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UNIVERSIDADE DA CORUNHA FACULDADE DE FILOLOGIA DEPARTAMENTO DE GALEGO-PORTUGUÊS, FRANCÊS E LINGUÍSTICA Sociolinguística e tradução de português do Brasil: problemas de norma e repercussões didáticas Tese de doutoramento realizada por Sandra María Pérez López Dirigida pelos professores Dr. Xosé Ramón Freixeiro Mato e Dr. Xosé Manuel Sánchez Rei A Corunha, setembro de 2015

Sociolinguística e tradução de português do Brasil ... · Às minhas universidades e mestres, pelo que lhes devo, e em especial ao professorado ... de galego-português da Universidade

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  • UNIVERSIDADE DA CORUNHA

    FACULDADE DE FILOLOGIA

    DEPARTAMENTO DE GALEGO-PORTUGUS, FRANCS E LINGUSTICA

    Sociolingustica e traduo de portugus do Brasil:

    problemas de norma e repercusses didticas

    Tese de doutoramento realizada por

    Sandra Mara Prez Lpez

    Dirigida pelos professores

    Dr. Xos Ramn Freixeiro Mato e

    Dr. Xos Manuel Snchez Rei

    A Corunha, setembro de 2015

  • II

    Sociolingustica e traduo de portugus do Brasil:

    problemas de norma e repercusses didticas

    Sandra Mara Prez Lpez

    Tese de doutoramento UDC/2015

    Visto e praze

    ________________ _________________

    Xos Ramn Freixeiro Mato Xos Manuel Snchez Rei

    Departamento de Galego-portugus, Francs e Lingustica

  • III

    As palavras tambm tm a sua hierarquia, o seu protocolo,

    os seus ttulos de nobreza, os seus estigmas de plebeu.

    Com as palavras todo cuidado pouco, mudam de opinio como as pessoas.

    Saramago, J. (2005:196, 65)

  • IV

    AGRADECIMENTOS

    s minhas universidades e mestres, pelo que lhes devo, e em especial ao professorado

    de galego-portugus da Universidade da Corunha, que me ensinou um estar respeitoso

    sem o qual no h caminhos. Muito obrigada.

    Ao Professor Freixeiro, pela disposio, a simpatia e a clareza. Muito obrigada.

    Ao Professor Snchez Rei, pela gentileza.

    Universidade de Braslia e ao Brasil, que to bem me receberam sempre, pelo apoio

    para a realizao desta pesquisa.

    A colegas e estudantes, que de longa data me mostraram como a dificuldade das coisas

    as faz mais interessantes.

    Um abrao especial ao Danilo e Ivone, ao Jlio, Magali e Lucie, como tambm

    Carol, Jana e Gabi, e ao coletivo de estudantes de Traduo Espanhol da

    Universidade de Braslia. Sem o seu tempo e sagacidade, no teria sido possvel este

    trabalho.

    Aos tradutores e tradutoras que so ou viro, por continuarem na luta com a palavra.

    minha famlia e amizades, na Galiza e no Brasil, e ao Lus, com amor, pela pacincia

    e o olhar atento.

  • V

    RESUMO

    Esta tese discute implicaes sociolingusticas relacionadas comunidade tradutria e

    s tenses configuradas pela situao de padronizao do portugus do Brasil no sculo

    XXI. Aps acompanhar discursos sobre essa variedade, num percurso scio-histrico,

    apresentam-se contribuies da Sociolingustica como base do arcabouo terico

    adotado: as comunidades de prtica (Eckert 2000, Wenger 1998, 2006), as interaes

    virtuais (Herring 2013) e a higiene verbal (Cameron 1995). Localizando a pesquisa em

    mbitos como as primeiras e afirmando a relevncia do estudo da avaliao lingustica

    explcita ou higiene verbal, analisa-se como so representados (Moscovici 2015)

    conflitos sobre norma lingustica por profissionais, docentes e estudantes da prtica

    tradutria numa lista de discusso TRAD-PRT e num curso superior de Traduo

    brasileiro. Os resultados mostram que a insegurana que esses sujeitos declaram se

    relaciona tanto atividade tradutria, quanto a problemas de norma lingustica,

    geradores de interaes tensas onde frequentemente se negam as implicaes

    ideolgicas na atividade linguageira e se recorre a termos religiosos indicativo do

    componente emocional presente nas ideologias lingusticas. Aps anlise, conclui-se a

    necessidade de elaborao didtica de problemas de norma lingustica na formao em

    Traduo numa perspectiva crtica, que reconhea ainda fatores alheios racionalidade,

    mas de base social, como inerentes ao fazer lngua.

    Palavras-chave: portugus do Brasil, norma lingustica, traduo, formao.

  • VI

    RESUMEN

    En esta tesis se discuten implicaciones sociolingsticas relacionadas con el mbito de

    la traduccin y las tensiones derivadas de la situacin de estandarizacin del portugus

    de Brasil en el siglo XXI. Tras acompaar discursos sobre dicha variedad, en un

    recorrido sociohistrico, se presentan contribuciones de la Sociolingstica como base

    del marco de referencia terico adoptado: las comunidades de prctica (Eckert 2000,

    Wenger 1998, 2006), las interacciones virtuales (Herring 2013) y la higiene verbal

    (Cameron 1995). Localizando esta investigacin en mbitos como las primeras y

    defendiendo la relevancia de estudiar la evaluacin lingstica explcita o higiene

    verbal, se analiza cmo representan (Moscovici 2015) los conflictos sobre norma

    lingstica profesionales, docentes y estudiantes de la prctica traductora en una lista de

    discusin TRAD-PRT y en un curso superior de Traduccin brasileo. Los resultados

    muestran que la inseguridad que declaran sentir estos sujetos est relaciona tanto con la

    actividad traductora, como con problemas de norma lingstica, los cuales dan lugar a

    interacciones tensas donde con frecuencia se ven negadas las implicaciones ideolgicas

    de la actividad lingstica y se recurre a trminos religiosos indicativo del componente

    emocional que se hace presente en las ideologas lingsticas. Tras el anlisis, se

    concluye que resulta necesaria una elaboracin didctica de problemas de norma

    lingstica en la formacin en Traduccin desde una perspectiva crtica, que tambin

    tome en cuenta factores ajenos a la racionalidad, aunque de base social, como inherentes

    al hacer lengua.

