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SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL O livro "Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil" é um achado pre- cioso por configurar chaves analíticas que abrem fecun- das perspectivas de debate e que nos permitem ver, por dentro, a atuação da sociedade civil, em sua heterogeneidade de interesses e atores, nos "en- contros" com o Estado, este visto como espaço contraditório que abriga, também, o conflito e a disputa de projetos políticos. Em verdade, o livro é um retrato da parti- cipação da sociedade civil nos espaços públi- cos, focalizando a complexidade, a diversidade, o conflito, a disputa nas relações entre Estado e Sociedade Civil, construídas no processo recen- te de democratização brasileira em tempos de políticas de ajuste. Este retrato, impresso em 364 páginas, é fruto de uma pesquisa de âmbito nacional, rea- lizada entre 1999 e 2000, vinculada a um projeto internacional, intitulado Civil Society and Governance, desenvolvido em 22 países, sob a coordenação do Institute of Development Studies (IDS) da Universidade de Sussex, na Inglaterra e financiado pela Fundação Ford. Assim, essa pesquisa no Brasil resultou neste livro, que se constitui numa produção instigante, que desmonta visões e prenoções con- sagradas no debate teórico e político sobre a sociedade civil, em sua relação com o Estado. Inova, em seus referenciais de análise, na vigi- lância permanente para evitar o risco costumei- ro das críticas descontextualizadas, das visões reducionistas e das generalizações apressadas, BCH-Uf PERiÓDICOS tão ao gosto de determina- das leituras na academia e na militância política. Três reconceituações básicas perpassam toda a análise: a) a afirmação da heteroge- neidade da sociedade civil, desvelada com o avanço do processo de construção de- mocrática, contrapondo-se à visão homoge- neizadora, arraigada em nossa cultura política como herança da organização unificada da socie- dade civil no combate ao Estado Autoritário, na décadas de 1970 e 1980. b) A tese de que o processo de democratização não é linear mas contraditório e fragmentado, devendo ser en- tendido como desigual no seu ritmo, nos eu efeitos sobre as diferentes áreas da vida social e política, combinando avanços, estagnação, e até mesmo, retrocessos. c) A configuração do cará- ter histórico da relação entre Estado e Socieda- de Civil como objeto da política e, portanto transforrnáveis pela ação política, confrontando com interpretações que "naturalizam" uma rela- ção de oposição entre Estado e sociedade civil como ponto de partida, numa mera oposição de "lógicas de atuação", eminentemente reducio- nista. Na prática, a superação da visão da socie- dade civil como "pólo de virtude" e do Estado como encarnação do "mal", incapaz de explicar a complexidade das relações entre Estado e o- ciedade civil no cenário contemporâneo. Essa redefinição de marcos conceituai consubstancia-se numa noção-chave, definidora do fio condutor da investigação: "encontro en- tre sociedade civil e Estado". Esta noção demar- ca a amplitude e a flexibilidade dos vário tipo DE EVELlNA DAGNINO (ORGANIZADORA) Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil São Paulo: Paz e Terra - 2002. POR ALBA MARIA PINHO DE CARVALHO Doutora em Sociologia, professora do Curso de Ciências Sociais da UFC. CARVALHO, MARIA PINHO DE. SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL. P. 119 A 121 119

SOCIEDADE CIVIL EESPAÇOS PÚBLICOS NOBRASILrepositorio.ufc.br/ri/bitstream/riufc/9870/1/2002_art_ampcarvalho.pdf · te de democratização brasileira em tempos de políticas de ajuste

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SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL

Olivro "Sociedade Civil eEspaços Públicos noBrasil" é um achado pre-

cioso por configurar chavesanalíticas que abrem fecun-das perspectivas de debatee que nos permitem ver,por dentro, a atuação dasociedade civil, em suaheterogeneidade de interesses e atores, nos "en-contros" com o Estado, este visto como espaçocontraditório que abriga, também, o conflito e adisputa de projetos políticos.

Em verdade, o livro é um retrato da parti-cipação da sociedade civil nos espaços públi-cos, focalizando a complexidade, a diversidade,o conflito, a disputa nas relações entre Estado eSociedade Civil, construídas no processo recen-te de democratização brasileira em tempos depolíticas de ajuste.

Este retrato, impresso em 364 páginas, éfruto de uma pesquisa de âmbito nacional, rea-lizada entre 1999 e 2000, vinculada a um projetointernacional, intitulado Civil Society andGovernance, desenvolvido em 22 países, sob acoordenação do Institute of Development Studies(IDS) da Universidade de Sussex, na Inglaterra efinanciado pela Fundação Ford.

