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RDS IX (2017), 2, 219-254 Sociedade com o capital aberto ao investimento do público: Relevância da lei pessoal na aquisição e perda da qualidade de sociedade aberta MESTRE JULIANO FERREIRA * Sumário: A. Enquadramento do tema: a sociedade aberta e a (exclusão da) negociabili- dade em mercado. B. A relevância da lei pessoal para a qualificação da sociedade aberta: 1. Enquadramento do tema; 2. Elementos de interpretação jurídica: 2.1. Elemento gramati- cal; 2.2. Elemento racional ou teleológico; 2.3. Elemento sistemático (contexto da lei e luga- res paralelos); 2.4. Elemento histórico; 3. Conclusão preliminar. C. A perda de qualidade de sociedade aberta como via para a exclusão de negociação: 1. Enquadramento; 2. História: 2.1. O primeiro momento; 2.2. O segundo momento; 2.3. O terceiro momento; 3. A correta interpretação dos requisitos de que depende a perda de qualidade de sociedade aberta na sequência de OPA: 3.1. A ‘insuficiência’ do pressuposto quantitativo; 3.2. A integração do regime da perda da qualidade de sociedade aberta num sistema unitário e a consideração de lugares paralelos; 3.3. A proteção do investidor como critério de decisão e deferimento do pedido de perda de qualidade de sociedade aberta. D. Conclusões. A. Enquadramento do tema: a sociedade aberta e a (exclusão da) negociabilidade em mercado ** I. No âmbito da regulação do direito dos valores mobiliários o legislador nacional socorre-se, para variados efeitos 1 , da noção de sociedade com o capital aberto ao investimento do público, abreviadamente, sociedade aberta. * Diretor do Departamento Emitentes da CMVM. ** O presente texto expressa opiniões estritamente pessoais que não podem ser legitimamente entendidas como manifestação da posição da CMVM sobre as matérias versadas. 1 Por exemplo, para imposição de deveres à própria sociedade (tratamento igualitário, menção em atos externos) e para imposição de deveres aos seus acionistas (comunicação de participações qualificadas e dever de lançamento de oferta pública de aquisição). Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2017).indb 219 Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2017).indb 219 12/06/17 14:55 12/06/17 14:55

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Sociedade com o capital aberto ao investimento do público: Relevância da lei pessoal na aquisição e perda da qualidade de sociedade aberta

MESTRE JULIANO FERREIRA*

Sumário: A. Enquadramento do tema: a sociedade aberta e a (exclusão da) negociabili-dade em mercado. B. A relevância da lei pessoal para a qualifi cação da sociedade aberta: 1. Enquadramento do tema; 2. Elementos de interpretação jurídica: 2.1. Elemento gramati-cal; 2.2. Elemento racional ou teleológico; 2.3. Elemento sistemático (contexto da lei e luga-res paralelos); 2.4. Elemento histórico; 3. Conclusão preliminar. C. A perda de qualidade de sociedade aberta como via para a exclusão de negociação: 1. Enquadramento; 2. História: 2.1. O primeiro momento; 2.2. O segundo momento; 2.3. O terceiro momento; 3. A correta interpretação dos requisitos de que depende a perda de qualidade de sociedade aberta na sequência de OPA: 3.1. A ‘insufi ciência’ do pressuposto quantitativo; 3.2. A integração do regime da perda da qualidade de sociedade aberta num sistema unitário e a consideração de lugares paralelos; 3.3. A proteção do investidor como critério de decisão e deferimento do pedido de perda de qualidade de sociedade aberta. D. Conclusões.

A. Enquadramento do tema: a sociedade aberta e a (exclusão da) negociabilidade em mercado**

I. No âmbito da regulação do direito dos valores mobiliários o legislador nacional socorre-se, para variados efeitos1, da noção de sociedade com o capital aberto ao investimento do público, abreviadamente, sociedade aberta.

* Diretor do Departamento Emitentes da CMVM.** O presente texto expressa opiniões estritamente pessoais que não podem ser legitimamente entendidas como manifestação da posição da CMVM sobre as matérias versadas. 1 Por exemplo, para imposição de deveres à própria sociedade (tratamento igualitário, menção em atos externos) e para imposição de deveres aos seus acionistas (comunicação de participações qualifi cadas e dever de lançamento de oferta pública de aquisição).

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Trata-se de uma qualifi cação jurídica que, passando a designar as sociedades que preencham algum dos pressupostos mencionados no artigo 13.º do Código dos Valores Mobiliários2, determinam a sujeição a um regime jurídico especial face ao aplicável às demais sociedades comerciais anónimas.

II. Várias são as questões que esta qualifi cação comporta, ao ponto de se suspeitar serem hoje maiores os problemas que a mesma acarreta do que os benefícios que lhe estão associados, particularmente no contexto de legislação comunitária que não adota como paradigma da regulação a sociedade aberta, mas a sociedade cotada.

Entre as diversas questões que aqui poderíamos colocar em evidência, abor-daremos uma que, pela sua relevância e recorrência merece, nesta sede, tal destaque. Referimo-nos à problemática da determinação dos termos em que a exclusão de negociação das ações de sociedade aberta cotada pode ocorrer, em virtude do pelo menos aparente condicionamento de tal resultado à prévia qualifi cação como sociedade aberta e à concomitante implementação de mecanis-mos que apenas estão previstos para sociedades que efetivamente tenham aquela qualidade. Em causa estarão, como mecanismos de utilização voluntária que determinam a exclusão de negociação em mercado regulamentado, a própria perda da qualidade de sociedade aberta (artigos 27.º e 29.º/2) e a aquisição potestativa (artigos 194.º e 195.º/4).

III. A questão em causa adquire relevo a dois níveis. Primeiro, na medida em que é necessário determinar se uma sociedade sujeita a lei pessoal que não a portuguesa pode, ainda assim, qualifi car-se como sociedade aberta, de tal forma que algum daqueles mecanismos constitua via possível para a exclusão de nego-ciação em mercado das ações representativas do seu capital.

Depois, porque se afi gura necessário determinar se efetivamente resulta da lei que a exclusão de negociação, por via da perda de qualidade de socie-dade aberta de acordo com o artigo 27.º/1/a pode constituir consequência direta da simples obtenção de 90% do capital social na sequência de OPA, mesmo quando, por não se ter adquirido 90% das ações objeto da oferta, não se tenham alcançado os patamares constitutivos dos direitos de aquisição e alie-nação potestativas.

Serão esses os dois vetores que orientam, pois, a nossa análise.

2 As disposições legais sem identifi cação do diploma a que pertencem devem entender-se como reportadas ao Código dos Valores Mobiliários, na sua versão atual.

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B. A relevância da lei pessoal para a qualifi cação da sociedade aberta

1. Enquadramento do tema

I. A primeira questão para a qual procuramos resposta é a de saber se pode qualifi car-se como aberta qualquer sociedade, independentemente da lei pes-soal a que se encontre sujeita. Poderá, assim, uma sociedade sujeita a lei pessoal espanhola, brasileira (…) que promova alguma das operações a que se refere o artigo 13.º ser qualifi cada como sociedade aberta?

A redação do artigo em causa não é esclarecedora. Ao contrário do que sucede em outros preceitos legais, que clarifi cam o âmbito subjetivo da sua incidência, o artigo 13.º não refere que tal qualifi cação se aplica a sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa, a sociedades sujeitas a diferente lei pessoal ou inde-pendentemente da lei pessoal. Refere-se, genericamente, a sociedades. A dúvida é, portanto, legítima.

II. Para tornar clara esta questão, cumpre ter consciência de que a resolu-ção de confl itos de competência territorial, no âmbito de situações jurídicas plurilocalizadas é, antes de mais, uma questão de direito internacional privado. Cumpre, por isso, identifi car as normas de resolução de confl itos aplicáveis, identifi cando a ordem jurídica melhor colocada para dar resposta à questão, de forma a delinear as regras a aplicar ao caso concreto.

III. A delimitação do âmbito de aplicação espacial do Código dos Valores Mobiliários é feita mediante recurso a variadas técnicas3. Determinadas normas, por exemplo, determinam a aplicabilidade da lei pessoal do emitente4 ou aten-dem às regras de um direito estrangeiro5; outras, delimitam a sua aplicabilidade

3 De acordo com a tipifi cação de Maria Helena Brito, “Sobre a aplicação no espaço do novo Código dos Valores Mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, abril de 2000, o Código dos Valores Mobiliários recorre a normas de confl itos de leis no espaço, de caráter bilateral, normas unilaterais, normas de direito material especial, normas de reconhecimento de requisitos preenchidos ao abrigo de um direito estrangeiro, normas que preveem a atendibilidade de um direito estrangeiro, normas que admitem a interferência do direito português no direito estrangeiro competente, com a fi nalidade de proteção da parte institucionalmente mais fraca e a normas de aplicação imediata.4 Nos termos do artigo 39.º, «[a] capacidade para a emissão e a forma de representação dos valores mobiliários regem-se pela lei pessoal do emitente.».5 O artigo 227.º estabelece que «[s]ó podem ser admitidos à negociação valores mobiliários cujo conteúdo e forma de representação sejam conformes ao direito que lhes é aplicável e que tenham sido, em tudo o mais, emitidos de harmonia com a lei pessoal do emitente.».

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a pessoas sujeitas a lei pessoal portuguesa6; outras ainda, destinadas à proteção da parte institucionalmente mais fraca, preveem excecionalmente a interferência do direito português no direito estrangeiro competente7.

Ora, nada disto parece suceder com o artigo 13.º que, para efeitos de apli-cação territorial, se revela literalmente omisso.

A norma que prevê a qualifi cação de uma sociedade como aberta não identifi ca, restringindo ou estendendo, o seu âmbito espacial de aplicação. Tal poderia simplesmente signifi car que, não restringindo a aplicabilidade da refe-rida qualifi cação em função da lei pessoal da sociedade em causa, a mesma se aplicaria indistintamente, não relevando, portanto, a lei pessoal da sociedade interveniente numa das várias operações de mercado ali identifi cadas, sendo a mera ocorrência de uma dessas operações, tendo como destinatários pessoas com residência ou sede em Portugal, originadora daquela qualifi cação.

IV. Parece-nos, contudo, não ter sido essa a intenção do legislador. A com-prová-lo está, desde logo, a diferente redação do artigo 108.º/1, onde, preten-dendo regular o direito aplicável às ofertas públicas dirigidas especifi camente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal (norma destinada, portanto, à proteção dos mesmos destinatários incluídos nas hipóteses das várias alíneas do artigo 13.º/1), se estabelece expressamente a aplicabilidade das dispo-sições do título III (ofertas públicas) e dos regulamentos que o complementem, «…seja qual for a lei pessoal do oferente ou do emitente e o direito aplicável aos valores mobiliários que são objecto da oferta»8.

Do confronto do artigo 13.º com o artigo 108.º resulta que o segundo, atenta a sua letra, identifi ca como de aplicação imediata todas as normas daquele título, circunstância que bem se percebe, atento o evidente risco que o apelo

6 O artigo 16.º, n.º 1, estabelece que «[q]uem atinja ou ultrapasse participação de 10%, 20%, um terço, metade, dois terços e 90% dos direitos de voto correspondentes ao capital social de uma sociedade aberta, sujeita a lei pessoal portuguesa, e quem reduza a sua participação para valor inferior a qualquer daqueles limites deve, no prazo de quatro dias de negociação após o dia da ocorrência do facto ou do seu conhecimento (a) [i]nformar desse facto a CMVM e a sociedade participada».7 Assim sucede com a previsão do artigo 321.º/5, de onde resulta que «[n]os contratos de intermediação celebrados com investidores não qualifi cados residentes em Portugal, para a execução de operações em Portugal, a aplicação do direito competente não pode ter como consequência privar o investidor da protecção assegurada pelas disposições do presente capítulo e da secção iii) do capítulo i) sobre informação, confl ito de interesses e segregação patrimonial.»8 No mesmo sentido veja-se a redação do artigo 16.º/4/a, de onde resulta a necessidade de identifi car toda a cadeia de entidades a quem a participação qualifi cada é imputável, independentemente da lei a que se encontrem sujeitas.

