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Sob os Olhos de Natasha Melissa Souza

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Sob os Olhos de

Natasha

Melissa Souza

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Dedicatória

Lembro-me perfeitamente daquela madrugada: Eu e a minha amiga de infância, Claudia Ribeiro Soares, tínhamos 12 anos de idade e queríamos fazer um “filme”. Ele seria

gravado com uma câmera digital e editado no computador da Lan House mesmo. Na hora de

criar a história, não hesitamos em criar algo gótico. Ela seria a personagem principal,

afinal, sempre fora bem pálida com os cabelos escuros e os olhos verdes.

Então, Claudinha, não virou filme, mas virou livro.

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Prólogo

Na neblina da noite escura e silenciosa, eu corria em desespero sem saber ao certo para onde ir. Os únicos sons audíveis eram minha respiração ofegante e os passos do inimigo logo atrás de mim. De repente, me deparei com uma rua sem saída e, aflita, fechei os olhos com força, sentindo a pele ser queimada pelas lágrimas que rolavam.

Tudo o que vi ao meu alcance foi a escuridão. Senti um vazio crescente dentro de mim, tornando minha pele gélida, fazendo com que me arrepiasse até a alma. Num certo instante, o tempo parecia ter parado, eu não sentia o chão debaixo dos meus pés, o mundo ao meu redor tinha sido tomado por uma calmaria perturbadora.

Com receio, abri os olhos pouco a pouco, sentindo a vista arder com a falta de claridade. Nada era tátil ou visível, o que me fez ter certeza de um fato: Eu estava morta.

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Escolhas e Conflitos

Demorei muito para tomar uma decisão. Não havia chegado a essa conclusão sozinha, meus pais me apoiaram com a escolha que eu fizera. Estavam velhos e se sentiam como uma pedra em meu caminho, motivo suficiente para me incentivar a morar sozinha.

Concordavam que eu tinha juízo o bastante para saber me cuidar, mesmo tendo pouca idade. O que me segurava em casa eram as dúvidas e o medo.

Reagi a minha escolha com nervosismo e ansiedade, o que gerou cólera. E se eu não fosse capaz? E se a solidão, o sentimento de abandono, tomasse conta de mim? Não queria

ser uma jovem garota solitária cheia de responsabilidades. Certamente, o conflito não estava na vida, ao meu redor. O maior obstáculo para alcançar a independência se encontrava dentro de mim.

Agarrei-me a ideia de liberdade e quando tive certeza da minha decisão, agi rápido. Com o dinheiro da poupança comprei móveis usados e simples. Não pude tocar na quantia acumulada para pagar a faculdade, então trabalhei numa padaria para pagar adiantado algumas mensalidades do aluguel da minha

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futura casa. Fui despedida no terceiro mês,

assumia a função de balconista, o que não era o meu forte já que realmente nunca soube lidar com as pessoas. Não fiquei triste, afinal já estava mesmo enjoada da rotina.

Ocupei o tempo livre com os preparatórios finais. Contei com a ajuda dos vizinhos e colegas – eu não tinha amiga – para encontrar uma casa. Estávamos em Novembro, último

bimestre do ano, o que dificultou o contato com outras colegas que, certamente, já tinham outros planos, como por exemplo, viajar.

Eu morava numa cidade expansiva, não queria ficar longe dos meus pais, pois sabia que eles precisavam muito de mim, mas eu precisava morar perto da universidade para não gastar com passagem.

Ali, como todo centro de uma cidade, tinha muitos comércios, uma igreja grande, clubes dançantes, universidades, delegacia, e um grande cemitério. As casas eram ricas em detalhes e caras. Havia muitos prédios, mas eu não tinha condições para pagar um apartamento. As poucas casas pequenas e confortáveis estavam ocupadas.

De acordo com a minha renda, o que havia restado para mim fora dois cômodos miseráveis, sem quintal, sem garagem, com uma lavanderia miúda, de telhado e com a

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pintura velha, cuja localização era ao lado do

cemitério. Isso não que incomodava nada, já que

aquilo para mim não passava de cadáveres e ossos. E afinal, eu simplesmente não acreditava no fato de que os espíritos vagassem em nosso mundo. E não era um cemitério assombroso – se é que existe algum que não seja – como naqueles filmes de terror.

Tinha portões altos, túmulos luxuosos, funcionários que estavam lá vinte e quatro horas. Ali, pelo que eu sabia, só era enterrado defuntos que um dia foram pessoas de grande importância, como políticos, celebridades, artistas e pertencentes à classe média alta.

Eu detestava ter que morar ao lado daquele cemitério. Não por ser de fato um, mas por odiar “ídolos”. Desde a infância, sempre me esquivei do alvo de críticas e admirações, nunca gostei de estar no centro das atenções, e não simpatizava com pessoas que agiam assim.

Nem sabia ao certo até onde ia a minha crença em Deus. Acreditava facilmente nas coisas físicas e visíveis da Terra, mas tinha dúvidas quanto ao sobrenatural, espiritismo, religião. O ato de orar era quase inexistente em minha vida, eu confiava somente em mim e na realidade sensível. Todavia, era certa da

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existência de um Deus, dos espíritos e do lado

avesso a vida, só não acreditava no fato de eles habitarem o mesmo mundo que os humanos.

Quando a mudança estava concluída, senti um vazio dentro de mim. Chorei, senti dores de cabeça e não dormi bem. Acordava a todo instante com o vento forte assobiando em meu ouvido. Tinha a impressão de que havia uma presença em meu lar, algo que eu não pudesse

ver, mas que podia sentir. Ao amanhecer, o barulho tomou conta do

local. Por estar desacostumada com a movimentação da cidade, despertei rápido. Bateram em minha porta cerca de três vezes, me confundindo com o coveiro.

Tomei um banho frio. Enquanto me lavava, senti um calafrio percorrer o meu corpo, fazendo-me arrepiar. Tinha certeza de ter ouvido passos em meu quarto, certeza de que tinha visto algo se mexer lá fora. “O pavor fez meu subconsciente criar ilusões verossímeis” disse para mim mesma, a fim de me convencer de que tudo não passava de minha imaginação fértil. Mesmo assim, gritei quando o telefone tocou.

Saí do banheiro enrolada na toalha e levei o fone até o ouvido. Era a minha mãe.

- Como foi sua noite? - Boa. – menti. - Já fez amizade com algum vizinho?

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- Não. – logicamente, já que estava ali há

um dia. - Queremos visitá-la para conhecer sua

casa. - Mãe... – procurei pela melhor desculpa –

Tenho que me arrumar para a escola. - Tudo bem. Não vamos mais lhe

incomodar. - Não mãe, não é isso... – irritei-me.

- Promete que vai ligar? - Prometo. - Seu pai mandou um beijo. – ela mentiu. - Outro para ele. - Natasha... – pronunciou meu nome

deixando a tristeza e a preocupação transparecer na voz, demorou para prosseguir – Se cuida. – eu sabia que não era isso que iria falar, mas quando tentei dizer algo ela desligou.

Antes que o telefone ficasse mudo, pude ouvir seu suspiro profundo iniciando um choro. Ela não queria que eu notasse suas lágrimas, sentia-se inútil, mas eu não tinha coragem de colocá-la no asilo público da cidade. Arrependia-se todos os dias por não ter tido filhos mais cedo. Preocupava-se com o meu bem-estar, sabia que estava próximo do fim e eu não tinha nenhum irmão mais velho

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para cuidar de mim, e ela estava incapacitada

de assumir esta função. Meu pai pedia para Deus levar sua alma,

nem nós conseguíamos conviver com suas dores infernais e sua memória ruim. Precisava de ajuda para comer e tomar banho. Eu sabia que ele não se lembrava mais de mim, mas minha mãe não queria confirmar isto.

Doía em mim saber que eu me

envergonhava por eles parecerem meus avós ao invés dos meus pais.

Ouvi o nada do outro lado da linha por um tempo e depois fui vestir uma roupa. Não queria ir para a escola naquele dia, mas, apesar de tantas coisas perturbarem minha mente, eu não podia faltar a não ser que estivesse doente, afinal, prezava muito os estudos.

Todavia, era difícil para eu frequentar a escola sabendo que Gustavo compareceria as aulas com uma aliança de namoro no dedo. Ele era um garoto comum, com muitos amigos e uma namorada linda. E eu estava apaixonada por ele. O pior é que ele nem ao menos tinha ciência da minha existência.

Acordava todas as manhãs um pouco esperançosa depois de ter tido sonhos surreais, mas ao voltar para casa me encontrava totalmente desconsolada, desmotivada.

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Aquele dia era uma terça-feira. Sentia-me

mau, pois estava certa de que ao ver o lindo casal romântico me desmancharia em lágrimas, trancada dentro do banheiro feminino. Assim, além das olheiras resultantes de noites mau dormidas, minha fisionomia adotou o olhar opaco, avermelhado e inchado.

O único motivo que me levava a passar um batom era despertar a atenção de Gustavo.

Devido às pouquíssimas chances, deixei a vaidade de lado. Apesar de ser dotada de uma beleza natural – eu não usava cosméticos, químicas e aparelhos, como a chapinha. O máximo que fazia era me depilar, usar protetor labial e passar base nas unhas. –, os outros garotos tinham desistido de mim.

O que me importa? Eu só tinha olhos para um único garoto! Um garoto loiro, com a pele bronzeada, a boca vermelha e os olhos cor de mel. Um garoto alto, com as mãos grandes e acolhedoras, um corpo modelado que me fazia sonhar noites seguidas.

Eu tinha certeza absoluta que sofreria eternamente por amar a pessoa errada. Sofreria por que nunca me acostumaria com a dor, e a ideia de esquecê-lo era simplesmente impossível. Gustavo era maravilhoso, eu me sentia “pequena” demais para ele.

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Namorava a Amanda há oito meses e não

seria naquele momento que eu despertaria em ti um sentimento por mim. Amanda era morena, tinha os olhos claros e os cabelos castanhos, ao contrário de mim, que era pálida e meus cabelos negros eram lisos. Nunca teria o Gustavo, o que fazia de mim uma pessoa incompleta, insatisfeita, infeliz. Como um relógio sem ponteiros, uma flor sem pétalas,

era o meu coração partido. Seria assim, para sempre. Mas isso não me impedia de sonhar, suspirar cada vez que lhe via, tresnoitar pensando em ti.

Apaixonei-me por Gustavo assim que ele chegou à escola, há um ano. Estudava na mesma escola desde a primeira série, então eu conhecia todo mundo ali. Mesmo assim, não me cumprimentavam e muito menos conversavam comigo, pois eu preferia assim. A quantidade de alunos era grande, o que dificultava meus laços de amizade, já que cada um tinha o seu próprio grupo.

Gustavo sempre chegava atrasado, eu tentava me adiantar para não encontrar ele no caminho, mas na maioria das vezes o desejo de vê-lo era mais forte, apesar de que ele sempre estava acompanhado.

Na sala de aula eu conseguia me distrair um pouco, por isso adorava estudar. Ocupando a mente com cálculos e

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memorização, deixava as preocupações de

lado. Decorava melhor palavras estranhas, por isso me saía bem em Biologia, Química, Física e Geografia. Também tinha facilidade com línguas estrangeiras, como Inglês e Espanhol.

Ainda, assim, com esse desempenho todo, eu não sabia que faculdade fazer. Todo o dia Tamirez me questionava sobre a minha futura carreira. Ela era a minha colega mais próxima

do que chamam de amiga. Insistia em tentar ter intimidade comigo apenas por que precisava de mim. Ela preferia fazer deveres, atividades de classe e trabalhos escolares comigo por eu ser uma das melhores alunas da escola.

O fato não é que eu era inteligente, simplesmente não tinha objetivos na vida, o que tornava mais fácil para guardar as coisas em minha mente, já que ela não se ocupava com nada.