Assim, essa pesquisa no Brasil resultouneste livro, que se constitui numa produçãoinstigante, que desmonta visões e prenoções con-sagradas no debate teórico e político sobre asociedade civil, em sua relação com o Estado.Inova, em seus referenciais de análise, na vigi-lância permanente para evitar o risco costumei-ro das críticas descontextualizadas, das visõesreducionistas e das generalizações apressadas,

BCH-UfPERiÓDICOS

tão ao gosto de determina-das leituras na academia ena militância política. Trêsreconceituações básicasperpassam toda a análise:a) a afirmação da heteroge-neidade da sociedade civil,desvelada com o avanço doprocesso de construção de-

mocrática, contrapondo-se à visão homoge-neizadora, arraigada em nossa cultura políticacomo herança da organização unificada da socie-dade civil no combate ao Estado Autoritário, nadécadas de 1970 e 1980. b) A tese de que oprocesso de democratização não é linear mascontraditório e fragmentado, devendo ser en-tendido como desigual no seu ritmo, nos euefeitos sobre as diferentes áreas da vida social epolítica, combinando avanços, estagnação, e atémesmo, retrocessos. c) A configuração do cará-ter histórico da relação entre Estado e Socieda-de Civil como objeto da política e, portantotransforrnáveis pela ação política, confrontandocom interpretações que "naturalizam" uma rela-ção de oposição entre Estado e sociedade civilcomo ponto de partida, numa mera oposição de"lógicas de atuação", eminentemente reducio-nista. Na prática, a superação da visão da socie-dade civil como "pólo de virtude" e do Estadocomo encarnação do "mal", incapaz de explicara complexidade das relações entre Estado e o-ciedade civil no cenário contemporâneo.

Essa redefinição de marcos conceituaiconsubstancia-se numa noção-chave, definidorado fio condutor da investigação: "encontro en-tre sociedade civil e Estado". Esta noção demar-ca a amplitude e a flexibilidade dos vário tipo

DE EVELlNA DAGNINO (ORGANIZADORA)

Sociedade Civil e Espaços Públicos no BrasilSão Paulo: Paz e Terra - 2002.

POR ALBA MARIA PINHO DE CARVALHO

Doutora em Sociologia, professora do Curso deCiências Sociais da UFC.

CARVALHO, MARIA PINHO DE. SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL. P. 119 A 121 119

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de relação que se estabelecem entre estas duasinstâncias, onde diferentes atores sociais dispu-tam projetos políticos.

Os encontros entre sociedade civil e Esta-do são estudados no cenário do processo dedemocratização do país, em curso desde o finalda década de 1980, e que se expressam numduplo movimento: a revitalização da sociedadecivil e a democratização do Estado. O trabalhotem como idéia central a possibilidade de umaatuação conjunta entre sociedade civil e Estado,expressa paradigmaticamente na bandeira da"participação da sociedade civil", assumida, comdiferenciações, no interior de ambas as partes.

E, na perspectiva de analisar tais encon-tros no Brasil contemporâneo, a autora tomacomo eixo articulador central, os espaços públi-cos, constituídos na década de 1990. Em verda-de, os espaços públicos, na medida em queestabelecem a convivência entre interlocutoresportadores de interesses diferenciados, espaçosregulados democraticamente para a administra-ção de conflitos e para a produção de consen-sos, parecem constituir espaços de construçãode uma dimensão propriamente pública na so-ciedade brasileira, distinta da regulação produ-zida pela lógica estrita do Estado e do mercado.Daí esses espaços encarnarem uma das grandesnovidades no nosso difícil processo de constru-ção democrática. A análise incide no potencialdemocratizante de diferentes espaços públicos,com diversidade de formatos, temáticas e com-posição, mostrando, assim, manifestações con-cretas da complexidade da composição dasociedade civil.

O livro esboça uma avaliação dessa ex-periência recente, de constituição de espaçospúblicos, examinando, detalhadamente, seiscasos que abrangem várias regiões do Brasil eincluem uma gama de atores temáticos, inser-ções institucionais e formatos organizacionais.Assim, configura-se um inovador campo analí-tico, com uma leitura instigante da participa-ção da sociedade civil no processo deconstrução da democracia, avaliando avanços,

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limites, possibilidades, desafios. Desse modo,o resultado é apresentado em seis capítulosespecíficos: 1) O Orçamento Participativo: asExperiências de Porto Alegre e Belo Horizonte.2) Os Conselhos Gestores e a democratizaçãodas políticas públicas no Brasil. 3) A Atuaçãodas Organizações Não-Governamentais: entreo Estado e a Sociedade Civil. 4) os FórunsTemáticos da Sociedade Civil: O Fórum Nacio-nal da Reforma Urbana (FNRU). 5) As relaçõesentre o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra(MST) e o Estado: programas de Alfabetizaçãode Jovens e Adultos no Paraná. 6) O ConselhoCearense dos Direitos da Mulher (CCDM)l.