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ao investimento junto do público comporta para os investidores, quando não devidamente regulado.

Risco semelhante, porém, não se pode afi rmar em relação à qualifi cação como aberta de determinada sociedade sujeita a lei pessoal que não a portu-guesa: não resulta de qualquer disposição a menção expressa à sua aplicabilidade independentemente da lei pessoal da sociedade em causa, ao mesmo tempo que essa qualifi cação não implica, por si só, qualquer proteção daqueles que, tendo resi-dência ou estabelecimento em Portugal, são enquadrados na hipótese de apli-cação do artigo 13.º. Ou seja, a qualifi cação de uma sociedade como aberta, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a imposição do dever de divulgar um prospeto, não atribui às pessoas incluídas no âmbito de proteção da norma um mecanismo de proteção que, atento o âmbito normativo de aplicação do Código, se deva impor como de aplicação imediata.

As normas de aplicação imediata, a que se refere o artigo 3.º, correspondem a comandos normativos imperativos que, «…pelo seu conteúdo, fi nalidade e posição que ocupam no ordenamento a que pertencem, reclamam aplicação mesmo nas situações internacionais sujeitas a um direito estrangeiro, desde que entre essas situações e a ordem jurídica em que tais normas se inserem exista uma ligação especial…»9.

A caracterização do artigo 13.º como norma de aplicação imediata impli-caria que, não obstante ser a lei pessoal do emitente competente para defi nir o estatuto da sociedade, a qualifi cação como sociedade aberta deveria, ainda assim, impor-se, atenta a existência de uma conexão relevante com o território português e a relevância do conteúdo, fi nalidade ou posição que aquela qualifi ca-ção ocupa no ordenamento português.

V. Na determinação do que se deva entender por conexão relevante auxi-liamo-nos da enumeração a que procede o artigo 3.º/2. Independentemente da lei que pudesse ser convocável para regular as operações realizadas em mercados regulamentados ou sistemas de negociação multilateral registados na CMVM (por exemplo, em atenção à lei pessoal aplicável aos intervenientes em tais sis-temas de negociação), as normas de direito português que regulam as ordens e as operações ali realizadas não podem deixar de se aplicar [artigo 3.º/2/a].

Na al. b) do mesmo artigo encontra-se uma referência às «actividades desen-volvidas e os actos realizados em Portugal». A conexão relevante decorre, assim, do facto de alguém, sujeito a lei pessoal que não a portuguesa, exercer em Portugal determinada atividade ou praticar em Portugal um qualquer ato, contanto que, uma e outro apresentem relevância mobiliária. Em causa estará, por exemplo,

9 Maria Helena Brito, “Sobre a aplicação no espaço…”, ob. ant. cit., p. 71.

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a prestação de um serviço de investimento em Portugal por entidade (interme-diário fi nanceiro) sujeita a lei pessoal estrangeira10.

Pergunta-se então se a realização de uma oferta pública, a promoção da admissão à negociação de ações ou a realização de uma fusão ou cisão (referentes procedimentais relevados pelo artigo 13.º) devem ou não ser entendidos como uma atividade ou um ato realizado em Portugal.

VI. Embora a resposta deva ser afi rmativa, a conclusão que daqui se deve retirar é a de que tais atos ou atividades devem (salvo norma de confl itos que em especial mande atender a lei distinta da portuguesa) ser regulados por lei portu-guesa e não, necessariamente, que as entidades que as promovam se tenham de passar a qualifi car, elas próprias, como sociedades abertas.

Do artigo 3.º/2 parece assim resultar que a convocação de normas de direito português (de aplicação imediata) depende sempre de um concreto com-portamento (ato ou atividade) de determinada pessoa, e já não de uma sua carac-terística intrínseca (status). A qualifi cação como sociedade aberta, consequência jurídica decorrente do preenchimento de algum dos pressupostos do artigo 13.º, não constitui, em si, um ato ou atividade, mas uma característica intrínseca da pessoa coletiva que realiza alguma das operações tipifi cadas. As normas de direito português que disciplinam a realização dessas operações e que tenham natureza de «normas internacionalmente imperativas»11 devem considerar-se aplicá-veis independentemente do direito que a outro título seja convocável. Con-tudo, a qualifi cação que, de acordo com o direito português, decorre da reali-zação de tais operações (sociedade aberta) não é, em si, imperativa, ao contrário do que sucede com as regras que disciplinam a própria realização das mesmas. A proteção dos investidores é prosseguida em tais circunstancias pela regula-ção dos atos ou atividades realizados em Portugal e não, necessariamente, pela atribuição a determinada sociedade da qualifi cação de sociedade aberta, não podendo dizer-se que esta reclama aplicação mesmo nas situações internacio-nais sujeitas a um direito estrangeiro, i.e., mesmo contra a qualifi cação que decorreria da lei pessoal da pessoa coletiva em causa.

Contra isto não valerá dizer que a qualifi cação como sociedade aberta é pressuposto de verifi cação indispensável à aplicação de determinados deveres de conduta e que, por esse motivo, se afi gura imperativa. É que o artigo 3.º, ultrapassando questões de mera qualifi cação formal, procura descortinar nas normas de direito português um regime materialmente tão relevante que se

10 Como exemplo de atividade teremos a gestão de carteiras por conta de outrem, como exemplo de atos, a tomada fi rme e a colocação com ou sem garantia em oferta pública de distribuição.11 Maria Helena Brito, “Sobre a aplicação no espaço…”, ob. ant. cit., p. 71.

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deve impor mesmo quando ao caso concreto fosse de aplicar, de acordo com as regras gerais, direito estrangeiro: os atos ou atividades ‘mobiliários’ realizados em Portugal por uma sociedade sujeita a lei pessoal estrangeira são regulados pelas normas de aplicação imediata de direito português, independentemente da qualifi cação que da realização dos mesmos resultaria para a sociedade em ques-tão (a sujeição, por exemplo, às regras que disciplinam as ofertas públicas não depende de uma prévia qualifi cação da sociedade que a pretenda promover como aberta).

Assim, uma pessoa coletiva de direito inglês com objeto social de presta-ção de serviços de intermediação fi nanceira (devidamente autorizada para o seu exercício em Portugal), que, num determinado momento, promova um aumento de capital e ofereça ações à subscrição de pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal, fi cará inelutavelmente sujeita à necessária aplica-ção de determinadas normas de direito português (aquelas que dizem respeito à i) realização de ofertas públicas, ii) admissão à negociação de valores mobiliários e iii) prestação de serviços de investimento), ainda que não deva qualifi car-se como sociedade aberta.

Mas, ainda que assim não se entendesse e houvesse que considerar o artigo 13.º como norma de aplicação imediata, não deveríamos deixar de concluir que, atenta a natureza societária que conforma o regime jurídico aplicável às sociedades abertas, não seria com o território português que as sociedades sujei-tas a lei pessoal estrangeira apresentariam conexão relevante. Note-se que essa conexão existe em relação à oferta pública, ato realizado em Portugal, mas difi cilmente existirá em relação ao exercício dos direitos e deveres decorrentes da aquisição da qualidade de acionista, que continuam a ser regulados pelo ordenamento jurídico onde a sociedade decidiu situar a sede principal e efetiva da sua administração12.

De resto, uma tal abrangência – a nosso ver, desmesurada –, da conside-ração como de aplicação imediata do artigo 13.º, sempre colocaria em causa a defi nição de limites à aplicação do direito português a situações reguladas por outras jurisdições. Se o artigo 3.º não for interpretado no sentido de impor ao intérprete e aplicador do direito o dever de descortinar, de entre as normas de direito nacional, aquelas que se assumem como impreteríveis, aquelas cuja não aplicação poderia colocar em causa os mais básicos e estruturantes princípios do

12 Atente-se, a este propósito, no disposto no artigo do 33.º do Código Civil, onde se estabelece que à lei pessoal compete especialmente regular a capacidade da pessoa coletiva, a constituição, funcionamento e competência dos seus órgãos, os modos de aquisição e perda da qualidade de associado e os correspondentes direitos e deveres, a responsabilidade da pessoa coletiva, bem como a dos respetivos órgãos e membros, perante terceiros e a transformação, dissolução e extinção da pessoa coletiva.

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nosso direito, poderá chegar-se à conclusão de que todas as normas impositivas de deveres são de aplicação imediata: o nosso Código regularia assim qualquer situação que tivesse um mínimo de conexão com o nosso ordenamento, o que não deixa de se revelar como indesejável e, sobretudo, inexequível.

Bem se compreende que é a própria redação do artigo 3.º que se presta a tal leitura, motivo pelo qual defendemos, acompanhando Lima Pinheiro, uma interpretação restritiva do preceito13, devendo procurar-se na relevância estrutu-rante que a norma de direito português encerra no sistema jurídico interno, e na força do elemento de conexão com o território português da conduta a regular, o sentido que deve presidir à qualifi cação de determinada norma como de aplicação imediata e a subsequente subsunção aos seus comandos normativos da situação confl itual concreta.

2. Elementos de interpretação jurídica

2.1. Elemento gramatical

I. Da letra do artigo 13.º/1 resulta que se considera «…sociedade com o capital aberto ao investimento do público, abreviadamente designada neste Código “sociedade aberta”», as sociedades que:

13 Refere este Autor, em “Direito aplicável às operações sobre instrumentos fi nanceiros”, in Estudos de Direito Internacional Privado, vol. II, Almedina, 2009, p. 400, que «…o art.º 3.º tem como epígrafe “normas de aplicação imediata”, mas esta expressão não corresponde a uma categoria de normas defi nida por um critério material. Trata-se, por conseguinte, de uma modalidade de cláusula geral que autoriza o intérprete a aplicar qualquer das normas imperativas do Código sempre que entenda que há uma conexão sufi ciente com o território português.Esta cláusula geral é indesejável. Aquilo que se espera do legislador, sobretudo numa área de Direito dos negócios em que os operadores necessitam da máxima certeza jurídica e da máxima previsibilidade possíveis, é que determine claramente as normas imperativas que são suscetíveis de sobreposição ao Direito estrangeiro competente e que delimite com precisão o seu âmbito de aplicação no espaço. Casos-limite, em que haja razões ponderosas e excepcionais para aplicar determinada norma imperativa na falta de previsão legal, deixam-se resolver adequadamente com base na teoria das lacunas da lei.Autorizar o intérprete a proceder a valorações confl ituais casuísticas é algo que compromete as exigências de certeza e previsibilidade jurídicas e que contribui para uma maximização do âmbito de aplicação no espaço do Direito interno. A maximização do âmbito de aplicação do Direito interno aumenta o risco de concorrência de pretensões de regulação com outros Estados e, com isso, conduz ao cúmulo de normas imperativas que restringe excessivamente a autonomia da vontade e gera confl itos de deveres para os operadores dos mercados de instrumentos fi nanceiros.Enquanto o artigo 3.º C. Val. Mob. vigorar na ordem jurídica portuguesa, a consideração dos valores fundamentais e dos princípios gerais do sistema português de Direito de Confl itos justifi ca uma interpretação restritiva da regra nele contida.

