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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais 22 a 26 de Outubro de 2012 98 SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IAGUAÇU Danillo Alarcon; Douglas de Toledo Piza; Amani Rafic Sleiman; Amira Read Rahal; Bruno Vinicius Nascimento de Oliveira; Dominique Ribeiro Gentil; Fernanda Ferreira Chan 1 Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu. 3 Acadêmicos do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu. Resumo: A despeito de a migração libanesa para Foz do Iguaçu ter se consolidado como presença estrangeira notável, poucos avanços para o conhecimento acadêmico sobre ela foram feitos. Em um reino povoado de estereótipos, o senso comum continua sendo a fonte contumaz de informação sobre esta realidade. Esta comunicação tem a intenção de reconstruir a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu a partir de material pessoal, especialmente a história oral e registros iconográficos. Adota-se a orientação teórico-metodológica da “experiência da microanálise” de Jacques Revel, segundo a qual micro-dados e fontes pessoalizadas podem contribuir para a compreensão de um fenômeno, cotejando a história social e a individual e variando os níveis de análise. Nossa hipótese a partir das entrevistas é que as quatro primeiras famílias chegaram em 1951, na esteira da emigração libanesa devido às penúrias da Segunda Guerra Mundial e à agitação quando da criação do Estado de Israel. São Paulo foi um destino possível, demonstrando a pregnância das redes sociais de migrações anteriores, mas outros preferiram desbravar novos caminhos e chegaram ao oeste paranaense. Pode-se dizer que a reconstrução histórica da migração libanesa por quem dela participam é um resgate à memória coletiva, cujos efeitos são não apenas a reconstituição do traçado familiar dentro da trajetória migratória social do grupo, como uma presentificação de tal história na medida em que recontá- la abre a possibilidade da autoidentificação atemporal individual e grupal a fim de combater os estigmas criados. Neste sentido, dar voz aos migrantes recontarem sua história encerrou na possibilidade de eles a fazerem como justificativa de sua presença histórica e contemporânea. Palavras-chave: Migração; Libaneses; Foz do Iguaçu; Microanálise; História oral. 2 3 3 3 3 3 1

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SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IAGUAÇU

Danillo Alarcon; Douglas de Toledo Piza; Amani Rafic Sleiman; Amira Read Rahal; Bruno Vinicius Nascimento de Oliveira; Dominique Ribeiro Gentil; Fernanda Ferreira Chan

1 Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu.2 Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu.3Acadêmicos do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu.

Resumo: A despeito de a migração libanesa para Foz do Iguaçu ter se consolidado como presença estrangeira notável, poucos avanços para o conhecimento acadêmico sobre ela foram feitos. Em um reino povoado de estereótipos, o senso comum continua sendo a fonte contumaz de informação sobre esta realidade. Esta comunicação tem a intenção de reconstruir a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu a partir de material pessoal, especialmente a história oral e registros iconográficos. Adota-se a orientação teórico-metodológica da “experiência da microanálise” de Jacques Revel, segundo a qual micro-dados e fontes pessoalizadas podem contribuir para a compreensão de um fenômeno, cotejando a história social e a individual e variando os níveis de análise. Nossa hipótese a partir das entrevistas é que as quatro primeiras famílias chegaram em 1951, na esteira da emigração libanesa devido às penúrias da Segunda Guerra Mundial e à agitação quando da criação do Estado de Israel. São Paulo foi um destino possível, demonstrando a pregnância das redes sociais de migrações anteriores, mas outros preferiram desbravar novos caminhos e chegaram ao oeste paranaense. Pode-se dizer que a reconstrução histórica da migração libanesa por quem dela participam é um resgate à memória coletiva, cujos efeitos são não apenas a reconstituição do traçado familiar dentro da trajetória migratória social do grupo, como uma presentificação de tal história na medida em que recontá-la abre a possibilidade da autoidentificação atemporal individual e grupal a fim de combater os estigmas criados. Neste sentido, dar voz aos migrantes recontarem sua história encerrou na possibilidade de eles a fazerem como justificativa de sua presença histórica e contemporânea.

Palavras-chave: Migração; Libaneses; Foz do Iguaçu; Microanálise; História oral.

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SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IGUAÇU

A despeito de a migração libanesa para Foz do Iguaçu ter se consolidado como presença estrangeira notável, poucos avanços para o conhecimento acadêmico sobre ela foram feitos. Em um reino povoado de estereótipos, o senso comum continua sendo a fonte contumaz de informação sobre esta realidade. Esta comunicação tem a intenção de reconstruir a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu a partir de material pessoal, especialmente a história oral e registros iconográficos.

