização como o mínimo necessário paraser atingido o letramento, o censo de 1980 revelou 24 milhões depessoas de 25 anos ou mais que eram iletradas - 18 por cento daspessoas nessa faixa etária. Mas, tomando como critério um míni-mo de 12 anos de escolaridade, o mesmo censo encontrou 45milhões de pessoas iletradas, ou seja, 34 por cento. Cp.57)

Se um determinado número de anos na escola é adotado comobase de avaliação do letramento, é necessário apenas escolher asérie que será usada como critério. Tal decisão pode ser feita emtermos do número de iletrados que se deseja declarar - quantomais avançada a série escolhida, maior será, obviamente, o nú-mero de "iletrados" identificado. Ou a série pode ser escolhidacom base em algum nível que se presuma "necessário" para queadultos sejam bem sucedidos. (p.31)

Como os dados deixam claro, o número de anos deescolaridade considerados necessários para que seja alcan-çado o letramento pode aumentar com o tempo: à medidaque a sociedade vai-se tornando mais complexa, mais exi-gências vão sendo feitas em relação a habilidades e práti-cas de leitura e escrita e, consequentemente, níveis maisavançados de escolarização vão sendo considerados ne-cessários. Mais ainda, a seleção de uma determinada sériecomo linha divisória entre letramento e não letramentodepende dos fins da avaliação e medição, ou seja, daquiloque é julgado necessário em função dos efeitos desejados.

u A fonte dos dados apresentados por Newman & Beverstock é: McGrail, ]. (984).Adult Illiterates anel Adult Literacy Programs: A Summary of Descriptive Data. SanFrancisco, CA: National Aclult Literacy Project, Far West Laborarory.

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98 I Letramento

Finalmente, e obviamente, pode-se obter qualquer número deanalfabetos ou iletrados, apenas tomando-se como critérioa conclusão desta ou daquela série.

Além da arbitrariedade inerente ao critério de escolheruma determinada série escolar e decidir que, concluídaela, foi atingido um nível adequado de letramento e, abai-xo dela, permanece-se no não letramento (Hillerich, 1978,p.33), o critério de conclusão de determinada série escolar,para avaliar o letramento, baseia-se em algumas suposi-ções equivocadas.

Primeiramente, o uso do critério de conclusão de sé-rie escolar para avaliar o letramento em levantamentoscensitários pressupõe que a educação universal e obri-gatória é adequadamente oferecida, de modo que todoindivíduo tenha a oportunidade de entrar e permanecerno sistema escolar. Mais ainda, esse sistema deve serfortemente organizado, para permitir supor que a natu-reza e qualidade da escolarização seja suficientementeuniforme entre as escolas, e que o mesmo nível de le-trarnento seja alcançado no mesmo número de anos emescolas diferentes.

Isto certamente não ocorre nos países em desenvolvi-mento, em que a conclusão de determinada série escolartem pouca validade como critério para a avaliação do le-tramento, porque ainda não é oferecido o ensino funda-mental para todos, e a organização e controle escolaressão, em geral, tão precários que uma grande parte dascrianças que conseguem ter acesso à escola ou a abando-nam, depois de completar dois ou três anos de escolariza-ção fundamental, ou repetem a mesma série diversas vezes(em geral a primeira série)." Mais ainda, nos países em

12 o Brasil é um exemplo característico: cerca de apenas 50 por cento das crianças desete anos brasileiras matriculadas na primeira série passam para a série seguinte; osoutros 50 por cento ou deixam a escola ou repetem o ano.

Ensaio I <f)

Ii

desenvolvimento, justamente por causa do índice de repro-vações e das repetências decorrentes delas, a conclusão daquarta série, por exemplo (em geral selecionada comolinha divisória entre analfabetismo e letramento) represen-ta com frequência, na verdade, seis, oito ou dez anos deescolarízação,

Até mesmo nos países desenvolvidos, onde os sistemaseducacionais são em geral submetidos a padrões bem de-finidos de progressão de série para série, não deixa de serdiscutível supor que o processo de escolarização é unifor-me entre as escolas, igualando-se o que é certamente desi-gual: processos de escolarização, competência dosprofessores, potencialidades dos alunos, valores atribuí-dos pela comunidade ao letramento. Como observa Oxe-nham (1980):

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... enquanto quatro anos de escolarização, em certas escolasde alguns países, podem habilitar a maioria dos alunos a tor-nar-se adequada e permanentemente letrada, o mesmo nú-mero de séries em outro lugar pode resultar simplesmente empermanência no analfabetismo. Cp.90)

Uma segunda suposição subjacente ao critério de con-clusão de série escolar para avaliação e medição do letra-mento é a presumida relação entre comportamentosadquiridos na escola e habilidades e práticas de letramen-to ou, em outras palavras, uma suposição de que o letra-mento é aquilo que as escolas ensinam e medem e,portanto, é basicamente adquirido por meio da escolaríza-ção. Além do fato de que essa suposição ignora a aprendi-zagem por meios informais ao longo da vida, em situaçõesexternas à escola, há outras importantes evidências de quese trata de uma suposição discutível.

Em primeiro lugar, apesar de ter recebido ainda poucaatenção a hipótese de que um determinado nível/série con-cluído equivale a letramento, alguns estudos empíricos su-gerem que ela não procede: Harman (1970), Kirsch &

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Guthrie (1977-1978), Hillerich (1978), Wagner (1991) rela-tam resultados de pesquisa que indicam haver uma rela-ção muito tênue entre o critério de série escolar concluídae as competências de letramento do adulto.