    Palabras clave: portugus de Brasil, norma lingstica, traduccin, formacin

  • VII

    ABSTRACT

    In this thesis, sociolinguistic implications related to translation and to tensions arising

    from the situation of standardization of Brazilian Portuguese in the XXI century are

    discussed. The theoretical framework adopted in this study was Sociolinguistics,

    namely from a socio-historical perspective. The concepts of communities of practice

    (Eckert 2000, Wenger 1998, 2006), virtual interactions (Herring 2013) and verbal

    hygiene (Cameron 1995) were applied in order to analyze speeches about the

    aforementioned variety. By locating this research in areas such as those mentioned

    above and by defending the importance of studying the explicit language assessments or

    verbal hygiene, analysis was carried out in order to find out how conflicts concerning

    linguistic norms are represented (Moscovici 2015) by professional translators,

    translation teachers and translation students. The corpus for the research consists of

    information from a Brazilian Translators' forum TRAD-PRT and of interviews with

    students and professors from a Brazilian Translation Studies undergraduate degree

    course. The results show that the insecurity that these subjects feel is related to both the

    translation activity and linguistic standards, which lead to tense interactions where

    ideological implications of linguistic activity are frequently denied and religious terms

    indicative of the emotional component in the linguistic ideologies are often found.

    After the analysis, it became evident that there is a need to pay attention to standard

    language problems in Translation training from a critical perspective, as well as to take

    into account factors beyond rationality and its social base.

    Key-words: Brazilian Portuguese, linguistic norms, translation, training

  • VIII

    PRINCIPAIS SIGLAS MENCIONADAS

    ABL - Academia Brasileira de Letras

    Abrates - Associao Brasileira de Tradutores

    ALiB - Atlas lingustico do Brasil

    ANECA - Agencia Nacional de Evaluacin de la Calidad y Acreditacin

    ARPA - Agncia de Projetos de Investigao Avanada

    CMC - Comunicao Mediada por Computador

    CT - Competncia Tradutria

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IHGB - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    ITU - Unio Internacional de Telecomunicaes

    LIBRAS - Lngua Brasileira de Sinais

    PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios

    Projeto NURC - Projeto Norma Urbana Culta

    NGB - Nomenclatura Gramatical Brasileira

    OCDE - Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    PALOP - Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa

    PISA- Program for International Student Assessment

    RAE - Real Academia Espanhola

    TRAD/ESP - Traduo Espanhol

    UnB - Universidade de Braslia

    USP - Universidade de So Paulo

    VOLP - Vocabulrio Ortogrfico da Lngua Portuguesa

  • IX

    TABELAS E FIGURAS

    Tabela 1: Exemplos de atividades das comunidades de prtica (Wenger 2006) .......... 157

    Tabela 2: Promdio mundial de acesso Internet em 2013 e 2014 (Relatrio ITU 2014)

    ...................................................................................................................................... 174

    Tabela 3: Categorias de Comunicao Mediada por Computador (Baron 2013)......... 176

    Tabela 4: Quantidade de mensagens/ano em TRAD-PRT de 1998 a 2014.................. 196

    Tabela 5: Mensagens de TRAD-PRT arquivadas de 1989 a 1996 ............................... 197

    Tabela 6: Piso conversacional e ratificaes por gnero em TRAD-PRT no dia

    16/10/1998 .................................................................................................................... 244

    Tabela 7: Participantes e mensagens por gnero na linha conversacional de TRAD-PRT

    iniciada por 161765 (de 19/09/2005) ........................................................................... 247

    Tabela 8: Quantidade de participantes e mensagens por gnero e dia na mesma linha

    conversacional .............................................................................................................. 248

    Tabela 9: Rtio diria de mensagens por participante e gnero na mesma linha

    conversacional .............................................................................................................. 248

    Tabela 10: Perodo compreendido e horrio da primeira e da ltima postagem por dia na

    mesma linha conversacional ......................................................................................... 249

    Tabela 11: Quantidade de mensagens e promdio de minutos entre elas por dia na

    mesma linha conversacional ......................................................................................... 249

    Tabela 12: Nmero de participantes, mensagens e palavras por gnero e dia na mesma

    linha conversacional ..................................................................................................... 250

    Tabela 13: Mensagens mais longas por dia e gnero na mesma linha conversacional 251

    Tabela 14: Nmero de participantes por gnero segundo a quantidade de mensagens

    enviadas mesma linha conversacional ....................................................................... 252

    Tabela 15: Participantes por gnero que enviaram os maiores nmeros de mensagens e

    palavras mesma linha conversacional ........................................................................ 252

    Tabela 16: Quantidade de concordncias e discordncias por gnero na mesma linha

    conversacional .............................................................................................................. 253

    Tabela 17: Turnos no ratificados por gnero na mesma linha conversacional ........... 254

    Tabela 18: Turnos ratificados mais duma vez por gnero na mesma linha conversacional

    ...................................................................................................................................... 254

    Tabela 19: Identificao de quem teve um turno ratificado mais duma vez por gnero na

    mesma linha conversacional ......................................................................................... 255

    Tabela 20: Exemplos da famlia lxica de (CON)SAGR- em TRAD-PRT ................. 327

    Tabela 21: Exemplos da famlia lxica de (CON)SAGR- com conotao pejorativa em

    TRAD-PRT ................................................................................................................... 328

    Tabela 22: Exemplos de higiene verbal sobre contraes em TRAD-PRT ................. 333