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– tenham promovido oferta pública de distribuição de ações representativas do seu capital social [als. a), b) e d)],

– as sociedades que tenham, ou tenham tido, ações admitidas à negociação em mercado regulamentado situado ou a funcionar em Portugal [al. c)], e ainda

– as sociedades que resultem de cisão ou que incorporem, por fusão, a tota-lidade ou parte do seu património [al. e)].

Para que se entendesse como decisivo, o elemento gramatical deveria, inquestionavelmente, apontar num determinado sentido, excluindo os demais. Tal sucederia, por exemplo, se o n.º 1 do transcrito artigo tivesse uma de duas redações alternativas:

1. Considera-se sociedade com o capital aberto ao investimento do público, abreviadamente designada neste Código «sociedade aberta» a sociedade sujeita a lei pessoal portuguesa14:

2. Considera-se sociedade com o capital aberto ao investimento do público, abreviadamente designada neste Código «sociedade aberta» a sociedade, independentemente da sua lei pessoal15:

II. Signifi ca então que, se é verdade que não pode dizer-se, à partida, que nenhuma das duas possibilidades em apreço não tem um mínimo de corres-pondência na letra da lei (ambas o têm), também não é menos verdade que não consegue afi rmar-se, unicamente com base na letra do preceito, que uma daquelas duas hipóteses interpretativas tem, sobre a outra, uma correspondência mais natural e mais direta com a letra do artigo.

O elemento gramatical não é aqui, portanto, decisivo, porquanto ao afastar sentidos que não tenham qualquer apoio, correspondência ou ressonância nas palavras da lei (por exemplo, ao afastar a possibilidade de se qualifi car como sociedade aberta uma qualquer pessoa coletiva que não tenha natureza societá-ria ou que, tendo, não tenha o seu capital social representado por ações), não permite ainda assim concluir, de forma indubitável, que o legislador pretendia

14 Cfr. artigo 16.º/1 e 16.º/2/a/i, onde o legislador expressamente se referiu a «…sociedade aberta, sujeita a lei pessoal portuguesa…». O mesmo sucede nos artigos 145.º-A/1, 182.º-A, 244.º/1/a, 245.º-A/2 e 3, 246.º-A.15 Cfr. artigo 108.º, «[s]em prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 145.º, as disposições deste título e os regulamentos que as complementam aplicam-se às ofertas públicas dirigidas especifi camente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal, seja qual for a lei pessoal do oferente ou do emitente e o direito aplicável aos valores mobiliários que são objecto da oferta».

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enquadrar naquele conceito apenas as sociedades sujeitas a lei pessoal portu-guesa ou, ao invés, quaisquer sociedades, independentemente da sua lei pessoal.

III. De resto, se a letra do preceito depõe em algum dos sentidos consi-derados, não poderá deixar de ser no sentido de reservar a qualifi cação como aberta para as sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa, porquanto se entenda que a constituição da sociedade através de oferta pública de subscrição, referencial do artigo 13.º/1/a aponta para a fi gura regulada no artigo 279.º do Código das Sociedades Comerciais, “constituição com apelo a subscrição pública”. Tal regime aplica-se, nos termos do artigo 3.º daquele Código, a sociedades que têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efetiva da sua administração, usualmente aquele em que a sociedade se constitui. O artigo 13.º/1/a, onde se estabelece o primeiro critério de qualifi cação de uma sociedade como aberta, aplicar-se-á, assim, unicamente a sociedades comercias com sede em Portugal, o que não deixa de revelar o âmbito subjetivo tomado como pressuposto pelo legislador.

2.2. Elemento racional ou teleológico

I. O recurso a este elemento interpretativo visa descortinar a razão de ser da lei (ratio legis) e o fi m visado pelo legislador. Só conhecendo as circunstâncias em que a norma foi elaborada (e a conjuntura político-económico-social que motivou a decisão legislativa) será possível conhecer os vários interesses que a mesma regula e mensurar o peso relativo que traduzem na solução que a norma exprime.

II. A qualifi cação de uma sociedade como aberta comporta a aplicação de um regime jurídico especifi camente criado para regular este tipo de sociedade, em ordem à salvaguarda de diversos interesses que gravitam na sua órbita. De entre eles deve evidenciar-se, atendendo ao conjunto normativo cuja aplicabi-lidade pressupõe que a sociedade se qualifi que como aberta, os interesses dos seus acionistas.

Tal proteção refl ete-se, entre outros, na imposição do dever de assegurar tratamento igual aos titulares de valores mobiliários de uma mesma categoria (artigo 15.º), na previsão de normas que regulam a sua participação no processo de formação da vontade da sociedade (artigos 21.º-C a 26.º), na imposição de deveres de comunicação de participações qualifi cadas (artigos 16.º-18.º e 20.º) e de comunicação de acordos parassociais (artigo 19.º), bem como na imposição do dever de lançamento de OPA, em caso de alteração de controlo (artigo 187.º).

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A previsão de um regime especial para as sociedades abertas consubstancia--se, assim, num modo de tutela de um interesse tipicamente jus-societário, o interesse dos acionistas (na sua relação para com a sociedade e para com os demais consócios)16.

A desadequação e incompletude da regulamentação ínsita no Código das Sociedades Comerciais, que apenas incidentalmente regula aspetos relacionados com sociedades anónimas de grande dispersão acionista17, constitui justifi ca-ção para o aprofundamento do regime jurídico destas no Código dos Valores Mobiliários, onde se encontram regulados os aspetos relacionados com os valo-res mobiliários e a respetiva negociabilidade.

III. Pode por isso afi rmar-se que não é o caráter estrito da negociabilidade em mercado que espoleta a qualifi cação de, e o regime jurídico associado à sociedade aberta18. Em paralelo com essa, uma outra qualifi cação de base dou-trinária pretende agregar, sob a designação de sociedades cotadas, todas aquelas sociedades que, independentemente de se qualifi carem ou não como abertas, têm valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado. As normas que defi nem o regime jurídico das sociedades cotadas encontram-se previstas já não em ordem à tutela dos acionistas, qua tale, mas em ordem à proteção dos investidores e, em geral, do mercado.

16 De resto, os aspetos regulados em especial para a sociedade aberta não são estranhos à regulação societária, mantendo com esta correspondência material. Assim sucede, por exemplo, com o princípio de tratamento igualitário dos acionistas, evidente em inúmeros artigos do Código das Sociedades Comerciais, com a previsão de regras relativas à participação dos acionistas na formação da vontade da sociedade e até na imposição de deveres de comunicação de participações qualifi cadas (participações acionistas, previstas no artigo 448.º daquele Código). No que diz respeito à imposição do dever de lançamento de OPA, deve notar-se que a primeva regulação da fi gura encontrou apoio no Código das Sociedades Comerciais (após a inicial intervenção legislativa, operada pelo Decreto-Lei n.º 429/83, de 13 de dezembro, que fazia depender de autorização ministerial as ofertas lançadas do estrangeiro sobre ações emitidas por sociedades com sede em Portugal), tendo posteriormente passado para o Código do Mercado dos Valores Mobiliários e, fi nalmente, para o Código dos Valores Mobiliários.17 Como sucede com a constituição da sociedade anónima com apelo a subscrição pública, artigo 279.º do Código das Sociedades Comerciais.18 Mesmo quando a negociabilidade das ações em mercado regulamentado constitui pressuposto da qualifi cação da sociedade como aberta (como sucede nos termos do artigo 13.º/1/c). É que nesse caso não é a característica da negociabilidade em mercado que espoleta a proteção associada ao regime jurídico da sociedade aberta, mas a (pressuposta) dispersão acionista decorrente da negociabilidade em mercado. Equivale isto por dizer que se qualifi ca como aberta determinada sociedade que tenha valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado não pela necessidade de previsão de um regime decorrente das especifi cidades que advêm daquela negociabilidade, mas em virtude da inerente dispersão da base acionista.

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Equivale isto por dizer que o regime das sociedades abertas não visa prima-cialmente a proteção do mercado, antes se situando, ainda, no âmbito material de regulação estritamente societário, tanto mais que a maior parte dos critérios de qualifi cação não se relacionam com a negociabilidade das ações em mer-cado. Acompanhando assim todos aqueles que veem na sociedade aberta um subtipo de sociedade comercial – a sociedade anónima com o capital aberto ao investimento do público19 –, não poderemos deixar de concluir que a razão de ser da lei é a da proteção dos acionistas, sendo o fi m visado pelo legislador o de garantir mecanismos de proteção de âmbito materialmente societário ade-quados à especifi cidade das sociedades que promovam, por alguma das formas legalmente previstas, a dispersão do seu capital social.

IV. Constituindo ratio da norma a proteção dos acionistas com residência ou estabelecimento em Portugal, poderia admitir-se que a circunscrição da qualidade de sociedade aberta às sociedades de lei pessoal portuguesa originaria âmbitos de desproteção, quando em causa estivesse a realização de operações de dispersão de capital por sociedades sujeitas a diferente lei pessoal.

Porém, não deve desconsiderar-se que, no âmbito de situações plurilocali-zadas, a identifi cação das regras aplicáveis para efeitos de proteção dos acionistas (de natureza societária) se deve encontrar, prioritariamente, por referência à lei pessoal da sociedade em causa.

Constituindo as regras inerentes à qualifi cação da sociedade aberta corpo normativo de natureza tendencialmente societária, não deverão convocar--se critérios distintos que não os decorrentes da regra de confl itos prevista no artigo 3.º do Código das Sociedades Comerciais, sob pena de sobreposição injustifi cada de regras incidentes sobre as mesmas matérias e, adicionalmente, de sobreposição de competências de entidades de natureza administrativa ou jurisdicional.

Nessa medida, conclui-se que a qualifi cação de sociedade aberta, atenta a natureza eminentemente jus-societária decorrente do seu regime jurídico, deve circunscrever-se espacialmente às sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa (em ordem à regra de confl itos jus-societária convocável no caso concreto).

19 Nesse sentido, José De Oliveira Ascensão, “Direito Comercial”, Vol. IV - Sociedades Comerciais, Parte Geral, Lisboa, 2000, p. 54, Menezes Cordeiro, “Manual de Direito das Sociedades”, vol. II, p. 169 e Hugo Moredo Santos (com identif icação de demais partidários desta tese, em “Transparência, OPA obrigatória e imputação de direitos de voto”, p. 39). Em sentido inverso, entendendo esta como «um tipo de sociedade autonomizado dos tipos constantes do CSC» ( João Paulo Menezes Falcão, “A OPA Obrigatória” em Direito dos Valores Mobiliários, Vol. III, Coimbra, 2001, pp. 179 e ss., p. 211).

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2.3. Elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos)

I. A consideração do elemento sistemático permite ao intérprete apreender o signifi cado da norma a interpretar atendendo ao contexto da lei ou complexo normativo onde aquela norma se insere, tomando como referente disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afi ns.

A defi nição do âmbito subjetivo de incidência da qualifi cação de socie-dade aberta não deverá, portanto, desconsiderar as normas jurídicas que inci-dem sobre problemas de regulamentação jurídica fundamentalmente idênticos àquele que é regulado pela norma a interpretar (artigo 13.º).

II. Assim, o artigo 16.º identifi ca o universo das sociedades relativamente às quais há o dever de comunicar participação qualifi cada e os limiares relevantes. Este dever, relacionado ora com questões de transparência, ora com questões de constituição do dever de lançamento de oferta pública de aquisição, constitui a matriz caracterizadora do regime das sociedades abertas. Não deverá, pois, deixar de ser visto como um lugar paralelo relativamente à própria qualifi cação de socie-dade aberta.

