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Sobre Maura Lopes Cançado e seu livro “Hospício é Deus”. Sobre Maura Lopes Cançado pouco se sabe. Nascida em 1929, em Minas Gerais, ela publicou vários contos no Jornal da Manhã do Rio de Janeiro. Com a publicação de Hospício é Deus (1965) e O sofredor do ver (1968), foi considerada promessa para a literatura brasileira, porém, por ter problemas mentais, passou por inúmeras internações em hospitais psiquiátricos até morrer esquecida em 1993. Hospício é Deus foi escrito ao longo dos cinco meses entre 1959 e 1960, no período em que a autora estava internada pela segunda vez no Centro Psiquiátrico Pedro II (hoje Instituto Nise da Silveira), localizado no bairro do Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro. Construído como um diário, a autora relata seus temores, angústias e sua fascinação em relação à loucura. Ela escreve sobre a sua infância até seu período de internação, e com isso, mostra a dinâmica dos manicômios no Brasil daquela época, contando a maneira de ver e de viver no enclausurada (e muitas vezes não apenas pelas paredes do hospício). Com temáticas que abordam Deus, culpa, sexo, sentimentos e loucura, Cançado é uma vigilante do hospital psiquiátrico. Alguns trechos interessantes: “Aos cinco anos, talvez antes, travei conhecimento com sexo, vendo os animais da fazenda e ouvindo meninas, filhas de empregados. Ensinaram-me a encará-lo como coisa feia e proibida. Passei a me sentir constantemente em falta, por ser grande minha curiosidade sexual. ‘É pecado fazer coisas feias’, diziam- me. Eu sentia grande prazer nas coisas feias. Mais ou menos nesta época me impuseram deus, um ser poderoso, vingativo, de quem nada se podia ocultar. A resistência em me preocupar com a imortalidade da alma. Por que temia ser enterrada viva, ao invés de temer algo mais sério, o julgamento Divino? O inferno me estava reservado, tinha certeza. [...] Diziam-me que os maus iam para o inferno e o sexo era uma vergonha, um ato criminoso. Era sensual, e má, portanto. [...] Eu crescia e cresciam meus temores: o escuro, a note, a morte, o sexo, a vida e principalmente Deus: de quem nada se podia ocultar. ” (P. 19) Diziam: ‘– Devemos amar a Deus sobre todas as coisas’. Sim, concordava com veemência e mentira. Amá-lo como, impiedoso e desconhecido, me espionando o dia todo? Ia me matar quando quisesse, mandar-me para o inferno. Amar a Deus? Deus, meu pai? Ora, a meu pai eu abraçava, pedia coisas, tocava. Como podia ser meu pai um ser quem só tinha notícias além de tudo terríveis? Minhas relações com Deus foram as piores possíveis eu não me confessava odiá-lo por medo da sua cólera. Mas a verdade é que fugia-lhe como julgava possível e jamais o amei. Deus foi o demônio da minha infância.(P. 20) “Acredito ter sido uma criança excepcional, monstruosamente inteligente e sensível, perplexa e sozinha.” (P. 21) Meu marido tudo fez para a nossa separação, mas independente do que fez, havia para separar-nos: minha mansão senhorial, meu ideal soberbo e distante de castelã e principalmente minha solidão.” (P. 24) Teria sido diferente meu modo de ser se meus pais soubessem orientar-me? [...] Faltava-me meios para fugir àquele clima de asfixia. Então eu sonhava.(P.24) “Estar internado no hospício não significa nada. São poucos os loucos. A maioria compõe a parte dúbia, verdadeiros doentes mentais. Lutam contra o que se chama doença, quando justamente esta luta é que os define: sem lado, entre o mundo dos chamados normais e a liberdade dos outros.” (P.27) “O numero de doentes é grande e poucos são os loucos. Dona Auda, dona Mariana, Isaac, Rafael, estes sim, e mais outros. Dona Auda me parece um símbolo sempre existido. Observo sua liberdade de estar presa. [...] Estar no hospício não significa ser superior. O doente, ainda preso ao mundo de onde

Sobre Maura Lopes Cançado e Seu Livro

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Pequenos trechos do livro de Maura.