  • X

    Tabela 23: Objetivos de aprendizagem para formao em traduo sobre a primeira

    lngua estrangeira (Albir 1999:64) e a denominada lngua materna (Albir 1999:90)

    ...................................................................................................................................... 342

    Tabela 24: Argumentos mnimos e mximos de ingresso na Universidade de Braslia e

    em Letras/Traduo Espanhol, do 1 semestre letivo de 2010 ao 2 de 2012 .............. 369

    Tabela 25: Demanda mnima e mxima de ingresso na Universidade de Braslia e em

    Letras/Traduo Espanhol, do 1 semestre letivo de 2010 ao 2 de 2012 .................... 369

    Tabela 26: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 1/2010

    ...................................................................................................................................... 393

    Tabela 27: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 2/2010

    ...................................................................................................................................... 395

    Tabela 28: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 1/2011

    ...................................................................................................................................... 397

    Tabela 29: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em

    2/2011 ......................................................................................................................... 398

    Tabela 30: Depoimentos sobre escrita e traduo extrados do instrumento 3 em 1/2012

    ...................................................................................................................................... 399

    Tabela 31: Redes semnticas sobre Redao de 1/2010 a 1/2012 ............................. 400

    Tabela 32: Redes semnticas sobre Traduo de 1/2010 a 1/2012 ............................ 400

    Tabela 33: Mensurao da distncia entre Redao e Traduo percebida por

    participantes de 1/2010 a 1/2012 ............................................................................... 401

    Tabela 34: Nmero de participantes por curso/rea e gnero ...................................... 433

    Tabela 35: Nmero de participantes de Traduo Espanhol com matrcula noutros

    cursos, concludos ou incompletos ............................................................................... 433

    Tabela 36: Idades mxima, mdia e mnima de participantes por curso/rea .............. 434

    Tabela 37: Adaptaes em instrumento de pesquisa sobre concordncia .................... 435

    Tabela 38: Adaptaes em instrumento de pesquisa sobre pronomes complemento ... 436

    Tabela 39: Outras adaptaes em instrumento de pesquisa ......................................... 436

    Tabela 40: Total geral de intervenes e de intervenes selecionadas por curso/rea 437

    Tabela 41: Mdia geral de intervenes e de intervenes selecionadas por participante

    e rea/curso ................................................................................................................... 438

    Tabela 42: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre concordncia ................ 438

    Tabela 43: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre pronomes complemento 453

    Tabela 44: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre presidenta ................. 457

    Tabela 45: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre o Acordo Ortogrfico de

    1990 .............................................................................................................................. 461

    Tabela 46: Quantidade de intervenes por rea/curso sobre outros assuntos

    selecionados .................................................................................................................. 462

  • XI

    Figura 1: Grfico da quantidade de mensagens/ano em TRAD-PRT de 1998 a 2014 . 196

    Figura 2: Seo inicial da tela de abertura de TRAD-PRT .......................................... 199

    Figura 3: Grfico com o nmero de participantes por gnero segundo a quantidade de

    mensagens enviadas mesma linha conversacional..................................................... 252

    Figura 4: ndice de frequncia de consagrao em Barbosa (2012) segundo o

    concordanciador AntConc ............................................................................................ 325

    Figura 5: Grfico de distribuio de ocorrncias de consagrao em Barbosa (2012)

    segundo o concordanciador AntConc ........................................................................... 326

    Figura 6: Grfico de distribuio de ocorrncias de consagrada em Barbosa (2012)

    segundo o concordanciador AntConc ........................................................................... 327

    Figura 7: Grfico da distncia percebida entre Redao e Traduo de 1/2010 a 1/2012

    ...................................................................................................................................... 401

    Figura 8: Grfico de Nmero de participantes de Traduo Espanhol (com outros

    estudos, concludos ou incompletos), e de estudantes doutros cursos, por faixa etria 434

  • XII

    NDICE

    PARA INCIO DE CONVERSA ................................................................................ 15

    JUSTIFICATIVA ......................................................................................................... 30

    METODOLOGIA DE PESQUISA: OBJETIVOS, PERGUNTAS E ASSERES

    ........................................................................................................................................ 32

    CAPTULO 1. PARA APRESENTAR O CONCEITO DE NORMA: O CASO DO

    PORTUGUS DO BRASIL ........................................................................................ 43

    1.1. REVISITANDO O CONCEITO O CONCEITO DE NORMA .......................... 44

    1.2. NORMA LINGUSTICA: PENSANDO NO PORTUGUS DO BRASIL ....... 60

    1.2.1. Mapeando pontos duma histria discursiva da norma lingustica no Brasil . 62

    1.2.2. Estudos lingusticos e a norma lingustica no Brasil ................................... 109

    CAPTULO 2. PROBLEMAS NA PESQUISA (SOCIO)LINGUSTICA:

    ESPAOS, LIMITES E CONTEXTOS NAS LTIMAS DCADAS .................. 142

    2.1. PROBLEMAS (SOCIO)LINGUSTICOS: CONCEPES ENTRE O

    INDIVIDUAL E O SOCIAL .................................................................................... 144

    2.2. ABORDAGENS SOCIOLINGUSTICAS E LCUS DE ANLISE:

    DIRECIONANDO O FOCO .................................................................................... 147

    2.3. PESQUISANDO IDEOLOGIAS LINGUSTICAS EM COMUNIDADES DE

    PRTICA: O DESCONFORTO NA (SOCIO)LINGUSTICA .............................. 158

    2.4. AS INTERAES VIRTUAIS E A PESQUISA (SCIO)LINGUSTICA .... 170

    2.5. SOCIOLINGUSTICA E TRADUO: CONTATO DE LNGUAS ............. 184

    CAPTULO 3. PROBLEMAS DE NORMA NA LNGUA PORTUGUESA:

    AVALIAO LINGUSTICA POR TRADUTORES E TRADUTORAS

    PROFISSIONAIS ....................................................................................................... 189