Previstos os pressupostos de qualifi cação de uma sociedade como aberta no artigo 13.º, vem o legislador, no artigo 16.º, diferenciar os limites relevantes consoante a lei pessoal da sociedade em causa. Não deverá, portanto, deixar de se aproveitar este contributo interpretativo quando em causa está perceber se para o artigo 13.º releva ou não a lei pessoal da sociedade a qualifi car como aberta.

Distinguem-se, para efeitos de comunicação de participação qualifi cada, as:

i) sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa, e asii) sociedades com sede em outro estado membro ou fora da união europeia.

Em relação às sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa, o legislador qua-lifi ca-as expressamente como sociedades abertas [artigo 16.º/1 e 2/i20].

Em relação às sociedades com sede em outro Estado Membro, ou fora da União Europeia que tenham ações admitidas à negociação em mercado regu-lamentado situado ou a funcionar em Portugal, o legislador não procede a essa qualifi cação, mesmo conhecendo que elas preenchem, formalmente, e em abs-trato, um dos pressupostos de que o artigo 13.º/1/c faz depender essa qualifi ca-

20 Qualifi cação que repete nos artigos 145.º-A/1, 182.º-A/1, 2, 3 e 6, 244.º/1/a, 245.º-A/2 e 3 e 246.º-A/1.

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ção – o facto de ter ações admitidas à negociação em mercado regulamentado situado ou a funcionar em Portugal21.

A clara distinção que é promovida em sede de um dos principais efeitos decorrentes da qualifi cação como sociedade aberta constitui, assim, um subsídio da maior importância para a interpretação do próprio artigo 13.º: na primeira hipótese que o legislador teve de distinguir as sociedades, de acordo com a lei pessoal aplicável, fê-lo reservando a qualidade de sociedade aberta para as socie-dades sujeitas a lei pessoal portuguesa (para as demais limitou-se a qualifi cá-las de “Sociedade, com sede estatutária noutro Estado membro” e “Sociedade cuja sede social se situe fora da União Europeia”).

III. Como refere Baptista Machado, «[e]m tal hipótese, porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve por igual formar um todo coerente, é legítimo recorrer à norma mais clara e explícita para fi xar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua»22.

Assim, deve o artigo 13.º ser interpretado no sentido de qualifi car como sociedades abertas apenas aquelas que, preenchendo algum dos pressupos-tos previstos nas várias alíneas do seu número 1, estejam sujeitas a lei pessoal portuguesa.

IV. Não é senão isso o que resulta também da leitura do artigo 21.º-A, onde, referindo-se a emitentes com sede estatutária fora da União Europeia (não os qualifi cando de sociedade aberta), o legislador prevê a possibilidade de não lhes ser aplicável o regime de divulgação de participações qualifi cadas quando, «nos termos da lei aplicável» a esses emitentes, informação sobre participações qualifi -cadas for divulgada no prazo máximo de 7 dias de negociação.

21 No mesmo sentido, tenha-se presente que, desde a entrada em vigor do Código dos Valores Mobiliários, realizaram-se diversas ofertas dirigidas a trabalhadores, qualifi cáveis como ofertas públicas de distribuição de ações. Assim, desde o ano 2000 foram registadas várias operações (aproximadamente centena e meia), tendo na sua maioria (cerca de 90%) como emitentes sociedades sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa (maioritariamente francesa, luxemburguesa, suíça e alemã). Em tais casos, tratava-se de sociedades sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa que, dirigindo-se a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal, realizaram operações de mercado (primário), no âmbito da qual promoveram a distribuição de ações com recurso a oferta pública, preenchendo, formalmente, um dos requisitos de que depende a sua qualifi cação como sociedade aberta.Contudo, em nenhum dos mencionados casos de ofertas a trabalhadores se passaram a qualifi car as sociedades oferentes, emitentes de valores mobiliários, como sociedades abertas. Tal fi cará a dever-se à circunstância de se ter entendido que tal qualifi cação não é de se lhes aplicar, em virtude de as sociedades em causa não se encontrarem sujeitas a lei pessoal portuguesa.22 Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1996, p. 183.

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Este é, de resto, um dos casos em que a lei portuguesa expressamente reconhece relevância às regras jurídicas previstas em outros ordenamentos, salvaguardando contudo um mínimo de coerência com as normas de direito nacional: o regime português será de aplicação imediata, ainda que de forma subsidiária, apenas na circunstância de, em função da lei aplicável, não haver divulgação ou, havendo, não ser a mesma feita no referido prazo.

V. Deve, aliás, notar-se que serão também qualifi cadas como abertas as sociedades emitentes de ações em que sejam convertidos créditos sobre a insol-vência, independentemente do consentimento dos respetivos titulares, nos ter-mos do artigo 204.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Esta disposição fornece, de resto, um importante contributo argumentativo no sentido da restrição do conceito de sociedade aberta a sociedades sujeitas a lei pessoal portuguesa, uma vez que, de acordo com o artigo 7.º do referido Código, «[é] competente para o processo de insolvência o tribunal da sede ou do domicí-lio do devedor ou do autor da herança à data da morte, consoante os casos». Tal signifi ca que os tribunais portugueses serão competentes para estes processos se em causa estiver a situação jurídica de pessoas coletivas sujeitas a lei pessoal portuguesa, em virtude da coincidência entre o critério de determinação da lei aplicável e da competência do tribunal.

O mesmo valerá por dizer que, em atenção à unidade do sistema jurídico, careceria de sentido a circunscrição territorial da qualifi cação como sociedade aberta para o efeito específi co de tratamento em caso de insolvência, e o alar-gamento do conceito a sociedades sujeitas a diferente lei pessoal, para todos os outros efeitos.

2.4. Elemento histórico

I. O termo sociedade aberta é uma abreviatura de «sociedade com o capital aberto ao investimento do público» e substitui as expressões «sociedade de subscrição pública» e «sociedade com subscrição pública», utilizadas até à entrada em vigor do Código dos Valores Mobiliários, de acordo com o artigo 7.º do Decreto Preambular que o aprovou. Nota a doutrina23 que o conceito não é inteiramente coincidente com o seu antecessor, embora tenha certamente neste a sua génese.

23 Pereira de Almeida, “Sociedades Abertas”, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. VI, Coimbra Editora, 2006, pp. 9-49, p. 10 e Fátima Ribeiro, “Sociedades abertas, valores mobiliários e intermediação fi nanceira”, in Jornadas Sociedades Abertas, Valores Mobiliários e Intermediação Financeira, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 11-29, p. 12. O Código dos Valores Mobiliários introduziu um limite mínimo

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II. O conceito de sociedade de subscrição pública encontrava-se previsto no artigo 284.º do Código das Sociedades Comerciais, na primeira versão apro-vada a 2 de Setembro de 1986, e compreendia i) as sociedades constituídas com apelo a subscrição pública, as que, ii) num aumento de capital, tivessem recor-rido a subscrição pública e as iii) sociedades cujas ações fossem cotadas em bolsa. Após a entrada em vigor do Código dos Valores Mobiliários, manteve-se, até hoje, no Código das Sociedades Comerciais o regime da sociedade constituída com apelo a subscrição pública24 (artigos 279.º a 283.º), mas foi revogado o artigo 284.º.

III. O Código do Mercado de Valores Mobiliários também referia o con-ceito, logo no artigo 3.º/1/j, defi nindo as sociedades de subscrição pública como as sociedades que tenham parte ou a totalidade do seu capital disperso pelo público em virtude de i) se haverem constituído com apelo a subscrição pública, de, ii) num aumento de capital, terem recorrido a subscrição pública, ou de iii) as suas ações estarem ou haverem estado cotadas em bolsa ou terem sido objeto de oferta pública de venda ou de troca, ou de venda em bolsa, nos termos do artigo 366.º do Código. Este conceito praticamente não diferia daquele que estava previsto no Código das Sociedades Comerciais, tendo sido apenas acrescentada a situação das sociedades cujas ações tivessem sido objeto de oferta pública de venda ou de troca.

IV. No entanto, a duplicidade de regimes, no Código das Sociedades Comerciais e no Código do Mercado de Valores Mobiliários, tornava difícil a concatenação da regulação deste tipo de sociedade. Foi com o propósito de pôr «cobro à assistematicidade patente nas divergências de nomen iuris e de disciplina entre o Código das Sociedades Comerciais e o Código do Mercado dos Valores Mobiliários» que, com o Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, se substituiu o conceito de sociedade de subscrição pública pelo de sociedade aberta ao investimento do público, aproveitando ainda o ensejo para aprofundar «a autonomia do regime das sociedades abertas, reforçando a

de 10% do capital para as sociedades objeto de oferta pública de venda ou de troca e acrescentou a sociedade resultante de fusão ou que incorpore, por fusão, a totalidade ou parte do seu património.24 «Uma vez constituída com apelo a subscrição pública a sociedade anónima em questão qualifi ca-se automaticamente como sociedade com o capital aberto ao investimento do público ou sociedade aberta, nos termos do artigo 13.º, n.º 1 CVM.»«A qualifi cação é, assim, automática: o próprio modo escolhido pelos promotores para a constituição da sociedade (de subscrição pública) infl uencia de forma decisiva e imperativa a sua categorização como sociedade aberta.», Gabriela Figueiredo Dias, anotação ao artigo 279.º, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, p. 118.

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transparência da sua direcção e do seu controlo, nomeadamente no que respeita à divul-gação das participações qualifi cadas e dos acordos parassociais, e ampliando o regime das deliberações sociais, na linha das modernas tendências relativamente ao governo das sociedades abertas.»25.

V. O percurso histórico do conceito que aqui se empreendeu permite compreender a razão pela qual se deve considerar que o conceito de sociedade aberta corresponde a um subtipo de sociedade anónima ao qual se aplica o direito português, na medida em que a sede principal e efetiva da sua adminis-tração se situe em Portugal26. Fora desta hipótese as disposições nacionais não devem considerar-se competentes para regular a qualifi cação da sociedade que promova a realização de alguma das operações a que se refere o artigo 13.º.

3. Conclusão preliminar

I. Partindo de uma análise do Código dos Valores Mobiliários, das normas nele inscritas que atribuem relevo a outros ordenamentos jurídicos e atendendo às situações que, pela estreita e relevante conexão que apresentam com o terri-tório português, devem necessariamente ser reguladas por disposições de direito português, concluímos que a qualifi cação como sociedade aberta não deve estender-se a sociedades sujeitas a lei pessoal diferente da portuguesa.

II. A confortar esta conclusão está a circunstância de o legislador cuidar de prever, em variados aspetos disciplinadores das sociedades abertas, a exclusão da sua aplicabilidade a sociedades sujeitas a lei pessoal estrangeira (como de forma evidente resulta do artigo 16.º). Daqui parece decorrer que esta qualifi cação não tem uma aderência natural a sociedades que não aquelas relativamente às quais o ordenamento português regule os aspetos relacionados com a sua cons-tituição, funcionamento e dissolução. A localização no Código dos Valores Mobiliários não prova irrefutavelmente a natureza jus-mobiliária de várias nor-mas, muitas havendo que, por regularem exclusivamente situações jus-societá-rias, não devem deixar de seguir o regime de resolução de confl itos previsto no Código das Sociedades Comerciais (como sucede relativamente às normas que regulam o procedimento inerente à formação da vontade da sociedade aberta).

25 Ponto 8 do Preâmbulo.26 Referindo esta hipótese, embora sem a discutir, Gonçalo Castilho dos Santos, “Voto por Correspondência nas Sociedades Abertas”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, Abril de 2000, pp. 131-158, p. 133, n. 2.

