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SOBRE A ECONOMIA COMPORTAMENTAL Por ANA MARIA BIANCHI Professora Titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo desde 1976, onde ministra as disciplinas de Metodologia Econômica e Sociologia Econômica. No período mais recente tem se dedicando à história do pensamento econômico, particularmente à obra de Albert Hirschman, sobre o qual publicou artigos em periódicos nacionais e internacionais. Tem também realizado pesquisas na área de economia comportamental. Faz parte atualmente da coordenação do blog Economia Comportamental (www.economiacomportamental.org). Uma das descobertas mais consagradas da economia comportamental diz respeito à moldura (framing) das alternativas percebidas pelo tomador de decisão. A primeira formulação teórica dessa descoberta foi feita em um dos artigos mais citados da Econometrica, publicado por Daniel Kahneman e Amos Tversky em 1979. Assim, duas mensagens que contêm a mesma informação, mas são apresentadas de forma diversa, têm diferentes reflexos na escolha. Essa constatação inspirou intervenções que, embora simples, mostraram-se efetivas, quando seu impacto é medido em função de seu custo. Os formuladores de campanhas de vacinação, por exemplo, apoiaram-se na constatação de que é mais eficaz dizer à pessoa que, se ela tomar vacina, terá menos chance de contrair determinada doença, do que dar a mensagem inversa, de que sua probabilidade de ficar doente aumentará se ela não tomar vacina. À luz das conclusões da pesquisa experimental, construiu-se um arcabouço melhor para transmitir ao indivíduo informações que podem levá-lo a adotar medidas vantajosas para sua saúde. A importância das molduras nas escolhas humanas combina-se com outro ensinamento da economia comportamental, segundo o qual as pessoas tendem a responder aos estímulos de maneira automática, sem acionar seu sistema reflexivo. O relatório 2015 do Banco Mundial ("Mente, sociedade e comportamento") traz evidências de que estabelecer defaults (escolhas predeterminadas) é uma boa estratégia na arquitetura de escolha, e pode constituir uma maneira eficiente de introduzir mudanças de comportamento. Um exemplo disso provem de pesquisas que comparam as taxas de adesão a campanhas de doação de órgãos em diferentes países. Constatou-se que os países onde há mais doadores potenciais são aqueles em que todos os cidadãos são automaticamente considerados doadores, a menos que manifestem intenção explícita em sentido contrário. Resultado semelhante inspirou a decisão de fazer testes de HIV automaticamente para todas as amostras de sangue coletadas em laboratório. Em ambos os casos, a política adotada tem uma cláusula opt-out, ou

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Fundamentos da Economia Comportamental e como trabalhar com essa inovadora ferramenta.

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SOBRE A ECONOMIA COMPORTAMENTAL

Por ANA MARIA BIANCHI

Professora Titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo desde 1976, onde

ministra as disciplinas de Metodologia Econômica e Sociologia Econômica. No período mais recente

tem se dedicando à história do pensamento econômico, particularmente à obra de Albert

Hirschman, sobre o qual publicou artigos em periódicos nacionais e internacionais. Tem também

realizado pesquisas na área de economia comportamental. Faz parte atualmente da coordenação do

blog Economia Comportamental (www.economiacomportamental.org).

Uma das descobertas mais consagradas da economia comportamental diz

respeito à moldura (framing) das alternativas percebidas pelo tomador de decisão.

A primeira formulação teórica dessa descoberta foi feita em um dos artigos mais

citados da Econometrica, publicado por Daniel Kahneman e Amos Tversky em

1979.

Assim, duas mensagens que contêm a mesma informação, mas são

apresentadas de forma diversa, têm diferentes reflexos na escolha. Essa

constatação inspirou intervenções que, embora simples, mostraram-se efetivas,

quando seu impacto é medido em função de seu custo. Os formuladores de

campanhas de vacinação, por exemplo, apoiaram-se na constatação de que é mais

eficaz dizer à pessoa que, se ela tomar vacina, terá menos chance de contrair

determinada doença, do que dar a mensagem inversa, de que sua probabilidade de

ficar doente aumentará se ela não tomar vacina. À luz das conclusões da pesquisa

experimental, construiu-se um arcabouço melhor para transmitir ao indivíduo

informações que podem levá-lo a adotar medidas vantajosas para sua saúde.

A importância das molduras nas escolhas humanas combina-se com outro

ensinamento da economia comportamental, segundo o qual as pessoas tendem a

responder aos estímulos de maneira automática, sem acionar seu sistema

reflexivo. O relatório 2015 do Banco Mundial ("Mente, sociedade e

comportamento") traz evidências de que estabelecer defaults (escolhas

predeterminadas) é uma boa estratégia na arquitetura de escolha, e pode

constituir uma maneira eficiente de introduzir mudanças de comportamento. Um

exemplo disso provem de pesquisas que comparam as taxas de adesão a

campanhas de doação de órgãos em diferentes países. Constatou-se que os países

onde há mais doadores potenciais são aqueles em que todos os cidadãos são

automaticamente considerados doadores, a menos que manifestem intenção

explícita em sentido contrário. Resultado semelhante inspirou a decisão de fazer

testes de HIV automaticamente para todas as amostras de sangue coletadas em

laboratório. Em ambos os casos, a política adotada tem uma cláusula opt-out, ou

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seja, o indivíduo pode rever a decisão de doar sangue,ou recusar-se a ter seu

sangue testado para HIV, se esta for sua preferência manifesta.