Nossa hipótese a partir das entrevistas é que as quatro primeiras famílias chegaram em 1950, na esteira da emigração libanesa devido às penúrias da Segunda Guerra Mundial e à agitação quando da criação do Estado de Israel. São Paulo foi um destino possível, demonstrando a pregnância das redes sociais de migrações anteriores (TRUZZI, 1993, 2008a e 2008b), mas outros preferiram desbravar novos caminhos e chegaram ao oeste paranaense.

Pode-se dizer que a reconstrução histórica da migração libanesa por quem dela participam é um resgate à memória coletiva, cujos efeitos são não apenas a reconstituição do traçado familiar dentro da trajetória migratória social do grupo, como uma presentificação de tal história na medida em que recontá-la abre a possibilidade da autoidentificação atemporal individual e grupal a fim de combater os estigmas criados. Neste sentido, dar voz aos migrantes recontarem sua história encerrou na possibilidade de eles a fazerem como justificativa de sua presença histórica e contemporânea.

Os perfis dos entrevistados variam e as entrevistas colhidas foram feitas em situações bem diversas. Foram realizadas cinco entrevistas semi-estruturadas e gravadas com pessoas que puderam recontar as histórias de suas próprias vidas ou, através da formação de associações étnicas, das trajetórias sociais dos migrantes em geral, e puderam remontar o início da migração libanesa para Foz do Iguaçu. A escolha por estas pessoas se deveu à proeminência das mesmas dentre os libaneses e seus descendentes.

A primeira entrevista se deu com o provável único vivo dentre as pessoas que conviveram com os primeiros migrantes que vieram para Foz do Iguaçu ainda na década de 1950, Mohamad Ibrahim Barakat. Outras entrevistas foram realizadas com líderes religiosos: o chaikh Mohamad Al-Khalil da Housseynya Al-Khomeini e o chaikh Mehsen Alhassani da Mesquita Omar Ibn Al-Khatab. Ainda foram entrevistados simultaneamente Faisal M. Ismail, Presidente do Centro Cultural Beneficente Islâmico, e Samira Omairi também da instituição. Outra entrevista foi coletada por apenas um dos integrantes do grupo, sendo o informante seu parente. Nestas ocasiões, foi solicitado que os entrevistados trouxessem fotografias de suas histórias familiares em Foz do Iguaçu, cujas cópias nos foram depois cedidas.

Além disso, os integrantes do grupo estreitaram laços com pesquisadores da presença libanesa em Foz do Iguaçu, proporcionando contextos diversos de coleta de dados; inclusive alguns de nós assistimos palestras, discutimos suas opções metodológicas e achados de pesquisas,

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e, testemunhamos suas entrevistas com informantes libaneses ou descendentes, neste caso com uma maior variação etária. Por fim, ressaltamos que a participação de libaneses e descendentes no grupo de pesquisa facilitou tanto o acesso como a interpretação das informações.

POR ENTRE AS LENTES DA REALIDADE

Ao tentar reconstruir a história de um determinado grupo, localizado temporal e espacialmente, o pesquisador se depara com o impositivo de tentar encontrar a melhor forma de narrá-la, de modo que sua realidade possa ser transmitida e interpretada da maneira mais completa possível.

Com o objeto de estudo do presente trabalho não poderia ser diferente. Tentar costurar os retalhos de uma malha tão cheia de pormenores pode não ser tão simples e evidente.

Quando se questiona sobre como reconstruir essa história de forma a não desprezar os detalhes fundamentais que lhe são inerentes, bem como se é possível transitar por uma história pouco retratada sem “pecar” por desconsiderar partes importantes de sua trajetória. Ou ainda sobre como saber quais são essas peças e como alcançá-las.

A primeira resposta que nos ocorre é que, levando em consideração somente o que nos fornecem os livros de história, os resultados atingidos seriam insatisfatórios. Escutar o que os próprios membros da comunidade têm a dizer e mostrar nos parece uma solução, visto que ninguém melhor que os próprios para revelar (consciente ou inconscientemente) detalhes que se perdem nas linhas esquecidas do senso comum com o passar dos anos.

Neste sentido, o presente trabalho é construído a partir de material pessoal e registros iconográficos que podem auxiliar nessa reconstrução. Temos como foco reconstruir a história dessa comunidade a partir de detalhes que só puderam ser captados pelas lentes de quem a viveu ou a apreendeu no seio familiar, contribuindo para a melhor compreensão de sua inserção político-social no contexto da Tríplice Fronteira.

Adotamos, deste modo, a perspectiva da “experiência da microanálise”, de Jacques Revel, que nos dá os instrumentos necessários para tecer essa “malha histórica” sem desconsiderar aspectos que muitas vezes são ignorados pela história convencional.