- Estamos no penúltimo mês do ano, hora de correr atrás do vestibular! Vamos? Comigo? – dizia Tamirez, entusiasmada. Fiz que não com a cabeça, mordendo os lábios – Você ainda não se decidiu, não é? – disse, na verdade afirmando, enquanto assentia decepcionada – Vai passar o natal aqui?

- Eu não comemoro o natal. - Desculpe-me. – desistiu, por fim.

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Meus pais não tinham mais ânimo para

fazer ceias e festas. Meus primos moravam longe e minha mãe não tinha família, pois fugiu de casa quando jovem para ficar com meu pai, o que fez com que a família dele lhe rejeitasse.

Logo, soou o sinal do intervalo, e senti a pele ferver. Via-lhe por mais tempo durante o intervalo. Ele andava de um lado para o outro,

acompanhado dos amigos. Passava por mim algumas vezes, mas eu era invisível para seus olhos. Com a correria dos alunos, não conseguia lhe avistar na hora de ir embora. Mas sabia que ia com a Amanda, e ficava me imaginando no lugar dela, com ele me olhando com aqueles olhos, sorrindo para mim enquanto apertava minha mão, me dando a certeza que aquele sonho era...

Ilusão. Tudo ilusão. Na realidade, da escola vou para casa, cuidar de tarefas domésticas, e meu dia acaba assim. Exceto pelo fim de semana, onde sou atormentada com a saudade.

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Pressentimentos

Não queria ir para a escola naquele dia. Na verdade, não queria comparecer as aulas desde o dia em que Gustavo colocou uma aliança de namoro no dedo de Amanda. Mas eu não tinha opção, ou ia estudar, ou morria de tédio.

Tudo estava um breu, porém, apesar dos corredores vazios, eu insistia em frequentar a escola até o último dia de aula. Ali, iniciava-se a última semana. Emburrei-me com aquele clima detestável de despedida. Tamirez interpretou a mágoa de outra forma.

- Você não parece feliz com a mudança. - observou ela – Não está gostando de morar

sozinha? Já sei, sente falta dos seus pais? - Não. Eu só... Não me acostumei ainda. Fiz

esta escolha, mas não me precavi contra os obstáculos.

- Quais obstáculos? Está tudo dando certo, não te compreendo. – confundia-se ela. Poupei-me em dar justificativas.

Eu me referia as minhas incertezas. Há tempo não me deparava com novidades, liberdade, para mim, era uma surpresa. Era para ser uma emoção, mas eu simplesmente não estava comovida. Ao invés de risos, tinha

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pesadelos, como se algo mais forte estivesse

vindo ao meu encontro. Não consegui prestar atenção nas coisas

que aconteciam ao meu redor, o pensamento estava fixo no sonho que tivera enquanto dormia durante a aula. Tal sonho fora a representação de um desejo muito íntimo. Em meu subconsciente, pude assistir ao término do namoro entre Gustavo e Amanda, mas isso

não foi suficiente para eu ser notada. E então, a parte pior: Dia após dia, eu lhe via sofrendo com a dor da separação. Dia após dia, amava-lhe calada, sem poder curar a sua dor.

E então, ao ver o sofrimento presente em seus olhos, passei a senti-lo. Como se o destino enfiasse uma adaga em meu peito, ferindo-me cruelmente, mas meu coração permanecia intacto, permitindo-me conviver com tal dor.

Era tudo tão real que, automaticamente, coloquei a mão do peito e arregalei os olhos como quem se assusta, acordando num repente, com a falta de fôlego.

- Creio que não tivera uma boa noite. – caçoou o professor.

Mantive-me séria, tentando compreender minha localização.

Por fim, meu peguei pensando: Será que o correto seria eu preferir ver Gustavo feliz com outra ao invés de sentir a dor de vê-lo definhando aos poucos? Como era de se

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esperar, cada vez que pensava no assunto, as

lágrimas vinham-me nos olhos. Entrei dentro do banheiro e deixei que o

desespero escorresse pelo meu rosto. Não queria ter ido para a escola naquele dia.

Ao chegar em casa, desabei na cama, sentindo-me exausta. Depois de certo tempo, levantei-me e revirei a dispensa. Frustrei-me ao não encontrar nada aparentemente bom

para comer. - Terei que trabalhar se não quiser viver na

base de macarrões instantâneos. – disse para mim mesma, sentindo falta da comida da minha mãe.

- Falando sozinha? – questionou uma voz desconhecida que vinha da janela.

Tombei para trás ao me deparar com o homem de mais ou menos trinta anos vestido como carpinteiro que me encarava sorrindo.

- Desculpe-me! - Por assustar-me, rir por que caí ou

espionar-me da janela? - Pelos três e por não me apresentar, como

um bom cidadão faria com a chegada de uma nova vizinha.

- Por que não começa batendo na porta? – disse eu, ainda séria.

- Ah, claro! O começo.

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E então, ele se dirigiu a porta, bateu e

esperou que eu abrisse, e ao fazê-lo, cumprimentou-me apresentando-se como “Carlos”.

- Prazer, Natasha. O senhor mora na casa da frente? – indaguei, apontando para uma casa azul. Era a única casa vizinha.

- Não, não sou deste bairro. Mas vivo por aqui, afinal, trabalho no cemitério.

Convidei-o para entrar e tomar café. Logo me lembrei de que havia acabado o café e lhe ofereci chá. Ele deixou explícita a preferência em irmos à padaria.

Fizemos os pedidos, por sua conta, e tentei, ao máximo, ser simpática.

- Então, o que exatamente você faz no cemitério?

- Eu corto a grama, passo pano nos túmulos para tirar o pó... - contou-me, animando-se enquanto descrevia detalhadamente o seu ofício.

Tentei parecer atenta, incentivando-o a falar mais. Quando terminou, questionou-me:

- E o que uma moça tão jovem faz sozinha? -... – demorei-me na resposta – Procurando

um caminho para seguir nesta vida. - Se está falando de emprego, acho que

estamos precisando de alguém. A não ser que seja como a outra moça, que morou nesta casa antes de você. Ela tinha pavor ao cemitério.

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- Conhecia a moça que morava lá?

- Mais ou menos. Para falar a verdade, vive entrando e saindo gente deste lugar, nunca pára ninguém aqui! – fingi me admirar e levantei as sobrancelhas, levando outra fatia de bolo à boca.

Como eu imaginava, ele continuou o assunto com várias histórias de quem já tinha passado por aquela casa.

– A dona verdadeira era uma jovem estranha, que não saía de lá por nada. Suspeitava-se que ela mexia com bruxaria.

- O que houve com ela? - Morreu. Ateou fogo em si. Não deixou

testamento, não encontraram seus parentes e o local ficou abandonado. Até a prefeitura entregar a posse do imóvel a alguém.

- Senhora Josefa. - Esta mesma. Mas ela também não morou

aqui por muito tempo. Foi-se embora para a cidade natal e passou a alugar os cômodos.

Tempo depois, ele notou uma pequena característica minha.

- Você é tímida, está cansada ou simplesmente é de falar pouco?

- Sou de falar pouco. E estou um pouco cansada sim. – assumi, forçando um sorriso.

Rapidamente, ele pagou a conta e me levou para casa. Agradeci por seu aparecimento,

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tentando não deixar claro que estava morta de

fome quando me levara à padaria. Quando ele foi embora, voltei a me sentir completamente sozinha.

Deitei na cama e deixei o sono pesado me embalar até o dia seguinte, quando tive que acordar para ir à escola. Sentia-me ansiosa, como se pressentisse algo, mas não sabia se era bom ou ruim.

- Como vou visitá-la se ainda não me passou o seu endereço? – interrogou Tamirez.

Eu sabia que o motivo real da visita era para eu ajudá-la a estudar para o vestibular. Mas não sentia a menor vontade de contrariá-la, então comecei a revirar minha bolsa, tentando apanhar um bloco de notas e uma caneta, para anotar meu endereço.

Foi então que alguém esbarrou em mim e derrubou metade das minhas coisas no chão. Mesmo estando errada, afinal eu estava parada no meio do corredor em pleno intervalo, iria falar alguma palavra de baixo nível, com a finalidade de expressar meu ódio, mas quando vi quem era a pessoa, calei-me.

Gustavo desculpava-se, passando as mãos nos cabelos lisos, demonstrando nervosismo. Senti a pele ficar gélida ao notar que estávamos um de frente para o outro. Nunca me atrapalhei tanto, senti-me uma tola, mas foi pior quando lhe encarei, encontrando seus

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olhos em mim. Perdi o controle dos meus

movimentos, e uma prova e tanto do meu amor caiu de minha bolsa e se abriu no chão a sua frente, no exato momento em que ele agachava para pegar minhas coisas.

Nas horas vagas eu costumava escrever cartas de amor jamais entregues, desenhos românticos, confissões profundas, declarações. O papel que Gustavo estava lendo logo após

eu ter saído correndo continha uma revelação: Frente e verso da folha possuíam as palavras “Gustavo eu te amo” com a data de um ano atrás.

Tudo o possível pensei durante o restante das aulas: Sua reação para com a folha, se ficou feliz ou confuso, se me olharia com outros olhos, se viria falar comigo, se simplesmente rasgaria o papel, indiferente. A imaginação ia além, trazendo para a mente a impossível revelação de que eu seria correspondida.

Passei o dia me iludindo, e custei para dormir a noite.

No dia seguinte, acordei tarde, e notei que havia um recado na secretária eletrônica. Apertei o botão para ouvir a mensagem. Era minha mãe, que tinha ligado enquanto eu dormia, e o som do telefone não fora suficiente para me acordar.

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- Querida, recebi minha aposentadoria e

coloquei certa quantia em sua poupança. Beijos, mamãe e papai.

- Poxa mãe, já falei que não quero que se preocupe com minha condição financeira! – retruquei, mesmo sabendo que ela não ouviria.

Senti-me na obrigação de lhe contar sobre a vaga de emprego, mas adiei o compromisso. Pensando bem, o dinheiro não viera em má

hora.

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O Pesadelo

Não imaginava que meus deveres dobrariam ao morar sozinha. Tinha que me preocupar com minha comida, com a limpeza da casa, com as contas a pagar. Minhas noites de sono eram terríveis. A rotina repleta de tarefas me deixava exausta, e sempre acabava

adormecendo no sofá. Mas não era esse o meu incômodo. Eram os pesadelos. Minha mente se ocupava com sangue, risos e um relógio grande, que contava as horas restantes da vida.

Naquela segunda-feira, acordei com um grito. Agoniada, confirmei que estava viva e em casa, notando que o grito de horror que

penetrara em meus ouvidos, aquela voz aguda e sofrida... Aquela voz era minha.

Deitei-me na banheira e ali fiquei por uma longa hora. Enquanto conversava com meus botões, tive um vestígio de meu pesadelo, que me revelou o seu significado: Morte.

Caminhei até a escola sentindo a cabeça pesar e logo na entrada fui surpreendida com os olhos de Gustavo, que me atordoou. Sempre que viável, ele me olhava e eu tentava, sem sucesso, desvendar o que seus olhos queriam me dizer. A expressão de sua face era

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indecifrável, o que me perturbava. Balbuciei

hipóteses de seus pensamentos. Questionava sobre mim? Julgava-me uma louca? Minha única certeza era que, finalmente, ele olhava para mim.

No intervalo, compreendi o seu olhar. Mais uma vez, encontrava-me no banheiro feminino, soluçando enquanto as lágrimas vinham sem limites. O coração batia tão forte

que chegava a doer, tirando-me o fôlego. Como eu era tola. Era lógico que Amanda

iria querer tirar satisfações. Sentia ódio de mim mesma, por iludir-me tão facilmente. Ela fora tão fria ao se dirigir a mim, com um sorriso vingativo e olhares maldosos, falando pouco a pouco o que lhe incomodava, humilhando-me na frente de todos.

- Se sabia que Gustavo é comprometido, por qual razão entregou a ele uma confissão de amor?

- Eu não... Caiu da minha bolsa... - Está zombando de mim? – riu ela,

aproximando-se. Os alunos se reuniam em nossa volta.