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C. A perda de qualidade de sociedade aberta como via para a exclu-são de negociação

1. Enquadramento

I. O instituto da perda de qualidade de sociedade aberta não tem uma fei-ção única, podendo por isso justifi car-se a sua aplicabilidade em diferentes cir-cunstâncias e mediante verifi cação de distintos pressupostos. Tipologicamente, atendendo aos requisitos de que a lei faz depender a sua aplicabilidade, podere-mos contudo proceder a uma distinção: casos haverá em que a perda de quali-dade de sociedade aberta resulta da falência de requisitos de admissão [al. c) do n.º 1 do artigo 27.º]; casos haverá em que a perda de qualidade de sociedade aberta resulta do mero exercício da vontade, seja do oferente que adquire o controlo na sequência de OPA, seja da própria sociedade, mediante deliberação tomada em assembleia geral [als. a) e b) do n.º 1 do artigo 27.º, respetivamente].

Assim, e porque agora nos ocupamos da perda de qualidade com funda-mento no mero exercício da vontade, torna-se irrelevante a convocação da al. c) do n.º 1 do artigo 27.º, que respeita aos casos em que deixam de se verifi car cumpridas as circunstâncias de que depende a admissão à negociação. Ocupar--nos-emos tão só dos casos em que a perda de qualidade de sociedade aberta decorre do mero exercício da vontade, tomando em consideração as duas alíneas do n.º 1 do artigo 27.º que prosseguem o mesmo propósito mediante conside-ração primacial da vontade de determinado(s) sujeito(s) em promover a perda de qualidade de sociedade aberta, no sentido de evidenciar as condições legais de aplicabilidade da al. a) do n.º 1 do artigo 27.º.

II. Feita esta distinção, há que sublinhar que nenhuma das circunstâncias previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 do artigo 27.º deve ser considerada como paradigmática: ambas constituem géneros – distintos e complementares – do tipo perda de qualidade de sociedade aberta com fundamento no mero exercício da vontade. Esta conclusão preliminar ajudar-nos-á a perceber que interesses, neste âmbito, se colocam em confronto, pois a contraposição com o caso de perda de qualidade com fundamento na falta de observância dos requisitos de que depende a manutenção da admissão à negociação faz ressaltar que, não sendo, nesse caso, a perda daquela qualidade e a inerente exclusão de nego-ciação (“delisting”) imputáveis à vontade da sociedade ou dos seus acionis-tas, obviamente não será exigível a imposição de um mecanismo de saída que impenda sobre quem diretamente benefi cie da referida perda (porque, em tal caso, não haverá ninguém identifi cável).

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Pelo contrário, nos casos em que a perda de qualidade encontre funda-mento no exercício da vontade de determinado(s) sujeito(s), torna-se razoável exigir que ao “benefício” de promoção da perda se contraponha um ónus, encargo ou dever jurídico de permitir aos demais acionistas uma saída da socie-dade, em termos justifi cados e equitativos.

III. Delimitado que está o âmbito teleológico da perda de qualidade de sociedade aberta com fundamento no exercício da vontade cumpre agora determi-nar, em face deste enquadramento, os requisitos legais de que aquela depende quando em causa esteja o recurso à perda de qualidade na sequência de oferta pública de aquisição.

2. História

I. Se atentarmos na confi guração que, ao longo do tempo, caracterizou o instituto da perda de qualidade de sociedade aberta, quando associado à realização de uma oferta pública de aquisição, poderemos identifi car três feições ou momentos:

i) Código do Mercado de Valores Mobiliários (de 1995 a 1999);ii) Código dos Valores Mobiliários antes da alteração decorrente da trans-

posição da Diretiva das OPA’s (de 1999 a 2006);iii) Código dos Valores Mobiliários após da alteração decorrente da trans-

posição da Diretiva das OPA’s (de 2006 em diante).

II. Uma leitura que atenda à evolução do instituto jurídico da perda de qua-lidade de sociedade aberta permitir-nos-á, por via da consideração do elemento histórico da interpretação, desvendar o sentido do artigo 27.º/1/a e encontrar, no jogo de interesses que aquele convoca, o quadro relacional em que a perda de qualidade de sociedade aberta pode vir a ser deferida pela CMVM.

2.1. O primeiro momento

I. A perda de qualidade da sociedade aberta27 foi prevista pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico através de aditamento ao Código do Mer-cado de Valores Mobiliários, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 261/95, de 3 de outubro.

27 Rectius, perda da qualidade de sociedade de subscrição pública.

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Mediante aditamento do artigo 531.º-A do Código do Mercado de Valo-res Mobiliários veio prever-se, para as situações de perda daquela qualidade na sequência de oferta pública de aquisição, que:

«1 – Uma sociedade de subscrição pública deixará, para todos os efeitos, de ser conside-rada como tal mediante declaração da CMVM, que só será emitida desde que se verifi quem as seguintes condições:

(…)b) Seja lançada uma oferta pública geral de aquisição com observância do disposto no

artigo 528.º, abrangendo todos os valores mobiliários emitidos da natureza dos refe-ridos no n.º 1 do artigo 523.º e em resultado da qual o oferente passe a deter valores que, adicionados aos detidos pelas pessoas mencionadas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 2 do artigo 525.º, representem mais de 90% de cada uma das espécies e categorias de valores mobiliários objecto da oferta.

(…)e) Tanto nos casos da alínea a) como nos da alínea b), qualquer ou quaisquer dos accio-

nistas que hajam aprovado a deliberação mencionada na alínea a) ou que tenham lançado as ofertas públicas de aquisição a que se referem as alíneas b) e d), ou, ainda, se as disposições legais e estatutárias aplicáveis lho permitirem, a própria sociedade se obriguem, garantindo essa obrigação mediante garantia bancária, a adquirir, durante o prazo de três meses contado a partir da data da publicação a que se refere o n.º 4, as acções detidas pelos accionistas que tenham votado contra a deliberação ou faltado à assembleia geral referida na alínea a) do presente número, ou que não hajam acei-tado a oferta pública de aquisição a que se refere a alínea b), e, bem assim, os valores mobiliários indicados na alínea c) cujos titulares tenham votado contra a deliberação ali exigida, ou faltado à assembleia respectiva, ou não hajam aceitado a oferta pública de aquisição contemplada na alínea d).»

II. Do preceito transcrito resultava assim que o prévio lançamento de oferta pública de aquisição legitimaria o acesso à referida perda de qualidade quando, adicional e cumulativamente, se verifi cassem preenchidos os seguintes pressupostos:

– O oferente adquirisse mais de 90% de cada uma das espécies e categorias de valores mobiliários objeto da oferta; e

– O oferente (ou a própria sociedade) se obrigasse, garantindo essa obriga-ção mediante garantia bancária, a adquirir, durante o prazo de três meses, as ações detidas pelos acionistas que não hajam aceitado a oferta pública de aquisição.

III. Signifi ca isto que, neste primeiro momento, da letra do preceito podia retirar-se que o lançamento de oferta pública de aquisição da qual resultasse

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uma elevada concentração do capital na titularidade do oferente não legitimava, por si só, a obtenção da perda da qualidade de sociedade aberta – era ainda necessário que fosse concedida uma possibilidade adicional de saída aos acionistas que, não tendo vendido as suas ações no âmbito da OPA, se veriam posterior-mente confrontados com a superveniência da referida concentração de capital na titularidade do oferente.

Esta possibilidade adicional de saída aparentava ser tanto mais relevante quanto se verifi cava inexistente a previsão de qualquer outro mecanismo, no específi co âmbito do direito dos valores mobiliários, que possibilitasse aquela saída (como os atuais direitos de aquisição e alienação potestativa, que só mais tarde viriam a ser previstos, respetivamente, nos artigos 194.º e 196.º).

Não obstante a inexistência daqueles mecanismos, a verdade é que, à data, o recurso ao artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais – que então se aplicava também a sociedades de subscrição pública28 – constituía via privi-legiada para obtenção da perda de qualidade de subscrição pública e do conse-quente delisting da sociedade, tão abundante é a amostra de situações em que a perda se obteve por aquela via. O recurso à aquisição tendente ao domínio total permitia a concentração da totalidade das ações na titularidade do oferente, com o que se verifi cava excluída qualquer liquidez e inexistente qualquer fun-damento para a manutenção quer da negociabilidade dos títulos quer da quali-dade de sociedade aberta.

IV. Conforme se referia no preâmbulo do diploma que introduziu a fi gura jurídica, o intuito subjacente ao regime de perda de qualidade de sociedade aberta com fundamento no prévio lançamento de oferta pública de aquisição residia, assim, na possibilidade «de perda de qualidade de “sociedade de subscrição pública”, permitindo-se, assim, a sociedades que tenham estado cotadas em bolsa ou tenham dispersado o seu capital pelo público a passagem para um regime menos exigente e oneroso, através de um procedimento que proporcione adequadas garantias a todos os seus accionistas e titulares de outros valores mobiliários cujos interesses são potencialmente afectados pela modifi cação» (sublinhado nosso).

Verifi ca-se assim que o regime em causa nasceu com uma marcada feição conciliatória de interesses antagónicos: o interesse da sociedade (ou do seu acio-nista de controlo) passar a estar sujeita a um regime menos oneroso e exigente e, do outro lado, o eventual interesse dos acionistas minoritários – representati-vos de pelo menos 10% do capital social – em permanecer na estrutura acionista de uma sociedade cujas ações continuem admitidas à negociação em mercado

28 Situação que se viria a alterar em virtude da alteração introduzida no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro.

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regulamentado para que, por essa via, vejam assegurado um nível de liquidez e, consequentemente, a manutenção (ou não degradação signifi cativa) do valor do seu investimento29.

V. O intuito do legislador, ao prever a intervenção da CMVM neste pro-cesso, terá sido o de introduzir no âmbito da sua operacionalização uma enti-dade incumbida de garantir a legalidade do procedimento, de forma a afastar incerteza jurídica quanto ao estatuto da sociedade ou quanto aos termos e con-dições em que esse estatuto se pode alterar. Assim se pretendeu evitar que a sociedade se autoproclamasse fechada sem que os acionistas minoritários vissem os seus interesses acautelados no âmbito das garantias que a lei consagrou no procedimento.

VI. Em suma, verifi ca-se que durante a vigência do Código do Mercado de Valores Mobiliários o regime da perda de qualidade de sociedade aberta fi cou marcado por um concurso entre a verifi cação dos requisitos do artigo 531.º-A daquele Código e o acionamento da aquisição tendente ao domínio total, pre-vista no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais, à data plenamente aplicável a sociedades de subscrição pública, que dessa forma preenchiam o requisito previsto no artigo 531.º-A/1/e do Código do Mercado de Valores Mobiliários.

2.2. O segundo momento

I. Com a entrada em vigor do atual Código dos Valores Mobiliários, o instituto da perda de qualidade de sociedade aberta, até então previsto no artigo 531.º-A do Código do Mercado de Valores Mobiliários, passou a constar do artigo 27.º, onde se refere [al. a) do n.º 1] que:

«A sociedade aberta pode perder essa qualidade quando: Um accionista passe a deter, em consequência de oferta pública de aquisição, mais de

90% dos direitos de voto calculados nos termos do n.º 1 do artigo 20.º»

29 Com efeito, a saída de mercado regulamentado – consequência necessária da perda de qualidade de sociedade aberta – implica uma menor liquidez das ações, o que, em regra, predispõe o investidor a vender os valores por um preço inferior. Para esta situação alerta Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Coimbra, Almedina, 2011, 2.ª ed., p. 733. Para uma análise da questão à luz de um confronto entre os ordenamentos jurídicos alemão, espanhol e americano v. Miguel Gimeno Ribes, “La exclusión voluntaria de la cotización bursátil”, in Revista de derecho bancário y bursátil, Madrid, Aranzadi, janeiro-março 2017, pp. 91-153.

