Soc Dos Intelectuais - Bastos e Botelho

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    O leitor precisa ler de certa forma para ler bem: o autorno deve se ofender com isso, mas, ao contrrio, conceder

    a maior liberdade ao leitor dizendo-lhe: Veja voc mesmose enxerga melhor com esta lente aqui, com aquela ou com

    aqueloutra

    (Marcel Proust, Le Temps Retrouv, 1927)

    O artigo discute a contribuio da obra de Sergio Miceli para a con-solidao nas ltimas trs dcadas de uma rea de pesquisa vol-tada, no mbito da Sociologia da Cultura, especificamente para a anli-se dos intelectuais no Brasil. Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil(1920-45), de 1979, impe-se de modo central nesse programa. Comba-tendo pretenso dos intelectuais de serem portadores de uma missocivilizatria capaz de coloc-los acima dos conflitos na sociedade re-

    presentao que, segundo Miceli, perpassa todo o espectro ideolgicobrasileiro, do conservadorismo ao liberalismo, passando pelo socialis-mo , o livro contribuiu decisivamente para definir os contornos dotratamento sociolgico daquela problemtica. Para o que sem dvidatm concorrido ainda tanto os notveis desdobramentos analticos da-dos a ele pelo autor em pesquisas posteriores, quanto polmica que

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    * Trabalho apresentadono seminrioASociologiadaCulturanoBrasileaObradeSergioMi-celi, realizado na Universidade de So Paulo (USP) nos dias 14, 15 e 16 de setembro de2005.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, vol . 53, no 4, 2010, pp. 889 a 919.

    Para uma Sociologia dos Intelectuais*

    Elide Rugai BastosI

    Andr BotelhoII

    IProfessora do Programa de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, daUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected] do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia, da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]

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    tem acompanhado sua recepo, da qual permanece emblemtico o c-lebre e j indissocivel prefcio que Antonio Candido (2001) escreveupara o livro.

    Abordando as relaes dos intelectuais com as classes dirigentes comoestratgicas para a explicao das posies por eles assumidas nomercado de postos em expanso na sociedade brasileira entre 1920 e1945tantonosetorprivadoquantonopblico,emespecialnasestrutu-rasdepoderdoEstado,Miceliexpeamatrizdosinteressessubjacenteao ethos dadesvinculaosocialhistoricamentecultivadoporessasmi-norias ativas a respeito de si prprias. Ao lado deste, por assim dizer,golpe desferido sua prpria comunidade, as consideraes minu-

    ciosas e sem cerimnias feitas por Miceli sobre certos detalhes inusita-dos da vida privada de alguns cones da intelectualidade ptria reali-menta a polmica que o livro tem suscitado1.

    Especificar a contribuio metodolgica de Intelectuais e Classes Diri- gentes no Brasil (1920-45) para uma sociologia dos intelectuais noconstituitarefasimples.Discutirmetodologiatrazcomoexignciaquese mostre de que modo a operacionalizao de uma anlise implicasempre em certas escolhas no apenas relativamente a materiais de

    pesquisa, mas tambm a perspectivas tericas especficas que infor-mam a construo do objeto. Na Sociologia a dinmica analtica deconstruo de um objeto realiza-se de modo cumulativo, isto , diretaou indiretamente associada s contribuies anteriores, concorrente aoutras perspectivas terico-metodolgicas contemporneas e varivelquanto prpria articulao entre teoria e mtodo. Por isso torna-seinevitvel mobilizar elementos que no se encerram ordeiramentesimplesmente no mbito manifesto de qualquer proposta, embora sedevasemprepartirdele.Nossahiptese,nessesentido,deque,ades-

    peito do privilgio dado investigao dos elementos internos das es-tratgias de insero dos intelectuais, a anlise de Miceli deixa em ten-so a suposio da autonomia de um campo intelectual e suas rela-es com o processo social mais amplo. Pelos motivos expostos no es-tamos reivindicando o uso da categoria campo intelectual em todosos trabalhos e com o mesmo peso emprico e analtico no conjunto daobra de Miceli, embora a problemtica a ela referida seja crucial nas es-colhas metodolgicas e narrativas do autor. Vale mencionar, ainda,que o autor tambm emprega a categoria campo de produo cultu-ral (Miceli, 2001a:83, por exemplo).

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    Procurando especificar a contribuio metodolgica de Intelectuais eClasses Dirigentes no Brasil (1920-45) para uma sociologia dos intelectu-ais,paraoquerecorremostambmadiferentestextosdeSergioMiceli,comeamospeladiscussodanossahiptesegeralacimaapresentada.Passamos, em segundo lugar, discusso do enquadramento tericodado por Miceli ao fenmeno social das relaes entre intelectuais eclasses dirigentes. Consideramos que o autor equaciona analiticamen-te esse tema mais vasto como uma relao entre posio social e es-truturas de poder num contexto de transio de formas de sociedadetradicional moderna, no qual se entrelaam de modo dinmico for-mas de sociabilidade e de condutas referidas a ordens sociais distintas.Nessaseo,tendoemvistaocartercumulativodaproduosociol-

    gica, destacamos a relevncia do tema e do prprio enquadramentoterico a ele dado por Miceli, lembrando algumas proposies de Gil-berto Freyre e de Florestan Fernandes. Em terceiro lugar, discutimos ametodologia de que Miceli lana mo para operacionalizar em termosprprios a anlise daquela relao entre posio social e estruturasde poder numcontexto de mudanasocial que identificamos na tradi-o sociolgica brasileira. A esse respeito, consideramos que a contri-buio metodolgica de Miceli consiste na reconstruo do perfil daelite intelectual atravs especificamente da trajetria e biografia exem-plaresdealgunsdeseusmembros,queoautoridentificaaosmtodosprosopogrficos utilizados no estudo do mesmo tema em diferentesformaes sociais. Por fim, na concluso, recuperamos a discusso deMiceli sobre outras perspectivas terico-metodolgicas contempor-neas e concorrentes sua, lembrando do balano que fez da produoanaltica sobre intelectuais brasileiros (Miceli, 1999). Nele, a constata-o do expressivo crescimento da literatura especializada entre 1970 e1995 leva Miceli a falar, com toda razo, numa nova frente de estudos

    e pesquisas na sociologia brasileira sobre os intelectuais. Perguntan-do, no entanto, pelo produto do trabalho dos intelectuais, aspecto nocontemplado no programa de Miceli, argumentamos a favor de umanova compreenso das ideias como foras sociais reflexivas na agendada Sociologia contempornea.

    MACRO E MICROTEORIZAO

    Para que se possa compreenderIntelectuais e Classes Dirigentes no Brasil

    (1920-45) fundamentallevaremcontaocontextointelectualdesuaformulao. Reconhecendo o contexto sociolgico como fortementemarcado pelas perspectivas macro de anlise de processos sociais de

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    longa durao, como a formao do capitalismo dependente no Brasil,por exemplo, faz sentido considerar que as inegveis originalidade eriqueza analtica do livro de Sergio Miceli esto em parte associadasjustamente valorizao de certos aspectos microssociolgicos at en-topoucoexplorados.Olivroabriudefatonovasfronteirasdepesqui -sa voltadas para a anlise da dinmica sociolgica das regras e das es-tratgias cotidianas de insero e de viabilizao das carreiras dos in-telectuais dentro dos marcos institucionais dominantes da primeirametadedosculoXX.Nessesentido,Miceliprocurafiliarseutrabalho,como diz na primeira e muito significativa nota de p de pgina do li-vro,tradiodeumahistriasocialdasclassesencaradasdongulode sua dinmica interna, vale dizer, dos processos que do conta tanto

    dospadresdeidentidadeedoestilodevidacomodasmudanasecli-vagens que presidem sua diferenciao em grupos e fraes especiali-zados (id., 2001a:247).