Em segundo lugar, a suposta ligação de causa-e-efei-to entre escolarização e letramento é refutada pelo fatode que o não letramento (o analfabetismo funcional)continua a ser um grave problema nos países onde oensino fundamental obrigatório para todos foi pratica-mente alcançado, como no caso dos países desenvolvi-dos. Se a conclusão de uma determinada série equivalea letramento, por que baixos níveis de letramento ocor-rem em sociedades em que o direito à escolaridade bá-sica é garantido a todos?

Esse aparente paradoxo pode ser compreendido sese considera o fato de que as escolas, como discutidoacima, avaliam e medem o letramento segundo as exi-gências de desempenho determinadas por instrumentosde avaliação definidos por elas mesmas, internamente,não levando em conta, em geral, as competências deletramento requeridas em situações exteriores a elas. Naverdade, as habilidades e práticas de letramento, emoutros contextos sociais, parecem ir muito além das ha-bilidades de leitura e escrita ensinadas e medidas emcontextos escolares, ou seja, muito além de um letra-mento escolarizado. A consequência, como afirmamCastell et al. (1986), é "uma discrepância significativaentre o que conta como letramento na escola e os tiposde competências de letramento realmente necessáriasnas atividades profissionais e comunitárias" (p."). Emoutras palavras, por meio da escolarização, as pessoaspodem se tornar capazes de realizar tarefas escolaresde letramento, mas podem permanecer incapazes delidar com usos cotidianos de leitura e escrita em con-textos não escolares - em casa, no trabalho e no seucontexto social. De fato, o termo "letramento funcional"

foi criado justamente para ampliar o conceito de letra-mento definido pela escola, acrescentando a ele comporta-mentos letrados cotidianos que a aprendizagem formalem contextos escolares não parece promover.

Inúmeros estudos têm dado suporte a essas afirmações.Por exemplo: os estudos etnográficos de Heath (1983)indicam que as atividades de leitura e escrita em contex-tos escolares revelam-se altamente irrelevantes em situa-ções externas ao mundo escolar; nesse mesmo sentido, apesquisa de Wagner sobre o letramento funcional entrecrianças marroquinas em idade escolar (1991) levou àseguinte conclusão:

o presente estudo confirma um crescente número de evidên-cias indicando que muitas das habilidades necessárias na vidacotidiana podem não ser adquiridas mesmo após os 4 anosde escolarização formal convencionalmente (ou convenien-temente) utilizados como a linha divisória entre letramento enão letramento. (p.193)

Portanto, a suposição de que se pode avaliar e medirletramento pelo critério de conclusão de determinada sérieescolar é, certamente, uma suposição equivocada.

Igualmente equivocada é uma terceira suposição emque se fundamenta o critério de série escolar concluídapara a avaliação e medição do letramento: a suposiçãode que a conclusão de uma dada série garante um letra-mento permanente e de que o que foi adquirido nãoserá perdido.

Essa suposição deixa de levar em consideração umaquestão importante: a validade de arbitrariamente escolheruma determinada série escolar como o limiar de um apren-dizado de tal natureza que, mesmo no caso de pouco ounenhum uso das competências adquiridas, não ocorreriauma reversão ao analfabetismo ou a perda de habilidadesde letramento. O esclarecimento dessa questão dependede dados empíricos ainda não disponíveis, como observaWagner (1990)

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102 I Letramento Ensaio I 103

Embora haja numerosas hipóteses sobre ° rrururno deescolarização primária necessário (ou de educação não formalou de experiências vivenciadas em campanhas de alfabetiza-ção) para que o letramento seja "fixado" na criança ou noadulto, há ainda muito pouca informação para sustentar essashipóteses. (p.131)

evidências de que o 'retrocesso do letramento' podeser um mito" (p.Ll ).

Conclui-se que estudos empíricos sobre a retenção decompetências de leitura e escrita têm chegado a resultadosconflitantes; assim, presumir que a conclusão de uma de-terminada série escolar seja evidência de letramento é, porenquanto, questionável.

Em síntese, embora o critério de conclusão de sérieescolar para a avaliação e medição do letramento ofe-reça algumas vantagens conceituais em relação ao crité-rio de autoavaliação, traz alguns sérios problemas ebaseia-se em suposições ou equivocadas ou controversas.Além disso, é uma questão ainda aberta a investigaçõesfuturas determinar se indivíduos que concluem uma de-terminada série tornam-se letrados de forma adequada epermanente.

Podemos concluir que as informações por auto avalia-ção e por conclusão de série escolar, coletadas em levan-tamentos censitários, permitem apenas uma medida bastanteprecária de letramento. Um procedimento para a avaliaçãoe a medição, com mais profundidade, do letramento, per-mitindo investigar tanto as habilidades quanto as práticassociais de leitura e de escrita, é o estudo por amostragem,discutido a seguir.

Na verdade, a retenção de competências de leitura e deescrita é um fenômeno ainda pouco estudado, sendo sur-preendentemente pequeno o número de pesquisas nessecampo. Além disso, os resultados a que chegam essespoucos estudos empíricos não são conclusivos, sendo ain-da restrita a possibilidade de generalização.

