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Sobre a intervenção socio-urbanística na cidade consolidada. O caso da Mouraria em Lisboa Marluci Menezes 1 1 LNEC, Av. do Brasil, n.º 101, 1700.066, Lisboa, [email protected] Palavras-chave: intervenção socio-urbanística, desenvolvimento social, sustentabilidade. Sumário: Inscrita na continuação de um trabalho de pesquisa e apoio técnico-metodológico à intervenção urbana, esta reflexão representa a afirmação de uma perspetiva socio-ecológica fundamental de abordagem e também um contributo para a identificação de novas linhas de pesquisa. Discute-se aqui determinados aspetos das várias dimensões que constituem o campo da relação entre soluções técnicas de intervenção, necessidades sociais, património cultural e urbano, memória e práticas sociais. É tomada como exemplo de discussão a intervenção urbana no Bairro da Mouraria, em Lisboa. 1. ECOLOGIA SOCIAL DA INTERVENÇÃO URBANA EM PERSPETIVA No âmbito de uma perspetiva socio-ecológica de estudo da questão urbana a partir dos processos de intervenção, o trabalho que se apresenta enquadra-se numa proposta mais alargada de reflexão, entretanto vocacionada para o estudo das interconexões existentes (e as possíveis de implementar) entre as práticas socioculturais e os significados atribuídos ao espaço, e os processos de conceção e implementação de projetos de intervenção urbana. Os objectivos gerais desta reflexão, enquadrada numa proposta integrada de melhoria da qualidade de vida urbana, visam contribuir para a consolidação de um conhecimento que perspetive o desenvolvimento de uma dinâmica multidimensional, interativa e sustentável de intervenção (cf. Fig 1). Fig. 1: Objetivos gerais da perspetiva de trabalho a desenvolver Uma reflexão processual e contextualizada em torno das relações entre cidade, sociedade, cultura e intervenção socio-urbanística, revela-se como uma estratégia para inovar, aprofundar e enriquecer o leque de trabalhos relacionados com esta questão, designadamente aquela que se configura no âmbito de contextos urbanos já existentes [1]. Como gerir a conflituosa relação entre desenvolvimento social e urbano, e conservação do património cultural? Em que reside a sustentabilidade social, económica, físico-ambiental e cultural das dinâmicas encetadas pelo que parece ser reincidentes processos de intervenção urbana? Muito embora se verifique uma maior preocupação com as dimensões socioculturais do espaço no âmbito dos projetos de intervenção urbana, julga-se de interesse complexificar o papel que estas dimensões detém (ou Reforçar as competências técnicas no apoio ao desenvolvimento e à (re)qualificação dos processos de intervenção socio-urbanística dos sistemas urbanos construídos Articular o conhecimento técnico-científico com o processo de intervenção Aperfeiçoar metodologias interativas e socio-ecológicas de abordagem dos contextos de intervenção Colaborar na formulação de respostas aos problemas suscitados, apoiando a tomada de decisão

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Sobre a intervenção socio-urbanística na cidade con solidada. O caso da Mouraria em Lisboa

Marluci Menezes 1

1 LNEC, Av. do Brasil, n.º 101, 1700.066, Lisboa, [email protected]

Palavras-chave: intervenção socio-urbanística, desenvolvimento social, sustentabilidade.

Sumário: Inscrita na continuação de um trabalho de pesquisa e apoio técnico-metodológico à intervenção urbana, esta reflexão representa a afirmação de uma perspetiva socio-ecológica fundamental de abordagem e também um contributo para a identificação de novas linhas de pesquisa. Discute-se aqui determinados aspetos das várias dimensões que constituem o campo da relação entre soluções técnicas de intervenção, necessidades sociais, património cultural e urbano, memória e práticas sociais. É tomada como exemplo de discussão a intervenção urbana no Bairro da Mouraria, em Lisboa.