    A estratgia metodolgica de Miceli pde se impor de modo crescentecomo uma alternativa s macrointerpretaes histrico-sociolgicasda formao da sociedade brasileira. Talvez porque a tese da desvincu-lao social dos intelectuais, que ele tratava de combater, aparecesseem vrios momentos associada s anlises que procuravam dar conta

    justamente da articulao entre cultura e poltica no mbito dos pro-cessos de modernizao e construo do Estado-nao. Ou ainda, dasanlises que situavam aquela articulao entre cultura e poltica noquadro da particular configurao histrica da revoluo burguesa noBrasil, que tem como um dos principais efeitos o inevitvel entrelaa-mento dessas duas dimenses da vida social. Para isso concorrera so-bremaneira, sem dvida, a orientao normativa, mas nem sempre ex-plicitada, das categorias analticas de campo e de habitus tomadas

    a Pierre Bourdieu (1974; 1989; 2002, por exemplo), o orientador da pes-quisa que originou o livro em questo.

    Assim, possvel dizer que Intelectuais e classes dirigentes no Brasil(1920-45) parte da separao analtica das dimenses cultural e polti-ca proposta por Bourdieu, da decorrendo o privilgio dado, por Mice-li, investigao dos elementos, da organizao e do funcionamentointernos das estratgias de insero social dos intelectuais como fato-res explicativos de uma dinmica social. Todavia, como enunciamos

    anteriormente, o mtodo empregado no livro parece-nos realizar-sedeixando em tenso, no plano analtico, a suposio da autonomia da-queles fatores internos, de um lado, e suas relaes inclusivas com os

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    processos sociais e histricos mais amplos, de outro. Por isso o livrono pode ser satisfatoriamente apreciado, a nosso ver, se o entender-mos apenas como uma exemplificao da dinmica de relaes inter-nas ao campo e entre os diferentes grupos de agentes que detm po-sieseobjetivosprpriosnele.Emboraessasejaumadimensometo-dolgica central do livro, no nos parece que Miceli esteja sugerindocom a anlise realizada que aquelas relaes internas ao campo seri-am suficientes, no caso brasileiro da primeira metade do sculo XX,para a definio das suas fronteiras, bem como das zonas de influnciaresultante das interaes entre seus agentes especializados.

    Na concluso do livro, de fato, fazendo o balano do relativo sucesso

    dasestratgiasdequelanarammoosdiferentesgruposdeintelectu-ais analisados para sua incorporao s estruturas de poder em meioaoprocessomaisamplodereconversodaselitesemdeclnionopero-do, o autor observa que, pelo fato de haver lidado com um campo deproduo cultural que dispunha de um grau restrito de autonomia emrelao s demandas da classe dirigente, quase todos os grupos de es-critoresfocalizados,comexceodosromancistas,derivamsuaidenti-dade e o perfil de seus investimentos intelectuais das obrigaes queessa filiao poltica lhes impe (Miceli, 2001a:245). Voltaremos a este

    ponto, mas queremos observar desde j que tambm a exceo que Mi-celi faz em relao aos romancistas, acima transcrita, diz respeito maiss possibilidades efetivas que concorreram para alterar os antigos pa-dres exclusivistas de dependncia dos intelectuais com relao s eli-tesdirigenteseaoEstado,doquepropriamenteconquistadeautono-mia por parte desse segmento intelectual. Essas possibilidades teriamsido favorecidas por certas transformaes cruciais ento em curso nomercado de trabalho cultural como parte de um processo mais amplo

    de transio social, ilustrado pela expanso do setor editorial e a con-comitante constituio de um mercado do livro por substituio deimportaes beneficiada pelo significativo xito comercial da litera-tura de fico no pas.

    Nesse contexto, se mesmo as preferncias do novo pblico leitor pelogneroromancepuderamconcorrer,comomostraMiceli,pararetiraraliteratura da tutela exclusiva dos mecenasprivados ou pblicos e co-loc-la sob as chamadas leis do mercado, as possibilidades que al-

    guns escritores encontraram para dedicar-se literatura de ficocomo principal atividade profissional no se generalizaram sequer en-tre os romancistas do perodo. O exerccio da vocao artstica na maio-

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    riadoscasosnosefezsenocomoprticasubsidiria,jque,comonocaso de Orgenes Lessa, Graciliano Ramos, Ciro dos Anjos, Rachel deQueiroz,JosGeraldoVieiraentreoutros,parcelasubstantivadeseusrendimentos provm de atividades profissionais externas ao campointelectual e artstico (id., 2001a:187).

    Assim, se alguma autonomia de um campo intelectual pode serdivisadanesseprocesso,autonomiaaquinoparecesignificarsenoqueavidaintelectualganhavadensidadeecomplexidadesuficientesaponto dos intelectuais poderem passar a almejar regerem sua vidacomo coletividade social por uma lgica distinta daquela vigentequando da sua dependncia direta das oligarquias tradicionais e do

    Estado na Primeira Repblica. Pois nos anos 1930-1940, ainda que emsi mesmo j no seja fator suficiente para definir o destino dos intelec-tuais, permanece sua dependncia em relao ao favor das classesdirigentes e do Estado. Noutras palavras, isoladamente, os intelec-tuais no conseguiram assumir um papel decisivo no processo socialcapaz de influenci-lo na base dos seus interesses materiais e imate-riais especficos. A dinmica dos interesses dos intelectuais em forma-o parece assim mais reativa s transformaes pelas quais a socieda-de passava, do que propriamente constituinte de um campo autno-mo a partir do qual tornar-se-ia possvel garantirem sua independn-cia face no apenas das demandas como dos imperativos de autorida-de das elites dirigentes e do Estado.

    Se assim no fosse por que desmascarar a pretenso manifesta dos in-telectuaisemseconstituremcomoosportadoresdasntesedosinte-ressesemconflitonasociedade?Pretensoqueserealizaatravsdadi-fusoerotinizaodevaloresparaalm,obviamente,dasfronteirasdo

    prprio campo especializado considerado. Por que entender a aproxi-mao dos intelectuais ao Estado Novo em termos de cooptao, senoestivessememjogotambm,eemmedidasignificativa,aspossibi-lidades histricas oferecidas para interao e interdependncia docampo e a sociedade como um todo? E, se o habitus mesmo expli-cativodoestabelecimentodasdisposiessubjetivasdeorientaodascondutas de atores sociais como intelectuais, por que recorrer ssuas origens sociais para equacionar suas relaes com a sociedade ecom o Estado?

    Afinal, dentre os maiores mritos da sociologia dos intelectuais de Ser-gioMiceliestsemdvidaodeterdemonstradoumaspectocentralda

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    Sociologia brasileira, mas nem sempre levado em conta nas explica-es sobre a difcil distino entre pblico e privado no Brasil. Qualseja, o de que essa dificuldade no decorre apenas de uma circuns-crio preponderante das formas associativas aos crculos familiares,mas implica tambm o fato de que, quando afinal esses crculos so ul-trapassados pela constituio de uma esfera de vida pblica, essapassagem no se faz acompanhar necessariamente por formas de ori-entao da conduta distintas daquelas prprias esfera de vida pri-vada.Nooutro,alis,osentidodafiliaoqueMiceliprocurafazerdoseutrabalhoa Razes do Brasil (1936),deSrgioBuarquedeHolanda,a Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro, e a So Paulo e o EstadoNacional (1975), de Simon Schwartzman, pelo diagnstico presente ne-

    les sobre a persistncia de mecanismos de cooptao, impregnandoos padres de concorrncia estimulados pelos processos de urbaniza-o e industrializao como o cerne da histria das transformaespolticas no Brasil contemporneo (Miceli, 2001:244).

    Assim, ao contrrio do modelo francs analisado por Bourdieu (2002,por exemplo), Sergio Miceli est tratando de uma situao em que, namelhor das hipteses, um campo intelectual estaria em vias de for-mao e ainda no inteiramente consolidado do ponto de vista sociol-

    gico. O que implica, ainda, deslocamentos e adaptaes significativasdas categorias analticas do socilogo francs quando aplicadas aocaso brasileiro2. Nesse sentido seria um contrassenso em termos teri-cos circunscrever a contribuio de Intelectuais e Classes Dirigentes noBrasil (1920-45) como devedora exclusivamente da sociologia de Bour-dieu. Se no faltam entre ns aplicaes mecnicas da proposta meto-dolgica do socilogo francs, no se pode perder de vista, contudo,que as anlises de Sergio Miceli surpreendem a expectativa da sempre

    difcil, mas s vezes fecunda, aclimatao das chamadas ideias im-portadas ao contexto brasileiro. Vale como exemplo da sntese opera-da na anlise sua discusso sobre a formao de um mercado de bensculturais por substituio de importaes para dar conta da crescen-te produo do gnero romance a partir da dcada de 1930.