Simmons, ao revisar, na segunda metade dos anos 70,seis estudos sobre a retenção de competências de letra-mento que, segundo ele, constituíam, então, toda a litera-tura sobre o tema, resume os resultados concluindo que:primeiro, "os estudos indicam de modo consistente umdeclínio das habilidades de leitura e escrita ao longo dotempo"; segundo, "altos níveis alcançados em educaçãoanterior não garantem que as pessoas não regridam aoanalfabetismo"; e, finalmente, "mesmo aquilo que é reti-do parece ter pouco valor prático para o indivíduo ou asociedade" (Simmons, 1976, p.84). O estudo realizado pelopróprio Simmons sugere que a suposição de que a educa-ção fundamental tem efeitos permanentes deve ser questi-onada, e que "o motivo pelo qual alguns indivíduos retêmmais do que outros parece estar mais em fatores ligadosao ambiente familiar e uso pós-escolar das habilidadescognitivas do que em fatores ligados às experiências esco-lares" (Simmons, 1976, p.92).

Ao contrário, um estudo longitudinal realizado porWagner, Spratt, Klein & Ezzaki (1989) "não confirma ahipótese do 'retrocesso' em competências de letramen-to ou perda de habilidades acadêmico-cognitivas de-pois de cinco séries de escolarização fundamental"(p.Z); segundo os autores, o estudo "oferece as primeiras

AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO

EM ESTUDOS POR AMOSTRAGEM

Avaliar o letramento por meio de levantamento dascompetências reais de uma amostra representativa dapopulação, isto é, levantamento realizado por amos-tragem, é uma alternativa para assegurar uma aferiçãomais precisa da extensão e qualidade do letramento napopulação.

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1041 Letramento Ensaio 1105

A coleta de dados sobre o letramento em levantamentoscensitários tem por objetivo fornecer, dentre muitas ou-tras informações sobre características demográficas, so-ciais e socioeconômicas, um indicador genérico daextensão do letramento na população como um todo; oslevantamentos por amostragem, ao contrário, visam à co-leta de uma grande variedade de informações específicassobre habilidades e práticas sociais reais de leitura e deescrita. Consequentemente, enquanto o levantamento cen-sitário avalia e mede o letramento de maneira superficial,porque não pode utilizar mais que uma ou duas pergun-tas curtas de autoavaliação ou o simples critério de con-clusão de determinada série escolar, o levantamento poramostragem pode avaliar e medir em profundidade tantoas habilidades de leitura e de escrita, através de provas etestes, quanto os usos cotidianos dessas habilidades, atra-vés de questionários estruturados. Os levantamentos poramostragem sobre o letramento podem, pois, fornecerdados sobre ambas as dimensões do letramento discuti-das anteriormente: a dimensão individual, ou seja, a pos-se pessoal de habilidades de leitura e escrita, e a dimensãosocial, ou seja, o exercício das práticas sociais que en-volvem a leitura e a escrita.

Além disso, como pesquisas por amostragem sobreo letramento quase sempre levantam dados tambémsobre a formação educacional em geral e sobre as ca-racterísticas socioeconômicas e culturais do grupo fa-miliar, elas permitem que se analisem as relações entreas habilidades e práticas sociais de leitura e de escritae outros fatores, tais como idade, sexo, raça, renda,residência rural/urbana, meio cultural e região (UnitedNations, 1989, p.10). Desse modo, pesquisas de letra-mento por amostragem fornecem dados não apenaspara a estimativa dos níveis de letramento, mas também, esobretudo, para a formulação de políticas educacionais e

a implementação de programas de alfabetização e deletrarnento."

Na verdade, o que os levantamentos por amostragembuscam identificar é o letramento funcional; em lugarde considerar o letramento como uma característica queas pessoas ou têm ou não têm, como fazem os levanta-mentos censitários, os levantamentos por amostragembuscam identificar a prática real das habilidades de lei-tura e escrita e a natureza e frequência de usos sociaisdessas habilidades. Assim, os levantamentos por amos-tragem têm como objetivo avaliar e medir níveis de le-tramento, e não apenas o nível básico de "ser capaz deler e escrever".

Como consequência, a necessidade de avaliar e medir oletramento por meio de pesquisas por amostragem é reco-nhecida principalmente em países onde esse nível básicode letramento já foi alcançado praticamente por todos, demodo que é pertinente buscar identificar habilidades deleitura e escrita mais complexas, como também o uso daleitura e da escrita em contextos sociais os mais diversos.O World Education Report de 1991 (Unesco, 1991) ratificaesse ponto de vista:

Não obstante a diversidade de níveis de Ietrarnento, a maioriados países do mundo ainda tem proporções significativas desua população abaixo até mesmo elo nível mínimo de ser ca-paz de, com compreensão, ler e escrever uma frase simplessobre a vida cotidiana. O fato de que este primeiro nível conti-nua a ser a principal preocupação na maioria dos países ficouevidenciado nas respostas ao questionário do InternationalBureau of Education (IBE) sobre as tendências atuais da edu-cação fundamental e de programas de alfabetização de adultos

" Uma discussão a respeito das possibilidades de utilização de pesquisas de letra-mento por amostragem domiciliar ultrapassa os objetivos deste estudo; uma discus-são detalhada pode ser encontrada no estudo técnico das Nações Unidas de 1989sobre a avaliação do letramento através de levantamentos domiciliares (UnitedNations, 1989); ver também Wagner (1990).