1. ECOLOGIA SOCIAL DA INTERVENÇÃO URBANA EM PERSPETIVA

No âmbito de uma perspetiva socio-ecológica de estudo da questão urbana a partir dos processos de intervenção, o trabalho que se apresenta enquadra-se numa proposta mais alargada de reflexão, entretanto vocacionada para o estudo das interconexões existentes (e as possíveis de implementar) entre as práticas socioculturais e os significados atribuídos ao espaço, e os processos de conceção e implementação de projetos de intervenção urbana. Os objectivos gerais desta reflexão, enquadrada numa proposta integrada de melhoria da qualidade de vida urbana, visam contribuir para a consolidação de um conhecimento que perspetive o desenvolvimento de uma dinâmica multidimensional, interativa e sustentável de intervenção (cf. Fig 1).

Fig. 1: Objetivos gerais da perspetiva de trabalho a desenvolver

Uma reflexão processual e contextualizada em torno das relações entre cidade, sociedade, cultura e intervenção socio-urbanística, revela-se como uma estratégia para inovar, aprofundar e enriquecer o leque de trabalhos relacionados com esta questão, designadamente aquela que se configura no âmbito de contextos urbanos já existentes [1]. Como gerir a conflituosa relação entre desenvolvimento social e urbano, e conservação do património cultural? Em que reside a sustentabilidade social, económica, físico-ambiental e cultural das dinâmicas encetadas pelo que parece ser reincidentes processos de intervenção urbana?

Muito embora se verifique uma maior preocupação com as dimensões socioculturais do espaço no âmbito dos projetos de intervenção urbana, julga-se de interesse complexificar o papel que estas dimensões detém (ou

Reforçar as competências técnicas no apoio ao desenvolvimento e à

(re)qualificação dos processos de intervenção socio-urbanística dos

sistemas urbanos construídos

Articular o conhecimento técnico-científico com o processo de intervenção

Aperfeiçoar metodologias interativas e socio-ecológicas de abordagem dos

contextos de intervenção

Colaborar na formulação de respostas aos problemas suscitados, apoiando a

tomada de decisão

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podem vim a deter) nos processos de conceção, planeamento, decisão e implementação da intervenção propriamente dita. Interessa-nos, assim, estudar determinados aspetos das várias dimensões que constituem o campo da relação entre soluções técnicas, necessidades sociais de bem-estar, património cultural e urbano, memória e práticas sociais, o que define os objetivos específicos desta reflexão.

Em síntese, a ideia é identificar interesses de estudo ligados à uma perspetiva de investigação-ação a explorar e aprofundar futuramente. A dinâmica de intervenção urbana no Bairro da Mouraria, em Lisboa, constitui, assim, o caso exemplar para apoiar o desenvolvimento desta reflexão.

2. A MOURARIA COMO OBJETO DE REABILITAÇÃO URBANA

O sítio de inserção da Mouraria liga-se à história de Lisboa e que até ao séc. XVI teve o centro do poder na proximidade desta zona. Mouraria é uma designação que deriva de uma deliberação decorrente da reconquista cristã da cidade (em 1147) e que inventou o arrabalde (gueto) dos mouros que não quiseram sair da cidade.

Urbanisticamente este sítio ficou inalterado até meados do século XX quando, entre os anos 30-60, se tornou objecto de uma política urbana promulgadora de um urbanismo difusor de uma perspectiva de higienização e embelezamento que pretendia renovar certas zonas da cidade, alterando radicalmente as dinâmicas socioculturais, populares e urbanas locais. De entre as demolições efetuadas em Lisboa, foi particularmente incidente as seguintes: (1) a quase totalidade da baixa da Mouraria, entretanto densamente edificada, dando lugar a um largo mais tarde designado por Martim Moniz – entretanto ocupado por escombros, lixo e como lugar de estacionamento informal para, em 1997, ser finalmente transformado em praça (cf. Figuras 2 a 6); (2) a da antiga Praça da Figueira, designadamente do mercado ali existente (localizada na proximidade da baixa da Mouraria).