- Não... - Presta atenção, por que eu só vou falar

uma vez: Fica longe do meu namorado. – palavras finais, o papo se encerrou.

Os alunos ficaram agitados, pois queriam ver briga. Reparei em Amanda enquanto ela

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caminhava deslumbrante. Era uma garota

linda, com um corpo bonito, cabelos brilhosos e quadril avantajado.

Quando tentei me retirar, zombaram de mim, me fazendo sentir a garota mais infeliz do mundo. Só então encontrei Tamirez, que me olhou chocada e perguntou:

- Está tudo bem? Ignorei-lhe e fui para a sala de aula. Não

demorou muito para que eu pedisse permissão para ir ao banheiro. E no momento, ali estava eu: Desejando a morte ao invés de viver naquele estado.

Saí do banheiro com o rosto lavado, era impossível esconder a mágoa. Agachei-me para beber água no bebedouro, pensando numa desculpa. “Olhos lagrimosos, nariz vermelho... gripe.” concluí.

- Ela não fará nada com você. – disse Gustavo, surgindo inesperadamente.

Engasguei com a água e tentei me recompor. Uma tempestade se fazia dentro de mim, embrulhando meu estômago. Apenas lhe encarei, sem conseguir falar nada. Parecia até que as palavras haviam fugido dos meus lábios. Esforcei-me ao máximo para parecer naturalmente gripada.

- Amanda é um pouco ciumenta, mas eu conversei com ela e não deixarei que... – ele

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parou por um instante, procurando as

palavras certas. Parecia incomodado com o modo como eu

lhe olhava, mas eu não conseguia evitar. – Não queria que ninguém soubesse de

algo tão... – mais uma vez, atrapalhou-se. - Confidencial. – gaguejei após muito

esforço para conseguir falar algo. Ele assentiu com a cabeça, sorrindo. Viajei

em teus lábios delirantes, desconfortando-o. Enfim, meus olhos se afogaram no mar de sua íris.

- Me desculpa. Não esperava que minha namorada... – dizia ele, mas não lhe deixei terminar.

Assumia a bronca de sua namorada ter me intimidado. O termo usado me atingiu de uma forma que não pude segurar o ímpeto de dizer:

- Pára de se desculpar por eu gostar de você! Não escolhemos esse tipo de coisa...

Ele mordeu os lábios, constrangido. – Eu só queria que... Todo mundo me

deixasse em paz. Senti a dor nas minhas palavras,

verbalizava uma mentira que eu passara a acreditar. É lógico que eu não queria que ele voltasse a me ignorar completamente. É lógico que eu queria que todos soubessem do meu segredo por que não aguentava mais omitir

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um sentimento tão bonito. É lógico que eu

queria que Amanda sentisse o gosto de ter uma concorrente. Porém, seria bem melhor se nada disso existisse, inclusive esse sentimento dominador.

A conversa parou aí, sem risos, sem mais assuntos, e ele partiu mal se despedindo. Quis chorar por ter agido como uma pateta ao invés de dar procedimento a nossa conversa para

que nosso relacionamento progredisse. Senti-me frustrada por ter sido tão grossa,

não queria lhe magoar, ele não tinha culpa de nada. Simplesmente não conseguia ter o domínio das minhas ações e das minhas palavras quando estava perto dele.

Ele estava ali, se desculpando pela namorada, tendo o trabalho de vir até mim e dizer que ela não iria fazer nada comigo, usando um tom de voz protetor que tentou me acolher e eu neguei. Deixei que a conversa ficasse vaga e que nossos olhares se perdesse.

Minha sorte era que, com a grande quantidade de alunos na escola, uma conversa dessa passava totalmente despercebida, insuficiente para causar qualquer tipo de polêmica.

Encaminhei-me à sala com um estranho misto de felicidade e decepção. Matei o tempo relembrando sua voz, sua fisionomia, seus

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olhos e seu sorriso. Como se a partir daquele

instante tudo iria ser diferente. Gustavo me cumprimentaria cada vez que me visse, sorriria para mim, pronunciaria o meu nome. Com o tempo, talvez, ele e Amanda terminariam e ele perceberia que éramos perfeitos um para o outro.

Encontrava-me apaixonada e iludida quando o sinal alertou a hora de ir embora. O

que vi no portão de saída destruiu toda a minha esperança.

Gustavo sorria feliz, iluminado, simplesmente incrível, lindo como sempre. Porém, sorria para uma garota, sua prometida, sua namorada: Amanda. Aquela que todos os dias eu ô vejo abraçar, nos últimos oito meses. Aquela que ele dava carinho, amava e beijava.

O beijo. A maneira como um casal se beija deixa a mostra todo o sentimento. Eu nunca vira Gustavo beijando por que sempre evitava sentir tamanha dor.

Com toda certeza, eu era uma idiota. Somente Tamirez não enxergava isso.

- Eu vi o jeito que o Gustavo olhou para você, hoje.

- Você veio aqui para estudarmos ou para falarmos sobre olhares? – disse eu, sem levantar os olhos dos livros.

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- Relaxa Natasha. Se ele não gostasse de

você, não te olharia daquela forma. Faz quanto tempo que você gosta dele?

- Eu disse que não quero falar sobre isso! – gritei, lhe encarando.

- Está bem, não está mais aqui quem falou. E sobre o emprego no cemitério, já contou para os seus pais?

Eu me perguntava se devia ou não ligar

para minha mãe desde que soube da vaga. Com o temperamento que tinha, podia querer vir até minha casa para comemorarmos a boa notícia, e frágil como estava, podia sofrer algum acidente no caminho. Preferi não ligar.

Tamirez foi embora após o jantar, e, finalmente, encontrei-me a vontade. Não gostava de internet, celular e televisão. Meu maior passatempo era a leitura. Adorava ler romances e biografias. Naquela noite, contemplava um romance do século XX quando a imagem de Gustavo me veio à mente. E então, não consegui prestar atenção em mais nada, ocupada com minhas ilusões.

Fechei o livro. Encolhi-me e deixei as lágrimas encontrarem meus olhos. Sabia que precisava me distrair se não nunca pararia de chorar. Sob a mesa, junto ao meu material escolar, avistei um compasso. O desejo de cortar-me foi tão grande que não pude resistir.

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O céu, antes de se tornar totalmente escuro,

morria num tom avermelhado. Era a cor do sangue que escorria pelo meu braço enquanto eu desenhava um pequeno coração partido na costa da mão esquerda. Ardia, mas tal dor não era mais forte que a dor que eu sentia no coração verdadeiro, aquele que estava dentro do meu peito. A dor que vinha do corte me confortava, como se fosse preciso machucar o

corpo para satisfazer a alma. Eu não sofria mais por amar sozinha. Eu

sofria por não ser correspondida. Por estar certa de que ele não gostava de mim, não sentia o mesmo que eu e que isso nunca iria acontecer.

Isso se tornou nítido na manhã de quinta-feira. Eu mal podia encará-lo que ele se desconfortava, ao contrário de antes, que mal notava meu olhar fixo em sua direção. Sem falar que eu estava sendo ameaçada por Amanda. Mas, pelo menos, não me sentia eufórica em querer revelar-lhe meu segredo.

Nas aulas que antecederam o intervalo, fiquei completamente inquieta, sentindo uma estranha euforia. Quando o sinal soou, tudo se explicou na frente de meus olhos: Gustavo, impaciente, com os músculos se ressaltando, gritava com Amanda que, por sua vez, não se calava, tagarelando sem parar.

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- Você não dá mais atenção para mim, vive

aí, no seu mundo, fechado para visitações! - Para de tolice Amanda, não há nada de

errado comigo, você que possui um ciúme doentio!

Estremeci quando me dei conta do que ocorria ali: Meu pesadelo estava se tornado realidade. Tudo ocorria exatamente como havia se mostrado em minha mente. Quando

imaginei o que viria a seguir, me constrangi. Não suportava a ideia de ver Gustavo sofrendo, e isto foi suficiente para que eu tomasse uma decisão.

Pensava em minha decisão enquanto matava uma garrafa de vinho. Quando dei por mim, estava bêbada. Mas estava segura, desde que ficasse em minha residência.

Deitada na cama, sorri para o teto e cochichei:

- Ele está solteiro. Uma alegria infinita crescia dentro de mim

quando a campainha tocou. Gritei para que entrasse, e continuei deitada.

- Natasha? O que aconteceu? Está se drogando? – interrogou Tamirez, preocupada.

- Cala a boca. Eu não uso drogas. – respondi, olhando para ela.

- O que é isso? – perguntou, segurando a garrafa de vinho.

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- É o amor, Tamirez. Eu amo ele. Eu amo

ele, eu amo ele. - Está louca Natasha, não tem medo de

morrer? Levantei-me da cama e lhe encarei. - Morrer? Não existe medo de morrer,

Tamirez. Existe medo de viver. Eu não tenho medo de viver. – disse eu e, em seguida, adormeci.

Mesmo com ressaca, eu precisava comparecer a escola no último dia de aula. Pela primeira vez, Gustavo chegava sozinho. Pela primeira vez, ele me disse “oi”.

Seus lábios se mexeram e se desfizeram num sorriso, seu olhar se dirigiu a mim, e eu lhe ignorei. Olhei para o chão, não suportando o peso de seus olhos sobre mim, a proximidade de seu corpo definido e atraente, a voz aveludada saindo de seus lábios macios.

Sempre que podia, me imaginava beijando aqueles lábios, saboreando o gosto da paixão, recebendo o veneno de sua boca, fazendo-me viciar.

Se seus olhos me devorassem, se ele viesse ao meu encontro, se correspondesse ao meu desejo, se sentisse minha falta a cada segundo que estivesse distante, se pensasse em mim ao deitar-se para dormir, se.

Eu sabia que aquilo não tinha passado de um simples cumprimento, quase que forçado

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por estarmos lado a lado. Será que ele não era

capaz de ver a minha fragilidade? Não notava a grandeza de meu sentimento? Não percebia que eu era feita de vidro?

Isolei-o para observar a sua reação. Desprezei-lhe como se pedisse que viesse a minha procura. Frustrei-me quando isso não aconteceu, pois em momento algum quis que se afastasse, minha intenção era trazê-lo pra

mais perto o possível de mim, mesmo que havia prometido para mim mesma que não ficaria com ele, que não deixaria que ele se apaixonasse por mim.

Apesar de que minha vida manteria o foco nele, meu mundo girava em torno dele e nada mais a minha volta tinha importância.

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Feita de Vidro

Não somente a roupa que eu usava era preta. Além das grossas olheiras, os cabelos despenteados e a íris dos meus olhos, eu sentia que um imenso buraco negro se abrira em mim. Estava completamente imersa no abismo da morte.

O velório não tinha cheiro de nada. Assim como eu não ouvia e nem enxergava nada. A tristeza me arrancara os sentidos e eu já não pertencia mais ao mundo real.

Tornara-me órfã há uma semana, porém só soube da notícia trágica quando me ligaram para comparecer ao enterro. Simplesmente porque me recusava a ligar ou visitar os meus

pais. Não pude me despedir porque fui fria e rude. Até tive um pesadelo, avisando-me do incidente, mas lhe ignorei.

Um gosto amargo habitava meus lábios: Era o sabor da angústia.

Meu pai, fraco e doente, tivera um forte derrame. Desesperada, mamãe tentou socorrê-lo, sem saber ao certo o que devia fazer. Apavorou-se com a situação em que se encontrava, tentou gritar por ajuda, mas o nervosismo não deixou a voz sair e o tempo era curto. Meu pai debatia-se no chão, o corpo inteiro agitado por tremores, seus olhos

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reviravam-se a medida que a língua enrolava,

tampando-lhe a garganta, fazendo-lhe babar e sentir falta de ar.

Entre lágrimas, minha mãe sentia-se fraca demais para segurá-lo, tomada pela frustração por sua inutilidade, o choro lhe fez engasgar. As mãos trêmulas anunciaram o alto batimento cardíaco.