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1 <X5 I LetramentoEnsaio I 107

que foi distribuído aos Estados Membros da UNESCO, por oca-sião da 42" sessão da Conferência Internacional de Educação(Genebra, setembro de 1990). As respostas, em sua maioria,afirmaram que a definição primeira de analfabeto de 1958 ain-da era relevante em seus países; um número menor concordouque a noção de "analfabeto funcional" era "percebida e defini-da como uma categoria específica". (p.47-48)

consiste de um grande número de diferentes habilida-des, competências cognitivas e metacognitivas, aplica-das a um vasto conjunto de materiais de leitura e gênerosde escrita, e refere-se a uma variedade de usos da lei-tura e da escrita, praticadas em contextos sociais dife-rentes. Os instrumentos de avaliação utilizados empesquisas por amostragem de letramento (testes e ques-tionários) não podem, assim, deixar de selecionar umaamostra de comportamentos considerados representa-tivos de uma grande variedade de habilidades e práti-cas. Como consequência, as estimativas de letramento,através de pesquisas por amostragem, "variam tantoquanto as medidas empregadas" (Kirsch & Guthrie,1977-1978, p.504). Newman & Beverstock (990) refe-rem-se a estudos que tentaram avaliar e medir o letra-mento funcional nos Estados Unidos nos anos setentae oitenta nos seguintes termos:

Por essa razão é que as pesquisas por amostragem so-bre o letramento foram implementadas principalmente nospaíses onde a noção de analfabeto funcional é "percebidae definida como uma categoria específica", ou seja, nospaíses desenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo,um número significativo de pesquisas por amostragem sobreo letramento foi realizado nas últimas duas décadas (parauma revisão crítica, ver Kirsch & Guthrie, 1977-1978; New-man & Beverstock, 1990). Já nos países em desenvolvi-mento, onde uma grande parte da população ainda nãoatingiu sequer o nível básico de letramento - ser capaz deler e escrever - estudos do letramento através de pesquisaspor amostragem são raros, provavelmente porque são con-siderados supérfluos."

Uma outra consideração a ser feita é que, embora le-vantamentos por amostragem domiciliar sobre o letra-mento forneçam informações sobre uma ampla variedadede habilidades e práticas, não se deve supor que nelesseja inteiramente eliminada a seleção arbitrária de linhasdivisórias no contínuo do letramento para distinguir di-ferentes níveis. Como discutido anteriormente, o letramento

Os estudos variavam, e seus resultados também. As estimati-vas indicavam de 13 até mais de 50 por cento da populaçãoadulta americana com dificuldades em habilidades e práti-cas básicas de letramento. Dependendo de quem estiver fa-lando e de qual estudo é citado, os Estados Unidos têm umíndice de letra mento baixo, alto ou um índice que seposiciona em algum lugar entre baixo e alto. (p.49)

A falta de concordância em relação ao que deve sermedido em processos de avaliação de letramento podeser evidenciada comparando-se os quadros referenciaispara a medição do letramento adotados por dois estudosrelativamente recentes: o National Assessment of Educati-onal Progress (NAEP), um estudo sobre o letramento dosjovens norte-americanos (Kirsch & Jungeblut, 1990), e oestudo técnico das Nações Unidas sobre a avaliação deletramento através de pesquisas domiciliares (NHSCP:National Housebold Suruey Capability Programme, Uni-ted Nations, 1989).

" o relativamente recente estudo técnico das Nações Unidas sobre a avaliação doletramento através de pesquisas domiciliares (United Nations, 1989) pretendeu auxiliaros países em desenvolvimento com uma minuciosa orientação sobre como planejar,conduzir e executar uma pesquisa de letramento por amostragem domiciliar, tacitamentereconhecendo a inexperíência e pouca fantiliaridade desses países com esse tipo delevantamento. Na verdade, o maior desafio dos países em desenvolvimento ainda estáem planejar, conduzir e executar programas e campanhas nacionais de alfabetizaçãoclirecionaclos à eliminação de altos e persistentes índices de analfabetismo.

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108 I Leerameneo Ensaio I 101

Ambos os quadros referenciais propõem uma matrizde habilidades de leitura e escrita aplicadas a diferentestipos de materiais escritos, mas os critérios de seleçãodas categorias de habilidades e dos materiais de leitura eescrita para compor os instrumentos de avaliação sãobastante diferentes.

Em relação às habilidades de leitura e escrita, en-quanto as categorias do NAEP são definidas tendo porcritério os usos dessas habilidades, ou seja, o tipo deinformação que os indivíduos buscam quando leem ouescrevem, as categorias do NHSCP são definidas segun-do os processos básicos envolvidos na leitura e na escrita.Assim, a matriz do NAEP inclui, como categorias de usoda leitura e da escrita, conhecimento, avaliação, infor-mação especifica, interação social e aplicação, enquan-to a matriz do NHSCP inclui, como tipos de habilidadesde leitura e escrita, decodificação, compreensão, escri-ta e localização de informações.

Da mesma forma, em relação aos materiais de leiturae escrita, enquanto as categorias do NAEP são definidassegundo a forma linguistica em que a informação éapresentada, as categorias do NHSCP referem-se aos do-mínios em que as habilidades de leitura e escrita sãoutilizadas. Assim, a matriz do NAEP inclui as seguintescategorias de materiais de leitura e escrita: signo/rótulo,instruções, memorando/carta, formulário, tabela, grá-fico, prosa, índices/referências, notícia, esquema ou di-agrama, anúncio e conta/fatura; trabalhando comcritérios diferentes, a matriz do NHSCP inclui não maisque três tipos de domínios textuais: palauras/frases, prosae documentos.