    3.1. LISTAS E COMUNIDADES DE PRTICA VIRTUAIS: UM HISTRICO DE

    TRAD-PRT ............................................................................................................... 192

    3.2. TRAD-PRT: MAPEANDO DOMNIOS E IDENTIDADES ........................... 197

    3.2.1. Domnio em TRAD-PRT: fazendo recortes ................................................ 202

    3.2.2. Posies-sujeito em TRAD-PRT: fazendo identidade na lista.................... 209

    3.2.3. Prticas em TRAD-PRT: a construo duma comunidade ......................... 239

    3.3. FAZENDO (SOCIO)LINGUSTICA: A LNGUA PORTUGUESA EM TRAD-

    PRT ........................................................................................................................... 258

    3.3.1. Panorama geral das questes abordadas: macro-eixos de anlise ............... 259

  • XIII

    3.3.2. Norma lingustica: categorias enunciadas em TRAD-PRT......................... 264

    3.3.3. Avaliando a variao lingustica: diferenas geoletais ............................... 271

    3.3.4. A passagem do tempo e a variao lingustica em TRAD-PRT ................. 291

    3.3.5. Retomando discursos construdos pela Comunidade de Prtica: o consagrado,

    o tabu e preconceito lingustico em TRAD-PRT .................................................. 318

    CAPTULO 4. AS LNGUAS NA FORMAO TRADUTRIA: JUZOS

    AVALIATIVOS DA VARIAO DO PORTUGUS POR ESTUDANTES DE

    TRADUO ............................................................................................................... 338

    4.1. LNGUAS, SOCIOLINGUSTICA E FORMAO TRADUTRIA ............ 338

    4.2. A GERAO DE DADOS E A RELEVNCIA DO CONTEXTO: OS

    CURSOS DE TRADUO DUMA UNIVERSIDADE BRASILEIRA DO

    CENTRO-OESTE ..................................................................................................... 357

    4.3. FORMANDO AGENTES DA PRTICA TRADUTRIA DE PORTUGUS

    DO BRASIL: DOCENTES EM CONTEXTOS DE AVALIAO LINGUSTICA

    .................................................................................................................................. 361

    4.3.1. A professora formada em Letras, entre a traduo e o ensino .................... 365

    4.3.2. O professor formado em Traduo e o predomnio da reflexo no campo

    literrio .................................................................................................................. 377

    4.4. DISCENTES DUM CURSO DE TRADUO: O LUGAR DA

    INSEGURANA ...................................................................................................... 385

    4.5. CONFLITOS DE AVALIAO DE NORMA LINGUSTICA EM

    TRADUTORES E TRADUTORAS BRASILEIRAS EM FORMAO. .............. 404

    4.5.1. Retratando tenses nos ltimos estgios da formao: concepes sobre

    avaliao lingustica de trs tradutoras brasileiras num Projeto Final de curso de

    graduao .............................................................................................................. 404

    4.5.2. Panorama da avaliao lingustica por integrantes do corpo discente dum

    curso superior de formao tradutria no Brasil ................................................... 431

    RESULTADOS E CONCLUSES. IMPLICAES SOCIOLINGUSTICAS NA

    FORMAO TRADUTRIA EM PORTUGUS DO BRASIL .......................... 472

    1.1. RESULTADOS: ASSERES INICIAIS RETOMADAS .............................. 472

    1.2. CONCLUSES: REPERCUSSES DIDTICAS E NOVOS CAMINHOS

    POSSVEIS ............................................................................................................... 497

    BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 515

    ANEXOS ......................................................................... Erro! Indicador no definido.

  • XIV

  • 15

    PARA INCIO DE CONVERSA

    No dia seguinte ningum morreu. O facto, por absolutamente contrrio s normas da vida, causou nos

    espritos uma perturbao enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de

    que no havia notcia nos quarenta volumes da histria universal, nem ao menos um caso para amostra,

    de ter alguma vez ocorrido fenmeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas

    prdigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que

    tivesse sucedido um falecimento por doena, uma queda mortal, um suicdio levado a bom fim, nada de

    nada, pela palavra nada. At meia-noite em ponto do ltimo dia do ano ainda houve gente que aceitou

    morrer no mais fiel acatamento s regras, quer as que se reportavam ao fundo da questo, isto ,

    acabar-se a vida, quer as que atinham s mltiplas modalidades de que ele, o referido fundo da questo,

    com maior ou menor pompa e solenidade, usa revestir-se quando chega o momento fatal.

    Saramago, J. (2005:11-2)

    Muitas so as polmicas que perpassam hoje em dia o ensino da lngua falada

    majoritariamente no Brasil. Assim, por exemplo, em relao ao artificialismo da

    norma padro brasileira e a sua presena na escola, Araujo (2008:11) afirma que as

    dificuldades apresentadas por alunos e alunas brasileiras na realizao de atividades

    lingusticas

    so tratadas como se estas ocorressem em funo de falta de capacidade, quando, na

    verdade, esto relacionadas ao desconhecimento da escola em relao s variedades

    lingusticas existentes no Brasil, que tenta trabalhar a lngua materna como se fosse

    algo esttico, homogneo ou, at mesmo, intocvel; como, alis, defendem muitos

    gramticos.

    Na verdade, essas polmicas no divergem tanto como se poderia pensar das

    relativas, por exemplo, ao portugus europeu e ao seu dialeto da escola,

    especialmente no tocante s crticas dirigidas imposio coercitiva dessa variedade

    como modelo exemplar de escolarizao desde os primeiros anos do processo. Ignora-

    se, desse ponto de vista, o devido respeito diversidade lingustica trazida por

    estudantes ao mbito escolar, que no sculo XXI vem merecendo uma ateno em

    aumento na Europa em funo, especialmente, de fenmenos demogrficos ligados

    aos movimentos migratrios contemporneos (Matos e Silva 1988:16). Entretanto,

    como bvio, no poderia haver apenas coincidncias entre Portugal e o Brasil na

    abordagem da norma lingustica, quer seja em mbitos escolares, quer em contextos

    acadmicos.