Em suma, no chão da cozinha, um idoso

estirado e uma senhora ajoelhada, morrendo num enfarte.

Ficaram lá por muitas horas, até que a nobre vizinha fosse até o local para levar pedaços de bolo e deparou-se com os defuntos. Providenciaram o enterro, ligaram para os parentes distantes e então, me ligaram.

Eu era a única filha, a pessoa mais próxima deles e, por outro lado, a mais distante por estar sempre ausente.

No instante em que ouvi o convite para o enterro, minha alma inundou-se de solidão. Não chorei, pois estava completamente chocada. Desde então, não falei com ninguém, não me alimentei e somente tomei banho para ir ao velório.

Passei o tempo cultivando a dor e a presença do vazio que ocupou a minha vida. Mergulhei num mar de desgraças com a intenção de me esconder da vida.

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Mas Tamirez ousou ir até a minha casa,

preocupada com minha infelicidade constante. - Acho que você precisa de um médico. –

observou ela – Esse comportamento não é sadio.

- Eu perdi meus pais! Você não entende? Estou sozinha no mundo! Eles eram tudo para mim e eu não tinha me dado conta disso! Eu deixei eles morrerem sentindo culpa... A

culpada sou eu! – gritei. E, em seguida, desmanchei-me em lágrimas e soluços.

- Viu só? – disse ela, me abraçando – Você mal fala e está gritando absurdos!

- Me deixa aqui, por favor. – implorei. - Natasha, já se passou quase uma semana.

Você perdeu aquela vaga de emprego, precisa procurar outro. Você precisa voltar a viver!

- Para que viver, se o destino é morrer? - Por você, Natasha! Tenho certeza que seus

pais não ficariam felizes se te vissem desse jeito.

Dei-lhe razão. Mas ainda assim, era muito difícil ter ânimo. Tentei sorrir ao me desequilibrar no banheiro, mas senti uma tremenda culpa. Como se fosse pecado eu ser feliz, pois vi a infelicidade transparente em meus pais por anos.

Voltei a me deitar e liguei o rádio. Fiquei satisfeita com a melodia lenta que tocava. A letra falava sobre o desamparo, a sensação de

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ausência de proteção. Descrevia nitidamente a

situação em que eu me encontrava. De repente, o vocalista gritava, gritava até sua voz ficar rouca. Dormi ouvindo as demais músicas que tocaram em seguida, me identificando com cada uma delas.

Sabia que levaria um cotidiano vago dali em diante. Não estava preocupada com minha saúde mental. Não me importava se

enlouquecesse. A opinião das pessoas sadias não fazia diferença para mim. Sempre fui dada como estranha, mesmo.

Saí do meu banho quente em prantos. A pele parecia descascar devido a alta temperatura em que a água se encontrava. Mas eu não me incomodava com a dor e a ardência. A única desvantagem era que, pálida como eu era, minha pele ficaria toda vermelha.

- Eu quero morrer. – disse para mim mesma, após vestir minha camisola e me pôr na janela, admirando a lua.

A ideia não me pareceu tão má. Caminhei até a cozinha, certa do que queria, e peguei a faca mais afiada que tinha na gaveta. Estava pronta para cortar os pulsos quando senti a estranha impressão de que alguém estava me observando. Ignorei tal sensação e apertei a faca contra a pele, fazendo o sangue jorrar.

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Não continuei. Apertei a ferida com a mão,

gritando com a dor. Mas isso não me impediu de cortar o outro pulso. Aos poucos, por estar perdendo muito sangue, percebi que ficava inconsciente.

E então, eu lhe vi: Dois olhos envolventes, cílios grandes, sobrancelhas cheias, íris cor de sangue. O medo e o pavor me dominaram, jogando-me contra a cama, envolvendo-me

com a dor, me pressionando, me pressionando.

Sussurros e gritos eram soprados em meu ouvido, confundindo minha mente. Mordi o travesseiro até arrancar-lhe a espuma. Estaria eu sofrendo com alucinações?

Em meio ao desespero, tomei forças para me locomover e, retomando o controle sobre mim, cruzei a porta de saída, sendo engolida pela liberdade sem destino.

Joguei-me para o mundo com a intenção de fugir daquilo que se denomina “realidade”, e me encontrei na neblina da noite escura e silenciosa, mas eu não estava sozinha. Além de minha respiração ofegante, era possível ouvir os passos do inimigo logo atrás de mim.

Quis gritar, mas minha voz estava sufocada. Quis chorar, mas meus olhos encontravam-se secos. Aflita, coloquei a mão contra o peito, e percebi que o coração não batia. As vozes continuavam a me perturbar,

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queriam que eu reagisse, estavam gritando

cada vez mais alto, me ensurdecendo. Até que, de repente, eu não ouvi e nem vi mais nada.

Acordei na manhã seguinte como quem desperta de um sono profundo, sem noção de onde me encontrava. A vista que tive foi o céu, tornando-se claro conforme a luz do sol avançava, fazendo minha pele e meus olhos arderem. Cobri o rosto com os braços e me

encolhi contra o mármore frio onde estava deitada, a fim de me proteger.

Eu estava num cemitério, deitada sobre um túmulo, e ao meu lado tinha uma flor roxa. Não era o túmulo dos meus pais. Era o túmulo de uma bela jovem, que não sorria na foto de cor preta e branca. Não perdi tempo lendo o seu nome, eu queria ir para minha casa.

Demorei uma hora para me localizar. Aquele era um cemitério com ar de abandonado, que ficava no meio de um bosque, onde não se tinha necessidade de enterrar os mortos, por isso era possível pisar em ossos enquanto se caminhava dentro dele. Eu não fazia noção de como viera parar ali.

Meus sentidos estavam sensíveis. O canto dos pássaros me irritou profundamente. O ar parecia abafado, enxergava tudo de maneira fria. Certamente, tudo me parecia meio sombrio. Por um momento, me senti leve.

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Sentia-me vazia. Ao chegar em casa, olhei meu

reflexo no vidro da janela da cozinha. Mais do que nunca, minha pele estava branca, como se não corresse sangue em minhas veias. Meus olhos estavam cinzentos e vagos. E todos os cortes que fizera em meu corpo haviam cicatrizado.

Havia algo de estranho comigo. Eu me sentia forte, viva, capaz, de uma maneira que

nunca havia me sentido antes. Eu me sentia bonita, como se houvesse algo diferente em meu semblante, eu estava atraente, sedutora. Não, com certeza eu não aparentava ser aquela garota frágil, indefesa e insegura. Podia ver isso em meus olhos.

Afundei-me na banheira, fazendo com que a água me cobrisse completamente, ficando totalmente submersa. Fechei os olhos, tentando me recordar da noite anterior. Esqueci-me do tempo enquanto experimentava o prazer de ser sufocada pela água.

Sonolenta, deitei-me em minha cama, quente e confortável, e adormeci. Quando acordei, já havia anoitecido. E então, por ter passado a tarde inteira dormindo, encontrava-me cheia de energia, disposta. Tresnoitei deliciando-me com meus romances, ouvindo o rock melódico que tocava no rádio. Assim que começara a amanhecer, dormi novamente.

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Mas não por muito tempo, pois Tamirez

bateu em minha porta. - Não acredito que você está dormindo! –

disse ela, assustada – Natasha! Levanta agora, imediatamente.

- Não dormi a noite, por isso estou com sono.

- Por que não dormira a noite? - Por que dormi de tarde.

- Há quanto tempo vem fazendo isso? Não faz bem para a sua saúde ficar trocando a noite pelo dia, feito um morcego. – disse ela, indo até a cozinha – Você anda se alimentando?

Só então me dei conta: Eu não havia comido nada desde aquela noite. E não sentia a menor fome.

Sem esperar pela minha resposta, Tamirez começou a preparar um bolo para mim. Fiquei nervosa, afinal, além de interromper o meu sono, ela estava invadindo minha cozinha. No momento do ódio, não parei para pensar que ela estava ali para o meu bem, apenas lhe dei uma bronca.

- Tamirez... Dá pra parar de ser assim, tão intrometida? Quem chamou você aqui? Quem permitiu que você abrisse meu armário e usasse meu fogão?

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- Desculpe-me, estava querendo ajudar. –

falou, olhando para o chão, totalmente desconcertada.

- Não quero sua ajuda. Vai embora. Ficamos por um longo tempo assim:

Apenas nos encarando. Até que, finalmente, ela falou o motivo de sua visita:

- Eu soube que Amanda está a sua procura. Ela acredita que a culpa do seu término com o

Gustavo é sua. Já que não precisa de ajuda, estou indo embora. – finalizou demonstrando a decepção em sua voz.

- Espere! – disse eu, agarrando um bloco de papel e fazendo uma anotação – Entregue isto para ela.

Olhou-me desconfiada, saiu de casa batendo os pés, com raiva. Mas eu sabia que faria o que eu havia lhe pedido.

Tal notícia não me incomodara nem um pouco. Pelo contrário, eu esperava por Amanda ansiosamente. Era a minha hora de me vingar.

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Perdição

“Encontre-me na praça às 23h” Era um ótimo horário. Há essa hora, as

lojas já estariam fechadas e as crianças estariam dormindo. É lógico que ela apareceria, afinal, Amanda não fugia de briga.

Sentei-me em um dos bancos e aguardei

pacientemente. Ela chegou às 23h20. - Está atrasada. – sorri. - Que lugar patético é esse? – questionou,

com os braços cruzados. - É onde você vai morrer. Ela riu, debochando. Levantei-me e me

aproximei dela, a ponto de ficarmos cara a cara.

- O que vai fazer? Vai me beijar? – interrogou, olhando-me nos olhos.

Eu podia sentir o calor dos seus lábios, podia ouvir sua respiração tensa apesar de seu olhar centrado. Dei-lhe um selinho demorado, ela não reagiu, mas também não me correspondeu.

- Até que não é uma má ideia? – concluí. Então a puxei pela cintura e usei a outra

mão para segurar firmemente seus cabelos. Ela estava muito assustada para reagir, e não teve

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opção se não deixar-me beijá-la como quem

beija um amante. Fechei os olhos, deliciando-me com o

momento, sentindo sua respiração descompassada. Sua língua estava inquieta, tentando fugir, mas logo lhe prendi entre meus dentes. Mordi com toda a minha força, sentindo o sabor do seu sangue doce. Ela deu um grito abafado e tentou livrar-se dos meus

braços, sem sucesso. As lágrimas começaram a rolar de seus olhos, molhando o meu rosto, mas eu não parei, não estava com um pingo de piedade.

Por quanto tempo eu sofrera lhe vendo namorar o homem da minha vida? Por quanto tempo eu teria que aguentar calada todos os seus desaforos? Enfim, eu perdera tempo demais tentando me conformar. Mas agora as coisas não funcionariam mais assim.

Por fim, cansei-me de ver a agonia presente nos olhos de Amanda, e arranquei de vez a sua língua. Ela se ajoelhou, curvando-se de dor, o sangue jorrava aos montes de sua boca, manchando sua camisa, misturando-se com as lágrimas.

Sorri ao vê-la assim, sentindo-se tão torturada, a imagem era completamente bizarra para mim. Fiquei ali por um longo tempo, enquanto apreciava lentamente a dor da minha inimiga.

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- Creio que nunca mais irá dizer bobagens.

Cuspi sua carne nojenta e retirei o sangue que estava sob meus lábios com a minha língua. Despedi-me enquanto ela rastejava, chorando.

Ao deitar em minha cama, chorei. O que estava acontecendo comigo? Não tive tempo para pensar nas respostas, pois o dia já amanhecia e eu precisava dormir.

Ao acordar, reconheci que precisava urgentemente de um banho, cheirava a carne podre. Enquanto me lavava, ouvi alguém bater na porta. Certa de que era a Tamirez, gritei para entrar. Saí do banheiro enrolada na toalha, por estar apressada, mal sequei os cabelos e a água pingava das pontas, molhando o chão em que eu pisava descalça. Quando cheguei ao quarto, deparei-me com Gustavo.