Figura 2: Áreas demolidas na Mouraria no decorrer dos anos 30-60 (1.ª) Antigo arco do Palácio do Marques do Alegrete – uma das entradas na cidade; (2.ª) Parte da destruição na zona envolvente da Igreja da N.ª Senhora da Saúde, sendo os prédios situados a esquerda posteriormente demolidos; (3.ª) Largo do Martim Moniz por

volta dos anos 50; (4.ª) Largo do Martim Moniz nos anos 70.

Figura 3: Ideias para o Largo Martim Moniz entre os anos 30-70

Figura 4: Maquete da Praça Martim Moniz (construída

em 1997)

Figura 5: Vista da Praça M. Moniz com 44 quiosques

em aço (em 2000)

Figura 6: Vista aproximada dos quiosques da Praça

(2000)

Figura 7: Maqueta da Praça com tendas do Mercado de

fusão (2012)

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Objeto de um pretenso urbanismo civilizador a Mouraria, entretanto sobreviveu, embora debilitadamente, às demolidoras ações perpetradas entre os anos 30-60, para finalmente – desde meados de 1980 – constituir-se como “objeto de reabilitação urbana” [2], na sequência da evolução processual e conceitual experienciada pela dinâmica de intervenção na cidade existente, conforme vivenciada em outros núcleos históricos europeus. O processo de reabilitação urbana irá contribuir para a reconstrução social da realidade simbólica e da imagem urbana do bairro e, no decurso das ações implementadas, tal terá implicações na definição de novas fronteiras socio-espaciais e na invenção de uma imagem patrimonial e histórica que, inclusivamente, terá repercussões na própria invenção das tradições do bairro.

Todavia, apesar de os princípios de intervenção se terem alterado ao longo dos anos, a Mouraria manteve as suas inúmeras contradições e heterogeneidades (cf. Fig. 8) – envelhecimento da população a par da renovação trazida com os imigrantes, degradação e precariedade das condições de habitabilidade, comércio formal/informal, tráfico e consumo de drogas, prostituição, sem-abrigo, etc. [3, 4] –, justificando a subsistência do bairro como um continuo “objeto” de intervenção urbana [5, 6].

Figura 8: Contradições e heterogeneidades socioculturais da Mouraria

No que respeita à atual faceta da intervenção no bairro, destaca-se o Programa de Ação Mouraria, cuja “intervenção de maior visibilidade e indutora de novos comportamentos será a requalificação do espaço público” (cf. Fig. 7), havendo para efeito da dimensão social da intervenção um Plano de Desenvolvimento Comunitário [7]. Aqui, o espaço público urbano e a cultura assumem um expressivo papel como motor de mudança e de criação de uma nova centralidade em Lisboa, o que parece ser uma tentativa de inversão da recorrente tendência do bairro para manter-se à margem, ainda que com tantos anos de intervenção.

O Programa de Ação Mouraria se enquadra na Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa – 2011/2024” [8] Este Programa é apresentado no site da Câmara Municipal de Lisboa (CML) [7] do seguinte modo: “Face a um quadro de problemas sócio-urbanísticos geradores de exclusão identificados no bairro da Mouraria, sendo os mais evidentes a degradação do edificado e do espaço público, o envelhecimento da população, as carências económicas das famílias e a prática de comércios ilícitos, foi desenvolvido o Programa de Acção (PA) Mouraria: as cidades dentro da cidade, constituído por um conjunto de operações com vista ao reforço dos aspectos positivos do bairro, de que são exemplo o património material e imaterial, a actividade económica, a vitalidade populacional e a multiculturalidade”. No âmbito deste Programa, a “intervenção de maior visibilidade e indutora de novos comportamentos” está relacionada com a requalificação do espaço público, esperando-se que tal viabilize “a divulgação da Mouraria nas rotas turísticas (…) com a criação de um Percurso Turístico-Cultural”, para o qual também contribuirá a intervenção em determinados edifícios “identificados como estruturas identitárias” [7]. Entre as ações programadas, chama-nos a atenção a da “dimensão identitária e de integração”, entretanto materializada pela ação designada como “Corredor Intercultural” e cujo objetivo é “funcionar como uma caixa de ressonância de valorização transversal da interculturalidade”, através de acções específicas como: o festival multicultural “Há Mundos na Mouraria”, a promoção da gastronomia árabe e galega e da que “resulta da miscigenação étnica e cultural” e ainda acções de “carácter cultural e de transmissão de conhecimento”, no sentido de aproximar a “população habitualmente considerada inculta a formas de expressão incluídas no que habitualmente se designa por cultura” [7].