    Ressaltamos que a hiptese que estamos apresentando para debateno de modo algum externa ou perifrica a Intelectuais e classesdirigentes. Afinal, tratar-se-ia nele de identificar a lgica especfica e as

    particularidades da vida intelectual no Brasil. Por isso, voltando pri-meira nota de p de pgina do livro, seu trabalho deveria muito mais,como sustenta Miceli, leitura de estudos a respeito da vida intelectu-

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    al em outras formaes sociais do que ao projeto de por prova um de-terminado modelo terico (Miceli, 2001a:247). A afirmao d umapistaestimulantesobreomtodoadotadoporMiceli,equeanossover decisiva para entender a originalidade do seu enfoque. Afirman-do-se devedor da leitura de estudos a respeito da vida intelectual emoutras formaes sociais como os de Antonio Gramsci sobre a Itlia,de Pierre Bourdieu sobre a Frana, de Raymond Willians sobre a Ingla-terraedeFritzK.RingersobreaAlemanhaparadetectaraspeculia-ridades da condio intelectual na sociedade brasileira (ibid.), Miceliindica claramente que incorpora a perspectiva histrico-comparadano plano da concepo e da construo terica do objeto. Ainda queno o faa no plano do mtodo, uma vez que no procede a anlise co-

    tejando ou confrontando explicitamente o caso brasileiro aos de outrasformaes sociais. Tampouco parece se perguntar sobre as possveisrazes sociolgicas explicativas da recorrncia de certos traos carac-tersticosdoprotagonismosocialdosintelectuaisemcertassociedadese no em outras, a comear pelo prprio cultivo da ideia de misso que,ao fim e ao cabo, busca combater.

    A fora catalisadora de Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil(1920-45) deve ser buscada no contexto intelectual em que se anuncia-

    vaomovimentodenegaodassntesesededescrenanasgeneraliza-es nas Cincias Sociais. O que se coloca em questo, ainda, em quemedida,emprimeirolugar,atensoanalticaentreasdimensesmicroe macrossociolgicas de anlise identificada no livro teoricamenteelaborada, e qual seu rendimento analtico especfico. Em segundo lu-gar, em que medida a experincia dos intelectuais por ele tratada estcondicionada a uma interpretao da prpria particularidade ou sin-gularidadedaformaodasociedadebrasileira,aindaqueestadimen-

    so macro no seja, para Miceli, explicativa das relaes entre intelec-tuais e classes dirigentes.

    INTELECTUAIS E MUDANA SOCIAL

    As relaes entre posio social e estruturas de poder no Brasil ex-ploradas em Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-45) foramidentificadas anteriormente, em diferentes perspectivas analticas, naSociologia brasileira. Como esquecer, nesse sentido, das consideraes

    de Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos (1936) sobre a ascenso dobacharel no contexto de urbanizao/ocidentalizao da sociedadebrasileira marcado pelo declnio dos setores agrrios tradicionais? Fi-

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    lhos legtimos, ilegtimos ou meramente agregados das famlias patri-arcais, ou ainda provenientes da nova burguesia das cidades, os bacha-ris seriam os cones por excelncia de uma nova aristocracia urbanaem expanso desde o comeo do Imprio:

    Nos jornais, notcias e avisos sobre Bacharis formados, Doutorese at Senhores estudantes principiaram desde os primeiros anos dosculo XIX a anunciar o novo poder aristocrtico que se levantava, en-volvido em suas sobrecasacas ou nas suas becas de seda preta, que nos

    bacharis-ministros ou nos bacharis-desembargadores, tornavam-sebecas ricamente bordadas e importadas do oriente. Vestes quase demandarins. Trajos quase de casta. E esses trajos capazes de aristocrati-

    zarem homens de cor, mulatos, morenos. (Freyre, 1951:966)Trata-sedeumprocessodemobilidadesocialqueserealizamedianteadependnciadosbacharisedesuasconexescomasfamliassenhori-ais, cuja decadncia no significava, porm, exatamente o desapareci-mento do seu poder, como bem ilustra, por sua vez, a capacidade de-monstrada por esses setores sociais tradicionais de instalar seus de-pendentes, os bacharis, nas modernas estruturas de poder do Estadoque os havia antagonizado3. Por isso a ascenso dos bacharis sinteti-

    za, para Freyre, como, em meio aos dilemas trazidos pela urbanizao,a estrutura do mundo agrrio permanece na nova organizao modifi-cando o carter da cidade, ainda que esse desenvolvimento aprofundea decadncia do patriarcado. Na Introduo segunda edio de So-brados e Mucambos, referindo-se a texto a ser posteriormente escrito,diz:

    No sem razo que a gente antigado Recifechamavaao becoque ia docentro da cidade ao Cemitrio de Santo Amaro de Quebra Roo.

    Roo brasileirismo que quer dizer [...] presuno, vaidade, orgu-lho. E como o tempo e atravs do tempo, a dissoluo das institui-es, e no apenas a dos indivduos age sobre as casas e os tmulos[...]: quebrando-lhes o roo. O roo do que o patriarcado no Brasil tevede mais ostensivo, isto , a sua arquitetura caracterstica [...] com que asfamlias patriarcais ou tutelares pretenderam firmar seu domnio nos no espao como no tempo vem sendo quebrado vista de toda agente. (Freyre, 1981:LXII)4

    Mas a decadncia no significou a desapario desse poder, pois a or-ganizao da sociedade em novas bases no prescindiu de sobrevivn-cias patriarcais. Para Freyre essa acomodao significa a continuidade

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    Repblica, no foi possvel quela gerao de pioneiros da Sociolo-gia uma adeso poltica unvoca e progressista face aos desafios dotempo. Ela no teve, em suma, como fugir a uma coexistncia ambguaentre formas pretritas e certas antecipaes ainda no inteiramenteobjetivadas do futuro que caracterizariam as pocas de transio, e decuja equao, alis, parece sempre depender a viso do momento pre-sente. Confrontados pela percepo de que a Abolio no havia pro-movido a integrao dos escravos e dependentes sociedade de clas-ses e de que a Repblica fora em muitos aspectos apenas uma reformade Estado, os dilemas e impasses dos intelectuais do perodo parecemconstituir um tipo de dialtica sem sntese entre ruptura e continuidadeque, aparentemente, enreda a todos eles, independente, num certo n-

    vel, de suas prprias orientaes ideolgicas ou veleidades sociais.

    No mbito da Primeira Repblica, afinal, como havia mostrado Flores-tanFernandesemAIntegrao do Negro na Sociedade de Classes (1965),asinovaes institucionais e a liberalizao jurdica-poltica acabarampor ficar circunscritas apenas adaptao da grande empresa agrriaao regime de trabalho livre e s relaes de troca no mercado que ela, aomenos em tese, pressupunha. No mais, como sugere, continuaram aimperar os modelos de comportamento, os ideais de vida e os hbitos

    de dominao patrimonialista, vigentes anteriormente na sociedadeestamental e de castas. Para que a ordem social competitiva pudesseexpurgar-se desses influxos constritivos e perturbadores, consolidan-do-se numa direo especificamente burguesa, liberal-democrti-ca e urbana, impunha-se que surgisse nas cidades um sistema deproduo que as equiparasse ao campo ou as tornasse independentesdele (Fernandes, 1965:25). E como tal condio ter-se-ia delineadolentamente e s demonstra certo vigor, malgrado as debilidades e as

    incertezas da industrializao, meio sculo depois da Abolio e daProclamao da Repblica, nada poderia impedir que a ordem soci-al competitiva se ajustasse s estruturas persistentes daquele regime(id., 1965:26).

    nesse contexto em que as condies sociais de constituio de maiorautonomia para os intelectuais face s elites dirigentes pareciam extre-mamente prejudicadas, portanto, que a relao pragmtica estabeleci-da por esses atores sociais com a poltica nas primeiras dcadas repu-

    blicanas adquire sentido. Para os crculos intelectuais do perodo, ob-serva Florestan, o pragmatismo representava uma das consequnciasintelectuais da desagregao do regime escravocrata e senhorial, no

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    O desafio de explicar a manuteno de certas formas tradicionais nas

    relaes sociais, como as da sociedade oligrquica, num quadro mais

    amplo de modernizao acabou por constituir um dilema que de um

    modo ou de outro os socilogos brasileiros tiveram que enfrentar. Masno se trata de pensar a mudana social num sentido linear, j que, no

    movimento da sociedade, tradicional e moderno vo invadindo

    as premissas uns dos outros como modalidades de relaes sociais, e

    redefinindo-se mutuamente e aos contornos da prpria sociedade.