Ele estava sentado na beira da minha cama a minha espera, com uma expressão triste, parecia deprimido.

- Você matou a Amanda. – disse como se tivesse certeza disto.

- O que? Claro que não! Eu não fiz isso. - Eu sei que vocês foram se encontrar na

praça, ontem à noite. - Sim, nós nos encontramos, até brigamos.

Mas eu não matei ninguém – garanti-lhe –

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Agora me dê licença, eu preciso vestir uma

roupa. - Não vou sair daqui enquanto você não me

explicar direito o que acontecera. Encarei-lhe. Não conseguia acreditar que

ele estava defendendo ela. O pior é que eu não conseguia sentir ódio dele. Pelo contrário, sentia a pele arrepiar ao ver como ele estava meio nervoso em me ver somente de toalha.

De forma alguma queria excitá-lo, seduzi-lo. Queria que ele ficasse comigo por sentir a mesma coisa que eu. Queria que ele sentisse por mim o que ele sentia pela Amanda. Felizmente, ela não estava mais ali para impedir os nossos caminhos de se cruzarem.

- Eu amo você, Gustavo. – disse, suspirando – Eu sei que você gostava da Amanda. Eu nunca desejaria vê-lo sofrer, nem em sonho. Vê-lo assim faz com que eu sinta a sua dor. Compreende?

- Eu... – ele gaguejou – não vim aqui para ouvir isso. Eu não vou sair daqui.

- Está bem. – disse eu, irritada, deixando que a toalha caísse no chão.

Não pude evitar o sentimento de satisfação ao ver a expressão de desejo no rosto de Gustavo. Quantas noites eu sonhei em vê-lo nesta situação! Tentei aproximar-me, mas ele se esquivou. Constrangida, recuperei minha consciência e vesti-me, desajeitada.

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- Sinta-se a vontade. Deseja um café? –

tentei ser simpática. Ele ficou quieto. Sentei-me ao seu lado e

contei aos poucos o que aconteceu. - Você mordeu a língua dela? – estranhou. - Mordi sim! – ri – E quer saber? Até que

tinha um gosto bom. Não se contendo, ele riu. Parei por aí,

omitindo a parte em que arrancara a língua

dela. Quando terminei de contar, notei que ele me fitava silenciosamente. Fiquei um pouco sem graça ao não conseguir disfarçar minha respiração forte e meu olhar sincero, entregando tudo o que eu sentia.

- E então, tem algo a dizer? - perguntei, tentando manter a expressão séria.

- Você... – começou ele, mas parou, como se fosse pronunciar algo errado.

- Fala – pedi, aproximando-se ainda mais. - Você é linda. – disse por fim, mordendo

os lábios e olhando, pela primeira vez, dentro dos meus olhos.

Naquele instante, o tempo parou. Eu não consegui acreditar no que ele estava me dizendo, não com as palavras, mas o que estava me dizendo com seus olhos. É como se o seu coração tivesse se tornado transparente, e eu pudesse ver tudo o que sempre quis ver. Perdi a fala, simplesmente não soube o que

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dizer. A pressão fez minha cabeça doer, mas

não consegui me mexer. Imaginei que tudo aquilo fosse uma ilusão, mas ele me provou que não ao me beijar.

Sentir seus lábios nos meus me permitiu uma entrada ao paraíso. A emoção foi tanta que, ao fechar os olhos, estava chorando. Fiquei um pouco zonza, por segurar a respiração por tanto tempo. Ele mantinha os

olhos bem apertados, não acreditando no que estava fazendo. A chuva começou a cair lá fora, o som dos pingos velozes enfeitou ainda mais o momento. Era o meu sonho se tornando realidade. Senti o toque suave de suas mãos em meu rosto e um calafrio percorreu o meu corpo.

Enfim, nos abraçamos e ele me beijou de verdade, deixando que eu experimentasse algo jamais sentido antes, era como se eu nascesse e morresse ao mesmo tempo. Entregamo-nos aos nossos desejos, retirando os limites da alma. Pela primeira vez, eu podia afirmar, pela primeira vez na minha vida eu estava sendo feliz.

Queria profundamente que nossos corpos se tornassem um só, simplesmente por que temia deixar escapar aquela coisa tão maravilhosa que para mim não tinha nome. Nossas peles, esfregando-se uma na outra, tornou-se úmidas. Senti um dor, mas era uma

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dor diferente, pois vinha acompanhada de

prazer. Num momento, pensei que não fosse aguentar, que a qualquer instante eu pudesse explodir. Depois percebi que isso era somente o amor, um coração se completando, se enchendo do que é real.

A dor pulsava dentro de mim, mantendo-me excitada. Ele estava ali comigo. Eu podia sentir, mais do que nunca, que ele estava ali.

Como quem sente o fogo queimar. Como quem sente o veneno fazer efeito. Como quem sente um corte arder. Como quem sente o prazer da sufocação. Eu estava sentindo amor.

Eu sabia que não existia limites para o perigo. Não estávamos prevenidos. Mas correr riscos era bom. Correr risos era uma atividade que eu gostava de praticar, que se eu pudesse, praticava constantemente.

Aquele momento era nosso, dentro daquele espaço infinito, eu me libertei. Afinal, eu não precisava me silenciar. Era como se eu tivesse deixado de existir. O prazer era tanto que não tinha mais espaço para se expandir.

Tentei colocá-lo para fora num grito. Um grito que vivia dentro de mim. Um grito tão algo que parecia ser expelido feito sangue. Gustavo rasgou minhas roupas, deixou marcas de amor em mim, contemplou meus olhos vermelhos de chorar, tornou a me beijar.

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- O negro de seus olhos é um fascínio.

A paixão era tanta que me arrancou de mim. Pude visitar partes da minha alma que eu não conhecia. Naquele instante, naquela urgência de saciar a fome um do outro, eu me apresentei ao mundo, ao nosso mundo.

Soube que não precisava ter vergonha da nudez, pois ela era calma e serena. E então, nossos segredos se desfizeram. Acabou a

perdição. Logo percebi que nunca havia desejado morrer. A sensatez de me esconder dentro de mim não passava de um desejo louco de aparecer para a vida.

Próximo ao ápice, senti que faltava alguma coisa. Certa do que era, arranhei com força suas costas e pedi que me mordesse. Era preciso machucar o corpo para satisfazer a alma. Quando Gustavo me fez sangrar de leve, rompi a última camada do real e deixei de existir.

Abraçamo-nos, ainda ofegantes, e ficamos olhando um para o outro.

- Queria que, assim como foi para mim, esta tivesse sido a sua primeira vez. – desabafei.

- É. – disse ele. - Mas... Você e a Amanda... - Não, nunca. - Por quê?

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Fiquei curiosa, afinal ter o Gustavo assim,

todo meu, sempre fora uma das minhas necessidades mais profundas.

- Porque eu nunca senti por ela o que eu estou sentido por você, neste momento. – revelou, tirando-me o fôlego – É como se estes seus olhos redondos, escuros e brilhantes... É como se eles pudessem me cativar.

Senti uma sensação tão boa em ouvi-lo

dizer isto que foi como se eu derretesse por dentro. Poucos minutos depois, ele adormeceu. Mas eu não, pois não queria perder se quer um segundo daquilo. Contemplei o seu rosto, o seu corpo. Contornei sua face com meus dedos, brinquei com seus cabelos loiros e macios. Beijei-o na testa, no nariz, na boca e no queixo, suavemente. Passei a palma da mão trêmula sobre suas costas nua. Usei de todo o cuidado para não acordá-lo. Acomodei-me ao seu lado, e ali fiquei, lhe admirando, lhe amando com o olhar.

Assim, algumas horas se passaram. Não perdi se quer o movimento de seus olhos se abrindo. Sorria feito uma boba para ele. Era a hora de ele ir embora. Eu não queria que ele fosse. Não queria que ele fosse nunca mais.

Fiz-lhe tomar o café da manhã comigo, deixei a melodia clássica tocar, fiz-lhe relaxar.

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Mas ele precisava ir. Eu não podia impedir.

Porém, lhe fiz prometer que voltaria. - Eu prometo. Ele sabia que eu ficaria de prontidão a sua

espera. Se ele não voltasse nunca mais, eu definharia assim.

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O Gato Preto

Após tal noite exaustiva, caí num sono profundo a fim de recuperar minha energia. Estava assim, trocando a noite pelo dia, por mais tempo que eu imaginava. Mesmo sentindo-me tão feliz, o pesadelo tornou a me visitar.

Quando acordei, fiquei admirando o teto. Apesar do pesadelo, acordei sorrindo. Não que ele não me incomodasse mais, apenas não me importava tanto, preferia desprezar-lhe. Preferia sonhar acordada com o que houve entre eu e Gustavo. Será que tudo aquilo fora real?

- Sim. – uma voz me respondeu.

Levantei-me da cama intrigada, buscando a origem da voz, grave e masculina, mas ao mesmo tempo, suave e manhosa. Olhei a minha volta, mas não encontrei ninguém.

- Carlos? É você? – questionei. - Não. Sou eu. Pouco a pouco, virei o pescoço e olhei para

traz. Um gato preto estava sentado ali, abanando o rabo e olhando para mim. Suspirei, aliviada.

- Acho que estou delirando.

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- Não está não, sou eu mesmo. – disse o

gato. Gritei, afastando-me bruscamente. - Ei, calma! Não vou te fazer mal. Sou seu

amigo, seu conselheiro. - Você... Não devia miar? – perguntei,

achando-me ridícula por falar com um gato. - Miau. – disse ele, e sorriu. Naquele momento, três dúvidas formaram-

se em minha mente: Primeira, gatos pretos não dão azar? Segunda, gatos falam? Terceira, gatos sorriem?

- Eu não dou azar. – respondeu-me o gato. Logo, a quarta dúvida se formou. - Você pode ouvir meus pensamentos? - Sim. Precisei de um tempo para apreender a

ideia de que um gato estava falando comigo. Tempo necessário para me acalmar e dividir um vinho com tal gato enquanto trocávamos uma palavra e outra, eu sentada em cima da pia da cozinha e ele sentado na janela, que se encontrava aberta, permitindo a entrada da luz da Lua no cômodo escuro.

- Você precisa de mim ao seu lado, Natasha.

- Eu não preciso de ninguém. – retruquei. - Nem dos seus pais? - Não mais. Para falar a verdade, eu sempre

soube me conformar com tragédias.

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Neste momento, eu descobri: Não sentia

mais a falta deles. Isso não era tão estranho para mim, afinal, eu nunca sentia saudades de nada nem de ninguém. Nunca senti saudades de quando meu pai era lúcido e me levava no parque para brincarmos juntos. Nunca senti saudades da minha professora da segunda série, que era tão prestativa e carinhosa. Não chorei nem senti saudades do meu cachorro, o

Rex, quando ele morreu. A única pessoa que me fazia sofrer de

saudade era o Gustavo. Amava ele mais do que amava meus pais. Mais do que amava minha professora e meu cachorro. Mais do que me amava.

- Você é indiferente quanto aos desastres da vida.

- Como sabe tanto sobre mim? - Imagine que sou seu anjo da guarda. Se

você está triste, eu percebo; se está com ódio, eu sinto; se alguém a magoa, eu te defendo; e tudo o que eu fizer, reflete em você. Todos me vêem, mas só você me ouve.

- Por quê? Por que você apareceu somente agora?

- Já disse, você precisa de mim. Quem vai te consolar, te visar, te amparar? – questionou.

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Fiquei calada, mesmo sabendo que não

adiantaria de nada. O que ele viu em meus pensamentos lhe irritou.

- Natasha, você não pode sentir amor! Você precisa aceitar o que você é agora!

- Como assim, o que eu sou? E qual o problema em amar Gustavo se ele me corresponde?

- Por que mente para si mesma? Vai falar

que não gosta de ser assim? - Assim como? - Liberta, ousada, uma pessoa que sente

naturalidade em pecar, que sente prazer em ser cruel... – dizia ele, caminhando em minha volta.