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II. Uma leitura comparativa entre os preceitos sucedâneos pode levar-nos à conclusão de que, em virtude da supressão da letra do transcrito artigo de requisito equivalente ao constante do artigo 531.º-A/1/e do Código do Mer-cado de Valores Mobiliários – recorde-se, necessidade de o oferente (ou a própria sociedade) se obrigar, garantindo essa obrigação mediante garantia ban-cária, a adquirir, durante o prazo de três meses as ações detidas pelos acionistas que não hajam aceitado a oferta pública de aquisição –, efetivamente se pre-tendeu afastar a necessidade de ser facultado aos acionistas remanescentes um mecanismo adicional de saída por via da imposição ao oferente de um dever de aquisição para além do que resulta já do cumprimento do dever de lançar a oferta pública de aquisição.

III. Essa leitura revela-se, porém, redutora, porque exclusivamente fun-dada na letra do preceito e sustentada numa distorção do elemento histórico da interpretação, que redundaria na conclusão – que a nosso ver não se afi gura correta – de que o legislador efetivamente pretendeu reduzir o grau de prote-ção que conferia aos acionistas remanescentes: quando antes, ao abrigo do ante-rior Código, a perda de qualidade de sociedade aberta tinha de ser antecedida de OPA e acompanhada da atribuição de uma possibilidade adicional de saída, agora bastaria o prévio lançamento de OPA.

Ora, segundo cremos, afi gurar-se-á mais acertado afi rmar que o mecanismo (adicional) de saída não desapareceu, tendo antes passado a constar de pre-visão normativa especifi camente prevista, ex novo, em 1999, com o Código dos Valores Mobiliários: o artigo 196.º/1, norma que surge, na perspetiva dos acionistas minoritários, como reverso do artigo 194.º (assentando nos mesmos pressupostos quantitativos, embora atribuindo um direito de sentido inverso), onde, na sua versão originária, se previa que:

«Quem, após o lançamento de oferta pública de aquisição geral em que seja visada sociedade aberta que tenha como lei pessoal a lei portuguesa, ultrapasse, directamente ou nos termos do n.º 1 do artigo 20.º, 90% dos direitos de voto correspondentes ao capital social pode, nos seis meses subsequentes ao apuramento do resultado da oferta, adquirir as acções remanescentes mediante contrapartida calculada nos termos do artigo 188.º»

IV. Em face da remissão para os mesmos requisitos quantitativos, para que determinado oferente pudesse promover a saída de mercado da sociedade na sequência de uma oferta pública de aquisição da qual resultasse uma elevada concentração de capital na sua titularidade, teria de se sujeitar à exigibilidade legal de adquirir as ações dos acionistas remanescentes que o pretendessem. Com isso continuava a verifi car-se, quando em comparação com o direito pre-

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térito, uma plena coerência e unidade do sistema jurídico e a continuidade da tutela da posição dos destinatários da OPA confrontados com a concentração signifi cativa do capital na esfera do oferente.

Assim, uma vez adquiridas, na sequência da oferta, ações a que correspon-dessem pelo menos 90% dos direitos de voto da sociedade visada, poderia o oferente, em alternativa:

a) requerer à CMVM a perda de qualidade de sociedade aberta com fun-damento no artigo 27.º/1/a; ou

b) exercer o seu direito de aquisição potestativa, nos termos do artigo 194.º e com a consequente perda de qualidade de sociedade aberta e exclusão de negociação (195.º/4).

V. Da perspetiva dos acionistas remanescentes, a quem não é facultado o direito de, por um ato da sua vontade, promover a perda de qualidade de sociedade aberta e o respetivo delisting das ações, restar-lhes-ia recorrer, tendo presentes os mesmíssimos pressupostos que originaram o surgimento do direito de aquisição potestativa, ao direito potestativo de alienar ao oferente as suas ações (direito de alienação potestativa, artigo 196.º30).

Ou seja, o delisting promovido unilateralmente pelo oferente por via da perda de qualidade de sociedade aberta fundamentada no art. 27.º/1/a impli-cava, necessariamente e à luz da redação originária do atual Código, a disponi-bilidade do oferente para suportar os custos associados a um mecanismo de saída, o exercício do direito de alienação potestativa. Não bastava, pois, para que a perda pudesse ser decretada pela CMVM que o oferente tivesse lançado OPA e que, no seu contexto, tivesse preanunciado a sua vontade de recorrer ao mecanismo da perda de qualidade, uma vez que o exercício de um tal direito assentava nos pressupostos de que dependia a emergência na esfera jurídica dos acionistas minoritários de um direito de saída, através da alienação potestativa: a circunstância de, na sequência de OPA, o oferente adquirir mais de 90% dos direitos de voto da sociedade visada.

VI. Esta hipótese interpretativa é, de resto, aquela que melhor se coaduna com a feição com que a prática conformou, mesmo no âmbito do direito preté-rito, o instituto da perda de qualidade de sociedade aberta, promovendo porém, para o período a que agora nos referimos, a substituição do recurso à aquisição

30 E este direito será exercitável nos casos em que o oferente não tenha exercido o seu direito de aquisição potestativa e independentemente de ter ou não requerido a perda de qualidade de sociedade aberta ao abrigo do artigo 27.º/1/a.

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tendente ao domínio total (artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais) pela aquisição/alienação potestativa (artigos 194.º e 196.º). Em qualquer dos casos, a perda de qualidade de sociedade aberta na sequência de uma oferta pública de aquisição não dispensava o acionamento de um mecanismo adicional e subsequente à OPA que permitisse ora a aquisição das ações remanescentes, ora a saída dos acionistas minoritários em condições justas. Verifi ca-se assim que ao mecanismo do artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais – que foi sempre utilizado para sustentar as perdas de qualidade de sociedade aberta ao abrigo do regime previsto no Código do Mercado de Valores Mobiliários – veio a suceder, afi nal, o artigo 194.º, dessa forma se convocando para o espe-cífi co universo do direito dos valores mobiliários a solução a dar à pretensão de obtenção de perda de qualidade de sociedade aberta quando ao processo de uma oferta pública de aquisição sobrevenham acionistas minoritários. É de referir que esta convocação tem, na perspetiva dos acionistas minoritários, um efeito útil do maior relevo: à contrapartida a oferecer no âmbito da aquisição ou alienação potestativas aplicam-se as regras decorrentes do artigo 188.º, ou o mesmo será dizer, encontra-se salvaguardada a saída da sociedade mediante pagamento de um valor justifi cado e equitativo, de acordo com critérios espe-cifi camente previstos no âmbito do direito dos valores mobiliários31.

2.3. O terceiro momento

I. Com a transposição da Diretiva das OPA’s (2006) para o ordenamento jurídico português – pelo Decreto-Lei n.º 219/2006 de 2 de novembro –, para que o direito de aquisição (ou alienação) potestativa pudesse ser exercido pas-sou a exigir-se que, em resultado da oferta, o oferente não só viesse a tornar-se titular de ações correspondentes a 90% dos direitos de voto, como, adicional-mente, tivesse adquirido mais de 90% dos direitos de voto abrangidos pela oferta.

II. Com a previsão de um requisito quantitativo adicional veio, afi nal, a quebrar-se o equilíbrio simétrico até então existente entre os pressupostos do delisting mediante perda de qualidade de sociedade aberta fundada na exclusiva e discricionária vontade do oferente (artigo 27.º/1/a) e as regras do delisting decorrente do exercício exclusivo e discricionário da vontade do oferente de um direito de aquisição potestativa (artigo 194.º).

31 E que se contrapõem aos critérios previstos no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais, com aqueles não coincidentes e de aplicação genérica às sociedades que não se qualifi quem como abertas.

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Com aquela alteração promoveu-se propiciaram-se situações em que, pelo menos aparentemente, se passaria a permitir o delisting por recurso ao meca-nismo da perda de qualidade de sociedade aberta em casos em que idêntico resultado não seria possível por recurso ao mecanismo da aquisição potesta-tiva32. Por outras palavras, passou a admitir-se, numa interpretação literal, que o acionista de controlo (que tivesse lançado oferta pública de aquisição em que obtivesse mais de 90% dos direitos de voto) obtivesse a perda da qualidade de sociedade aberta sem que aos acionistas remanescentes fosse dada oportunidade adicional de saída em face do exercício de uma vontade que não lhes é imputá-vel (porquanto em tal circunstância deixou de lhes ser reconhecido um direito de saída mediante exercício do direito de alienação potestativa).

Da referida alteração resultaria, assim, uma tríplice possibilidade interpre-tativa:

1. O legislador terá considerado que, na sequência de uma oferta pública em que o oferente adquira mais de 90% dos direitos de voto, mas já não 90% do objeto da oferta, poderá aquele obter a perda de qualidade de sociedade aberta e o consequente delisting sem que tenha de pagar o que quer que seja aos acionistas remanescentes, desde que tenha previamente lançado uma oferta pública de aquisição em que a todos tenha sido dada a possibilidade de abandonar a sociedade;

2. Tratar-se-á de uma alteração irrefl etida que, ao estabelecer requisitos adicionais para a possibilidade de recurso ao artigo 194.º veio, afi nal, a criar uma incoerência no âmbito da perda de qualidade de sociedade aberta, não podendo deixar de se aplicar os mesmos requisitos quantita-tivos, como forma de repor a coerência sistemática que sempre operou desde a entrada em vigor do Código.

III. Cremos que não só a história como a própria teleologia do preceito nos conduzem no sentido de não poder aceitar a primeira opção: a feição do insti-tuto de perda de qualidade de sociedade aberta enquanto mecanismo de con-ciliação de interesses antagónicos não permite abdicar de uma tutela acrescida ou reforçada da posição jurídica dos sujeitos que no âmbito da relação que por via da OPA se estabelece com o oferente surgem em posição relacional mais desprotegida (em virtude de uma situação de sujeição). A mera execução de uma oferta pública de aquisição, sem que os seus destinatários sejam informados

32 Assim sucedeu na sequência da oferta pública geral e obrigatória de aquisição das ações representativas do capital social da Brisa - Autoestradas de Portugal, S.A. lançada pela Tagus Holdings S.à.r.l..

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quanto à futura, efetiva e consequente perda de qualidade de sociedade aberta, não pode fundamentar – como nunca fundamentou – uma tal requalifi cação da sociedade (que de aberta se converte em fechada) sem que àqueles tenha sido proporcionada uma efetiva e adicional possibilidade de venda das suas ações. De resto, como em qualquer situação de colisão de direitos, a solução justa não pode deixar de passar pela necessidade de os respetivos titulares cederem na medida do necessário para que todos os direitos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, sendo que apenas no caso de os direitos serem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (v. artigo 335.º do Código Civil).

3. A correta interpretação dos requisitos de que depende a perda de qualidade de sociedade aberta na sequência de OPA

3.1. A ‘insufi ciência’ do pressuposto quantitativo

I. O cumprimento, literal, do pressuposto de facto a que alude o artigo 27.º/1/a não bastará para que um pedido de perda de qualidade de sociedade aberta possa ser, sem mais, deferido.