É importante observar que essa falta de congruência en-tre propostas distintas de fragmentação do letramento emcomponentes específicos para fins de avaliação explica-se

pela exigência a que deve atender qualquer instrumentode avaliação: a necessidade de selecionar, no universo decomportamentos que se deseja avaliar e medir, um con-junto de comportamentos de que as questões do instru-mento de avaliação devem ser uma amostragem. Como adefinição desse conjunto de comportamentos dependedos propósitos e do contexto da avaliação, propósitos econtextos diferentes resultam em procedimentos de amos-tragem diferentes.

Assim, as diferenças entre os dois estudos discutidosaqui podem ser explicadas pelos seus diferentes propó-sitos e contextos. O propósito do estudo do NAEP foidescrever a natureza e a extensão dos problemas de le-tramento apresentados por jovens adultos de um paísdesenvolvido onde o conceito de letramento é basica-mente, como o próprio estudo declara, "o uso pelo indi-víduo de informações impressas e escritas para inserir-sena sociedade, para atingir suas metas pessoais e desen-volver seu conhecimento e potencial" CKirsch & Junge-blut, 1990, p.I-8). Por outro lado, o estudo do NHSCP foiconcebido principalmente para orientar programas e po-líticas de letramento em países em desenvolvimento onde,como discutido anteriormente, o letramento ainda é defi-nido como a capacidade elementar de ler e escrever, e oletramento funcional ainda não se configurou como umacategoria distinta.

É necessário apontar ainda uma última questão sobreo uso de pesquisas por amostragem para avaliação deletramento. A dicotomia básica letrado/iletrado pode, éóbvio, ser utilizada também nesse tipo de pesquisa; oestudo técnico das Nações Unidas sobre a avaliação doletramento, anteriormente mencionado, até mesmo reco-menda que os países em desenvolvimento façam usodessa dicotomia nos levantamentos por amostragem do-miciliar sobre o letramento (United Nations, 1989, p.89).

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110 I LetramentoEnsaio 1m

Entretanto, como esse mesmo estudo das Nações Unidasobserva, essa dicotomia básica "pode revelar detalhes in-suficientes sobre os níveis e habilidades de letramento",e "a medição direta de habilidades de leitura e escritaatravés da utilização de instrumentos de avaliação forne-ce informações para a construção de categorias mais pre-cisas do que as que a simples auto-avaliação permiteconstruir" (United Nations, 1989, p.156, 159). Um exem-plo disso é o apresentado nesse estudo mesmo das Na-ções Unidas, que sugere as seguintes categorias comouma possível classificação de níveis de letramento a se-rem avaliados através de pesquisas por amostragem: nãoletrado, pouco letrado, letrado mediano e altamente le-trado (United Nations, 1989, p.159-160; ver também Wag-ner, 1990, p.122)

As duas classificações seguintes, ambas incluídas emestudos relativos à medição direta de habilidades e práti-cas de letramento, são outros exemplos de "categoriasmais precisas", superando a dicotomia letrado-iletrado,difícil de ser mantida: a primeira estabelece níveis deletramento pelo critério da "sobrevivência" social per-mitida por cada nível, e classifica o letramento de so-brevivência como provável, marginal, questionável,baixo (Barris, 1970);15a segunda usa o critério da fun-cionalidade e classifica o indivíduo nas categorias fun-cionalmente incompetente, marginalmente funcional efuncionalmente proficiente (Adult Performance LevelStudy, 1977).16

Um exemplo mais sofisticado é encontrado no estu-do de Kirsch & Guthrie (990) sobre níveis de letramen-to de jovens adultos norte-americanos. As questões deavaliação das habilidades de leitura e de escrita incluí-das no instrumento de medida utilizado foram distribuí-das em três escalas de letramento e organizadas, emcada escala, segundo níveis de dificuldade, de modo atornar possível a avaliação de vários tipos e níveis deproficiência. O objetivo foi "construir um perfil" dosindivíduos e não apenas "classificá-los", segundo os re-sultados em cada escala e entre as três escalas. Kirsch &Guthrie indicam o pressuposto subjacente ao tratamen-to que dão à avaliação e medição do letramento nosseguintes termos:

o que é preciso é um tratamento que realmente permita com-preender os vários tipos e níveis de proficiência em leitura eescrita atingidos em nossa sociedade. Tal tratamento forneceriauma representação mais precisa não apenas da natureza com-plexa das exigências de letramento em uma sociedadepluralística, mas também do status das pessoas que atuam emnossa sociedade. Cp.III-36)

Na verdade, esse pressuposto está presente, de um modogeral, nas pesquisas por amostragem sobre o letramento.Propiciando uma abordagem multidimensional do letra-mento e avaliando habilidades e práticas de leitura e deescrita através de uma medição direta, essas pesquisas podemfornecer dados mais refinados e confiáveis sobre a exten-são e natureza do letramento na população do que outrosprocedimentos de coleta de dados.

15 HARRIS,L. & Associares (1970). Survival Literacy Study. Washington, DC: NationalReading Counei!. Citado por: Newman & Beverstock, 1990, p.65; ver também Kirsch& Guthrie, 1977-1978, p.496.

16 US OFFICE OF EDUCATION(1977). Final Report: The American Performance LevelStudy. Washington, DC: US Office of Education, Department of Health, Educationand Welfare. Citado por: Newman & Beverstock, 1990, p.69-70; ver também Kirsch &Guthrie, 1977-1978, p.499.

AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO:EM BUSCA DE SOLUÇÕES

Este estudo, embora pretendendo esclarecer a questãoda avaliação e medição do letramento em suas relações

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1121 Letramento •• 113

com a conceituação e definição desse fenômeno, traz, naverdade, mais problemas que soluções.

A discussão feita evidencia que avaliar e medir oletramento é uma tarefa altamente complexa e difícil:ela exige uma definição precisa de letramento, indis-pensável como parârnetro para a avaliação e a medida,mas qualquer tentativa de resposta a essa exigênciatraz sérios problemas epistemológicos. Concluiu-se queo letramento é uma variável contínua e não discreta oudicotômica; refere-se a uma multiplicidade de habili-dades de leitura e de escrita, que devem ser aplicadasa uma ampla variedade de materiais de leitura e escri-ta; compreende diferentes práticas que dependem danatureza, estrutura e aspirações de determinada socie-dade. Em síntese, o letramento é "um fenômeno demuitos significados" (SCRIBNER, 1984, p.9); uma únicadefinição consensual de letramento é, assim, totalmenteimpossível.

Entretanto, a falta de concordância sobre o que életramento - e, portanto, a falta de concordância sobreo que deve ser avaliado e medido - não elimina a ne-cessidade ou a importância da avaliação e medição doletramento, única forma de obter dados sobre esse fenô-meno, dados que são necessários para fins teóricos epráticos. Pelo menos três argumentos justificam a ne-cessidade de definir índices de letramento através deavaliação e medição.

Primeiramente, o índice de letramento de uma socie-dade ou de um grupo social é um dos indicadores bási-cos do progresso de um país ou de uma comunidade.Obviamente, como afirmado anteriormente, não se tratade propor que o índice de letramento, ele só, represen-te o nível econômico, social e cultural de um país ou deuma comunidade; na verdade, o pressuposto subjacentea essa proposição - o pressuposto de que o letramentoleva ao crescimento econômico e ao progresso social -

não tem qualquer suporte empírico, como já demons-traram várias pesquisas históricas e etnográficas. Comoafirma Wagner 0990, p.Ll ó), defender uma relação decausalidade entre letramento e indicadores econômi-cos, o que ainda é feito com frequência, é extrema-mente discutível:

Seria igualmente correto afirmar que, ao contrário, os índicesele letramento, assim como os de mortalidade infantil, são con-sequência do grau de desenvolvimento econômico na maioriados países. Quando há progresso social e econômico, desco-bre-se geralmente que os índices ele Ietrarnento sobem e os demortalidade infantil caem. Blaug, que foi um dos defensoresda teoria do capital humano, concluiu, posteriormente, quenem anos de escolarização nem índices de letramento têm qual-quer efeito direto no crescimeruo econômico dospaíses em desen-volvimento. (grifo nosso)

Entretanto, embora se deva reconhecer que o letramen-to é antes uma variável dependente que independente (Graff,1987a), ele se associa, sem dúvida alguma, a muitos dosindicadores de desenvolvimento social e econômico. Cor-relacionar índices de letramento com indicadores socioe-conômicos tais como produto interno bruto, índices demortalidade infantil, de natalidade, de nutrição, dentremuitos outros, permite identificar e compreender o statuseconômico, social e cultural de um país ou de uma comu-nidade, evidenciando, por exemplo, que o analfabetismoe a pobreza andam de mãos dadas, como ocorre nos paí-ses do Terceiro Mundo.

Uma segunda justificativa para a necessidade de de-terminar índices de letramento através de avaliação emedição está intimamente ligada à primeira. Os índi-ces de letramento são extremamente úteis para fins decomparação entre países ou entre comunidades, res-pondendo, assim, a uma importante preocupação na-cional e internacional com o cotejo de dados econômicose sociais.

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1141 LetrarnentoEmaio 1115

Por um lado, os índices de letramento podem ser utili-zados para avaliar e interpretar mudanças nos níveis deletramento/analfabetismo através dos tempos, com basenos dados de uma série cronológica de levantamentos.A possibilidade de tais comparações históricas é funda-mental, não apenas para a pesquisa histórica, mas tam-bém para estudar e compreender o letramento no presentee avaliar sua difusão ao longo do tempo. Como observaGraff C1987a, p.32):

a formulação de políticas quanto para o planejamento, aimplementação e o controle de programas, não apenasprogramas de letramento, mas também programas de bem-estar social, em geral. Segundo o estudo técnico sobre aavaliação do letramento feito pelas Nações Unidas (UNITEDNATIONS,1989, p.8):

". o estudo adequado da experiência histórica de letramentonão responde apenas a um interesse pelo passado; ele trazmuitos dados relevantes para a análise e a definição de políti-cas no mundo em que vivemos hoje.

Medir o nível de letramento na população do país é um passopara a avaliação da eficácia dos programas em desenvolvimen-to e para a obtenção de dados precisos necessários à formula-ção de programas futuros nos campos educacional e social.Por exemplo, projetos de assistência médica básica não podemdeixar de considerar o grau de letramento da população-alvo.

É claro que medidas da extensão e distribuição daleitura e da escrita, de que resultam dados quantitativossobre a difusão do letramento através dos tempos, nãosão a única nem a principal fonte para "o estudo adequa-do da experiência histórica de letramento", mas certa-mente contribuem com algumas evidências significativase sistemáticas.