No que se reporta a Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa – 2011/2024, refira-se que o “novo paradigma de planeamento e gestão da cidade passa por dar prioridade a regenerar a cidade existente, reabilitar o que está em mau estado, reutilizar o que está devoluto, qualificar a cidade consolidada”, designadamente quando de um diagnóstico da situação que detecta um conjunto de pontos críticos [8], entre os quais se destacam os seguintes:

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• Decréscimo populacional, do qual é relevante a perda de aproximadamente 300 mil habitantes entre 1980 e 2001;

• Elevada taxa de envelhecimento (a mais elevada da Área Metropolitana de Lisboa – AML), a par de uma taxa negativa de crescimento natural e que decorre de uma baixa proporção de jovens;

• Elevada taxa de degradação dos edifícios, a par de uma elevada taxa de fogos devolutos, muito embora a cidade esteja consolidada em 82% da sua área urbanizável;

• Um parque edificado e habitacional diversificado e a necessitar de obras de conservação e de reabilitação, incluindo desde os bairros históricos, aos bairros municipais, conjuntos de edifícios e edifícios isolados;

• Ineficácia das políticas de reabilitação até então prosseguidas no sentido de criarem condições de acompanhamento da dinâmica continuada de degradação dos espaços públicos urbanos, de uma melhoria efetiva das condições de habitabilidade, de provimento de equipamentos sociais, de minimização dos riscos de incêndio e sismo, a par da necessidade de uma intervenção mais adequada face às características socio-demográficas da população, entretanto envelhecida, às condições socio-económicas dos residentes e às actividades económicas instaladas;

• A premente necessidade de que a agilização do processo de licenciamento urbanístico se verifique a par da “simplificação e transparência das regras urbanísticas, de programas de apoios financeiros e de incentivos fiscais para clarificar as relações entre os diferentes actores” [8];

• Os efeitos perversos do congelamento das rendas, a par da descapitalização dos proprietários e do “prolongado escalonamento das actualizações no caso da realização de obras de reabilitação” [8].

Assinala-se aqui a persistência de um conjunto de problemas sociais e urbanísticos, nomeadamente quando Lisboa se constitui como “objeto de reabilitação urbana” [2] desde meados de 1980. Neste sentido, questiona-se em que medida as perspectivas de intervenção urbana que se têm apoiado no prefixo “re” se encontra plasmada uma reflexão aturada – e em que medida informada – sobre as múltiplas implicações que as intenções de reabilitar, revitalizar, redinamizar, requalificar, regenerar e reconverter, podem ter nas dinâmicas socioculturais.