- Ficar com Gustavo só aumenta o meu ego, sinto-me confiante, fortalecida. Ao estar ao seu lado, o mundo ao redor dorme, como se o amor abrisse as portas para mim.

O gato riu, riu alto, zombando. Seu riso irritou-me profundamente, mas ele pareceu não se importar. Encarei-o, incomodada, e me vi dentro de seus olhos.

A luz iluminava o seu pêlo liso e brilhoso, como se ele comesse da melhor ração. Suas orelhas acentuadas demonstravam sua personalidade forte. O rabo, quando não se encontrava na forma de um ponto de interrogação, ficava abanando, para lá e para cá. Qualquer um que o visse diria que ele não

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é um gato cheio de pulgas, pois ele não

aparentava ser um gato de rua. Exalava um cheiro agradável, nada perfumado nem enjoativo, que nos fizesse coçar o nariz.

Ao contrário dos gatos comuns, ele parecia sorrir. Mas não um sorriso simpático e sim, um sorriso malicioso, capaz de persuadir.

Todavia, o que mais me intrigava no gato eram os seus olhos. Eram redondos e

brilhantes. Mas notava que sua irís era mais negra, carregada de poder.

- Você me dá medo, sabia? – assumi. - Você não pode sentir medo dos seus

próprios sentimentos. – ele retrucou. - É que eu ainda não sei do que sou capaz. - Você é capaz de tudo, basta querer. Por

isto estou aqui, para lhe impor limites. Senti-me atordoada, achei que era o efeito

do vinho, mas na verdade era o dia clareando, e aquela sensação não passava de sono.

- Amanheceu, vá dormir. – ordenou-me o gato.

- Não posso. Preciso manter-me acordada para dormir a noite. – disse eu, lutando contra o sono.

- Não diga bobagens! A noite é quando os mortos estão acordados.

Mal ouvi o que ele disse por último, pois quando dei por mim, dormia feito um anjo

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alcoólatra, descarregando aquele peso de

meus ombros. Quando acordei, o gato ainda estava ali. E

Tamirez encontrava-se ao meu lado, chacoalhando-me preocupada.

- Natasha! Natasha! - Já acordei, diga o que quer. – resmunguei. - São oito horas da noite, o que faz

dormindo tão cedo?

- Não é da sua conta. Diga logo o que você quer.

- Não vim oferecer-te ajuda. - Veio pedir-me ajuda? - Vim porque quero que me esclareça o que

houve entre você e Amanda. De repente, a imagem de Amanda

ajoelhada com o sangue jorrando de sua boca me veio à mente. Olhei para o gato, incerta se ele sabia disto. Ele piscou o olho direito para mim, fazendo-me sorrir.

- Pelo amor de Deus, desde quando cria gatos pretos? Esse bicho dá azar!

- Não acredito em superstições. - Ah, verdade, havia me esquecido disto. Levantei-me da cama, sentindo muita sede.

Era como se meu corpo estivesse totalmente seco por dentro. Precisava me hidratar.

- Conta pra ela que você matou a Amanda. – disse o gato.

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Irritada, joguei meu travesseiro nele,

mandando-o calar a boca. Só então me dei conta de que tudo o que

Tamirez ouvira fora miados, afinal, ela pegou o gato no colo me repreendendo por ter falado com ele daquele jeito.

- Desculpa, ainda estou sonolenta. Pode buscar um copo com água, por favor? – Solicitei, tentando disfarçar.

Tamirez caminhou até a cozinha, o gato olhou-me por sobre os ombros dela e sorriu. Lavei meu rosto e sentei-me na poltrona, a sua espera.

- Meu Deus, você anda se alimentando com o que? – interrogou Tamirez, bisbilhotando a dispensa.

- Eu só pedi um copo com água. - Eu sei, estava procurando um biscoito

para dar ao gato. – justificou, entregando-me meu copo e sentando-se em minha cama.

O gato ronronava em seu colo. Sabia que estava esperando que eu começasse a falar. Tomei o último gole de água e comecei a lhe explicar.

- Eu e Amanda nos encontramos na praça naquele horário. Quer dizer, ela chegou um pouco atrasada. Parecia meio nervosa, como sempre. Tentei conversar, mas ela não parava de fazer comentários maldosos. Não

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suportando mais, lhe retruquei a altura e ela

ficou muito irritada e veio para cima de mim. Apenas me defendi. Antes de eu vir embora, ela se ajoelhou e ficou se desculpando. Ignorei-a. – Concluí, e tornei a beber água.

- Foi só isso? – questionou Tamirez, incrédula.

Fiz que sim com a cabeça. Ela se poupou em fazer perguntas. Ficamos em silêncio, nos

encarando por um tempo. Parecia que ela estava com receio da minha reação caso dissesse algo que me contrariasse. Por fim, desviou seus olhos dos meus e perguntou amigavelmente:

- O Gustavo me procurou. Queria seu endereço. Ele veio aqui?

- Veio. - E aí? – disse, levantando o olhar para

mim, com a curiosidade explícita em sua voz. - Conversamos, lhe consolei, trocamos

risos. - Ora Natasha, sabe que não é isto que

estou querendo saber. - Não Tamirez, eu não sou mais virgem.

Isso que você queria saber? – disse friamente, deixando-a boquiaberta.

Por notar o ódio em minha voz, afinal ela estava invadindo a minha privacidade, Tamirez não perguntou mais nada e decidiu ir embora.

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- Tchau bichano! – falou, fazendo cafuné no

gato – Como é o nome dele? - Gato. - Eu quis dizer o... Deixa pra lá. – riu,

dirigindo-se a porta – Outro dia venho lhe visitar.

- Não precisa. – respondi, fechando a porta. Enfim, sozinha. - Ela é chata, não? – disse o gato, por mim.

Concordei, rindo. - O que farei o resto da noite? Não estou a

fim de ler. – resmunguei. - Por que não vai visitar seus pais? –

sugeriu o gato. A ideia me pareceu estranha, mas não era

uma má ideia. - Vem comigo? – convidei-o. - Não. Vou ficar por aqui mesmo. Você

precisa fazer isto sozinha. Vesti um vestido volumoso e preto, que

vinha acompanhado de um bolero de veludo, perfeito para a ocasião. Fazia frio lá fora, clima típico da cidade, mas eu não sentia os pêlos se arrepiar, eu não sentia medo de entrar num cemitério aquele horário, eu não sentia nada, nem emoção.

Ás vezes, confesso, eu tinha medo de mim mesma.

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Sentimentos Imundos

A noite estava um breu. Já dentro do cemitério, que não continha iluminação, fui engolida pela escuridão. No momento em que avistei as lápides cobertas de pó, lembrei-me imediatamente do cemitério abandonado no qual acordei naquele dia.

Queria tanto me lembrar do que aconteceu naquela noite, mas cada vez que forçava a memória sentia a cabeça doer e nada me vinha à mente. Absolutamente nada. Apenas sei que tudo mudou desde então.

Principalmente com relação aos meus sentimentos. Eu não sentia dor, não sentia paixão, não sentia vergonha. Como se

estivesse incapacitada de sofrer. Como se não houvesse a possibilidade de eu ser feliz.

Ajoelhei-me frente aos túmulos de meus pais e me pus a orar pela alma de ambos. Ao levantar-me, senti um calafrio percorrer minha espinha, fazendo com que eu olhasse para trás num repente. Com este movimento, lhes avistei.

Tão nítidos, mas irreais. Não sorriam, mas me olhavam de uma forma que me fazia sentir constrangida. Usavam vestes brancas, na cor de seus cabelos, a pele enrugada estava

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amarelada, como peles cujas células estão

mortas. Aproximei-me cuidadosamente e lhes

abracei, sem dizer nada. Não senti seus braços me abraçando de volta então parei e olhei para seus rostos. Pareciam não ter emoções. Eu nem sabia se meu pai estava lúcido ou não.

Depois, sob meus olhos, simplesmente sumiram, feito água que evapora aos poucos.

Passei o resto da noite vagando pelo cemitério, procurando por eles. Quando dei por mim, o dia amanhecia.

Há tanto tempo eu não ficava exposta ao sol, que sua luz pareceu ferir minha pele e cegar minha vista. Mesmo assim, resisti ao tormento e caminhei lentamente para casa.

No caminho, avistei uma cena não muito distante de mim que me chocou: Um homem, usando um capuz, apontava uma adaga na direção de dois idosos, ameaçando lhes matarem caso não entregassem tudo que tinham de valor. Um rancor enorme se fez dentro de mim, o medo estava estampado no rosto da senhora, e o marido se envergonhava por não ter forças suficientes para defendê-los. Vi neles os meus pais, que estavam sempre precisando de ajuda e eu nunca estava por perto.

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Não pensei duas vezes e me dirigi ao

ladrão, enfurecida. - Não quero machucar uma jovem tão

bonita como você, então saia daqui e vai cuidar da sua vida! – disse ele, aparentando espanto devido a minha reação.

Aproximei-me mais, sem nada dizer. Não queria simplesmente fazê-lo parar com aquilo, queria vingar-me, fazê-lo sofrer para que

tivesse certeza de que nunca mais repetiria tal ato sujo. Sem muito esforço, tomei-lhe a faca, dominada pelos sentimentos imundos. O que fiz a seguir espantou os velhinhos, que correram apavorados, gritando pela polícia.

Quando a polícia chegou, eu já me encontrava na segurança do meu lar, e o ladrão estava caído no chão, coberto pelo sangue, fazendo forças para continuar a respirar e tirar a faca que atravessava suas mãos, prendendo uma na outra.

Ao chegar em minha casa, deparei-me com Gustavo que me esperava na entrada. Não pude esconder as mãos sujas de sangue e, assim que entramos, ele começou a me interrogar.

- Tamirez me disse que andava estranha, que não parecia a mesma pessoa. Alertou-me em tomar cuidado com você. – comentou.

Olhei-o com fúria, angustiada. Nada mais se tornou audível para mim após aquele

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comentário. Reconhecia essa emoção, estava

sentindo a mesma coisa que sentia ao vê-lo com Amanda. Estava com ciúmes. Mas eu sabia que meu ciúme não era normal, tê-lo em meus braços era algo tão precioso que qualquer coisa me fazia sentir ameaçada, e o medo me deixava eufórica, a ponto de tomar providências precipitadas.

- Esteve com Tamirez? Quando? Por que

ela te disse isso? - Natasha, se acalme. Encontramo-nos na

rua por acaso, foi apenas uma conversa. - Está mentindo! – gritei – Ela está tentando

nos separar Gustavo, eu sei disso, sempre se sentiu atraída por você! Mas eu não vou deixar, não vou!

- Natasha, pare! – gritou ele, segurando-me com força.

Geralmente, ao me ver neste estado agressivo, fora de controle, as pessoas temiam a mim. Mas Gustavo era diferente, ele me enfrentava. Também, não tinha o que temer, ele sabia que eu nunca seria capaz de lhe fazer mal, ele sabia que era o único que eu ouvia, o único que me fazia sentir calma.

Aquietei-me, mas a ideia não saiu da minha mente. Precisava eliminar qualquer ameaça entre eu e Gustavo. Precisa procurar Tamirez. Ele ficou ao meu lado até eu adormecer,

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quando o dia se desfez eu despertei, mas ele já

não se encontrava em meu aposento, todavia seu cheiro permanecia em meu travesseiro, e passei um bom tempo deliciando-me com seu perfume.

Depois disso, preparei-me para sair para o mundo e encontrar Tamirez. Liguei para sua residência e pedi que viesse até a cachoeira da cidade. Não sabia ao certo por que escolhera

aquele local, mas me pareceu muito atraente no momento. De imediato, ela estranhou, pois já era noite, mas depois acabou concordando.

Sentei-me entre as rochas a sua espera. A brisa fria me refrescava, despertando em mim sentimentos que até então dormiam. A sensação estranha se expandiu, e logo eu soube: era o prazer. Há tempo a expressão do meu rosto não se desfazia em prazer. Normalmente, meu rosto não se traduzia em nada.