O conceito da microanálise surge no campo da micro-história, encerrando-se em uma análise que se utiliza da variação entre as perspectivas de análise da macro e da micro-história para recontar determinado contexto. Resgata, a partir de histórias pessoais, dados que a macro-história tem a tendência a desconsiderar devido a sua abrangência. A principal tradição em história social procurava narrar fenômenos sociais amplos e prezava pelas regularidades e por certas leis ou tendências, afastando do individual, do singular, pelo que alguns pesquisadores reagem e propõem “uma tomada de posição frente a um certo estado da história social” (REVEL, 1998, p. 15). Trata-se também da defesa de uma postura interdisciplinar, que permita cruzamentos

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férteis entre domínios metodológicos e entre níveis de análise o mais das vezes separados pela compartimentalização dos saberes e pela institucionalização das áreas de conhecimento, a saber: a história, a psicologia, a antropologia, a sociologia e as Relações Internacionais, dentre outras.

A reivindicação de que a dimensão “macro” não tem nenhum privilégio especial na construção histórica se acompanha do alerta de que tampouco os micro-dados são suficientes, importando apenas a variação entre as duas escalas, e não a escolha de uma em particular (REVEL, 1998, p. 20). Ambas sozinhas seriam incompletas; em associação, trariam um panorama mais detalhado dos fatos históricos. Os indivíduos, não sendo corpos isolados na construção da história social, atuam de maneira mais ou menos presente nos fatos histórico, o que lhes confere a posição de participante, senão “co-criador”, da história.

[...] Cada ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de processos – e portanto se inscreve em contextos – de dimensões e de níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que do ponto de vista micro-histórico oferece[-se] à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades macrossociais [...] (REVEL, 1998, p. 28)

Reivindica-se utilizar as fontes por muito tempo consideradas apenas reveladoras da realidade imediata para compreensão de fenômenos amplos. Zugueib Neto (2008), sobre sua pesquisa acerca da construção identitária individual e coletiva dos drusos durante um contexto de crise política social advindo da guerra civil e religiosa dos anos 1975-1990 no Líbano, afirma que os depoimentos que recolheu entre combatentes e não-combatentes oscilam entre a dimensão pessoal e os fenômenos sociais em que estão imersos. Segundo suas próprias palavras, eles revelam:

[...] um conjunto renovado interior através do qual o sujeito conta sua própria história, quando os eventos ainda quentes, transformam-se em referências simbólicas para sua própria vida. Tempo para transformar a biografia em história. (2008)

Assim sendo, reforçar a análise da presença libanesa em solo iguaçuense com registros pessoais contribui para o entendimento de como a comunidade refletiu os momentos históricos globais, brasileiros e libaneses no cotidiano local, bem como para perceber a maneira pela qual esse legado ressoa no momento atual de sua realidade macrossocial.

Bem compreender a presença deste grupo na cidade pressupõe desvelar as condições que contribuíram para migração. A migração é um fenômeno social complexo, um “fato social total” nas palavras de Abdelmalek Sayad (1998), que se inicia muito antes da chegada do migrante à sociedade de acolhida: um imigrante para um país é sempre um emigrante de outro.

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DANILLO ALARCON; DOUGLAS DE TOLEDO PIZA; AMANI RAFIC SLEIMAN; AMIRA READ RAHAL; BRUNO VINICIUS NASCIMENTO DE OLIVEIRA; DOMINIQUE RIBEIRO GENTIL; FERNANDA FERREIRA CHAN

Ykegaya, em sua pesquisa sobre a construção da identidade étnica dos libaneses, comenta a contribuição de do autor argelino:

Assim, a imigração deve ser pensada também a partir do meio social que a permitiu ser idealizada e operacionalizada, como também do entendimento e interpretação que o imigrante tem de si e de sua própria condição. Vários elementos foram determinantes da decisão de emigrar, ato que tem uma dimensão dramática assumida numa condição de abandono da terra em que se vive, em busca de possibilidades de vida diferentes da atual, como no caso do imigrante libanês. É caracterizada uma situação limite, que não permite às vezes sequer esperanças. (2004)

Ateremo-nos mais a fundo às condições do Estado libanês na época em que o fluxo migratório começa a convergir para a América do Sul, e em especial, para o Brasil.