    Abrem-se, ento, novas possibilidades para a atuao dos intelectuais

    e para a influncia que eles prprios procuram com maior ou menor

    sucesso exercer na modelagem da passagem de uma poca social para

    outra. Isso ocorre sem que, no entanto, nesse processo de mudana so-

    cial, eles percam completamente os vnculos, valores e vcios da ordempatriarcal ou estamental. Embora o tema dos intelectuais seja tratado

    tangencialmente, as proposies de Gilberto Freyre e Florestan Fer-

    nandes a seu respeito circunscrevem, em grande medida, o campo pro-

    blemtico em que se move, na tradio sociolgica brasileira, mas em

    termos prprios, Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-45).

    As relaes entre os intelectuais e a classes dirigentes no Brasil na pri-

    meira metade do sculo XX so formuladas analiticamente por Sergio

    Miceli tambm nos termos de uma relao entre posio social e es-truturas de poder. Alm disso, tambm inscreve essas relaes no

    contexto de transio de formas de sociedade tradicional para a mo-

    derna, do qual advm a dinmica dos interesses dos intelectuais, con-

    dicionada, por sua vez, ao carter particular dos processos de mudan-

    a social no Brasil. Assim, pode-se entender tanto a escolha dos trs se-

    tores em expanso no mercado de trabalho por cujos postos os intelec-

    tuais teriam concorrido, quanto as alteraes relativas ao recrutamen-

    to dos intelectuais e prpria dinmica da vida cultural.

    No primeiro caso, Miceli destaca e analisa (1) a consolidao e amplia-

    o de um mercado de postos pblicos associadas, de um lado, s posi-

    es j tradicionalmente ocupadas pelos intelectuais nas estruturas de

    poder no mbito do Estado, de outro, aos processos de racionalizao e

    de burocratizao pelos quais essas estruturas de poder passavam, e

    ainda, ao sentido estratgico que o trabalho cultural assumiu na legiti-

    mao da centralizao da autoridade pblica operada pelo Estado

    Novo; 2) o surgimento de um mercado do livro resultante da constitui -o de um novo pblico leitor composto de burocratas do Estado, pro-

    fissionais liberais, profissionais da educao, empregados do setor pri-

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    vadoedemaiscategoriasprpriasaomundourbanoeindustrialentoem expanso; e 3) a criao de postos nas frentes de mobilizao polti-caeideolgica,seja(i)nombitodasdisputasinternasentreasorgani-zaes partidrias de So Paulo, como o Partido Republicano Paulista(PRP),aoqualOswalddeAndradeesteveligado,eoPartidoDemocr-tico (PD), do qual Mrio de Andrade teria sido o lder intelectual;seja (ii) nas instituies culturais dependentes das elites locais que lo-graram baseadas, num primeiro momento, no trabalho dos intelectu-ais e artistas modernistas, e, num segundo momento, na Universidadede So Paulo estabelec-las como um eixo hegemnico para a vidacultural de todo o pas; seja ainda (iii) no mbito do movimento inte-gralista ou das entidades ligadas Igreja Catlica que, a exemplo do

    Centro Dom Vital, encarnando o projeto de uma reao espiritualis-ta particularmente voltado para a intelectualidade, procurou noapenas responder aos desafios postos Igreja num contexto de confli-tos sociais prprios da sociedade moderna emergente nos anos 1920,comoaindainfluenciaraspolticasdoEstadoparaareadaeducaoecultura, como mostra a atuao paradigmtica de Alceu AmorosoLima.

    No segundo caso, Sergio Miceli qualifica detidamente as alteraes re-

    lativas ao recrutamento dos intelectuais: se at a Primeira Repblica osintelectuais dependiam fundamentalmente das redes de relaes fa-miliares e pessoais que podiam mobilizar como suportes poltico-soci-ais graas s suas origens sociais, na dcada de 1930 inicia-se a exign-cia de que possuam tambm outros distintivos, como os diplomas es-colares e universitrios, para se alarem quelas posies criadas nomercado de postos. Distintivos que acentuam no apenas a concorrn-cia no campo intelectual em formao, como tambm a diferencia-

    oeahierarquizaodasposiesinternasemrelaosprpriasori-gens sociais dos recrutados. Em suma, com a decadncia das antigaselites tradicionais, de um lado, e a entrada em cena de novos atores so-ciais em condies de fazerem representar os seus interesses, de outro,alterara-se a coalizo de foras polticas em disputa no contexto de ex-panso tanto da dinmica capitalista quanto da dinmica institucionaldo Estado-nao.

    Nesse sentido, o argumento desenvolvido por Sergio Miceli amb-

    guo. De um lado, sugere que as mudanas sociais em curso no mercadode postos entre 1920 e 1945 alteram efetivamente a dinmica da vidacultural, como ilustram a diversificao e a diferenciao dos atores

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    sociais envolvidos, das atividades a serem desempenhadas, das opor-tunidades profissionais criadas, da competio instaurada, dos inte-resses em jogo e dos capitais sociais a serem mobilizados. De outrolado, essas mesmas mudanas no parecem suficientemente fortes,contudo, para romper com as bases sociais tradicionais em que a vidacultural vinha se formando e continuava em medida significativa as-sentada naquele contexto de crise e transio social.

    Voltando tradio sociolgica brasileira, da qual, como se est suge-rindo, parte substantiva provm da discusso de Intelectuais e classesdirigentes no Brasil (1920-45), deve-se observar, todavia, que, se comoFlorestan Fernandes, tambm Miceli equaciona, nos termos do primei-

    ro, a orientao dos intelectuais da Primeira Repblica descendentesdas antigas famlias senhoriais ao receio e ressentimento dessesegmento social com relao s perspectivas de prejuzos nas posi-es dominantes dentro das estruturas de poder, ao contrrio do soci-logo paulista, o autor no tem em vista a obra desses intelectuais comofoco analtico. Para Florestan, como vimos, aquela equao manifes-ta-se justamente na nfase que os intelectuais deram ao tema da orga-nizao nacional em suas interpretaes do Brasil, do que a obra deAlberto Torres permanece como paradigma. Embora no se refira a

    Florestan Fernandes, ao demarcar sua posio metodolgica em tornoda biografia dos intelectuais, e no das suas produes, como fator ex-plicativo das suas relaes com as elites dirigentes, Miceli afasta a pos-sibilidade da perspectiva por ele proposta, argumentando que a ni-camaneiradediferenciarosmembrosdessaeliteintelectualeburocr-tica privilegiando o perfil de seus investimentos na atividade intelec-tual em detrimento do contedo de suas obras, tal como aparece reifi-cado na histria das ideias (id., 2001a:210).