Quando vi que Tamirez se aproximava, meu rosto expressou ódio. Ela se sentou ao meu lado, olhando em sua volta. Começou a conversar comigo como se não tivesse acontecido nada.

- E então, o que nos traz neste lugar extremamente estranho? – riu, olhando para mim.

- O que você acha? – perguntei e me calei a espera de uma resposta, mas como ela não

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disse nada eu prossegui – Você procurou meu

namorado e disse-lhe que eu estava estranha, pediu-o que se afastasse de mim, que tomasse cuidado comigo. O que pretendia com isso, Tamirez? Por acaso você o quer para si?

- Claro que não Natasha, de onde tirou essa ideia? Eu compreendo que sempre fora apaixonada por Gustavo, mas você está passando dos limites. Você está

completamente obcecada por ele, e quando chega neste ponto, acredite minha amiga, deixa de ser amor.

- Como ousa dizer que não o amo? Apenas estou contente, pois finalmente fui correspondida!

- Pense bem, ele nunca te amou, por que faria isto na noite seguinte a morte de Amanda, com quem namorou por oito meses? Ele está fascinado por você, e sabe por quê? Porque não é você mesma que esta aí. A minha amiga Natasha podia ser estranha e solitária, mas nunca seria capaz de matar alguém com as próprias mãos e beber de seu sangue.

- Supõe-se que eu me separe de Gustavo. De que adiantara? Receberia o sofrimento eterno.

- Natasha, relaxe. O tempo te fará esquecê-lo.

- O tempo?

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Levantei-me e olhei em seus olhos,

suspirando enquanto apreendia o que dissera. E então, fiz pesar meu olhar sobre si, sem nem ao menos piscar, suportando a ardência provocada pela brisa. E, mantendo minha voz em um só tom, sem exaltá-la nem cochichar, expliquei-lhe detalhadamente o meu ponto de vista.

- Um dia, Tamirez, quando você gostar de

verdade de um garoto, quando você se apaixonar por alguém, não sentirá vontade de mais nada a não ser ficar ao lado dele, mesmo que seja apenas para contemplar seu rosto, seu jeito de sorrir, seu olhar e sentir seu cheiro e ouvir sua voz. E quando este garoto te corresponder, nada mais a sua volta terá importância, e passará noites em claro com um sorriso doce nos lábios, recordando cada milésimo de segundo que passou ao lado deste, e mesmo depois de tal noite mal dormida, viverá cada minuto do seu dia de bom humor, sem entender o porquê. E o dia em que esse garoto te deixar, tudo o mais perderá o sentido para você, não existirá razões para se desejar viver, você vai conhecer o que é sofrer por dentro, sentir dor no peito, romper em lágrimas, onde cada uma que rola faz sangrar o coração. Somente neste momento, onde o escuro habitará sua alma, só então você compreenderá que o que você sente

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por esta pessoa é mais forte que você, e que

isso só se sente uma vez. E você vai se arrepender de não ter lhe dado mais valor, de não ter aproveitado mais cada instante. Você vai buscar outro amor, mas não vai encontrar e, nisso, aprenderá a lidar com seus sentimentos sozinha. E então vai descobrir que ninguém supera um grande amor, apenas aprende a guardá-lo no canto do peito. E vai

descobrir que mentiram ao dizerem que o tempo, que passa lento, te faria esquecer, pois, na verdade, ele apenas ensina a conviver coma dor e cm a saudade. E você nunca mais se apaixonará novamente, não com a mesma intensidade. Isto porque seu subconsciente estará tão preparado em evitar a dor e a frustração que, automaticamente, estabelecerá limites ao seu coração. E você será tão cauteloso que nunca retribuirá o carinho da pessoa na mesma medida, nunca se entregará de vez ao seu sentimento, nunca amará o suficiente. Simplesmente porque, inconscientemente, você vai ter medo de amar.

Resgatei meu foco em Tamirez, e notei que ela me olhava assustada, como se o que eu disse não tivesse feito sentido para ela, mas ao mesmo tempo, era fácil de crer. Então, crendo nisto, ela se deu conta do quanto me afetou, do quão grave foi a consequência de seus atos, do

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quanto eu estava machucada por dentro. E,

por fim, se arrependeu, deixou as lágrimas caírem, tentou me convencer de que concertaria tudo. Arrastou-se até meus pés, beijando-me entre soluços, fazendo-me rir. Agarrei-lhe pelos cabelos, fazendo-a me encarar, coloquei a outra mão em seu pescoço, alisando-o cuidadosamente com minhas unhas. E, enquanto zombava dela, rasguei-lhe

a garganta devagar, admirando o seu rosto, que se remodelava sob a forma da dor a da agonia.

- Eu lhe diria que, quando o seu dia de amar chegar, você deveria esquecer o mundo, largar tudo e apenas amar, pois esse momento é único, saboroso e inesquecível. Mas este dia não chegará para você Tamirez, afinal, sua vida acaba aqui. – concluí, e Tamirez fechou os olhos para não mais os abrir.

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Entre Correntes

Abri os olhos enquanto resmungava com a dor intensa que sentia em minha nuca, a primeira coisa que vi foi meu reflexo na lagoa a minha frente. Eu me encontrava acorrentada a um tronco, e o corpo de Tamirez estava ao meu lado. Tentei mexer os braços, mas não

consegui. Não gostei nem um pouco da incapacidade de me movimentar. Ainda estava noite, certamente já era madrugada. Perguntei-me por quanto tempo estava naquela situação, o que me levou a perguntar quem fizera isto comigo. Será que minha amiga sonsa trouxera alguém com ela? Eu não sabia responder.

Aguardei por um longo tempo, recuperando os sentidos aos poucos. Nem eu sabia o que me esperava. Alguém viria me buscar, não? Eu não podia definhar ali todo o sempre. Depois de meia hora, comecei a crer que sim.

A Lua estava escondida atrás das montanhas, fazendo com que o local fosse dominado pela escuridão. As flores esperavam a aparição do sol para desabrochar. Ao invés de estrelas, o céu era composto de nuvens escuras e sombrias. O mato que me cercava

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começou a me pinicar, nisso eu perdi minha

paciência e comecei a gritar. Alguns pássaros voaram, incomodados. As árvores grandiosas ao meu redor fizeram alguns ruídos. Por fim, desisti de ser encontrada.

Assim, em silêncio, comecei a reparar em pequenos sons que a gente não presta atenção. Como o rastejar de uma cobra. Estremeci quando ouvi um choro, olhei atentamente a

minha volta e reconheci o garoto que estava encolhido distante de mim.

- O que você faz aqui? Por que está chorando?

- Tamirez me ligou, disse para eu vir para cá o mais rápido. Mas pelo visto, me atrasei.

- Tamirez está morta! Morta! Por que ela te pediu isso?

- Ela disse que sou o único que poderia interromper você.

- E por que acha isso? - Por que você me ama. Calei-me. Aquilo era verdade, minha fúria

se ocultava em sua presença. - Está esperando o que? Tira-me daqui! - Não posso. - Por quê? - Fui eu que te acorrentei, Natasha. Não

confio em você. - Você acha que sou uma sanguinária que

vai sair por aí matando inocentes?

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- Sim. – ele deu de ombros.

Calei-me novamente, afinal, mais uma vez ele dissera a verdade.

- Por que fez isso? - Pergunta pro Gato, ele tem a resposta. - Gato? – Gustavo riu – é essa a sua

desculpa? De repente, ouvimos um miado, e o Gato

surgiu entre ás arvores, sentando-se ao meu

lado. Olhei-o irritada, por que não aparecera antes?

- Tamirez morreu por sua culpa, Gustavo. Quem mandou você me trair?

- Pelo que eu saiba... A gente não tem nada um com o outro. – disse, fazendo-me sentir uma apunhalada no peito.

- Como não? Estamos ligados sentimentalmente! Nós nos amamos, está no coração! Não é algo físico, concreto, é espiritual!

- Você não passa de uma alma má encarnada num corpo humano!

- Não, Gustavo, eu te amo! Eu te amo! Gustavo soluçava, sem se convencer com

minhas palavras, evitando-me. - Eu tenho medo de você, Natasha. – disse

ele. - Não precisa ter medo, venha aqui!

Abraça-me! – supliquei.

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Ele se levantou meio confuso. Aproximou-

se passivamente e me abraçou com força, revelando que sentia o mesmo que eu. Por fim, me soltou, e ficamos aninhados até o dia amanhecer. Em seguida, ele me levou até em casa.

- Nunca vamos nos separar. – prometi. - Natasha, acho que você não entendeu.

Nós não podemos ficar juntos. – falou antes

que se fosse, deixando-me completamente só. Deitei em minha cama e ignorei o gato.

Mantive-me entre as cobertas durante dias, sem me levantar para nada. Não queria me levantar. Não queria dormir nem acordar. Não queria existir. Odiava-me. Odiava tudo a minha volta. Tudo o que eu fazia era chorar, fazendo do meu cotidiano algo repleto de sonhos e ilusões. Eu precisava experimentar o outro lado da minha vida e nunca mais voltar. Assim, isolada, comecei a recordar-me do meu passado, da minha origem.

Meus familiares costumavam dizer que eu possuía um gênio fora do comum. Isso se confirmou quando entrei na escola primária, onde os professores chamaram a atenção dos meus pais para com a contradição quase sempre existente entre minha inteligência e minha conduta. Diziam que eu tinha um caráter estranho e difícil de lidar, por isso não tinha amigas.

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Entrei na adolescência agindo feita adulta,

tinha tarefas em casa e na escola, tinha que cuidar do bem estar do meu pai que adoecia aos poucos, e com isso eu deixava o meu bem estar de lado. Tanta responsabilidade me tornou uma pessoa volúvel com meus compromissos, por isso nunca fui capaz de preservar uma atitude generosa e solidária.

Lembro-me que visitei uma balada certa

vez, sentia-me injuriada quando tomei o cigarro das mãos de minha colega e levei-o a boca. Todos olharam para mim, afinal, não tinha mais que quinze anos. Acontece que, por não saber manusear a guimba, acabei queimando a cortina do salão. As pessoas começaram a correr desesperadas para cessar o fogo que se expandia. Minha colega desmaiou, preocupada com o que a polícia diria se me visse com o cigarro na mão. E toda aquela situação me causou riso. O mais hilário é que, enquanto as pessoas gritavam, eu me mantinha aquecida próxima ao fogo. Chamaram até os bombeiros, sem a menor necessidade. Depois disso, levei um belo sermão de meus pais, palavras que nunca esqueci.

Disseram que fiz tudo de propósito, por que gostava de ser o centro das atenções. Falaram que eu tinha que ser mais espontânea

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e sincera e menos temperamental. Acusaram-

me de ser medrosa, de usar a violência para me proteger, de ser superficial e fora do comum.

Era verdade que eu dificilmente me contentava ou me adaptava às normas de conduta da maioria, simplesmente porque desprezava a mediocridade.

Meus pais diziam que eu raramente fixava

minha atenção naquilo que estava fazendo, mas o que eles não sabiam é que eu agia assim por que sempre estava atenta a tudo que me cercava, reparando cada detalhe.

Também me insultavam, alegando que eu não tinha objetivos. Apenas porque eu continha extrema mudança de opiniões, sendo que eu só fazia isso em algumas situações, procurando me adequar.

Minhas professoras implicavam que eu me perturbava bruscamente na escola, o que levava a desentendimentos e tal. O problema é que ninguém me compreendia.

Tamirez apenas achava que me compreendia, isso por que eu me refugiava na mentira, na simulação e na simpatia. Ela vivia me incomodando com o fato de eu não ter escolhido o que estudaria na faculdade.

Apesar de viver entre as pessoas, nunca participei ativamente de suas atividades, pois sempre me distanciava mentalmente delas

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para poder me isolar. Aprendi a fazer isso com

a convivência com meus pais, que nunca notavam minha presença, a menos que inesperadamente eu decidisse surpreendê-los com alguma pergunta, observação ou comentário.