Por outro lado, índices de Ietramento são utilizadospara comparações em um determinado momento do tem-po histórico, fornecendo dados para que se identifique adistribuição das habilidades e práticas de leitura e deescrita por regiões geográficas ou econômicas do mundoou de um certo país. Os índices de letramento são, as-sim, úteis para revelar tendências e perspectivas em nívelnacional e internacional, para confrontar a magnitude doanalfabetismo em diferentes países ou regiões, para com-parar populações ou grupos, evidenciando disparidadesna aquisição do letramento determinadas por fatores taiscomo idade, sexo, etnia, residência urbana ou rural, ete.

Finalmente, uma terceira justificativa para a necessi-dade de avaliação e medição do letramento é o fato deque índices de letramento são imprescindíveis tanto para

As considerações acima conduzem a um paradoxo: deum lado, a importância e necessidade da avaliação e me-dição do letramento, para fins teóricos e práticos; de outrolado, a impossibilidade de atender ao pré-requisito para asua avaliação e medição, ou seja, a formulação de umadefinição precisa que possa ser usada como parâmetro.Como enfrentar esse paradoxo?

De início, é preciso reafirmar e enfatizar que o letra-mento não pode ser avaliado e medido de forma abso-luta. Como não é possível "descobrir" uma definiçãoindiscutível e inequívoca de letramento, ou a melhorforma de defini-lo, qualquer avaliação ou medição des-se fenômeno será relativa, dependendo de o quê (quaishabilidades de leitura e/ou escrita e/ou práticas sociaisde letramento) estiver sendo avaliado e medido, por quê(para quais fins ou propósitos), quando (em que mo-mento) e onde (em que contexto socioeconômico e cul-tural) se está avaliando ou medindo, e como (de acordocom quais critérios) é feita a avaliação ou a medição.

Assim, o que é possível e necessário para realizar qual-quer avaliação ou medição do letramento é formular umadefinição ad hoc desse fenômeno a ser avaliado ou medidoe, a partir daí, construir um quadro preciso de interpretação

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116\ Letramento Ensaio1117

dos dados em função dos fins específicos em um deter-minado contexto. Uma definição comum e universal nãoé possível, mas uma definição deliberadamente opera-cional, ainda que arbitrária, tanto é possível quanto éextremamente necessária para atender aos requisitos prá-ticos de procedimentos de avaliação e medição. Dessemodo, haverá tantas estratégias operacionais para a me-dição do letramento quantos programas para sua avalia-ção e medição. Em outras palavras, o reconhecimentodos múltiplos significados de letramento conduz a umadiversidade de definições operacionais, cada uma res-pondendo aos requisitos de um determinado programade avaliação ou medição.

Assim, a questão crucial, em processos de avaliaçãoou medição do letramento, é determinar de modo claro adefinição operacional em que esses processos deverãobasear-se e construir instrumentos para a coleta de infor-mações em função dessa definição.

Em contextos escolares, esse procedimento é facilitadopelo fato de que, como observado anteriormente, as esco-las podem avaliar e medir habilidades e competências empontos diferentes do contínuo que é o letramento, e emdiversos momentos durante o processo de escolarização.Desse modo, as escolas podem trabalhar com várias ediferentes definições operacionais de letramento, cadauma sendo utilizada para a avaliação ou a medição dedeterminadas habilidades e práticas em estágios específi-cos do processo de escolarização. O problema, aqui, éou o de evitar que o letramento seja definido de modovago e medido com critérios diferentes em cada escola,sistema de ensino ou região, como em geral ocorre nospaíses em desenvolvimento, ou o de reduzir o letramentoa um conceito escolarizado, distanciado das exigênciasde letramento externas à escola, como ocorre frequente-mente nos países desenvolvidos. Na verdade, a estrutura

da educação formal básica é que determina fundamental-mente a quantidade e a natureza das habilidades e práti-cas de letramento que podem ser adquiridas; sendo assim,a discussão de definições operacionais de letramento parafins de sua avaliação e medição, em contextos escolares,pressupõe a discussão da natureza e qualidade da esco-larização fundamental para todos.

Enquanto que em contextos escolares é possível ava-liar o letramento repetidas vezes e progressivamente e,portanto, é possível atribuir-lhe várias e diferentes defi-nições operacionais, um levantamento censitário nacio-nal, realizando-se através de uma única situação deavaliação e de um único instrumento de avaliação, temde necessariamente basear-se em uma única definiçãode letramento.

Quando o critério é a conclusão de determinada sé-rie, a definição de letramento bem como sua avaliação emedição são transferidos, de certa forma, para o siste-ma escolar e, assim, dependem do uso ou mau uso, emcontextos escolares, de definições operacionais de le-tramento e dos instrumentos de avaliação e mediçãodecorrentes delas. Desse modo, é indispensável que, aoutilizar-se o critério de conclusão de série, esse sejarelacionado com a estrutura e qualidade da educaçãofundamental formal.

Quando dados para um censo são coletados atravésde autoavaliação, uma definição operacional e sua tradu-ção em uma ou duas perguntas tornam-se questões cru-ciais. Como discutido anteriormente, um sério obstáculoà confiabilidade de informações sobre o letramento, quan-do obtidas através de autoavaliação do próprio infor-mante, é a aplicação inadequada da definição segundo aqual as perguntas deveriam ser propostas. Como essadefinição não é, em geral, operacionalmente formulada,as perguntas são vagas e imprecisas, gerando respostas

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dúbias e pouco confiáveis. Assim, os cuidados básicoscom o uso de autoavaliação para fins de avaliação emedição do letramento, em levantamentos censitários na-cionais, devem ser, em primeiro lugar, e sobretudo, aformulação de uma definição operacional adequada queexpresse o que se considere um nível de habilidades epráticas de leitura e escrita desejável, em um determina-do país; em segundo lugar, a tradução dessa definiçãoem perguntas precisas e inequívocas; e, em terceiro lu-gar, a compreensão e aplicação corretas dessas pergun-tas pelos recenseadores.