    Por outro lado, a nfase na biografia pode, primeira vista, sugeriruma maior aproximao de Miceli perspectiva de Gilberto Freyre,tanto no que diz respeito valorizao do cotidiano vivido como di-menso sociolgica, quanto valorizao de base documental poucoconvencional, como dirios ntimos, biografias, correspondncias, de-poimentos pessoais orais e escritos entre outros. Todavia, do mesmomodo, no se pode negligenciar que, se o socilogo pernambucano en-fatiza recorrentemente no conjunto de sua obra, como a seu tempo e a

    seu modo tambm o far Miceli, a importncia dessas fontes para o es-tudo da sociabilidade e das relaes familiares na reconstruo de umahistria ntima do brasileiro, a biografia, em Freyre, no explicati-

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    va das relaes entre intelectuais e elites dirigentes, mas se inscreve nomovimento mais amplo de mudana social por acomodao que parti-cularizaria a sociedade brasileira. No que, alis, Florestan Fernandesse aproxima de Gilberto Freyre, ainda que sem especificar a biografiacomo fonte ou ainda menos como fator explicativo como o far dca-das depois Miceli.

    Por isso, argumenta Sergio Miceli, tambm no parece convincenteexplicar essas obras [refere-se especificamente aos romances das dca-das de 1930-40] invocando a tomada de conscincia da situao nacio-nal por parte dos escritores cujas obras de estreia eram, sem rebuo,umatransposioliterriadesuaexperinciapessoal(id.,2001a:161).

    E, com relao s condies sociais decisivas que favoreceram as es-tratgiasdereconversoaqueosromancistasrecorreram,equelhespermitiram se apropriar em chave simblica do mundo social em queseviramcolocadosmargemdaclassedirigente(ibid.),asseguraqueo elemento decisivo foi a diversidade de experincias de degrada-o social que o declnio familiar veio propiciar, dando-lhes a oportu-nidadedevasculharasdiferentesposiesdequeseconstituioespaoda classe dirigente (id., 2001a:163). No por acaso, para ilustrar ascondies que permitiram a alguns escritores se tornarem romancistas

    profissionais,afirmanovamenteMiceli,bastaapresentarabiografiade rico Verssimo (ibid.:190).

    SOCIOLOGIA E PORTRAITDE CLASSE

    O recurso biografia como estratgia analtica para especificar as rela-es entre posio social e estruturas de poder justificada porSergio Miceli nos seguintes termos: a reconstruo biogrfica dos inte-

    lectuais permite, num retrato de corpo inteiro, flagr-los nos espa-os de sociabilidade em que de fato se moviam e de onde extraam amatria-prima de suas obras e tomadas de posio (Miceli,2001a:411). Para qualificar a especificidade da contribuio metodol-gica de Miceli para uma sociologia dos intelectuais recorremos, nesteponto,almdeIntelectuais e classes dirigentes,pontualmentetambmaoseu memorial apresentado para o concurso de professor titular do De-partamento de Sociologia da Universidade de So Paulo em 1992, inti-tulado A construo do trabalho intelectual; ao artigo Biografia e

    cooptao(oestadoatualdasfontesparaahistriasocialepolticadaselites no Brasil), de 1980; e ao livro A Elite Eclesistica Brasileira, de1988. Assim, no plano propriamente metodolgico, a recusa s pers-

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    pectivas macro ganha, como contrapartida, a nfase na pesquisa emp-rica, ou o que Miceli chama de anlise circunstanciada do objeto, emdetrimento de uma tradio arraigada de pensamento que prefere aamplitude das generalizaes (id., 2001a:348). Da a minuciosa re-construo biogrfica com que, baseado em sistemtica pesquisa em-prica de fontes primrias, o autor oferece ao leitor um retrato particu-larmente vivo dos intelectuais.

    Aprimeiraobservaoquedeveserfeitacomrelaoaestemtododizrespeito ao estatuto analtico da biografia, j que a reconstruo bio-grfica dos intelectuais aparece recorrentemente tanto como fontequanto como mtodo. Embora algumas vezes reserve o termo traje-tria para referir-se reconstruo biogrfica operada para a anlisedasbiografiascomofontes,emgeralMicelimostra-sepoucopreocu-pado em distinguir biografia como fonte de biografia como mto-do. A nfase na pesquisa emprica talvez explique parcialmente porque, em vrias passagens decisivas dos seus textos, Miceli enfatizemaisosmateriaisdeanlisedoqueomtodoefetivamentemobilizadopara interpret-los. Mesmo quando se trata de discutir os chamadosmtodos prosopogrficos por ele empregados em suas pesquisas,

    afirma estar menos preocupado aqui em discutir a validade tericaou mesmo os limites heursticos desse tipo de abordagem; prefeririadiscutir alguns dos determinantes sociais que regem a produo dasfontes biogrficas em que se apoiam os estudos de cunho prosopogr-fico no pas (ibid.). E refora aquela impresso, argumentando que,no caso brasileiro, seria inevitvel reconhecer que a mera existnciadesse imenso acervo documental se prende s peculiaridades do pro-cesso de formao do poder no interior da classe dirigente, quer dizer,ao fato de que os laos familiares e corporativos desempenham um pa-

    pel crucial nas estratgias de acumulao social dos diversos gruposdirigentes (ibid.).

    significativo, tambm, o fato de Miceli insistir na diferenciao, poroutro lado, entre memria e biografia como gneros narrativos, ena tentativa de relacion-los s diferentes posies ocupadas por seusautores no campo intelectual. Embora j tivessem sido testados emPoder, sexo e letras na Repblica Velha , publicado em 1977, em Intelec-

    tuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-45) que o autor se utiliza demodo mais sistemtico dos mtodos prosopogrficos e das distinesentre memrias e biografias. Em ambos os trabalhos, contudo, perma-

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    neceanfasenessesmateriaiscomofontesparaapesquisaemprica.Assim, no primeiro deles, l-se:

    A seleo dos autores para este estudo foi determinada na prtica pela

    existncia de memrias publicadas e, em medida menor, pelo recurso biografia. Os riscos em que tal procedimento poderia incorrer ficam bas-tante minimizados quando se levam em conta as propriedades sociaisdos memorialistas e dos autores cujo processo de consagrao inclui areverncia biogrfica. Na verdade esses tipos de material fornecem da-dos e informaes a respeito de categorias que ocupam momentanea-mente posies diferentes no campo. Enquanto as biografias so dedi-cadas, via de regra, aos autores que os embates posteriores acabaram

    convertendoemobjetosdeumaconsagraopstuma,ogneromem-rias constitui uma estratgia a que recorrem no mais das vezes intelec-tuais dominados. (id., 2001:17)

    Igualmente no segundo trabalho, mantm-se a diferenciao de gne-rosesuacorrelaosposiesnocampodeproduocultural,bemcomoanfasenomaterialcomofontesempricasdapesquisaecertaassimilao da metodologia a elas:

    Nointuitodevincularoespaodasoportunidadesqueentoseabriamno mbito das instituies culturais, no servio pblico, no mercadoeditorial etc. ao crculo das famlias da classe dirigente que, por disporde um mnimo de capital social, escolar e cultural, estavam em condi-es de reivindicar tais oportunidades em favor de seus filhos, utilizei,comofontesprivilegiadas,asmemrias,osdiriosntimos,osvolumesdecorrespondncia,asbiografiasetc.,dosdiferentestiposdeintelectu-ais. Tais gneros possibilitam apreender tanto as relaes objetivas en-treasposiesocupadaspelasdiversascategoriasdeintelectuaisnoin-

    terior do campo de produo cultural, e as determinaes sociais, esco-lareseculturaisaqueestoexpostas,comoasrepresentaesqueosin-telectuais mantm com seu trabalho e, por essa via, com as demandasque lhes fazem seus mecenas e seu pblico. (id., 2001a:82-83)

    Na sequncia do trecho acima transcrito, advertindo mais uma vez so-bre os riscos da construo de um modelo coletivo com base na anli-se das variaes de trajetrias individuais, Miceli remete tais riscos, arigor de ordem metodolgica, justamente aos limites impostos pelo

    material disponvel (id., 2001a:83). O mesmo tratamento retorna nosdemais textos selecionados. No artigo Biografia e cooptao, obser-vando que o interesse de outros pesquisadores pelas possibilidades de

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    uso dessas fontes documentais quase sempre se faz acompanhar peloceticismo quanto ao rendimento explicativo desses materiais, atri-buiuessareservaausnciadeumcuidadometodolgicotrivial,queconsiste em tentar explicitar as condies de produo das fontes comquelidamos,nointuitodeindagaremquemedidaascaractersticasdomaterial coligido remetem a propriedades sociais pertinentes dos gru-pos sob exame (id., 2001a:349). E salienta que essa postura cautelosacom relao s fontes no constituiria apenas uma questo fria demtodo (ibid.).