A complexidade das problemáticas que se colocam à reabilitação urbana torna particularmente relevante uma análise cuidada e avaliativa da dinâmica até então encetada, deste modo prevendo cenários mais sustentáveis da situação [9]. Refira-se que para o caso da cidade do Porto, José Queirós [10] discute as gerações de reabilitação urbana ali prosseguidas e questiona o papel que caberá aos habitantes na atual estratégia de reabilitação e se aos mesmos será dada a oportunidade de ali continuarem a viver ou terem de ir para a periferia, a par da necessária melhoria das condições de vida e de habitabilidade destes habitantes. O autor ainda questiona sobre como que a reabilitação prosseguida naquela cidade prevê a forma como a periferia será afetada. Refira-se ainda que as gerações de reabilitação urbana prosseguidas na cidade do Porto são, de acordo com o autor, as seguintes: “1.ª Geração / Pós-25 de Abril de 1974 – impulso revolucionário, participação popular e intervenção social e direito à cidade, defesa do património edificado, da história e das identidades locais (…); 2.ª Geração / década de 1990 – museificação versus reconversão urbanística, estratégias de patrimonialização e internacionalização, reconfiguração da imagem da cidade, turismo, cultura e grandes eventos (…); 3.ª Geração (desde 2002) – urbanismo competitivo; institucionalização das intervenções; grandes projetos de reconversão urbanística; gentrificação; turismo, cultura e atividades de elevado valor acrescentado (…)” [10].

3. A INTERVENÇÃO URBANA COMO OBJETO DE REFLEXÃO

A intervenção urbana pode ser concebida como um fator de desenvolvimento da sociedade, onde o ato de intervir prefigura a conciliação “entre o construir da sua própria contemporaneidade e a necessidade de conservar as memórias e a cultura dos lugares urbanos” [11], contribuindo assim para “reaver o bom conceito de cidade, o crédito de que a cidade dispunha e restituí-la à estima pública” [12]. O que evidencia a importância da “resolução prioritária das questões que interessam às pessoas a quem a área diz diretamente respeito – os seus interesses legítimos, problemas, capacidade, relações sociais e valores próprios, dificuldades de realização do quotidiano, exigências de qualidade e de apropriação dos espaços de vida, necessidade de

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informação, sociabilidade e de progresso económico – e na aplicação dos seus recursos, iniciativas e capacidades de organização e realização” [12].

Numa perspetiva de desenvolvimento de abordagens e intervenções integradas, estas preocupações permitem, enfim, ressaltar as questões ligadas ao planeamento, à justiça social e à participação social. O que, de acordo com Thomas Sieverts [13], infere uma melhor contextualização do papel do urbanista contemporâneo, o que realça a correlação deste papel com uma maior politização do projeto urbano. Para o autor, isto implica o abandono de deduções primárias ao nível dos programas e necessidades, nomeadamente porque vivemos em contexto de incerteza. Por um lado, isto significa o desenvolvimento de um trabalho diretamente ligado às novas oportunidades sociais e culturais. Por outro lado, evidencia a necessidade de pesquisa sobre as novas potencialidades e os aspectos mais atrativos de um ponto de vista político “sob a forma de margem de manobra e de preposição” do planeamento urbano, de modo a relevar as questões ligadas à justiça social – ao que se consideraria que também as questões ligadas à justiça espacial [13].

O ato de intervir na cidade consolidada coloca desafios, como por exemplo, a necessidade da cuidada e equilibrada gestão das partes interessadas no que respeita as ambiguidades que emergem da conflituosa relação entre promoção de desenvolvimento urbano e conservação do património cultural [9, 14]. Conforme observado por António Arantes [15]:

“É preciso enfatizar que o patrimônio como recurso não se encontra necessariamente vinculado ao mundo dos grandes negócios e à especulação. É certo que grandes-empreendimentos imobiliários, urbanísticos e turísticos se valem dessa tendência e a estimulam. Mas é também verdade que programas de geração de renda, de consolidação da cultura pública e da cidadania buscam eficácia no fortalecimento de tudo aquilo que a população pode fazer, com os recursos de que dispõe e que tradicionalmente acumulou, nos lugares onde vive e em seus modos de vida diferenciados. O patrimônio serve também para desenvolver a cultura pública e por isso deve ser valorizado: o patrimônio urbano é bom para o desenvolvimento sustentável, para as festas, para a civilidade e também, porque não, para os negócios. O desafio que se apresenta ao sistema como um todo é encontrar o ponto de equilíbrio entre essas forças, ou seja, construir a sustentabilidade econômica e socio-ambiental da preservação.”