    De fato, segundo Matos e Silva (1988:16), at a atualidade os estudos da

    variao diastrtica no portugus europeu tm sido menos desenvolvidos do que os da

    diatpica, fato que parece decorrer, no apenas de uma tradio de estudos dialetais

  • 16

    horizontais, mas tambm porque os problemas1sociolingusticos no devem ser to

    marcados quanto os regionais. Essa ponderao da ilustre linguista brasileira resume

    a percepo da natureza da problematicidade que rodeia outras variedades do

    portugus, como a falada no Brasil, para diversos campos dos estudos lingusticos.

    Como disse Teyssier (1982:79),

    A realidade, porm, que as divises dialetais no Brasil so menos geogrficas que

    socioculturais. As diferenas na maneira de falar so maiores, num determinado lugar,

    entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nvel

    cultural originrios de duas regies distantes uma da outra. A dialetologia brasileira

    ser, assim, menos horizontal que vertical.

    Dita abordagem da variao lingustica no portugus do Brasil reflexo das

    contradies duma sociedade marcada por uma intensa hierarquizao interna, com o

    qual a avaliao lingustica um elemento especialmente polmico e sensvel. isso

    que pe de relevo Teyssier (1982), consoante o qual no Brasil [e]xiste uma zona em

    que a vulgaridade ainda normalmente aceitvel e que podemos considerar como um

    grau avanado na familiaridade. (...) Outros brasileirismos so nitidamente mais

    marcados e, por isso, sentidos como incorretos. Neste caso, o estranhamento em

    relao aos brasileirismos pode provir do fato de serem olhados com um certo vis

    externo, como a existncia do prprio termo parece ilustrar. Porm, as tenses

    derivadas da avaliao sociolingustica de variantes do portugus do Brasil tambm

    so perceptveis para um olhar dirigido a elas a partir do seu interior, como pe de

    relevo o processo de delimitao do localmente correto, encarnado na descrio da(s)

    norma(s) urbana(s) culta(s) brasileira(s) em que se encontram submersos no Brasil

    estudos sociolingusticos, geolingusticos e instrumentos de gramatizao, em especial

    desde finais do sculo XX.

    Seja l como for, cada vez mais se faz presente a relevncia da contribuio dos

    estudos da Sociolingustica na forma de (re)pensar o ensino das lnguas, campo no

    qual de grande importncia o espao e formulao concedidos reflexo sobre o

    conceito de norma lingustica. No dicionrio Aurlio (Ferreira 1999:1415), o verbete

    correspondente ao vocbulo norma apresenta as seguintes acepes:

    norma. [Do lat. norma] S. f. 1. Aquilo que se estabelece como base ou medida para a

    realizao ou a avaliao de alguma coisa: norma de servio, normas jurdicas, normas

    diplomticas. 2. Princpio, preceito, regra, lei: Tem como norma no deixar carta sem

    1 O negrito da que escreve.

  • 17

    resposta. 3. Modelo, padro: norma de conduta, de ao. 4. Bibliogr. Ttulo abreviado

    de obra, que acompanha a assinatura (q. v.). 5. E. Ling. Numa comunidade, o ideal

    lingstico de correo. 6. Filos. Tipo concreto ou frmula abstrata do que deve ser, em

    tudo o que admite um juzo de valor (...)2.

    O verbete anterior ilustra o cerne por volta do qual se articula a constelao de

    ideias organizadas em torno dum conceito nuclear associado com avaliao,

    preceito, modelo, padro, ideal lingustico de correo, do que deve ser.

    No entanto, conforme lembra Rey (2001:116), por trs do termo norma lingustica

    se escondem dois conceitos diversos e, em ocasies, conflitantes: um atinente

    observao, o outro elaborao dum sistema de valores; um correspondente a uma

    situao objetiva e estatstica, o outro a um feixe de intenes subjetivas.

    A abordagem lexicogrfica acima reproduzida coincide, contudo, com a ideia

    popularmente (pre)dominante no senso comum sobre norma lingustica, a qual remete

    em especial para a segunda acepo, imbuda por um esprito prescritivo passvel de

    associao com a sua origem etimolgica. Tanto norma (do grego gnomon,

    esquadro, pelo latim) como rgua (proveniente, como regra, do latim regulam)

    uma reta materializada que permite a criao de outras retas conformes (Rey

    2001:117) tm assim a sua origem em modelos geomtricos. J um terceiro

    vocbulo, lei, amide vinculado aos anteriores, acrescenta, primeiramente, num

    contexto religioso, o elemento imperativo, a obrigao ditada pela vontade do juiz

    (Rey 2001:117).

    Tudo aponta de incio, portanto, para o universo do modelar, duma rigidez

    conceitual, dum padro avaliativo. Foi somente pela influncia do adjetivo normal,

    transportado por um uso teimoso do domnio tico para o da quantidade, que norma

    pde passar do bom e do justo para o habitual e freqente; do desejvel para o

    usual (Rey 2001:117). Mas no deixam, por isso, de ecoar com fora nos sentidos

    de norma o discurso da matemtica, que lhe deu origem, mas tambm o do direito e,

    ainda, da religio, todos eles padres sociais por antonomsia.