Eu preferia assim, viver entre segredos no meu universo secreto. Preferia ver as pessoas tensas ao falar comigo, responder a elas com

monossílabos e deixá-las desorientadas. Afinal, as garotas da minha sala sempre procuravam motivos para me provocar, algumas me ignoravam, outras me olhavam de cara feia, quando sorriam era de deboche e viviam a me insultar, franzindo a testa.

Agora, me encontrava doente numa cama, com um gato preto olhando para mim e abanando o rabo, parecendo sorrir. Poderia dizer que sou uma garota mimada, que não aceita a rejeição, mas isto é mentira. Sempre busquei os meus desejos com perseverança, o que eu não aceitava era perder.

Em meus pulsos ainda havia as marcas das correntes, mas eu não deixaria que isso me aprisionasse a cama. Levantei-me apressadamente, me sentido pronta para voltar à vida, mas um intruso na cozinha arrancou o sorriso de meus lábios.

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O Outro Lado da Vida

Aproximei-me devagar, solicitando ao gato que fosse a frente. Ri quando me dei conta que era apenas o Carlos, e logo após estranhei sua reação ao me ver. Primeiramente, ao ouvir meu riso, ele gritou. Em seguida afastou-se ao máximo, como se eu fosse um fantasma.

- Ei, Carlos, o que houve? E, afinal, o que faz entrando na minha casa desse jeito?

- Não chega perto de mim! Não, não é possível! Quem é você?

- Não é possível o que? Eu sou a Natasha, lembra? – questionei, preocupando-me com a situação.

E então ele começou a falar coisas que me

fizeram arrepiar, mas essas coisas me fizeram recordar o que aconteceu naquela noite. Afirmava repetidamente um fato que se infiltrou em meus ouvidos, permitindo que eu lhe analisasse durante alguns minutos, sob estado de choque.

Por fim, aquilo se tornou de alguma forma familiar a mim. Como se eu soubesse que aquilo vinha de mais fundo, vinha de um lugar inalcançável, cuja denominação não se resume em palavras. Para conhecer aquilo era preciso vê-lo de perto, senti-lo sob a carne, ouvi-lo como se ouve os sussurros que o vento

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dá no relento da noite. Eu tinha a capacidade

de ouvi-lo, eu tinha a capacidade de encará-lo face a face, eu ô sentia presente mais do que nunca e por isso tinha capacidade de designá-lo: Tal sensação, que há semanas percorria minha espinha, roubava-me o juízo, bagunçava minhas vista e confundia meus sentidos... Tal sensação era a morte.

- Não é possível! Eu te encontrei morta e

ensanguentada! Eu limpei seu corpo, eu te levei ao cemitério, e ainda deixei uma flor roxa sobre si! Você... Natasha, você está morta!

As imagens projetadas a minha frente misturou-se entre si, e senti cada osso meu se retorcer, cada nervo se esticar, cada agonia transformada em dor tornar-se cada vez mais real. Agora, tudo fazia sentido! A pele fria e pálida, o olhar opaco, a falta de frio e calor, a falta de sono.

A noite é quando os mortos estão acordados.

Mas algumas coisas simplesmente não se encaixavam. Como posso, estando morta, ter contatos com os vivos? Sou eu mesma que estou aqui? Se não, como posso sentir prazeres da carne, como aquilo que tive com Gustavo? O que tive chama-se amor, por isso não houve dor. O amor é sobrenatural. É um sentimento poderoso que ocorre entre duas almas, não

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entre dois corpos. Mas, para que ele possa

fluir, não é necessário que essas almas pertençam a corpos de pessoas vivas? Creio que não, pois estou apaixonada e sinto que sou correspondida. Mas, voltando às palavras de Tamirez, o que sinto é amor ou obsessão? O que ele sente é amor ou fascínio? Como ter certeza de nossos sentimentos? Palavras não são confiáveis, nem tudo se resume a elas e,

nesse caso, elas não são o bastante para mim. Eu só tinha certeza de uma coisa.

Agarrei Carlos pela gola e puxei-o para dentro do quarto, jogando-o no chão. Sem perder tempo, agarrei uma faca de cozinha e enquanto ele tentava se defender e fugir, eu me sujava com seu sangue, aflita e descontrolada.

- Eu quero o Gustavo do meu lado, e ninguém me fará mudar de ideia! Eu o quero do meu lado, independente de onde eu esteja! Se ele me ama de verdade, aceitará vir comigo aonde eu for, nem que para isso seja preciso que morra!

Quando terminei, o rosto de Carlos estava desconfigurado, mas seu coração ainda batia, eu podia ouvi-lo.

- Lanchinho para você, Gato. – disse eu. O gato avançou sobre o homem morto,

lambendo sua face, apreciando cada pedacinho de carne crua que arrancava com

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seus pequenos dentes afiados, segurando-a

com suas unhas e saboreando-a. - Afinal, por que nunca me disse? –

interroguei-o. - Você sempre soube Natasha, sempre

soube. Antes mesmo de acontecer, você já sabia.

- Como? - Naquilo que vocês chamam de pesadelo.

Num repente, tudo o que aconteceu naquela noite me veio à mente:

Na neblina da noite escura e silenciosa, eu corria em desespero sem saber ao certo para onde ir. Os únicos sons audíveis eram minha respiração ofegante e os passos do inimigo logo atrás de mim. De repente, me deparei com uma rua sem saída e, aflita, fechei os olhos com força, sentindo a pele ser queimada pelas lágrimas que rolavam.

Tudo o que vi ao meu alcance foi a escuridão. Senti um vazio crescente dentro de mim, tornando minha pele gélida, fazendo com que me arrepiasse até a alma. Num certo instante, o tempo parecia ter parado, eu não sentia o chão debaixo dos meus pés, o mundo ao meu redor tinha sido tomado por uma calmaria perturbadora.

Com receio, abri os olhos pouco a pouco, sentindo a vista arder com a falta de claridade.

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Nada era tátil ou visível, o que me fez ter

certeza de um fato: Eu estava morta. Eu estava morta.

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Limites

Livrei-me do corpo de Carlos, limpei a casa e escondi uma faca debaixo do travesseiro. Em seguida, liguei para Gustavo, marcando um encontro próximo a minha casa. Quando desliguei, cortei os fios do telefone, para ter certeza de que ninguém me incomodaria.

Como previsto, ele apareceu. Tinha olheiras sob os olhos, estava com uma aparência péssima, mas ainda assim estava lindo. Com toda a certeza, havia sofrido o mesmo que eu durante esses dias.

Iria utilizar os argumentos que preparei para lhe convencer a ir para minha casa, mas assim que abri a boca para falar algo ele me

interrompeu, puxando-me pelo braço e me levando até minha casa.

- Vem comigo. – disse ele. - Pra onde? Fazer o quê? - Depois te explico, agora vem comigo. Foi como se me dissesse: Vamos fugir,

vamos correr, nos esconder, brincar com o tempo e desafiar a vida, vamos provocar o destino, dane-se se o que estamos fazendo é errado, quero apenas sentir que estamos juntos e misturar o que é sonho e o que é realidade. Como se soubesse que para o amor não há

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limites, que eu adoro correr riscos, que violar

regras me faz feliz. Não me deu a oportunidade de lhe dar

uma resposta, pois no fundo sabia que eu tinha sede do perigo, que tínhamos urgência em nos amar, nos morder, nos beliscar, sentir a carne viva um do outro, invadir o corpo e alcançar a alma com a língua.

Cerquei-o com meus braços, arranhando-o.

Sua pele já não era quente contra a minha, agora era úmida. Beijamo-nos, mordi seu lábio inferior até sentir que fervia, ele me apertou com força, mas sem me machucar. Carregou-me no colo até meu quarto e me jogou na cama. Quando nossos corpos se reencontraram, uma explosão se fez dentro de mim, e rasgamos aquela noite com nosso amor.

No dia seguinte, assim que acordei, deitei-me sobre si, apreciando seu corpo nu. Sem olhar-te nos olhos, questionei:

- Guh, você me ama? Eu, obviamente, sabia a resposta, mas

queria ouvi-la de sua boca. - Sim. - Me ama como eu ô amo? Capaz de tudo

para ficarmos juntos? - Si... Sim. - se demorou na resposta. Era

capaz de tudo para ficar comigo? - Tudo mesmo?

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- Por que está me fazendo estas perguntas?

- Por favor, eu preciso saber. -... Sim. Era o suficiente para eu agir. Coloquei-me

por cima dele, segurando-o com violência, minhas unhas lhe machucando, tudo para não deixá-lo escapar. Ele tentou reagir, mas mordi-lhe com tanta força no ombro que deixei sua pele dormente, sangrando. Seus olhos

lagrimosos esquivaram-se dos meus, perguntava-me por que eu estava fazendo aquilo. Eu estava cansada de tantas perguntas.

- Natasha, não estou te reconhecendo... - Você nunca me conheceu de verdade,

Guh. - Então... Quem é você? Olhei para ele. Eu ô amava mais que tudo

nesta vida, mais que a minha própria vida. Podia sentir isso ao ver aqueles lábios quentes. Enfrentei tantos desafios para juntar-me a ti, vivi perigosamente, todavia vivi ao seu lado, perdi-me na escuridão, mas não lhe perdi. Se não tivesse passado por tudo isto, de certo não seria amor, por que as pessoas só se apaixonam por coisas que lhes impõem obstáculos. Se a vida fosse fácil não teria graça.

- Sou aquela que se ilumina na escuridão, pois me perdi em minha própria morte. Você

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precisa me entender Gustavo, eu pertenço ao

outro lado da vida e preciso trazer-te para cá! - Natasha, você está louca! Seja lá o que

esse gato te diz, não dê ouvidos a ele! Olhe para mim, isso tudo é real! - encarei-o, confusa, mas não me convenci - Você não está morta, pelo amor, não faça isso!

- Relaxe, quando você acordar tudo vai voltar ao normal.

Não suportava mais suas lamúrias, estava em meu limite. Arranquei a faca que escondi atrás do travesseiro e aproximei-a de sua garganta, beijei-o enquanto cortava-o vagarosamente. Este deu um grito ardido contra os meus lábios, sentindo o sangue fresco descer pelo seu corpo. Aos poucos empalideceu, e o mesmo já não tinha forças para reagir.

Sentei-me no chão, próximo a cama, e pus-me a assistir a sua morte. Seu corpo estava trêmulo, os cílios piscavam velozmente, segurava os lençóis com firmeza, tentando resgatar sua força. O gato deitou ao meu lado, para que eu pudesse lhe acariciar. Notei que as lágrimas escorriam de meus olhos, e por um momento senti uma dor estranha no peito, senti tristeza.

- O que fiz foi por amor - tentei me convencer.

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De repente, Gustavo parou de se mexer,

parou de respirar, aos poucos se tornou frio. Desesperei-me ao ter a certeza de que este não acordaria mais. Chorei compulsivamente e descontei meu ódio no gato. A culpa era dele, não?

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Sem Sentido

Ás vezes eu me pego pensando Refletindo, viajando

O que eu vim fazer nesse mundo? Sem sentido, sem rumo

Não existem motivos para sorrir

Qualquer coisa me faz perder o chão É como se ninguém pudesse ver ouvir

O que tem do outro lado da solidão

Num rebelde olhar Encontro-me uma garota solitária

Amando quem nunca me deu valor

Afogando-me na ilusão de amar Para quem vê, uma coisa hilária

Eu ter capacidade de sentir amor dor

Por trás do meu ato de violência Existe minha voz melancólica

Pedindo socorro a quem puder me dar

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Sentindo na morte a essência Da amarga tortura

Do outro não me amar

Coisa sem sentido Por trás de um gato maldito Pode existir alguém amigo?

É assim que roda o mundo?

Cheio de pessoas com sentimentos imundos Acreditando em amores profundos?

Natasha O’Delly

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