CONDIÇÕES QUE DETERMINARAM AS MIGRAÇÕES DOS LIBANESES

As migrações desde o território libanês podem ser divididas em dois grandes ciclos distintos (TRUZZI, 1993; YKEGAYA, 2004). O primeiro ciclo, entre 1860 e 1938, deveu-se à repressão do Império Otomano controlador da região e às duas Guerras Mundiais. Foi uma migração composta majoritariamente por cristãos e que chegou a cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, de onde se irradiou para o interior paulista devido à mascateação, e também Buenos Aires e Asunción. O segundo ciclo, que se estende até os dias atuais, teve impulso devido à crise sócio-econômica e às baixas expectativas de melhoria de vida instaladas no após a II Guerra Mundial e criação do Estado de Israel em 1948, e foi fomentada ao longo dos anos por diversos conflitos civis e internacionais. É uma migração especialmente de muçulmanos sunitas e xiitas e de drusos, constitutivo do fluxo que aporta em Foz do Iguaçu.

O Estado libanês tem como marco histórico o fim do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial, e a disposição franco-britânica de “tutelar” os territórios árabes antes sob domínio otomano, alegando que não tinham condições de se tornarem completamente independentes sem antes um período de domínio para que aprimorassem seus instrumentos de Estado (ROGAN, 2009). Na verdade, já existia influência francesa na região desde pelo menos o século XIX, apoiando os grupos maronitas. Para Zugueib Neto e Sahd (2010), o que passou a existir após a guerra de 1914-18 foi um conglomerado de povos tradicionalmente rivais obrigados a viver sob a bandeira francesa, em um único Estado.

As divisões sectárias levaram a diversas visões sobre o destino daqueles povos obrigados a viverem sobre uma mesma bandeira. Os grupos cristãos, por exemplo, apoiavam o mandato francês. Desta feita, a República Libanesa foi fundada em 1926, com uma câmara de representantes eleitos, um senado apontado, uma constituição e um presidente escolhido pelas duas câmaras. Os grupos nacionalistas libaneses tinham várias propostas, desde uma junção

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com a Síria até a busca por independência completa (ROGAN, 2009).

Como apontam Zugueib Neto e Sahd (2010) o ímpeto inicial nacionalista libanês foi um movimento conservador cristão, associados à região do Monte Líbano, autocontrolada desde os anos 1860, que se baseou em diversos mitos e narrativas para dar vazão ao sentimento de que a segurança dos cristãos estava em um Estado separado e independente do controle muçulmano. No Pós-primeira Guerra Mundial, a intervenção francesa pró-Maronitas fez estender o controle cristão para além das áreas do Monte Líbano, aglutinando populações que estavam profunda e irremediavelmente separadas.

Essa mélange de identidades não surtiu os efeitos esperados, pois a identificação com a comunidade e com a religião ultrapassavam qualquer vinculação à ideia de nação. Mesmo a concepção de uma nação era diretamente informada pela concepção que cada grupo confessional tinha de seus mitos formadores.

As divisões sectárias eram demasiado profundas a ponto de questionar constantemente o mandato francês, que enfrentou diversas revoltas e já se previa o fracasso do Estado recém-criado (ZUGUEIB NETO; SAHD, 2010). Em 1943 foi assinado o Pacto Nacional, que selado entre as principais lideranças maronitas, xiitas e sunitas, estabeleceu a atual divisão dos cargos políticos do país em bases confessionais. Foi um passo importante, mas com caráter efêmero, entre elites que já estavam reticentes quanto ao controle francês.

O primeiro confronto civil ocorreu em 1958, não antes sem um lastro de violência sectária e embate direto de propostas e visões do que deveria ser o país, ganhando força os movimentos pan-arabistas com a criação da República Árabe Unida (Egito e Síria). Para Zugueib Neto e Sahd (2010, p. 28), “[o] efêmero embate terminou com uma intervenção militar estadunidense que assegurou o status quo, recalcando e postergando outra vez o atendimento das demandas dos oposicionistas”.

Enquanto isso, nesse mesmo período, a década de 1950, o Brasil estava passando por uma fase de transição entre o período de guerras da primeira metade do século XX e a fase revolucionária comportamental e tecnológica nomeada os “anos dourados”. Sustentada por uma política desenvolvimentista que trouxe um novo estilo de vida para a sociedade brasileira.

No Líbano, as décadas seguintes foram marcadas por uma má distribuição de renda e de recursos de investimentos, o preconceito étnico-religioso, as injustiças sociais e a expulsão dos refugiados palestinos para o país, que acarretaram em uma longa guerra civil que durou quinze anos (1975-1990). Neste período, uma nova onda migratória que tomou mais força após a invasão e ocupação israelense em 1982, dando o surgimento de resistência libanesa contra essa ocupação israelense e a retirada da mesma, a reconstrução do Líbano, a retirada das forças sírias e a nova invasão israelense no sul do Líbano em 2006. Esses são os principais fatores que, na segunda metade do século XX, fizeram com que um número considerável de libaneses

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abandonassem a sua terra em busca de uma melhoria de vida, incentivados pelo seu patriotismo, do qual até hoje não se desapegaram.