Aliás, se a verifi cação do pressuposto quantitativo fosse bastante, a perda de qualidade de sociedade aberta seria suscetível de ser confi gurada como um mecanismo de verifi cação automática, que poderia até dispensar uma específi ca intervenção da CMVM, de que, porém, o legislador não abdicou. Por outras palavras, o apuramento e publicação dos resultados da oferta (artigo 127.º), momento que, por integrar o procedimento da oferta pública, se encontra, como tal, sujeito ainda à supervisão da CMVM (artigo 353.º/1/a), poderia dispensar uma específi ca pronúncia da CMVM: perante a divulgação dos resul-tados e verifi cado o preenchimento do pressuposto literal do artigo 27.º/1/a, restaria ao oferente declarar, sendo essa a sua vontade, a perda de qualidade de sociedade aberta.

II. Ora, não é isso o que sucede quando a lei faz depender a efi cácia da perda de qualidade de sociedade aberta da publicação de decisão favorável da CMVM (artigo 29.º/1). O legislador comete assim à CMVM uma importante função de averiguação, análise e decisão, rodeando a perda de qualidade de sociedade aberta das necessárias salvaguardas que visam proteger os acionistas potencialmente prejudicados com a reconfi guração do estatuto da sociedade, no contexto de existência de interesses contrapostos.

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É pois, perante um notório confl ito de interesses que a atuação da CMVM, a quem incumbe a verifi cação do cumprimento da lei, ganha especial relevância.

III. Na verdade, se a perda de qualidade de sociedade aberta corresponde, nos termos do artigo 27.º/1/a, a uma faculdade do oferente (acionista maiori-tário) que, tendo já lançado uma oferta pública de aquisição, não só se propôs adquirir a um preço equitativo as ações detidas pelos demais acionistas, como obteve um elevado grau de aceitação que lhe permitiu a obtenção de uma posição de domínio qualifi cado, a verdade é que, da perspetiva dos acionistas remanescentes, a exclusão da negociação em mercado das ações da sociedade que constitui consequência necessária daquela perda (artigo 29.º/2) introduz uma signifi cativa modifi cação na sua posição jurídica e económica, na medida em que estes veem drasticamente reduzida a liquidez e negociabilidade das suas ações, bem como, et pour cause, uma signifi cativa diminuição do seu valor eco-nómico, a par com a eliminação de mecanismos informativos e a diminuição da transparência e da fi scalização a que a sociedade se encontrava sujeita.

A emergência de uma posição de domínio qualifi cado introduz, assim, um notório desequilíbrio entre as posições jurídicas do acionista que, por ter obtido aquela maioria, pretende “fechar” a sociedade, e a posição dos acionistas rema-nescentes que, não tendo vendido as suas ações na oferta por se conformarem com o surgimento de um acionista de controlo numa sociedade cotada (e que não têm motivos para confi ar que ela não se mantém cotada), se veem afi nal confrontados com a perda de qualidade de sociedade aberta e o inerente delis-ting das ações, como exercício da mera vontade do acionista maioritário.

O procedimento de perda de qualidade de sociedade aberta deve constituir, por isso, um mecanismo de resolução de confl itos ou de conciliação de interes-ses, permitindo à sociedade perder a qualidade de aberta, ao mesmo tempo não desconsiderando o intuito de proteção dos investidores, aqui acionistas mino-ritários. Daí a exigência de que a perda corresponda a uma vontade represen-tativa de uma maioria bastante signifi cativa, por referência ao seu capital social.

Consequentemente, o lançamento de uma oferta pública de aquisição e a obtenção de uma signifi cativa concentração de direitos de voto não sustenta, por si só, um resultado em que ao reconhecimento dos direitos do oferente (acionista maioritário) corresponda uma completa desproteção dos interesses, expectativas e direitos dos acionistas minoritários, o que nos leva a concluir que, no âmbito da apreciação de um pedido de perda de qualidade de sociedade aberta deverá cumulativamente verifi car-se:

(i) Se foi ou não lançada uma oferta pública de aquisição;(ii) Se, em consequência desta, foi ou não adquirido pelo oferente pelo

menos 90% dos direitos de voto da sociedade visada; e

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(iii) Se foi ou não assegurada a proteção dos investidores, sendo proporcio-nada aos acionistas minoritários uma efetiva possibilidade de saída em condições justas, perante o conhecimento de que a perda de qualidade de sociedade aberta iria afi nal ocorrer.

3.2. A integração do regime da perda da qualidade de sociedade aberta num sistema unitário e a consideração de lugares paralelos

I. Para demonstrar que a perda de qualidade de sociedade aberta apenas pode ser obtida após concessão de uma oportunidade de saída aos acionis-tas remanescentes, deve ter-se em consideração situações em que, perante um potencial confl ito de interesses de natureza análoga àquele que existe no âmbito da perda da referida qualidade, a lei prevê uma resposta que precisamente se baseia na realização de uma oportunidade de saída dos acionistas minoritários.

Assim, reconhecendo a lei a existência de circunstâncias em que é propícia a ocorrência de um confl ito entre o princípio da maioria e a proteção da minoria, vem estabelecer diversos mecanismos para a sua resolução, ou conciliação, pro-movendo, em nome de um princípio de justiça, o reequilíbrio entre os interes-ses e posições divergentes.

Assim sucede, por exemplo, quando as participações detidas na sequência de uma oferta pública de aquisição sejam tão signifi cativas que importem a concentração de «90% dos direitos de voto correspondentes ao capital social até ao apuramento dos resultados da oferta e 90% dos direitos de voto abrangidos pela oferta» na pessoa do oferente, surgindo na esfera dos acionistas titulares de ações rema-nescentes o direito de alienação potestativa, a que se refere o artigo 196.º:

«Cada um dos titulares das acções remanescentes, nos três meses subsequentes ao apura-mento dos resultados da oferta pública de aquisição referida no n.º 1 do artigo 194.º, [pode] exercer o direito de alienação potestativa, devendo antes, para o efeito, dirigir por escrito ao sócio dominante convite para que, no prazo de oito dias, lhe faça proposta de aquisição das suas acções.»

II. Constituindo este direito de alienação potestativa o reverso do direito de aquisição potestativa33, se ao acionista de controlo é dada a possibilidade de

33 O que não signifi ca, note-se, que o âmbito subjetivo daqueles abrangidos pelo preceito seja o mesmo. Assim, se o direito de aquisição potestativa pode ser exercido sobre quem quer que tenha as ações que daquele são objeto – mesmo que as tenha adquirido em mercado após o termo da OPA –, já não terá legitimidade para exercer o direito de alienação potestativa o acionista que tenha

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obter «…a perda da qualidade de sociedade aberta da sociedade e a exclusão da nego-ciação em mercado regulamentado das acções da sociedade e dos valores mobiliários que a elas dão direito (…)» (artigo 195.º/4), aos acionistas remanescentes é facultada, depois da possibilidade de saída da sociedade que lhes foi concedida por ocasião da OPA precedente, uma possibilidade adicional de saída em virtude da superve-niência e conhecimento de uma posição de domínio qualifi cado.

O direito de alienação potestativa constitui, assim, uma solução jurídica de (re)equilíbrio dos interesses dos acionistas que, em termos factuais, se encon-tram não só em posições antagónicas como em posições de diferente privilégio perante as circunstâncias do caso – o acionista maioritário que alcançou os duplos 90% pode não ter interesse em exercer o direito de aquisição potesta-tiva, mas os acionistas minoritários, destinatários da oferta, encontram-se care-cidos de proteção em virtude de terem recaído em tal circunstância sem que tivessem contribuído para a mesma.

De resto, recorde-se que, na versão originária do Código dos Valores Mobiliários, a possibilidade de exercer o direito de aquisição potestativa depen-dia dos mesmos pressupostos quantitativos de que dependia a possibilidade de requerer a perda de qualidade de sociedade aberta, 90% dos direitos de voto. Esta, que sendo a solução mais acertada é a única que confere coerência e unidade ao sistema jurídico, conduzia à atribuição aos acionistas que se confrontassem com a aquisição de uma posição de domínio reforçado na sequência de uma OPA a possibilidade de evitar fi car reféns numa sociedade com tal estrutura acio-nista, seja porque o acionista maioritário não exerceu o seu direito de aquisição potestativa, mantendo a sociedade em mercado, seja porque vem a requerer a perda de qualidade de sociedade aberta (artigo 27.º/1/a), com intuito de a retirar de mercado34.

adquirido as ações após o termo da OPA, pois que em tal caso não se enquadra no universo daqueles que são visados pelo âmbito subjetivo de proteção da norma (que visa facultar aos acionistas, destinatários da OPA, a possibilidade de decidir livremente a manutenção das ações, sem o receio de fi car presos numa sociedade com reduzidíssima liquidez).34 A perda de qualidade de sociedade aberta implica necessariamente a exclusão de negociação dos valores mobiliários, embora o inverso não suceda: casos haverá de exclusão de negociação que mantêm intocada a qualidade de sociedade aberta. Porém, nos casos em que tal corresponda ao exercício da vontade, será tendencialmente irrelevante a distinção, pois não se antecipa a existência de qualquer interesse atendível em promover a exclusão de negociação e manter a qualidade de sociedade aberta. Daí que a legislação nacional tenha previsto, como via para a exclusão de negociação, o procedimento de perda de qualidade de sociedade aberta, porque se verifi ca a concentração da totalidade (artigo 194.º) ou de uma percentagem considerável de direitos de voto [artigo 27.º/1/a) e b)] na esfera de um acionista.

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Signifi ca isto que, na versão originária, o mecanismo de saída dos acionistas em casos de exercício do direito de requerer a perda de qualidade de sociedade aberta, com fundamento no artigo 27.º/1/a, estava previsto no artigo 196.º. O acionista que obtivesse uma tão signifi cativa adesão à sua oferta, proporcio-nando-lhe a detenção de 90% dos direitos de voto, não precisaria de expulsar os demais mediante exercício do direito de aquisição potestativa com propósito de fechar a sociedade e excluí-la de negociação, bastando-lhe requerer a perda de qualidade de sociedade aberta; os acionistas minoritários que, não tendo vendido em OPA, fossem confrontados com a tomada de decisão de fechar a sociedade e excluí-la de negociação, disporiam do direito de alienação potesta-tiva para se apartar da sociedade, em tal cenário.

Tal coerência, quebrada em 2006 quando se introduziu, sem alterar o art. 27.º/1/a, o requisito quantitativo adicional no artigo 194.º (90% do objeto da oferta), não pode signifi car que o legislador intencionalmente e de forma pen-sada pretendeu diminuir as garantias dos acionistas no contexto do fechamento da sociedade, o que de reso seria absolutamente incompatível e contraditório com a alteração que acabara de introduzir (os duplos 90), cuja razão de ser identifi camos com o propósito de tornar mais exigentes os termos em que uma sociedade pode passar de aberta a fechada e voluntariamente excluir-se de negociação.

III. Um outro lugar paralelo é encontrado no artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais35. A circunstância de este se tratar de um mecanismo previsto naquele Código não poderá servir para o desqualifi car enquanto meca-nismo de proteção dos acionistas minoritários: a ordem jurídica deve ser conside-rada, na aplicação do direito, de forma unitária, não devendo verifi car-se com-partimentações de regulamentação sobretudo se das mesmas se concluir pela injustiça de tratamento da parte mais desfavorecida de um determinado confl ito. O artigo 490.º daquele Código e, em concreto, a alienação potestativa prevista no seu n.º 5, constitui, inegavelmente, um mecanismo de proteção da posição jurídica dos acionistas minoritários a ser acionado necessariamente depois e independentemente da possibilidade de saída da sociedade que aqueles possam ter tido por ocasião da OPA precedente.