Inserindo o caso brasileiro no panorama maisamplo da sociedade civil na América Latina, inclu-em-se dois ensaios sobre a dinâmica da sociedadecivil e sua relação complexa com a governabilidadedemocrática: 1) Sociedade Civil e GovernabilidadeDemocrática nos Andes e Cone Sul: uma VisãoPanorâmica na Entrada do Século XXI e 2) Socie-dade Civil e Governabilidade no México.

A rigor, o livro articula-se em torno de umgrande eixo: o impulso democratizado r da par-ticipação da sociedade civil nos diferentes espa-ços públicos, numa avaliação de seus limites epossibilidades.

No contexto da obra, ganha destaque ocapítulo de autoria de Evelina Dagnino - coor-denadora nacional da pesquisa e organizadorado livro - sintetizando os principais resultadosdos estudos de caso e, sobretudo, examinandoquestões-chave suscitadas pela pesquisa e que,hoje, perpassam o debate sobre a constituição efuncionamento dos espaços públicos nos seusdistintos encontros com o Estado. É uma análiseeminentemente provocativa, conclamando-nosao debate. A partir das conclusões básicas dapesquisa, Evelina Dagnino trabalha questões-chave como: a natureza das relações entre Esta-do e Sociedade Civil; os limites e possibilidadesda partilha do poder; a atuação conjunta entreEstado e Sociedade Civil, em suas diferentes al-ternativas, em termos de compartilhamento deprojetos políticos, de complementaridades e de

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parcerias e o impacto cultural no processo dedemocratização, dentre outras.

Um elemento central no conjunto dessasquestões é a discussão da própria perspectivade atuação conjunta Estado/Sociedade Civil, emtermos da natureza e do caráter da participaçãodesta última. Nesta direção, a análise dos diferen-tes espaços públicos mostra alternativas distin-tas, com perspectivas e sentidos qualitativamentediversos, conforme se segue:

• compartilhamento de um Projeto Po-lítico entre Governo e Sociedade Ci-vil, destacando-se um elementorecorrente mencionado em vários es-tudos: a existência de indivíduos emposições-chave no interior do apara-to estatal que se comprometem comos projetos participativos; ou, o in-verso: pessoas cuja disposição indivi-dual é hostil e negativa em relação àparticipação e que, dadas as posiçõesque ocupam, acabam contribuindopara a inviabilização do funcionamen-to efetivo do espaço público;

• complementaridade instrumental entreos propósitos do Estado e da sociedadecivil, enquanto uma estratégia do Esta-do para implementação do ajusteneoliberal que exige o encolhimento dasresponsabilidades sociais do Estado.

• complementaridade vinculada a te-máticas específicas, em áreas nas quaiso Estado tem carência de competências.

Segundo Dagnino, a complementaridadeinstrumental faz parte de uma "confluência per-versa" entre dois projetos qualitativamente dis-tintos: o projeto de participação construído ao

redor da extensão da cidadania e do aprofun-damento da democracia, a partir dos anos 1980e o projeto de um Estado Mínimo que se isenta,progressivamente, do seu papel de garantidorde direitos, transferindo responsabilidades paraa sociedade civil. Assim, em meio a projetos queapontam em direções opostas, a participação dasociedade civil, hoje, no "Brasil do ajuste", sedá, em um terreno minado em que o que estáem jogo é o avanço ou o recuo de cada um dosprojetos: o projeto da ampliação e garantia dedireitos da democracia e o projeto da restrição edesmonte de direitos do ajuste.

Enfim, o livro "Sociedade civil e espaçospúblicos no Brasil" é um convite ao pensar críti-co que, hoje, vem se reafirmando no desmontedo mito do "pensamento único" propalado pe-las ideologias do ajuste.

A organizadora do livro, ao apresentá-lo,declara a intenção de que ele possa contribuirpara o debate sobre o processo de democratiza-ção e, especialmente, sobre as perspectivas deseu aprofundamento na sociedade brasileira. Ine-gavelmente, mais do que nunca, na atual con-juntura brasileira, o livro oferece elementos paraque se concretize essa intenção, provocando odebate, a discussão que se coloca para estudio-sos, militantes e pesquisadores como um "deverde ofício".

NOTA

1 Desenvolvido pelas pesquisadoras Gema GalganiEsmeraldo (Universidade Federal do Ceará) eMagnólia Azevedo Said (da ONG ESPLAR), focali-zando o referido Conselho como espaço deinterlocução entre as demandas dos Movimentosde Mulheres e o Estado.

CARVALHO, MARIA PINHO DE. SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇOS PÚBLICOS NO BRASIL. P. 119 A 121 121