O amálgama desses rancores étnicos, do processo colonizador, como apontado por Rogan (2009) e dos novos elementos acrescidos da formação do Estado de Israel levaram ao conflito civil, já citado, que acabou se tornando por outro lado em causa de maior sectarismo, que se perpetua até os dias atuais.

POR QUE FOZ DO IGUAÇU E NÃO OUTRO LUGAR?

Pode-se afirmar que o primeiro destino dos imigrantes libaneses no Brasil foi a cidade de São Paulo. Nesse período, a partir do início do século XX, as consequências da produção do café faziam-se perceptíveis. O ciclo trouxe o desenvolvimento industrial e urbano para o país, especialmente no Sudeste, além de ter trazido também a construção de ferrovias, necessárias para escoar o produto do interior para o litoral. São Paulo, sendo a região onde estas consequências mostravam serem maiores, tornou-se não só ponto de destino de imigrantes europeus, que procuravam melhores condições de vida em terras brasileiras, como também de libaneses, que saiam do Líbano conflituoso em busca de um lugar onde pudessem gerar renda rapidamente para enviar aos parentes que permaneceram na terra natal. A imigração era composta na sua maioria por jovens rapazes, solteiros, que vinham a ser mascates, vendendo sapatos, confecções, entre outros utensílios. Essa ocupação era uma forma de rápida obtenção de capital e ainda permitia uma maior mobilidade a estes, que não se fixavam em um local, permitindo com que se deslocassem por novos territórios para vender seus produtos apesar de não serem muitos os mercadores que se deslocavam para longe do litoral (YKEGAYA, 2004).

Analisando especificamente o caso do entrevistado Mohamad Ibrahim Barakat, migrante libanês que chegou a Foz do Iguaçu em 1961 e conviveu com os primeiros libaneses a chegar à cidade, descobre-se que seu avô, ainda no século XIX, alegadamente o primeiro muçulmano a deixar o vale do Bekaa em 1892, parte de São Paulo onde havia se instalado provisoriamente e começa a percorrer o Brasil mascateando e passa por Foz do Iguaçu, relatando aos familiares sua visita às Cataratas do Iguaçu. Anos depois, em 20 de abril de 1950, seu filho e outros familiares decidem por Foz do Iguaçu.

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Imagem 1: 1961. Viagem ao Paraguai para o casamento de Yosra e Adnan Barakat. Membros das quatro famílias libanesas muçulmanas pioneiras de Foz do Iguaçu (provavelmente todos os libaneses resisdentes

em Foz do Iguaçu estão nesta foto).

Nessa época, Foz não passava de um batalhão de fronteira do exército brasileiro, privilegiada por fazer fronteira com Paraguai e Argentina. Por ser um povoado e estar localizada longe dos grandes centros era inevitável que seus produtos fossem rapidamente vendidos para os habitantes, muitos deles soldados estabelecidos no local, suas famílias, entre outros. É importante ressaltar que, a princípio, os imigrantes libaneses não tinham a intenção de se estabelecer definitivamente no território. No oeste paranaense, a cidade de Guarapuava parecia ser um destino mais atrativo para os migrantes e passou a compor o circuito das redes migratórias.

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Imagem 2: 1961. Chegada de Mohamad Ibrahim Barakat a Foz do Iguaçu. Da esquerda para a direita do leitor: Mohamad Barakat, Adnan Barakat, Yosra Barakat, Khalil Aboughouch e Ibrahim Barakat.

Porém, percebeu-se a possibilidade de (juntamente com a família) se viver bem devido ao potencial do comércio local e futuramente internacional. Dessa forma o caráter da imigração mudou, fazendo os imigrantes trazerem suas famílias e se estabelecerem, reconstituindo suas vidas em um novo território. Consequentemente, amigos e conhecidos deram mais força ao processo, formando a colônia. Foz do Iguaçu pareceu ser um território receptível a novas culturas, por sua localização estratégica e por propiciar novas atuações econômicas. Os ciclos maiores de imigração libanesa iriam ecoar, trazendo consigo maior desejo de inserção a comunidade local, aprendendo o idioma e os costumes, o que inclusive facilitaria o comércio e também o convívio.