    E, embora possa resultar surpreendente, esses ecos dum suposto misticismo que

    parece afetar o conceito de norma, como ilustra a sua ligao com lei, seguem a,

    resultado duma sacralizao maior que atinge, em ltimo caso, a lngua e os seus

    usos. Segundo Bagno (2002:22), abordando a sua transcendncia histrica, a lngua

    2 Seguem, a partir deste ponto, outras acepes tcnicas que no interessam aqui.

  • 18

    concebida, desde a Grcia antiga, como se no estivesse neste mundo, como se fosse

    um objeto mstico a ser buscado sem jamais poder ser alcanado. No que tange

    avaliao da variao lingustica, Lucchesi (2011:172) afirma que:

    Impressiona o nvel de ignorncia que se observa em pleno sculo XXI em relao

    lngua. Qualquer pessoa minimamente informada j ouviu falar de Freud, Lvi-Strauss

    e Max Weber, tem alguma idia sobre o que seja o Complexo de dipo e o Tabu do

    Incesto e no ousa falar em raas superiores e inferiores, ou que um criminoso possa

    ser reconhecido pelo formato do seu crnio, mas fala com naturalidade de lnguas

    simples e complexas e se refere a formas lingusticas correntes como aberraes.

    A lngua como campo de reflexo do saber consensual, constantemente

    colocada nos limites dos seus modelos do dever ser, faz-se prtica comum nos mais

    diversos estratos sociais, no sendo considerada como uma arena de debates de acesso

    restrito apenas a especialistas na rea. Isso resulta facilmente compreensvel, j que o

    conhecimento da lngua, para o coletivo de falantes, percebido como algo natural,

    passvel de reflexo e, se for o caso, de coero sobre outrem. A autorizao para

    tecer disquisies e avaliao sobre os usos lingusticos se d de forma automtica,

    despercebida, uma vez que a competncia lingustica sobre o seu falar a toda a

    comunidade pertence.

    Como Lucchesi (2011:172), j em 1972 Rey (2001:139) apontara que parece

    impor-se

    uma explicao psicolgica profunda do purismo. Sua agressividade mobilizada para

    defender a lngua materna suprimindo as impurezas, a noo de proteo, de

    defesa contra os contatos estrangeiros no seriam de natureza edipiana? As relaes

    lcitas entre a lngua materna e a norma (fantasma do incesto autorizado e garantindo

    paradoxalmente a pureza da lngua), a defesa contra as agresses por eliminao

    (fantasma da castrao), esse simbolismo ainda demasiado superficial, decerto, mas,

    em seu nvel, pouco contestvel.

    Estes comentrios acerca da norma encontram-se explicitamente (a)tingidos por

    ecos duma matriz psicanaltica, com projees, desde a sua emergncia, em diversos

    campos do saber. No foi por acaso que as pesquisas acerca das representaes

    sociais3 vieram luz em dilogo com esse campo, ou que tenha se desenvolvido no

    Brasil a uma linha nos Estudos da Traduo centrada na abordagem de questes

    ligadas psicanlise, da qual fazem parte trabalhos de destaque como Frota (2000) e

    Lages (2002). Curiosamente, no entra no foco de interesse de nenhuma dessas

    3 O termo, cunhado por Moscovici (2015), remete para o conhecimento correpondente ao senso comum

    e ser apresentado com mais detalhe na seo 2.3. deste trabalho.

  • 19

    pesquisadoras o conceito de tabu, o qual ser mencionado a seguir em relao a

    duas contribuies diversas, originrias dos campos da Antropologia e dos Estudos da

    Traduo, e elaboradas por Douglas (1976) e Robinson (1996), respectivamente, pela

    sua potencialidade heurstica para a explicao de questes que ordem

    sociolingustica.

    O caminho do conceito do tabu longo. O termo, registrado pela primeira vez

    pelo navegador ingls James Cook, na sua visita a Tonga, na Polinsia, em 1771, foi

    introduzido na lngua inglesa, a partir da qual ela se difundiu para outros idiomas. No

    dicionrio Aurlio (Ferreira 1999:1914), definido como:

    tabu [Do polinsio tabu, sagrado, intocvel, proibido, pelo ingls taboo.] S. m. 1.

    Em certos povos e sociedades, proibio ou restrio de natureza ritual e religiosa, que

    determina que certos objetos, indivduos, lugares ou atos, por serem considerados

    sagrados ou esp. imundos e perigosos, sejam evitados, e que como instituio social

    ger. est associada a fortes sanes e crena de que sua violao traz castigo

    sobrenatural. 2. P. ext. Proibio convencional imposta por tradio ou por costume a

    certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que no pode

    ser violada, sob pena de reprovao e perseguio social: tabus alimentares. 3. Aquilo

    que objeto de alguma dessas proibies: O incesto um tabu em todas as sociedades.

    4. P. ext. Aquilo cujo uso, prtica ou meno objeto de forte censura, ger. por pudor,

    vergonha, etc.: Para eles, sexo ainda um tabu. 5. Escrpulo sem justificativa ou

    fundamento positivo: uma pessoa cheia de tabus. Adj. 2g 6. Que tem carter sagrado,

    sendo interdito a qualquer contato: armas tabus. 7. Que proibido, perigoso, por ser

    considerado impuro, impudico. 8. Fig. Que objeto de forte censura; que interdito,

    proibido: assuntos tabus. [Sin. ger. (lus.): tabo]

    Se, na Psicanlise, Freud editara Totem e tabu j em 1921, Sahlins (2008)

    retoma em 1981 os estudos sobre o assunto na Antropologia, uma constante entre a

    comunidade de especialistas na rea, com Metforas histricas e realidades mticas.

    Nesse volume, acompanhando a histria dos ingleses no Hava, desde a chegada do

    capito Cook em 1779 at a sua morte pelo chefe local, Sahlins discute a forma como

    os momentos de crise e de confronto entre culturas constituem contextos privilegiados

    para a observao das mudanas histricas. J no ano de 1966, tambm no campo da

    Antropologia Cultural, e ainda dum ponto de vista eminentemente estruturalista,

    Douglas (1976), em Pureza e perigo, desenvolvera a ideia do paralelo entre a religio,

    o sagrado e o puro, e conceitos a princpio ligados ao campo higiene: limpeza e

    sujeira.