Para além de questões meramente técnicas a natureza da intervenção social respeita à conjunturas socio-económicas ciclicamente adversas, à dinâmicas socio-espaciais nem sempre controláveis e à dimensões de natureza ética, cultural e de desenvolvimento de cidadania. Daí que, quando da integração das vertentes sociais com as vertentes físicas da intervenção num projeto que propõe “alterar comportamentos” através da “requalificação do espaço público”, importa ter presente as questões da sustentabilidade social, económica, físico-ambiental e cultural das dinâmicas encetadas pela intervenção urbana. Realça-se, assim, a importância em investir-se no conhecimento, identificação e avaliação dos níveis de significação das questões referidas anteriormente. Mas, sobretudo realça-se a necessidade de uma maior atenção à especificidade das tramas culturais envolvidas com os processos e com os contextos alvos da intervenção.

As relações entre espaço e sociedade são de tal modo estreitas que a sua ruptura pode vir a constituir-se como um grave risco de desagregação social e de ameaça ao desenvolvimento [16]. Assim, o cuidado a ter na adequação entre o social e o espacial, pois ai reside a necessária continuidade (como também um potencial de transferibilidade) para os projetos de desenvolvimento, uma condição que pode ser associada às questões da sustentabilidade urbana. A essência do que aqui se procura enfatizar é a íntima relação entre cultura e espaço, entre organização social e organização espacial, entre cultura e arquitetura, entre sociedade, cultura e projeto de intervenção. Daí a pertinência de promoção e desenvolvimento de uma cultura do projeto que, por seu lado, está intimamente ligada à promoção de uma cultura de sustentabilidade urbana. Interessa, assim, analisar a importância das dimensões socioculturais do espaço no âmbito dos processos de conceção, planeamento, gestão e decisão da ação. O que, por outro lado, complexifica o sistema de ação, implicando analisar mais pormenorizadamente aspectos como [4]:

• Os indivíduos/grupos: a população residente e utente dos locais, trabalhando-as transversalmente, na heterogeneidade das suas práticas e representações, a par da necessária caracterização socio- demográfica.

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• Os espaços: à vizinhança próxima e alargada, reconhecendo as diversas interconexões entre privado e público olhando aos interstícios e aos espaços de transição (da casa ao pátio, do pátio à rua, da rua ao largo, do largo à praça, ao jardim, ao teatro, à fábrica, ao local de consumo, e/ou públicos, privados, semi-públicos, intermédios, de transição, vizinhança próxima e alargada …).

• Os vários âmbitos mobilizados e tocados pela intervenção, promovendo-se a atenção mútua e a integração das vertentes físicas, sociais, culturais, históricas, económicas.

• As culturas técnicas envolvidas no processo de conceção e implementação de propostas de intervenção.

• Os estudos: as pesquisas produzidas nas diferentes vertentes disciplinares, reconhecendo-se e cultivando-se a diversidade dos saberes inerente à complexidade do real.

• As intervenções preexistentes: a valorização e a reflexão crítica sobre a experiência acumulada.

• Os diagnósticos de caracterização e de avaliação elaborados numa perspetiva dinâmica, relacional e flexível, com capacidade de articulação disciplinar/dimensional, desse modo refletindo sobre as relações entre cultura e sociedade, dinâmicas de degradação, segregação e exclusão socio-espacial, auxiliando-nos a identificar, definir e escalonar não apenas a procedência, o sentido e o carácter social dos problemas que afetam a realidade social, como também os recursos e potencialidades que também compõem essa mesma realidade.

• Os projetos como expressões culturais, fenomenológicas e pragmáticas, já que essas diferentes componentes do projeto contribuem para a invenção de novas dinâmicas socio-espaciais/urbanísticas.