    J no memorial Aconstruo do trabalho intelectual, Miceli observaque,natentativa,duranteasuatesededoutoramento,deselivrardos

    esquemas implcitos nas diversas correntes da histria e da crtica lite-rrias, como uma atitude de recusa adoo das verses eruditas ehumanistas disponveis acerca da vida intelectual brasileira, teriaacabado enveredando por caminhos de prospeo que no havia deincio identificado, passando, ento, a acreditar que a explorao deveiosinditosdematerialtrariasubsdiosinstigantesarespeitodosin-telectuais (id., 2001c:406). Segundo observou ainda, tratava-se deuma expectativa um tanto no atacado, sem que eu tivesse maior preci-so quanto a como monitorar as pepitas e os pepinos porventura dis-

    persos no material a ser investigado (ibid.).

    Do ponto de vista de Sergio Miceli, portanto, mais importante do que adistino entre mtodo e objeto, a discriminao das condiessociais a partir e atravs das quais as fontes so construdas para ex-pressar um tipo de autonarrativa das elites dirigentes preocupao,alis,tambmmanifestaemcertosentidoporBourdieu(2003).EmBi-ografiaeCooptaoMicelideixaaquestoclara,aoconsiderarqueas

    fontes impressas e manuscritas retm a marca dos interesses, dos va-loresedasestratgiasdosgrupossociaisaquesereferem,jquesooproduto de uma atividade de simbolizao mediante a qual essesgru-pos manifestam sua existncia material, poltica e intelectual (Miceli,2001b:349). Afinal, para o autor, antes de serem processados e trans-formados pelo pesquisador em provas do argumento explicativo, osmateriais a contidos so parte integral do repertrio de imagens comque o grupo veicula e gere sua identidade (id., 2001b:349-350). Emsuma, retomando algumas dessas questes na concluso de A Elite

    Eclesistica Brasileira (1988), Miceli se afirma parte daqueles cientistassociais que ajuzam o mrito, o acerto ou a relevncia dos resultadosalcanados em parte como decorrncia do domnio que o autor de-

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    monstra ao lidar com as fontes e materiais de que se serviu, e afirmaquetalprocedimentoserevelaindispensvelquelesestudiososparaos quais as definies correntes sobre quaisquer objetos so parte doobjeto que se pretende desvendar, ou melhor, que no existe a rigor se-parao ou descontinuidade entre objetos e os materiais que falamdele, que o expressam ou que de alguma maneira lhe do alguma for-ma de existncia (id., 1988:154).

    A prioridade metodolgica dada biografia como fator explicativo so-bre os processos sociais est, assim, relacionada recusa das perspecti-vas macro. Recusa que, por sua vez, deve ser entendida tambm emfunodacontraposioqueMiceliprocurafazerabordagemmateri-

    alistaentodominante.Comoesclarecenasegundanotadepdepgi-na de Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-45): Embora fossevivel aprontar uma definio prvia do objeto segundo os cnonestericos da anlise materialista, estou convencido de que proezas des-segneroacabamdescolandoosinstrumentosdeanlisedosmateriaissobre os quais dever investir (id., 2001a:247). Afinal, argumenta, aprpria definio do que seja o fazer intelectual numa determinadaconjuntura constitui, por si s, um dos mveis centrais que impulsio-nam a concorrncia entre os diversos tipos de produtores em luta pela

    monopolizao da autoridade de legislar em matria cultural (ibid.).Almdisso,apossibilidadedesolucionardeantemoesseproblemasegundo os cnones da anlise materialista implicaria, segundo o au-tor, lidar apenas com as representaes que os intelectuais dominan-tes oferecem de si mesmos, logrando o tento de reduzir as relaes quemantm com seus patrocinadores e com seu pblico aos modelos deperfeiotica,estticaepoltica,dequesevalemnotrabalhodeadmi-nistrar sua imagem oficial (id., 2001a:247).

    Note-se, no entanto, que a tentativa de contraposio abordagem ma-terialista adquire sentido justamente na medida em que se reconheceque Sergio Miceli est propondo a sua sociologia dos intelectuais comouma sociologia classista dos intelectuais, ainda que a categoria declasse social no seja tomada em verso materialista e que seja dadaprioridade metodolgica biografia sobre o processo social. do con-frontoentreoscomponentesclassistasesituaoprevalecentenom-bito dos mercados que regulam a distribuio dos contingentes de

    classe relegados atividade intelectual, argumenta Miceli, que seconfigura o argumento central da tese (id., 2001a:242). nesse senti-do, portanto, que a ideia de autointeresse dos intelectuais como pa-

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    dro motivacional do seu comportamento social se inscreve no hori-zonte classista. Segundo aquilata Miceli sobre os resultados de Intelec-tuais e Classes Dirigentes, a anlise dos intelectuais permitiu revelar aimbricao entre determinaes de classe que impelem carreira inte-lectualeasdemandaspoltico-ideolgicasquepossibilitamaabsorodos efetivos ameaados de serem despejados da classe dirigente (id.,2001a:243). Da mesma maneira, apenas num horizonte terico clas-sista que faz sentido equacionar as relaes dos intelectuais com oEstado em termos de cooptao, relao que teria impregnado atos padres de concorrncia estimulados pelos processos de urbaniza-o e industrializao (id., 2001a:244).

    justamente tendo em vista esse carter classista da sociologia dos in-telectuais de Sergio Miceli, que Daniel Pcaut considerou ambgua asua noo de interesse como explicativa das estratgias dos intelec-tuais dos anos de 1920-1940 em suas recorrentes relaes com o Estado(Pcaut,1990).AfinalPcautvnessasrelaesnoapromoodosin-teresses prprios dos intelectuais, mas a expresso da sua converso ao poltica (Pcaut, 1990:21), deixando clara inclusive sua identifi-cao com o modo pelo qual esses atores sociais interpretaram suasprprias vicissitudes nos termos da misso de que se sentiam inves-tidos. Respondendo crtica, Miceli afirma que Pcaut procurou mini-mizar o componente classista na determinao do perfil dos intelec-tuais em favor do privilegiamento das motivaes polticas de suapresena na sociedade (Miceli, 1999:114-115). E identifica como pos-tulado central da anlise do socilogo francs o mecanismo de liberta-o dos intelectuais de

    quaisquer constries sociais no conversveis de pronto em pedgio

    poltico.Adespeitodosseuslaoscomaselites,osintelectuaisbrasilei-ros se enquadrariam, como que por encanto, nos requisitos da defini-o de Mannheim de uma camada social sem vnculos: livres da can-ga oligrquica do passado, de seu enraizamento clientelstico e depen-dentenaestruturasociale,poressesmotivos,aptosaformulareaassu-mir um projeto de comando do Estado (id., 1999:115-116).

    SemnecessariamentecorroboraroargumentodePcaut,valeobservarque o sentido da sugesto de Mannheim sobre o papel dos intelectuais

    ganha inteligibilidade na medida em que levamos em conta o carterinacabado da revoluo burguesa em certas sociedades. E, consequen-temente, a fragilidade das classes sociais nestas circunstncias. Como

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    parece ser o caso do Brasil, como demonstrou Florestan Fernandes(1975).

    naconstruodeumcampoproblemticosobreoespaodeposiesdiferenciadas no interior das classes dirigentes brasileiras, e das pr-prias experincias cotidianas de classe abertas anlise por meio dorastreamento e exame das biografias, como forma de problematizar acompreensodasprpriasrelaesdeclasseepodernasociedade,queasdiferentespesquisasdeSergioMiceliparecemseencontrareganharunidade. Campo problemtico sem dvida devedor das proposiesdeBourdieu(1984),edesenvolvidoporMiceliapartireatravsdepes-quisas sistemticas na forma de estudos de casos empricos sobre dife-

    rentes fraes da elite brasileira os intelectuais, os polticos, o episco-pado, os artistas plsticos que lhe permite demonstrar de modo inte-grado a concorrncia, as alianas e dissenses entre as foras sociaisque se organizam no interior das classes dirigentes. Noutros termos,retomandonovamentesugestesfeitasemA Elite Eclesistica Brasileira,estudos de caso que lhe permitem demonstrar a margem de manobrarelativamente ampla de que as diferentes fraes de classe investiga-das dispem para cobrar e fazer valer o quinho que entendem ser oseuemtermosinstitucionaisemateriaisequemuitasvezesacabasere-

    velando um bice de propores considerveis a quaisquer polticasredistributivas que coloquem em risco seu interesse e privilgios (id.,1988:158).