    Douglas (1976), nas suas anlises de rituais religiosos, alm doutros espaos

    como mecanismos de estruturao social, defende que a sujeira essencialmente,

    desordem. No h sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a v (Douglas

  • 20

    1976:12). Trata-se, portanto, duma conveno, de algo relativo ao lugar de fala

    (Douglas 1976:19). Embora pudesse parecer no existir relao entre a sujeira e o

    sagrado, ela perceptvel inclusive do ponto de vista etimolgico: A prpria palavra

    sacre, por exemplo, tem este significado de restrio totalmente pertencente aos

    deuses. (...) Similarmente, a raiz hebraica de k-d-sh, que usualmente traduzida como

    Santo, baseia-se na idia de separao (Douglas 1976:21).

    Limpeza e sujeira so, portanto, categorias simblicas que organizam o mundo,

    ao condenar os elementos capazes de confundir ou contradizer classificaes, pois

    sujeira no nunca um acontecimento nico, isolado. Onde h sujeira h sistema

    (Douglas 1976:50). No continuum do mundo, categorias supostamente estveis so

    construdas, conformando um padro em relao ao qual certos elementos se

    encaixam, enquanto outros, as anomalias, podem ser ignorados, condenados, ou

    servir de instrumentos para reorganizar o padro (Douglas 1976:54). Por isso eles tm

    poder:

    Admitindo que a desordem estraga o padro, ela tambm fornece os materiais do

    padro. A ordem implica restrio; de todos os materiais possveis, uma limitada

    seleo foi feita e de todas as relaes possveis foi usado um conjunto limitado. A

    desordem simboliza tanto perigo quanto poder (Douglas 1976:117).

    Portanto, a desordem, a variao lingustica, inerente natureza das lnguas,

    encarna tanto perigo do caos, da anomia, da ausncia de normas, como o poder da

    possibilidade, do que pode vir a ser, ambos componentes ineludveis do real da lngua.

    O perigo/poder est nos estados de transio, simplesmente porque a transio no

    nem um estado nem o seguinte, indefinvel (Douglas 1976:119). nessa luta pela

    definio dum status quo que as dinmicas de poder que organizam a sociedade se

    implicam, tentando manter separado o tabu, o sujo, aquilo que deve ficar afastado,

    interditado, encapsulado, para no subverter estabilidades construdas.

    Na lngua, a limpeza como metfora faz parte da interpretao das margens,

    encarnadas na lngua literria:

    O poeta um reciclador

    Das palavras de todo dia

    Do verbo de toda hora

    Que usa e bota fora.

    Separa o descartvel

    Do reaproveitvel

    E o belo da bobagem.

  • 21

    A poesia

    o lixo limpo4

    Da linguagem.

    Lus Fernando Verssimo, Limpeza pblica apud Neves (2010)

    Pureza remete nitidamente para o purismo lingustico, fundamental para

    entender a relao/sensao das sociedades no que tange (s) norma(s) lingustica(s) e

    avaliao da variao. Se no campo da lngua a separao lembra as atitudes em

    relao aos neologismos, no tradutrio remete para a viso da lngua em traduo e do

    discurso traduzido como o separado: o no discurso, o discurso sem direito de

    pertena, sem autoria, ameaado pela presena do Outro, pela hibridao com o

    impuro, que deve, ou deveria ficar afastado para garantir a manuteno intacta do eu,

    da Lngua.

    Trinta anos mais tarde da publicao de Pureza e perigo por Douglas, o

    conceito de tabu entra no campo dos Estudos da Traduo com Translation and

    Taboo, de Robinson (1996), associando a sobrevivncia de antigos tabus relativos a

    textos religiosos com a teoria e prtica da traduo em Ocidente. A natureza da

    prtica tradutria est associada sua origem, milenar enquanto afazer cuja origem se

    remonta no tempo, herdeiro de caractersticas ligadas ao seu carter originrio de

    tcnica e no de techn.

    Para Oliveira (2008:2), a tcnica, a techn e a tecnologia correspondem s

    trs fases do desenvolvimento histrico da tcnica. A tcnica nasce com a

    humanidade, como um saber fazer, um conhecimento procedimental imbudo por um

    carter mgico e simblico. Segundo Vargas, (1994:19 apud Oliveira 2008:3),

    [t]odas as tcnicas tiveram origem mgica. (...) [P]ode-se pensar a inveno das

    tcnicas e a sua transmisso de gerao a gerao como baseado num instinto

    esclarecedor inato ao homem a partir, talvez, do inconsciente. Abbagnano

    (2000:939-40) confirma este vnculo entre a tcnica e o campo religioso, assim como

    com a arte:

    TCNICA (in. Technic; fr. Technique. ai. Technik, it. Tcnica). O sentido geral desse

    termo coincide com o sentido geral de arte (v.): compreende qualquer conjunto de

    regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. (...) Nessa esfera de

    significado generalssimo incluem-se, portanto, os procedimentos mais dspares; estes,

    porm, podem ser divididos, grosso modo, em dois campos diferentes: A) [Tcnicas]

    4 O negrito da que escreve.

  • 22

    racionais, que so relativamente independentes de sistemas particulares de crenas,

    podem levar modificao desses sistemas e so auto-corrigveis; B) [Tcnicas]

    mgicas e religiosas, que s podem ser postas em prtica com base em determinados

    sistemas de crenas; no podem, portanto, modificar esses sistemas e apresentam-se

    tambm como no-corrigveis ou no-modificveis. Essas [tcnicas] constituem um dos

    dois elementos fundamentais de qualquer religio e podem ser indicadas com o nome

    genrico de ritos (v.).

    Cincia ou arte, os ecos da religio no imaginrio da traduo proviriam da

    importncia do sacro desde a sua origem, cujas pegadas permaneceriam hoje sob a

    forma duma relao peculiar com a formulao das suas dinmicas, no avessa ao

    campo das crenas, do sistema prtico e simblico. Afinal, as tcnicas racionais

    apenas so relativamente independentes de sistemas particulares de crenas, como

    lembra Abbagnano (2000:939-40). A traduo herda ainda a sacralizao doutros

    objetos legtimos com os quais mantm uma ntima ligao as lnguas , que

    esto protegidos por sua legitimidade contra o olhar cientfico e contra o trabalho de

    dessacralizao que o estudo cientfico dos objetos sagrados pressupe (Bourdieu

    1983:206).