Em particular, interessa cuidar da dimensão cultural da sustentabilidade, já que aí parece residir a possibilidade de estabelecer-se uma mediação entre conservar e desenvolver, entre qualificar e promover cidadania através do direito à cidade. Pois, embora a cultura se tenha tornado num instrumento de intervenção urbana, não necessariamente a forma como tem sido mobilizada é indício de desenvolvimento social e urbano sustentável, nomeadamente quando da existência de críticos resultados de patrimonialização, culturalização e gentrificação de contextos urbanos intervencionados sob esta ótica. Isto é, mais do que preocupados com a sustentabilidade cultural, está-se interessado em estudar lógicas, instrumentos e mecanismos que possam contribuir para a criação de uma cultura de sustentabilidade urbana que efetivamente promova o desenvolvimento social, com a devida salvaguarda do património cultural e urbano.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Portas, N. – Notas Sobre a Intervenção na Cidade Existente. Sociedade e Território. 2 (1985) 8-13.

[2] Costa, A.F.; Ribeiro, M.J. – A construção social de um objecto de reabilitação. Sociedade e Território. 10-11 (1989) 85-95.

[3] Menezes, M. – Mouraria, Retalhos de um Imaginário: significados urbanos de um bairro de Lisboa. 1ª Ed., Oeiras: Celta Editora, 2004, 296 p.

[4] Menezes, M. – Património urbano: por onde passa a sua salvaguarda e reabilitação? Uma breve visita à Mouraria. Cidades, Comunidades e Territórios, Lisboa: CET/ISCTE, 11 (2005), 65-82.

[5] Menezes, M. – Todos na Mouraria? Diversidades, desigualdades e diferenças entre os que vêm ver o bairro, nele vivem e nele querem viver. Atas do XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais – CONLAB, Diversidades e (Des)Igualdades, Salvador, 07 a 10 de Agosto de 2011 / Universidade Federal da Bahia (UFBA) http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/

[6] Menezes, M. – Debatendo mitos, representações e convicções acerca da invenção de um bairro lisboeta, /Sociologia/, Revista de Sociologia da Faculdade de Letras do Porto (FLUP), 2012 (no prelo).

[7] http://www.aimouraria.cm-lisboa.pt/

[8] Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa – 2011/2024, CML, Abril de 2011.

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[9] Menezes, M. – Património: O dilema da relação entre preservação e desenvolvimento sociocultural. Atas do Simpósio Património em Construção – Contextos para a sua Preservação. Série RNI 84, LNEC: Lisboa, 2011, pp. 89-96.

[10] Queirós, J. – Estratégias e discursos políticos em torno da reabilitação de centros urbanos. Considerações exploratórias a partir do caso do Porto. Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 91-116.

[11] Aguiar, J., et al. – Conservação e Reabilitação do Património Edificado, Evolução das Necessidades e Qualificações Profissionais. Comunicação para Seminário “Profissões do Futuro”, Póvoa do Varzim, Portugal, 1992.

[12] V. Pereira, M. L. – Reabilitar o Urbano ou como Restituir a Cidade à Estima Pública. Lx: LNEC, ITE 16, 1987, 30p.

[13] Sieverts, T. – Entre-ville. Une Lecture de la Zwischenstadt. Éditions Parenthèses, Paris, 2004.

[14] Menezes, M. – (Re)Questionar a intervenção social na cidade já existente. Atas do Urbicentros II – Morte e Vida dos Centros Históricos, Maceió, Alagoas, 27 de Setembro a 1 de Outubro de 2011.

[15] Arantes, A. O Patrimônio cultural e seus usos: a dimensão urbana. Revista Habitus, 2004, pp. 425-435.

[16] Casal, Y. – Arqueologia, Antropologia e Património. Ethnologia, nº 1-2, Departamento de Antropologia da UNL, Lisboa, 1994.