De acordo com Ikegaya (2004), dois elementos contribuíram primordialmente para o estabelecimento na cidade, o que estão pormenorizados nas falas dos entrevistados. Primeiro, as possibilidades da vida baseada em uma atividade comercial, o que era culturalmente valorizado devido às dificuldades jurídicas, sociais e linguísticas de outras formas de inserção sócio-econômicas, além de uma transmissão das práticas comerciais de geração em geração. Mas, como se nota, não se trata da mascateação e sim de um desejo de assentamento e possibilidade de explorar a atividade mercantil em uma cidade ainda muito pequena e promissora desde o ponto de vista de desenvolvimento de uma economia urbana. Isso se relaciona com o segundo elemento: o tipo de migração libanesa deste momento, que era familiar e feito por etapas. Ao contrário dos fluxos anteriores, que se baseavam em uma presença masculina peregrina com

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vistas ao acúmulo rápido de pecúlio e retorno ao local de origem, este período comportou o arrefecimento das migrações de retorno e a crescente migração de reagrupamento familiar já em Foz do Iguaçu.

Imagem 3: Aproximadamente 1963. Visita às cataratas do Iguaçu. Da esquerda para a direita do leitor: Yosra Barakat e Najla Barakat. Abaixo: Adnan Barakat. A outra pessoa não pode ser identificada.

Imagem 4: Aproximadamente 1963. Visita à Ponte Internacional da Amizade entre Brasil e Paraguai, inaugurada em 1961 e definitivamente em 1965. A única pessoa identificada é a mulher à esquerda do

leitor: Najla Barakat.

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DANILLO ALARCON; DOUGLAS DE TOLEDO PIZA; AMANI RAFIC SLEIMAN; AMIRA READ RAHAL; BRUNO VINICIUS NASCIMENTO DE OLIVEIRA; DOMINIQUE RIBEIRO GENTIL; FERNANDA FERREIRA CHAN

No primeiro momento da migração para Foz, o número de migrantes ainda pequeno crescia conforme novos membros das famílias pioneiras foram chegando. Somente depois é que o aumento do fluxo migratório se deveu à chegada de novas famílias, e cada vez mais oriundas de outras cidades libanesas.

A cronologia das criações de associações étnicas ajuda a remontar esta história. Em 1963 é criado o Clube Social Árabe, quando os libaneses ainda se resumiam às famílias pioneiras. Há um incremento do fluxo migratório devido à guerra civil libanesa iniciada em 1975 e do aumento das potencialidades da região da Tríplice Fronteira com a criação por decreto da atual Ciudad del Este (feito pelo presidente Stroessner em 1958) e de decisão de torná-la zona franca de importação em 1971, e na década de 1980 são criadas duas associações importantes. O Centro Cultural Beneficente Islâmico de Foz do Iguaçu é criado em 1981 com o objetivo geral de estreitar laços entre os patrícios e, principalmente, de construir uma mesquita que pudesse abrigar o crescente número de fiéis, antes reunidos nas casas dos migrantes de modo rotativo. A Mesquita Omar Ibn Al-Khatab é inaugurada em 07 de outubro de 1988, e em 1998 é inaugurada a Escola Árabe de Foz do Iguaçu vinculada ao Centro Cultural. Em 1984 é inaugurada a Sociedade Beneficente Islâmica de Foz do Iguaçu, que abriga a Housseynya1 Al-Khomeini e que depois estabeleceu a Escola Libanesa Brasileira, em 2002.

Imagem 5: Cerca de 1984. Construção da Mesquita Omar Ibn Al-Khattab

A presença massiva de migrantes ao longo dos anos significou também uma pluralização

1 O local de oração na tradição xiita é chamado pelos muçulmanos de housseynya, embora às vezes seja também chamado de mesquita.

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desta comunidade, com maior diversidade de regiões de origem, profissão religiosa, orientação político-ideológica etc. e rendeu mais complexo o processo de construção da identidade dos libaneses e descendentes na cidade. No geral, a formação identitária, entendida como a identificação individual e a designação coletiva, é resultado de um sentimento de pertença ao grupo que remonta à representação e à memória coletivas. Portanto, compreender quem são os migrantes e seus filhos e netos requer atentar para as classificações simbólicas diversas que unem os indivíduos desta coletividade: localidade de origem, a religiosidade, a língua falada etc.

Os elementos que marcam a autodesignação identitária deste grupo são a inserção sócio-econômica na região (especialmente a profissão de comerciante e a herança simbólica da mascateação), a religião muçulmana e a língua árabe. É interessante entender o mosaico de referências que, segundo Ikegaya (2004), forma a identidade do grupo. A língua cumpre uma função estratégica de dupla busca simbólica: de um lado, reforça a identidade religiosa devido ao fato de o corão ser lido apenas em árabe, e, de outro, remete a um grupo muito maior de pessoas de fala ou etnia árabe. Neste sentido, a própria comunalidade de origem expande-se, reforçando os laços da cidade ou região de origem no Líbano com um sentimento de pertença e uma memória coletiva mais amplos, que transcendem até mesmo a identidade nacional libanesa, e apóia-se no arabismo. Assim, a marca mais forte da identidade individual e grupal é “ser árabe”: denota a pertença a um grupo muito amplo, de cultura e história milenares, ao mesmo tempo em que permite incluir o signo religioso e lingüístico.