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Sobre Maura Lopes Cançado e seu livro “Hospício é Deus”.

Sobre Maura Lopes Cançado pouco se sabe. Nascida em 1929, em Minas Gerais, ela publicou

vários contos no Jornal da Manhã do Rio de Janeiro. Com a publicação de Hospício é Deus (1965) e O

sofredor do ver (1968), foi considerada promessa para a literatura brasileira, porém, por ter problemas

mentais, passou por inúmeras internações em hospitais psiquiátricos até morrer esquecida em 1993.

Hospício é Deus foi escrito ao longo dos cinco meses entre 1959 e 1960, no período em que a

autora estava internada pela segunda vez no Centro Psiquiátrico Pedro II (hoje Instituto Nise da

Silveira), localizado no bairro do Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro. Construído como um

diário, a autora relata seus temores, angústias e sua fascinação em relação à loucura. Ela escreve sobre a

sua infância até seu período de internação, e com isso, mostra a dinâmica dos manicômios no Brasil

daquela época, contando a maneira de ver e de viver no enclausurada (e muitas vezes não apenas pelas

paredes do hospício). Com temáticas que abordam Deus, culpa, sexo, sentimentos e loucura, Cançado é

uma vigilante do hospital psiquiátrico.

Alguns trechos interessantes:

“Aos cinco anos, talvez antes, travei conhecimento com sexo, vendo os animais da fazenda e ouvindo

meninas, filhas de empregados. Ensinaram-me a encará-lo como coisa feia e proibida. Passei a me sentir

constantemente em falta, por ser grande minha curiosidade sexual. ‘É pecado fazer coisas feias’, diziam-

me. Eu sentia grande prazer nas coisas feias. Mais ou menos nesta época me impuseram deus, um ser

poderoso, vingativo, de quem nada se podia ocultar. A resistência em me preocupar com a imortalidade

da alma. Por que temia ser enterrada viva, ao invés de temer algo mais sério, o julgamento Divino? O

inferno me estava reservado, tinha certeza. [...] Diziam-me que os maus iam para o inferno e o sexo era

uma vergonha, um ato criminoso. Era sensual, e má, portanto. [...] Eu crescia e cresciam meus temores:

o escuro, a note, a morte, o sexo, a vida – e principalmente Deus: de quem nada se podia ocultar.” (P.

19)

“Diziam: ‘– Devemos amar a Deus sobre todas as coisas’. Sim, concordava com veemência e mentira.

Amá-lo como, impiedoso e desconhecido, me espionando o dia todo? Ia me matar quando quisesse,

mandar-me para o inferno. Amar a Deus? Deus, meu pai? Ora, a meu pai eu abraçava, pedia coisas,

tocava. Como podia ser meu pai um ser quem só tinha notícias – além de tudo terríveis? – Minhas

relações com Deus foram as piores possíveis – eu não me confessava odiá-lo por medo da sua cólera.

Mas a verdade é que fugia-lhe como julgava possível – e jamais o amei. Deus foi o demônio da minha

infância.” (P. 20)

“Acredito ter sido uma criança excepcional, monstruosamente inteligente e sensível, perplexa e

sozinha.” (P. 21)

“Meu marido tudo fez para a nossa separação, mas independente do que fez, havia para separar-nos:

minha mansão senhorial, meu ideal soberbo e distante de castelã – e principalmente minha solidão.” (P.