    Em concluso, a prioridade metodolgica dada biografia no quadrode uma sociologia classista dos intelectuais permitiria identificar equalificaraheterogeneidadevivaecontraditriasobaaparentehomo-geneidade de categorias macro como classe social. Enquanto pre-

    valecer a tendncia de enxergar as relaes de classe como o confrontoentre entidades coletivas movidas por um destino inescapvel, cui-da-se pouco argumenta Miceli da heterogeneidade produzidapor padres de diferenciao sutilmente inculcados pelo sistema esco-lar, pela indstria cultural e pelas demais instituies que se incubemdotrabalhocotidianodeveicularaslinguagensqueexpressamasdife-renas sociais sob a capa de diferenas biolgicas, escolares, culturaisetc. (id., 2001a:245). E se insiste nesse ponto, diz Miceli, por acredi-tar que o trabalho de investigao em Cincias Sociais s tem sentido

    quando se dispe a estourar os princpios de expropriao material esimblica que permeiam as relaes entre dominantes e dominados ecujos artifcios so fabricados pelas instituies que dependem dos

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    produtos do trabalho de ns mesmos, intelectuais (ibid.). Mas se asinstituies dependem dos produtos do trabalho dos intelectuais,comoacitaoanterioracabadeafirmar,anoincorporaodadimen-so das ideias expressas na vida social anlise sociolgica ou a sua re-duo biografia constitui, exatamente, o principal limite heursticoda proposta de Sergio Miceli.

    E O PRODUTO DO TRABALHO INTELECTUAL?

    Fazendo o balano dos estudos sobre intelectuais brasileiros dos lti-mosvinteanos,SergioMicelisugerequeoconfrontoentreostrabalhosque mais contriburam para moldar o espao de debates e explica-

    es permitiria constatar duas tendncias metodolgicas principais:ora uma nfase na morfologia e composio interna do campo inte-lectual, suas instituies e organizaes, o peso relativo da categoriados intelectuais no interior dos grupos dirigentes, ora a nfase nasmodalidades de sua contribuio para o trabalho cultural e poltico(Miceli,1999:109).Nesseuniverso,seriapossveldistinguir,segundooautor,trsmodelosorientadoresdaspesquisas:oargumentosocio-lgico com tinturas culturalistas, de minha autoria, o argumentodoutrinrio-politicista, formulado pelo socilogo francs e latino-americanista Daniel Pcaut e o argumento organizacional e institu-cionalista, concebido pelo socilogo brasileiro Simon Schwartzman(id., 1999:110)5.

    O balano privilegia, contudo, as abordagens de histria social dosintelectuaisque,emgeral,noconferempapelrelevanteaoprodutodotrabalho simblico desses atores sociais, as ideias, e, em alguns casos,ao sentido das ideias com relao aos processos sociais e polticos mais

    amplos. Afinal, como Miceli comenta em relao ao sentido dos seusprprios trabalhos, e do modelo criado a partir deles, tratar-se-iade tentar contrapor-se, de um lado, abordagem da sociologia dasideias ou do pensamento, nos termos da tradio inaugurada porMannheim,e,deoutro,perspectivaquebuscadefinirasmodalida-desdecontribuiodosintelectuaisaotrabalhopolticonumasocieda-de a braos com um tumultuado e descompassado processo de trans-formao (id., 1999:111). O autor no deixa de apontar motivos paradescartarasperspectivasanalticasquecontemplamainvestigaoso-

    ciolgica das ideias. O principal deles refere-se ao fato de considerarque as obras dos intelectuais e, num sentido mais amplo, as ideias, soresultado de uma trajetria ou itinerrio biogrfico singular, e no de

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    tradies intelectuais ou de estruturas sociais. Assim, afirma que asobras dos intelectuais selecionados para a anlise em Intelectuais e clas-ses dirigentes, mesmo aquelas de fico, seriam sem rebuo, umatransposio literria de sua experincia pessoal (id., 2001a:161)6.

    Por isso, para diferenciar os membros da elite intelectual e burocrticaseria necessrio definir o perfil de seus investimentos na atividade in-telectual em detrimento do contedo de suas obras, tal como aparecereificado na histria das ideias (id., 2001a:210). Mesmo que alguns te-nham sujeitado diretamente seus escritos s exigncias postas pelosencargos da convocao poltica que os trouxe ao convvio com os n-cleos executivos e outros tenham procurado resguardar ao menos

    uma parte da sua produo intelectual das injunes partidrias e dasdemandas que lhes faziam certas faces com que colaboravam, to-dos eles, segundo Miceli, acabaram se tornando modelos de exceln-cia social da classe dirigente da poca medida que suas obras se con-verteram em paradigmas do pensamento poltico do pas (ibid.). Nes-se sentido, deixa de reconhecer a dimenso de conflito inscrita na for-mulao das ideias, como se todas defendessem interesses gerais dasociedade.

    Pode-se fazer a esse respeito, trs ponderaes de ordem terico-meto-dolgica.Aprimeira,comojobservamos,queparecendonodistin-guir mtodo e objeto, Miceli tende a confundir, na tentativa de fir-mar a especificidade da sua proposio metodolgica, o interesse portextos,ideiaseseusefeitossociaisepolticoscomaaceitaodasvelei-dades dos intelectuais a respeito do seu papel na sociedade. O proble-ma, naturalmente, no idiossincrtico, mas de mtodo. Pois, se os es-teretipos da representao social dos intelectuais podem levar a sim-

    plificaes da complexidade interna das suas obras, no preciso con-cordar com a premissa da autonomia do texto para reconhecer que asideias possuem um fundamento que ultrapassa a experincia ou mes-mo o domnio conceitual de indivduo.

    Asegundaponderaoadequerecusaraideiadeautonomiadaobrano implica necessariamente aceitar a tese do condicionamento da so-ciedadesobreasideiascomoalgojdadodeantemo,noimportandoaqui se os condicionantes so entendidos em termos econmicos, pol-

    ticos, institucionais ou biogrficos. Por isso tambm a viso disjuntivaentre as abordagens chamadas textualistas e contextualistas queseapre-sentam,emgrandemedida,comoconcorrentesnodebatecontempor-

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    importncia ou no dos textos clssicos ou no nas Cincias Sociaiscorrespondem, em geral, a perspectivas determinadas sobre o prpriocarter da vida social. E a negao da relevncia da interpretao tex-tual para as Cincias Sociais, como naquelas convenes acima referi-das,parecemesmorepousarnumtipotambmgeraldeconfianaem-prica na transparncia do mundo social (Alexander, 1999:77).

    Como qualquer pesquisa sobre intelectuais tanto assume alguma ima-gem geral da sociedade, quanto seus prprios resultados lhes acres-centam ou subtraem plausibilidade, pode-se dizer que a crena, emparte generalizada na Sociologia contempornea, de que ideias sopouco relevantes nos processos de mudana social, a despeito de uma

    dimensopotencialmentecrtica,jquevoltadacontraapretensodasideias de governar soberanamente o mundo, acaba por obscurecer seupapelcomoforassociaisreflexivas.Danossaperspectiva,asociedadeno se realiza desacompanhada das interpretaes de que objeto e,mais do que isso, as interpretaes proporcionam significado vidasocial, pesadas inclusive suas veleidades, possibilidades e limites efe-tivos.Porissofaz-senecessriovoltar,principalmentenocasobrasilei-ro, s (no por acaso assim chamadas) interpretaes do Brasil, umavezqueelastambmoperamnaorientaodascondutasdosatoresso-ciais, na organizao da vida social, nos processos de mudana e nasrelaes de poder que isso sempre implica.