IV. Por fi m, é o que sucede, também, nos termos do artigo 27.º/1/b, de acordo com o qual uma maioria representativa de pelo menos 90% do capital

35 Nos termos da qual deverá adquirir as ações remanescentes por um preço justifi cado por relatório elaborado por revisor ofi cial de contas independente das sociedades interessadas (n.º 2) ou judicialmente determinado (n.º 6).

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social delibera em assembleia geral requerer a perda de qualidade de sociedade aberta, caso em que, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo:

«a sociedade deve indicar um accionista que se obrigue: a) A adquirir, no prazo de três meses após o deferimento pela CMVM, os valores mobi-

liários pertencentes, nesta data, às pessoas que não tenham votado favoravelmente alguma das deliberações em assembleia;

b) A caucionar a obrigação referida na alínea anterior por garantia bancária ou depósito em dinheiro efectuado em instituição de crédito.»

Este mecanismo permite que os acionistas minoritários se desvinculem da relação social em virtude da verifi cação de um confl ito entre os seus interesses e os interesses da maioria, resultantes, agora, não (necessariamente) da concen-tração de capital na sequência de uma OPA, mas da deliberação de perda em assembleia geral tomada por aquela maioria.

Ora, se nos termos do artigo 27.º/1/a o pressuposto da proteção do prin-cípio da maioria se consubstancia no prévio lançamento de OPA (e, se assim o entendermos, na conjugação do mesmo com o direito de saída proporcionado pelo direito de alienação potestativa), nos termos da al. b) assenta numa deli-beração tomada em assembleia geral, conjugada com a implementação de um mecanismo de saída para os acionistas que não tenham votado favoravelmente a perda.

V. Revistos os casos em que o legislador promoveu uma conciliação de interesses que identifi cámos existir nestes casos, concluímos tratar-se, em todos os expedientes mencionados, de mecanismos em que a concretização da garan-tia de proteção da posição jurídica dos acionistas titulares de ações remanes-centes passa pela imposição ao acionista titular de um domínio qualifi cado36 de conceder, por qualquer via, um direito de saída que se afi gure justo, conferindo ao investidor a possibilidade de ponderar a permanência ou a saída da sociedade que irá fechar-se e, neste último caso, permitindo uma saída em condições satis-fatórias, procurando sempre evitar a alienação das ações por valores iníquos.

Esse constitui, por isso, o pressuposto inerente à possibilidade de perda de qualidade de sociedade aberta que venha a ser determinada por recurso à

36 Mal se compreenderia que tal direito fosse atribuído ao futuro titular de uma eventual e ainda não constituída posição de domínio qualifi cado, quando aos demais acionistas que em tais circunstâncias recairiam numa situação de sujeição não era dada mais do que a possibilidade de, no presente, decidir sobre o seu desinvestimento em face de uma tão só hipotética situação futura – a verifi cação dos requisitos quantitativos e volitivos de que dependeria a obtenção da perda de qualidade de sociedade aberta.

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al. a) do n.º 1 do artigo 27.º, mal se compreendendo que ao acionista de con-trolo fosse facultada a possibilidade de obter a perda de qualidade de sociedade aberta e promover a exclusão de negociação das ações da sociedade sem que aos acionistas remanescentes fosse facultado uma correspondente oportunidade de saída, assente em princípios de justiça material.

VI. Constituem as referidas disposições (alienação potestativa mobiliá-ria [196.º], alienação potestativa societária [490.º do Código das Sociedades Comerciais] e deliberação em assembleia geral [27.º/1/b)], portanto, lugares paralelos, devendo como tal ser relevados no âmbito da consideração do elemento sistemático de interpretação da norma do artigo 27.º/1/a)37.

Em consideração a esses lugares paralelos, conclui-se ser desadequado o entendimento de que a perda de qualidade de sociedade aberta com funda-mento no artigo 27.º/1/a dispensa uma adicional (face à OPA precedente) forma de proteção da posição dos acionistas minoritários. Desde logo porque em nenhuma outra circunstância onde se evidencia um confl ito de natureza similar o legislador dispensou a efetivação de um mecanismo de proteção da parte mais fraca, os acionistas remanescentes, perante a consumação da circuns-tância suscetível de afetar a sua posição jurídica38.

Assim, nos casos em que esse mecanismo de proteção não tenha sido pro-porcionado aos acionistas minoritários, a perda de qualidade de sociedade aberta não o poderá dispensar, não porque a CMVM o deva ou possa discricionaria-mente impor, mas porque o exige uma correta interpretação do preceito e o pressupõe a unidade e coerência do sistema jurídico39.

37 Como refere Baptista Machado, “Introdução ao Direito…”, ob. ant. cit., p. 183, «[e]ste elemento compreende a consideração (…) de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afi ns (lugares paralelos).»38 Não bastando, pois, o simples pré-anuncio da possibilidade futura de a sociedade vir a perder a qualidade de aberta e a negociabilidade das suas ações em mercado, que de resto sempre poderá funcionar como um indesejável instrumento de pressão para a venda em OPA. Nesta operação, os acionistas deverão decidir livres das possíveis – porque desconhecidas –, consequências da concentração de capital na esfera do oferente, devendo ter oportunidade de reagir se e quando ela se verifi que.39 Não obstante a existência de precedentes – e a hoje unanimemente aceite interpretação do artigo 27.º/1/a no sentido de os seus requisitos quantitativos não diferirem daqueles que estão na base do direito de alienação potestativa –, seria de todo conveniente, ainda que com meros afeitos aclaratórios, uma intervenção legislativa que evitasse a invocação de qualquer solução que pusesse em causa a unidade e coerência sistemática do ordenamento português, conferindo à letra daquele preceito os duplos 90 que hoje se encontram literalmente previstos no artigo 194.º.

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3.3. A proteção do investidor como critério de decisão e deferimento do pedido de perda de qualidade de sociedade aberta

Com tudo o que fi ca dito, é agora inequívoco que a CMVM só poderá deliberar favoravelmente o pedido de perda de qualidade de sociedade aberta ao abrigo do artigo 27.º/1/a se e quando se verifi carem preenchidos todos os pressupostos de legalidade inerentes ao funcionamento do instituto, bem como assegurada a coerência do sistema e das práticas da CMVM no que respeita a entendimentos, interpretações e decisões anteriormente adotadas em casos similares.

Entre os requisitos legais que devem presidir à prática do ato assumem particular relevo o princípio de proteção dos investidores [artigo 358.º/a)], enquanto princípio estruturante do direito dos valores mobiliários, cuja imple-mentação e proteção constitui um dos mais elementares deveres da CMVM no exercício das suas competências de regulação e supervisão do mercado.

Efetivamente, em face da já mencionada deterioração da posição do inves-tidor subsequente a qualquer exclusão de negociação (delisting, que a perda de qualidade de sociedade aberta implica), o ordenamento jurídico muniu-se, como se viu também, de uma amplitude signifi cativa de instrumentos desti-nados a conferir ao investidor a possibilidade de ponderar a permanência ou a saída da sociedade que irá fechar-se e, neste último caso, de permitir ao inves-tidor fazê-lo em condições satisfatórias, procurando sempre evitar a alienação das ações por valores iníquos.

Tais formas de tutela dos investidores concretizam-se pela convocação de diversos mecanismos prévios (deliberação autorizativa da assembleia geral para a perda de qualidade, ao abrigo do artigo 27.º/1/b) e subsequentes (alienação potestativa, nos termos do artigo 196.º ou do artigo 490.º/5 do Código das Sociedades Comerciais) à perda de qualidade de sociedade aberta.

Em caso de requerimento para a perda de qualidade de sociedade aberta nos termos do artigo 27.º/1/a, sem que aos destinatários da oferta seja concedida a possibilidade de manter ou vender as suas ações em face da projetada vontade inequívoca do oferente de requerer a perda de qualidade de sociedade aberta, não estará assegurada essa possibilidade de saída em condições adequadas, o que resultaria numa potencial e inaceitável situação de captura dos acionistas mino-ritários, caso o sistema jurídico na sua coerência global não assegurasse qualquer mecanismo justo de saída.

A necessidade de tutela da posição do investidor em sociedade aberta que se torna fechada por acionamento do artigo 27.º/1/a, i.e., sem qualquer pos-sibilidade de ser infl uenciada pelo acionista remanescente, constitui assim um imperativo lógico e axiológico do próprio sistema jurídico e vetor fundamental

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do regime jurídico dos valores mobiliários e das sociedades comerciais, estrutu-ralmente vinculada ao cumprimento do dever de proteção do investidor con-signado à CMVM pelo artigo 358.º/1/a.

D. Conclusões

I. Feito este percurso, alcançámos algumas conclusões que poderão trazer luz a novos problemas.

A qualidade de sociedade aberta constitui pressuposto da aplicação de um regime de proteção dos potenciais acionistas que adquire incomensurável den-sifi cação quando à qualidade de aberta é acrescida a qualidade de cotada, sempre que a sociedade admite à negociação as suas ações. Não havendo sociedade sujeita a lei pessoal portuguesa que não seja aberta (artigo 13.º/1/c), percebe-se que a via para a exclusão voluntária passe necessariamente pela perda da quali-dade de sociedade aberta, na sequência de OPA que conduza à aplicabilidade dos regimes de aquisição ou alienação potestativa e que, como tal, admitam conco-mitantemente a aplicação do artigo 27.º/1/a ou de deliberação em assembleia geral ao abrigo do artigo 27.º/1/b.

II. Tais vias, porém, não se afi guram de recurso possível para as socieda-des que, sujeitas a lei pessoal estrangeira, não adquirem a qualidade de sociedade aberta.

Nesses casos, afastada que está a possibilidade de aplicação dos institutos da aquisição potestativa de direito nacional ou da perda de qualidade de sociedade aberta como via para a promoção do delisting das ações, resta o regime da exclusão voluntária que, tendo sido inicialmente testado, sem base legal ou regulamentar, no contexto de sociedade cotadas em dois mercados regulamentados de dife-rentes jurisdições (dual listing), veio em sequência a ter acolhimento nas regras harmonizadas da entidade gestora do mercado regulamentado a funcionar em Portugal (Euronext), como forma de evitar uma vinculação contratual perpétua de tais entidades a uma negociação em mercado que poderia já não ser do seu interesse.

Tal regime, dependente da verifi cação dos «requisitos adicionais que [a Euro-next] considere adequados» (de acordo com o ponto 6905/5 das suas regras har-monizadas) e criado com propósito de permitir às referidas sociedades, sujeitas a lei pessoal que não a portuguesa, o que já era reconhecido às sociedades abertas por via da perda dessa qualidade, não poderá em qualquer circunstância ser utilizado para além desse propósito, distorcendo o level playing fi eld que se procurou por essa via repor. Ou seja, não deverá legitimamente pretender-se

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obter por essa via uma exclusão voluntária de negociação em termos substan-cialmente distintos daqueles em que tal resultado é admissível na sequência de perda de qualidade de sociedade aberta.

De resto, o recurso a tais mecanismos por sociedade aberta sujeita a lei pessoal portuguesa acabaria por tornar obsoleto o regime da perda de tal qualidade, conduzindo ao resultado absurdo de se ser mais exigente para a perda de uma qualidade (de sociedade aberta) que acarreta signifi cativamente menos exigên-cias do que aquelas associadas a outra qualidade (de sociedade cotada) que mais facilmente se poderia perder se houvesse de se entender que os requisitos de saída poderiam ser mais ligeiros.

Trata-se esta de questão de não somenos importância – embora hoje de reduzido âmbito subjetivo de aplicação –, que porém não encontra espaço nas já longas páginas em que nos debruçámos sobre o tema conexo da perda de qualidade de sociedade aberta.

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