24)

“Teria sido diferente meu modo de ser se meus pais soubessem orientar-me? [...] Faltava-me meios para

fugir àquele clima de asfixia. Então eu sonhava.” (P.24)

“Estar internado no hospício não significa nada. São poucos os loucos. A maioria compõe a parte dúbia,

verdadeiros doentes mentais. Lutam contra o que se chama doença, quando justamente esta luta é que os

define: sem lado, entre o mundo dos chamados normais e a liberdade dos outros.” (P.27)

“O numero de doentes é grande e poucos são os loucos. Dona Auda, dona Mariana, Isaac, Rafael, estes

sim, e mais outros. Dona Auda me parece um símbolo – sempre existido. Observo sua liberdade – de

estar presa. [...] Estar no hospício não significa ser superior. O doente, ainda preso ao mundo de onde

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não saiu completamente, tratado com brutalidade, desrespeito, maldade mesmo, reage. Tenta agarrar-se

ao mundo de onde não saiu completamente. Apega-se a seus antigos valores, dos quais não se libertou

tranquilo. Principalmente teme: a característica do doente mental é o medo (não o medo das guardas,

dos médicos. O medo de se perder de todo antes de se encontrar).” (P.27)

“25 – 10 – 1959: Estou de novo aqui, e isto é – Por que não dizer? Dói. Será por isso que venho? –

Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada

instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue – e sempre outro. Hospício são as flores

frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro –

como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde – paradas

bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício

é deus.” (P.28)

“Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. É hospício, deus – e tenho

frio.” (P. 32)

“Pareço ter rompido completamente com o passado, tudo começa do instante em que vesti este uniforme

amorfo, ou, depois disso nada existindo – a não ser uma pausa branca e muda. [...] Os dias deslizam

difíceis – custa. Me entrego. E me esqueço.” (P.32)

“Em sua seção padeci no seguinte regime: quarto-forte. Injeção para dormir. Violência das guardas.

Mais quarto-forte. Mais violência das guardas. Quarto-forte (às vezes dormindo no cimento frio). Assim

sucessivamente. Fuga. Comunicação pelo telefone com Carlos Fernando, Maria Alicie e Ferreira

Gullar.” (P.46)

“Se me tornar escritora, até mesmo jornalista, contarei honestamente o que é um hospital de alienados.

Propalam uma série de mentiras sobre estes hospitais: que o tratamento é bom, tudo se tem feito para

minorar o sofrimento dos doentes. E eu digo: É MENTIRA. Os médicos permanecem apenas algumas

horas por dia nos hospitais, e dentro dos consultórios. Jamais visitam os refeitórios. Jamais visitam os

pátios. O médico aceita, por princípio, o que qualquer guarda afirma. Se é fácil desmentir um psicopata,

torna-se difícil provar que ele tem razão. Em prejuízo um ‘não-psicopata’” (P.48)

“As famílias, por mais dedicadas, terminam se cansando dos parentes loucos, a morte deles sendo

mesmo um alívio. É importante este lado da coisa. Mais importante ainda é a humildade imposta ao

doente crônico, obrigando-o a coisa alguma esperar, a não ser a hora ou pouco mais ao lado de quem lhe

é tão caro.” (P. 50)

“O hospício nos dá oportunidade de fazer tudo o que lá fora não nos é permitido (talvez aí esteja a

chave: não suporto lá fora).” (P.51)

“Gostaria de escrever um livro sobre o hospital e como se vive aqui. Só quem passa anonimamente por

este lugar pode conhecê-lo. E sou apenas um prefixo no peito do uniforme. Um número a mais. À noite

em nossas camas, somos contadas como se deve fazer com os criminosos nos presídios. Pretendo

mesmo escrever um livro. Talvez já o esteja fazendo, não queria vivê-lo.” (P.55)

Referências:

CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.

MEIRELES, Maurício. A mineira Maura Lopes Cançado começa a ter sua obra redescoberta. Jornal O

Globo. 14 de abril de 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/a-mineira-maura-lopes-

cancado-comeca-ter-sua-obra-redescoberta-1218427>. Acesso em 14 de abril de 2014.