Esta forma de olhar para os indivíduos do grupo não diferencia as diversas categorias de classificação e outras clivagens internas, as quais aparecem o mais das vezes de maneira visível apenas dentro do grupo. Trata-se da busca por uma categoria autoatribuída legítima – árabe – que seja abrangente o suficiente para temporária e estrategicamente apagar diferentes classificações que de certo modo separariam os indivíduos do grupo entre si. Mas, internamente, todo e qualquer um destes “árabes” sabe identificar, por exemplo, libaneses de outros nacionais, originários do vale do Bekaa daqueles que vieram do sul do Líbano ou sunitas de xiitas. Posições políticas, lealdade à nacionalidade materna e mesmo atributos fenotípicos são outros elementos diferenciadores dentro do grupo que terminam suspensos na sua forma de autoclassificação para fora dele. Isto reforça a existência do próprio grupo e simplifica a forma de apresentar-se para os demais moradores e transeuntes de Foz do Iguaçu. Não raro é complicado para o olhar externo ao grupo saber corretamente identificá-lo, ainda mais se as diferenciações internas aparecem. Ademais, há na cidade libaneses ou descendentes que não são muçulmanos, bem como muçulmanos vindos de outros países, quer do golfo árabe quer não.

O fator de maior dificuldade contemporaneamente para a construção coletiva desta identidade é a estigmatização do grupo derivada da associação feita entre ele e o financiamento

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do terrorismo internacional, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 20012. A estratégia implícita ou explícita dos primeiros migrantes a chegarem em Foz do Iguaçu foi suprimir as diferenças existentes dentre estes indivíduos para fortalecer os laços existentes e enfrentar as adversidades neste contexto de inserção em uma sociedade e cultura novas, tendência esta que persiste até atualmente. Isto resultou em uma autoapresentação do grupo relativamente homogênea e fundamentada em uma ampla comunidade árabe muçulmana para além do território brasileiro. Porém, no contexto contemporâneo em que há uma confusão generalizada das clivagens internas ao grupo e uma associação imediata dos muçulmanos com o terrorismo, o esforço de construção identitária precisou necessariamente incluir uma explicação mais pormenorizada sobre estes indivíduos.

Sem o intuito de defesa de qualquer ponto de vista referente à questão e trazendo ao conhecimento geral as conclusões prévias sobre as origens e motivos pelos quais cidadãos libaneses chegaram a Foz do Iguaçu, pretendemos contribuir, de alguma forma, com visões mais aprofundadas e refletidas sobre a comunidade, que não somente aquelas carregadas do estigma veiculado habitualmente.

Segundo Erving Goffman (2006, p.11-12), cujos estudos tratam, além de outras questões, sobre o estigma, a sociedade estabelece as formas de categorizar os indivíduos e o conjunto de atributos que caracterizam como correntes e normais nos membros dos grupos estigmatizados. Desse modo, quando a sociedade observa o indivíduo estigmatizado, capta diversas características que se lhe foram imputadas anteriormente, construindo uma visão pré-concebida e depreciativa a seu respeito.

Entretanto, o estigmatizado tem consciência da condição à qual a sociedade o coage. Isso se torna notável nos códigos construídos quando da interação com os indivíduos “normais”, na classificação do autor. São exemplos desses códigos o tipo de apoio que devem prestar aos seus iguais, o tipo de fraternização que mantém com os normais, de quais feitos relacionados aos seus iguais deve orgulhar-se etc. (GOFFMAN, 2006, p. 130). Notou-se durante todas as entrevistas declarações sobre ações construtivas da comunidade em benefício da sociedade iguaçuense ou posicionamentos de tolerância com relação a outras religiões ou nacionalidade, numa espécie de tentativa de provar o caráter pacífico da comunidade como um todo e sua boa inserção no contexto social da cidade e do país.

2 Contribuiu para a reflexão em torno da questão da estigmatização dos libaneses e descendentes a fala de Tupiara Guareschi Ikagaya em sua palestra de 06 de setembro de 2012 na Faculdade Anglo-Americano intitulada “Imigração, identidade e fronteira: libaneses em Foz do Iguaçu/PR”.