    Da que o desafio analtico central para uma sociologia dos intelectuaisseja, a nosso ver, nada menos do que completar o movimento caracte-rsticodaSociologiadoConhecimento7.Estadefiniuatarefadoanalis-ta das ideias, valores, formas, representaes, enfim, do intangvel,como sendo a de esclarecer os processos de sua constituio social e as

    relaes mais ou menos condicionadas que mantm com os grupos so-ciais e as sociedades que as engendram. Mas as tentativas de desmisti-ficao atravs da exposio da matriz dos seus interesses no se mos-traram capazes de estancar as veleidades de que os intelectuais so ca-pazes de nutrirem sobre si prprios, dada a tenacidade com que a pr-priasociedadebrasileira,toprofundamentemarcadaqueestporumprocesso de formao autocrtico, tem instigado a participao dessassuas minorias o que, alis, pode ser indicativo da continuidade daspolmicasemtornodoprprioIntelectuais e classes dirigentes no Brasil8.

    Por isso, agora, com base em algumas das conquistas da prpria Socio-logia do Conhecimento, preciso desfazer-nos de princpios formais

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    prvia e fixamente estabelecidos, como idealismo ou materialis-mo, representaes ou prticas, texto ou contexto. Em seulugar, preciso buscar tipos especiais de correspondncia que abramao pesquisador a possibilidade de investigar e de qualificar as mlti-plas conexes de sentido que as ideias podem manifestar na sociedade,dependendo das circunstncias histricas e da fora social que assu-mem em relao a diferentes fatores, materiais e imateriais. No se tra-ta de assimilar, ou reduzir, relaes sociais s suas formas expressivas,mas antes de perseguir a comunicao reflexiva existente entre elas apartir tambm da produo dos intelectuais. Esta, como o trabalhosimblico de outros grupos sociais, esconde e revela nada mais e nadamenos do que aspectos cruciais das suas sociedades, e so sempre pas-

    sveis de serem sociologicamente qualificados e compreendidos. Tare-fa to mais urgente na medida em que representa condio para, para-fraseando Sergio Miceli (2001a:79), esclarecer os dilemas que hoje en-frentamos como herdeiros de uma tradio que pesa tanto mais en-quantononosdispusermosaencar-ladefrenteearefrearadosagemde clichs na apreciao de seu legado.

    (Recebido para publicao em junho de 2009)(Verso definitiva em dezembro de 2010)

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    NOTAS

    1. Segundo sugere o prprio Miceli: fui me convencendo de que talvez a maior resis-tncia ao argumento que elaborara a respeito dos intelectuais brasileiros tinha a ver

    com seu retrato de corpo inteiro, dissecados nas repercusses sociais e simblicas desua sexualidade, revirados em suas mazelas e expedientes, flagrados nos espaos desociabilidade em que de fato se moviam e de onde extraam a matria-prima de suasobras e tomadas de posio (2001c:411).

    2. Para uma discusso sobre as condies sociais da circulao internacional das ideiase as possibilidades e limites da importao e exportao intelectual, ver o prprioBourdieu (2002a).

    3. Retomamos de Bastos (2006) as formulaes sobre Gilberto Freyre.

    4. O livro anunciado Jazigos e Covas Rasas, que se constituiria no 4o volume de Introdu-

    o ao Estudo da Sociedade Patriarcal no Brasil. O texto no chegou a ser terminado, co-nhecendo-se somente fragmentos do mesmo.

    5. Miceli comenta ainda outros livros: Guardies da Razo: Modernistas Mineiros (1994),de Helena Bomeny; Histria e Historiadores: A Poltica Cultural do Estado Novo (1996),de Angela de Castro Gomes; Projeto e Misso: O Movimento Folclrico Brasileiro (1997),de Lus Rodolfo Vilhena; e Destinos Mistos: Os Crticos do Grupo Clima em So Paulo(1998), de Helosa Pontes.

    6. Como sugere, por exemplo, com relao aos romances e romancistas da dcada de1930: Pertencendo quase sempre a famlias de proprietrios rurais que se arruina-ram,osromancistaseseusherisnotmoutrapossibilidadesenoadesobreviver

    custa de empregos no servio pblico, na imprensa e nos demais ofcios que se pres-tam s divagaes do esprito. Dessa posio em falso entre dois mundos, os herisdesses romances extraem a matria-prima de que se nutrem tanto suas veleidades li-terrias, quase sempre exteriorizadas seja sob a forma de dirios mantidos em segre-do, seja sob a modalidade de escritos encomendados por jornais e polticos venais(id., 2001a:160).

    7. Para um aprofundamento da questo, ver Botelho (2005).

    8. So exemplos recentes dessa continuidade as numerosas matrias de que foi objetona mdia impressa o volume Intelectuais brasileira (2001) sendo o livro em questoreeditado junto a outros trabalhos de Miceli sobre o tema, recepo pouco comumpara um livro acadmico, mas talvez favorecida tambm pelo fato de que naquelemomento a Presidncia da Repblica era ocupada justamente por um intelectual. Eno caso de Fernando Henrique Cardoso, como observou Afrnio Garcia Jr., a condi-o de socilogo foi apresentada durante toda a campanha eleitoral como prova desua capacidade de afrontar o desafio da mundializao dos mercados e ao mesmotempo combater a misria crescente de parte considervel da populao do pas(Garcia Jr., 2004:285). E, mais ainda, a qualidade de socilogo foi relembrada cadavez que quis pr em relevo sua condio de intelectual, buscando se diferenciar deoutros profissionais e especialistas da poltica cuja nica preocupao seria a preser-vao de seus mandatos eletivos (id., 2004:285-286). Tudo teria se passado, emsuma, como se, para ser reconhecido como homem de Estado, fosse necessrio mo-bilizaracrenanaficodeserumperitoemtodososdebatessobreofuturodanaoe seu peso na cena internacional. Um livro com uma entrevista sua, publicado no

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    exerccio do mandato, no se intitula O Presidente Segundo o Socilogo (1998), traindoclaramente a pretenso de acumular os benefcios da legitimidade intelectual e os dalegitimidade poltica? (id., 2004:286).

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    ABSTRACTFor a Sociology of Intellectuals

    The study retraces and discusses Sergio Micelis contribution to the sociologyof intellectuals. The hypothesis is that despite the focus in his research on theinternal elements in intellectuals strategies for insertion, Miceli leaves thetension open in the assumption of autonomy in an intellectual field and itsrelations with the broader social process. We highlight his proposal of

    biography as the analytical locus, discussing (1) the ambiguities deriving fromthe lack of distinction between biography as a source and as a method, (2) theclass-based nature of his sociology of intellectuals, and (3) the emphasis on theheterogeneity underlying the macro-sociological categories. We discuss otherviews that compete with Micelis perspective and argue for a new

    understanding of ideas as reflexive social forces and as part of the agenda incontemporary sociology.

    Key words: intellectuals; ideas; social thought; contemporary Braziliansociology

    RSUMPour une Sociologie des Intellectuels

    Dans cet article, on reprend et discute la contribution de Sergio Miceli unesociologie des intellectuels. On part de lhypothse que, malgr tout sonintrt pour les recherches sur les lments internes des stratgies dinsertiondes intellectuels, lanalyse de Miceli ne parvient pas envisager lautonomie

    dunchampintellectueletdesesrapportsavecleprocessussocialpluslarge.On souligne sa proposition de biographie en tant que locus analytique, enexaminant 1) les ambiguts issues du manque de prcision entre biographiecomme source et comme mthode, 2) le caractre de classe de sa sociologie desintellectuels et 3) laccent mis sur lhtrognit sous-jacente aux catgoriesmacrosociologiques. la lumire des perspectives qui concurrencent celles deMiceli, on suggre une nouvelle comprhension des ides comme forcessociales de rflexion et comme lment dun programme de la sociologiecontemporaine.

    Mots-cls: intellectuels; ides; pense sociale; sociologie brsiliennet i

    Para uma Sociologia dos Intelectuais