A vantagem, em relação aos levantamentos por censosnacionais, de levantamentos sobre o letramento por amos-tragem domiciliar é que podem ser utilizadas várias defini-ções de letramento, em vez de uma única, podendo-seabranger, dessa forma, diferentes conjuntos de habilidadese de práticas de leitura e de escrita. Sendo assim, tiposdiferentes de instrumentos de avaliação e medição podemser construídos, permitindo distinções mais claras e dife-renciações mais refinadas de níveis de letramento. A ques-tão principal, aqui, é a formulação de um conjunto adequadode definições operacionais, considerando-se o que real-mente deve ser levado em conta como letramento em dadocontexto, a seleção, a partir daí, de uma amostra adequadade habilidades e práticas sociais desejadas, e a construçãode instrumentos para avaliar corretamente essas habilida-des e práticas.

Essas considerações enfatizam a possibilidade e anecessidade de formulação de definições operacionaisde letramento, construídas deliberadamente para respon-der às exigências de um determinado processo de avalia-ção e medição confiáveis de letramento, e indicam tantoos maiores problemas inerentes a essa tarefa quanto algu-mas precauções para a sua realização. Mas a obtençãode dados confiáveis sobre o letramento não é a única questão

importante; na verdade, a questão fundamental é a inter-pretação desses dados.

Conforme foi discutido nas seções anteriores, os crité-rios comumente utilizados para avaliar e medir o letra-mento apresentam deficiências e/ou estão muitas vezesbaseados em suposições equivocadas; como essas defi-ciências e suposições são, de certa forma, inevitáveis, ainterpretação de dados sobre o letramento deve semprelevá-Ias em conta.

Além disso, como o conceito de letramento varia deacordo com o contexto social, cultural e político, a interpre-tação adequada de dados sobre letramento requer o conhe-cimento das definições com base nas quais foi avaliado emedido, e das técnicas de coleta de dados utilizadas.

Uma outra consideração é que dados sobre letramentodevem ser relacionados com as características do contex-to, para que sejam adequadamente interpretados: ao ava-liar, comparar ou confrontar dados em nível nacional ouinternacional, é fundamental analisá-los associando-os aindicadores demográficos, socioeconômicos, culturais epolíticos. Fazendo uso de uma expressão criada por Wag-ner (1990, p.132), dados sobre letramento devem ser in-terpretados no quadro de uma análise da "ecologia doletramento" .

Finalmente, como a estrutura da educação formal e anatureza e qualidade da escolarização primária influenciamenormemente o conceito de letramento, seu valor social,seus usos e funções, bem como sua avaliação e medição, ainterpretação de dados sobre letramento deve sempre levarem conta as características do sistema escolar.

Em síntese, o conjunto de problemas envolvidos nadefinição, avaliação e medição do letramento, discutidosneste estudo, equipara-se a um conjunto correspondentede problemas associados à interpretação dos dados cole-tados. O ponto principal, aqui, é que enfrentar ambos

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esses conjuntos de problemas não é apenas uma questãoconceitual, mas também uma questão ideológica e políti-ca. Este estudo enfatizou, até aqui, a faceta conceitual daavaliação e medição do letramento, nos seus aspectos teó-ricos e práticos - foi esse o seu objetivo central. Entretan-to, é preciso concluir, acrescentando e enfatizando a suapolêmica faceta ideológico-política.

O letramento é, sem dúvida alguma, pelo menos nasmodernas sociedades industrializadas, um direito humanoabsoluto, independentemente das condições econômicas esociais em que um dado grupo humano esteja inserido;dados sobre letramento representam, assim, o grau emque esse direito está distribuído entre a população e foiefetivamente alcançado por ela.

Entretanto, o que o letramento é, e, consequentemente,o significado de dados sobre o letramento, isto é, dadossobre a distribuição e a conquista efetiva do direito aoletramento, são questões relativas, como este estudo pre-tendeu demonstrar.

Algumas indagações devem, pois, ser propostas à re-flexão. Se letramento não pode ter uma definição absolu-ta e universal, será que o direito humano ao letramentodeve ter significados diferentes em sociedades diferentes?Será que a avaliação e medição do letramento e a inter-pretação dos dados coletados deveriam ser condiciona-das às condições de uma determinada sociedade? Se aresposta a essas perguntas for "sim", será que um con-ceito "empobrecido" de letramento, processos "pouco so-fisticados" para sua avaliação e medição, e umainterpretação "benevolente" dos dados coleta dos não se-riam mais um fator de manutenção das desigualdadesentre países desenvolvidos, subdesenvolvidos e em de-senvolvimento?

Não há respostas "técnicas" para essas indagações; elasse inserem no campo das normas e dos valores.

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Pode-se concluir afirmando que a análise conceitual deletramento e de sua avaliação e medição, desenvolvida nes-te estudo, pretende servir como um quadro referencial paraas tarefas essencialmente ideológicas e políticas de formu-lação de políticas de alfabetização e letramento e de pro-gramas de desenvolvimento do letramento.

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