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NOTAS CONCLUSIVAS: HISTÓRIA É O PASSADO QUE IMPORTA NO PRESENTE

É sabido pelas ciências sociais que a dinâmica de entrevistas muitas vezes revela mais do que as palavras apenas podem exprimir. Gestos, expressões, silêncios, entrelinhas e intervalos, ditos e interditos. Por vezes, omissões significam mais do que frases inteiras: perguntas que pairam no ar sem respostas evidentes. Especialmente durante as entrevistas ao longo do desenvolvimento desta pesquisa em andamento, foram significativas as respostas dadas às perguntas que não foram feitas.

As perguntas que moviam as entrevistas eram sobre a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu e diziam respeito ao momento da migração, às suas causas e como ela se tornou possível. E as respostas cumpriram esta demanda. Mas também entraram em outro terreno: o da refutação ao estigma imposto sobre esta comunidade estrangeira. O conjunto das entrevistas surpreendeu por apresentarem invariavelmente uma dupla característica: todas elas incorporaram uma resposta gritante à pergunta muda sobre a veracidade da associação com o terrorismo, e, trouxeram a história para o tempo presente, pois a recontaram como forma de legitimar sua presença na cidade e de afastar pelas qualidades desta história migratória um mal que assola a situação atual. Não era nossa expectativa ouvir a percepção que os migrantes e seus descendentes têm de si ou da representação que julgam os outros fazerem deles atualmente.

Parece haver um imperativo de defesa da imagem vinculada ao grupo que, implícita ou explicitamente, criou para os indivíduos uma ligação entre características da migração histórica e os elementos auto-atribuídos de sua construção identitária. Apresentar sua história é uma maneira de auto-apresentação no passado e no presente, e possibilita falar seletivamente do tempo pretérito filtrando os fatos que permitem uma vinculação com um argumento louvável sobre si nos dias atuais. Retomava-se, assim, em cada uma das falas, a história de penúria e dificuldades das condições de emigração bem como o ambiente de hospitalidade e a chegada pautada na solidariedade intra-grupal e inter-étnica para qualificar a relação de respeito às diferenças. Ao mesmo tempo em que se afirmava (o respeito para com) a diferença, era mister desfazer o medo e o preconceito, esclarecer que não havia nesta diferença a conotação negativa e mesmo pejorativa inculcada no fenômeno do terrorismo. A busca de suas próprias origens fortifica e valida as ações presentes dos membros do grupo enquanto tal (ZUGUEIB NETO, 2008).

Os elementos do processo identitário (identidade esta amalgamada caleidoscopicamente pela superposição entre etnia, língua, religião, localidade de origem e nacionalidade) ganham, paradoxalmente, uma dimensão de aproximação com a sociedade iguaçuense. As histórias da escola feitas pelos migrantes incorpora a transição abertamente dita desejável para também o público local. As fundações do Centro Cultural e da Sociedade Beneficente, originalmente

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voltados para a solidariedade étnica, são narradas de maneira a ressaltar o papel atual de formação da identidade pública e íntegra do grupo. Mesmo instituições sociais, como o período sagrado do Ramadan, adquirem contornos de aproximação com os indivíduos de fora do grupo: neste caso, a esperada doação pode ser feita também para pessoas carentes da região, não muçulmanos, como forma de retribuição com a acolhida histórica dos migrantes na cidade.

Nas falas dos entrevistados também ficou evidente a memória da relação de solidariedade de que participaram os migrantes mesmo com indivíduos com quem não se esperava isto acontecer: seja o apagamento das diferenças internas do grupo com relação à religião, local de origem e ideologia política, sejam as aproximações com a maioria numérica de brasileiros que lhes parece diferente tanto quanto os enxerga como diferente, sejam ainda as assim ditas surpreendentes relações com os judeus. Isto tudo é creditado às atribuições culturais brasileiras percebidas em termos de uma sociedade multi-étnica e na ideia de uma democracia racial.

Quando apontamos não apenas para as causas senão também para as consequências da história da migração libanesa, atinamos para os sentidos da narração da trajetória coletiva dos migrantes, feita pelos próprios agentes nas falas recolhidas das entrevistas. Fala-se mais propriamente das causas da imigração e das consequências da forma como ela é contada. Portanto, não se trata de analisar os efeitos da migração para membros deste grupo ou para a sociedade iguaçuense; trata-se de compreender o significado atribuído pelos migrantes de sua história enquanto grupo.

REFERÊNCIAS

FONTES

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ZUGUEIB NETO, Jamil; SAHD, Fabio Bacila. Líbano: nação ou agregado de grupos religiosos? Tensões Mundiais, v. 6, n. 11, 2010.