No século XXI, a economia comportamental assumiu um papel importante na

economia do desenvolvimento, do ponto de vista da orientação da pesquisa

aplicada e, consequentemente, na sustentação teórica de políticas e programas.

Crítica da teoria ortodoxa, a economia comportamental postula que as falhas na

política de desenvolvimento decorrem de uma visão equivocada sobre o ambiente

em que seus potenciais beneficiários tomam decisões. Experimentos de campo

tornaram-se ferramentas úteis para se pensar em políticas mais efetivas,

formuladas com base em diagnósticos realistas das condições concretas.

O relatório de 2015 do Banco Mundial parte da premissa de que a pobreza

não se resume à simples falta de dinheiro, uma vez que, mais do que representar

uma privação de recursos, ela reduz os graus de liberdade de escolha dos agentes.

A situação de pobreza cria modelos mentais que acarretam para as pessoas

dificuldade de enxergar seu próprio potencial e tirar proveito das oportunidades

eventualmente disponíveis. Elaborado por uma equipe extensa e multidisciplinar,

o relatório inspirou-se na economia comportamental para refletir sobre o processo

de decisão humano, em toda sua complexidade. Ele compila um grande conjunto de

resultados de pesquisas realizadas em muitas partes do mundo, inclusive em

bolsões de pobreza situados nos países desenvolvidos.

A abordagem de capabilities, proposta por Amartya Sen e absorvida pela

economia comportamental, é um dos pilares teóricos dessa nova orientação.

Questiona-se a possibilidade de as pessoas sujeitas a determinados

constrangimentos serem efetivamente livres. A pobreza torna as decisões diárias

difíceis para os indivíduos afetados, pois cria um “imposto” sobre os recursos

mentais que precisam mobilizara cada momento. Essa percepção permite que os

profissionais envolvidos em projetos de desenvolvimento disponham uma base

melhor para sugerir intervenções inovadoras, capazes de levar as pessoas a adotar

uma série de comportamentos funcionais no combate à pobreza: poupar, aderir a

campanhas preventivas na área da saúde, aumentar a produtividade de seu

trabalho, conservar energia, manter seus filhos na escola, colaborar na

manutenção de bens públicos, participar da vida política, e assim por diante.

Outro resultado interessante exposto no relatório do Banco Mundial é o caso

de um campanha de conservação de água em Bogotá. Em 1997, diante do quase

colapso do túnel que abastecia a cidade colombiana, o governo local divulgou um

alerta sobre a gravidade da situação e o risco iminente de desabastecimento. Sua

estratégia de comunicação, porém, teve o efeito contrário ao esperado, resultando

em aumento no consumo de água na população, que se sentiu ameaçada. O

governo decidiu então mudar sua estratégia, concebendo uma campanha de

esclarecimento em três etapas. Na primeira delas, a situação crítica do reservatório

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de emergência passou a ser divulgada diariamente na mídia. Na segunda etapa o

governo promoveu campanhas para ensinar aos moradores técnicas mais eficazes

para economizar água. Mobilizou para isso voluntários de diversos segmentos

sociais, inclusive jovens que visitavam pessoalmente as moradias. Finalmente, na

terceira etapa, o governo adotou mecanismos de recompensa e punição, com a

concessão de prêmios às unidades domésticas que conseguiram reduzir

significativamente seu consumo, bem como exposição pública de casos de grandes

desperdícios. O êxito dessa campanha de comunicação é um exemplo concreto de

como intervenções sociais podem fomentar o aprendizado social e estimular

comportamentos cooperativos.

Outro achado importante da economia comportamental é a constatação de

que as escolhas individuais são balizadas por normas, e são afetadas pela presença

de redes sociais. A lógica dessa constatação inspirou programas voltados para o

desenvolvimento comunitário, que têm evidenciado que um maior envolvimento

na comunidade tem impacto positivo sobre a sustentabilidade dos recursos, a

qualidade da infraestrutura e a provisão de serviços de saúde e educação. No

Líbano, um programa destinado a aumentar a frequência da amamentação

materna treinou mulheres que haviam sido bem sucedidas em amamentar seus

filhos para servir como “mães de apoio” na comunidade, fomentando o

aprendizado social.

De forma semelhante, redes sociais podem amplificar os efeitos de uma

campanha de informação, ao incentivarem a adoção de novos produtos e serviços.

Na China, um experimento randomizado mostrou que a propensão dos

agricultores a comprar seguro contra adversidades climáticas crescia

significativamente ao tomarem conhecimento de que algum de seus amigos havia

participado de uma palestra sobre os benefícios desse tipo de seguro.

Vários problemas detectados nas populações pobres foram objeto de estudo

das pesquisas relatadas pelo Banco Mundial: dificuldade de manter crianças na

escola, resistências à vacinação infantil, dificuldade de lidar com recursos

financeiros, falta de acesso a crédito, incapacidade de raciocinar com metas de

longo prazo etc. A tendência a procrastinar, que leva ao desconto hiperbólico do

futuro, é uma constante nos seres humanos, mas tende a acentuar-se em ambientes

de carência e incerteza. Para a economia comportamental, esses problemas

decorrem de constrangimentos institucionais e cognitivos, que compreendem altos

custos de transação, falta de confiança nas instituições, dificuldade de enxergar o

futuro, dificuldade de manter compromissos críveis, bem como molduras que

limitam a percepção de oportunidade se inibem aspirações.

Ao pesquisar a manifestação empírica desses problemas e conceber medidas

destinadas a solucioná-los, a economia comportamental dá uma contribuição

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importante para a dimensão aplicada da economia do desenvolvimento,

orientando o desenho e a implementação de políticas mais efetivas.