    Para Oliveira (2008), uma techn um saber que precisa dispor duma

    vocao prtica, destinada resoluo de problemas, um alto nvel de

    desenvolvimento, ao longo das geraes, e ser transmitido atravs da educao,

    chegando mesmo a ser apresentada e descrita em livros e compndios e no

    simplesmente sabida quase em segredo como era a magia pelos profissionais. A

    instituio da techn tira o mgico das tcnicas. Os tratados de medicina de

    Hipcrates e os de arquitetura de Vitrvio nada tm de mgico (Oliveira 2008:5).

    Mais um aspecto esse em que a traduo se encontra num limbo: o configurado

    por uma prtica que oscila entre os espaos acadmicos e o dum fazer aprendido pela

    simples realizao do ofcio, marcado tradicionalmente por um autodidatismo intenso

    e a desregulamentao do mercado. Quem seria, ento, a comunidade tradutria?

    Aqueles e aquelas que transitaram por espaos de formao especficos, e coletivos

    por definio, ou pessoas que construram as suas competncias diretamente no

    mbito do afazer profissional, em grande medida isoladas do coletivo que o pratica?

    Na contemporaneidade, estaro tradutoras e tradutores numa situao to marcada

    pelo isolamento como costumaram estar durante sculos?

  • 23

    A originria vinculao entre a tcnica e o sagrado ir sendo proscrita, com o

    advento da Modernidade, por causa da insero dum terceiro elemento na trade

    composta, junto cincia e tcnica (relida como tecnologia), pela razo:

    A razo se liberta da sobrenaturalidade e impulsionada pelas necessidades colocadas

    pelos novos modos de se construir a vida, novos esquemas de pensamento

    quantitativos e experimentais e novas prticas: tcnicas, financeiras, comerciais

    foram criadas as condies para surgimento, tambm de novos mtodos e novos

    saberes. O eixo epistemolgico que se estabelece pode ser representado da seguinte

    maneira: cincia + tcnica = tecnologia (saber poder) (Oliveira 2008:6).

    Oscila-se agora entre a mitificao da redeno pela tecnologia e a denncia do

    problema da tcnica, com as suas consequncias sobre a vida individual e social

    derivadas do seu desenvolvimento no mundo moderno (Abbagnano 2000:939). Alm

    dos trs itens em que Abbagnano (2000:941) resume as influncias negativas da

    tecnologia sobre o mundo natural, os dois seguintes retratam os seus efeitos sobre a

    humanidade:

    4

    a sujeio do trabalho humano s exigncias da automao, que tende a transformar o

    homem em acessrio da mquina;

    5a incapacidade da T. de atender s necessidades estticas, afetivas e morais do homem;

    portanto, sua tendncia a favorecer ou determinar o isolamento e a incomunicabilidade

    dos indivduos.

    A insero na contemporaneidade do ser humano e da sua maior tecnologia, as

    lnguas naturais, vem gerando espaos de encontro e de conflito onde se reelaboram e

    ressignificam ideias como as anteriores, quer seja acerca do que sejam as lnguas e de

    como funcionam, quer, ainda, em relao s prprias interaes humanas. Sobre a

    lngua no mais espelho da realidade, mas constitutiva dela enquanto instituio

    social (Cameron 1995) se voltam discursos na ps-modernidade em novos mbitos

    virtuais, percorrendo caminhos que constroem as formas idiossincrsicas conforme as

    quais as comunidades se imaginam. Esse processo de criao se remonta

    discursivamente aos primeiros movimentos de articulao das comunidades, nos quais

    lngua e religio se entrecruzam. No mbito do Brasil (e no s, claro),

    a relao lngua-nao (...) faz parte da colonizao lingstica em seu ideal

    comunicativo de produo (...) de transparncias, uma srie de prticas linguageiras,

    ou melhor, de rituais scio-discursivos oriundos, em sua maioria, de prticas religiosas

    associadas manuteno do poder real. No entanto, [p]ara a igreja(...) o caminho mais

    direto para a expanso da evangelizao realizava-se atravs da adoo do vernculo

    local, no caso, da utilizao do tupi, a lngua indgena majoritariamente falada na costa

  • 24

    do Brasil, e que nas primeiras dcadas da colonizao era chamado de lngua braslica

    (...), eleita como geral pelos jesutas (Mariani 2008:34).

    Neste processo homogeneizador, as comunidades indgenas, a populao local

    no ndia e a de origem africana foram traduzidas pelo Imprio para o portugus,

    dando uma lngua queles que, para o Imprio, no a tinham, e persuadindo-lhes os

    proprios dictames da racionalidade, de que vivia privados. Assim reza no Diretrio

    dos ndios, ordem rgia expedida com o aval do Marqus de Pombal que ordena o uso

    exclusivo da Lngua Portuguesa na colnia brasileira (Mariani 2008:36), com o qual

    se negou, em meados do sculo XVIII, o poder simblico atribudo pelos jesutas

    lngua geral e se inaugurou uma segunda fase de homogeneizao

    lingustico/discursiva, com as devidas distines de gnero, pois

    haver em todas as Povoaos duas Esclas pblicas, huma para os Meninos, na qual se

    lhes ensine aDoutrina Christa, a ler, escrever, e contar na forma, que se pratica em

    todas as Esclas das Naoens civilizadas; e outra para as Meninas, na qual, lem de

    serem instruidas na Doutrina Christa, se lhes ensinar a ler, escrever, fiar, fazer renda,

    cultura, e todos os mais ministrios proprios daquelle sexo.

    No entanto, o Diretrio ainda, e especialmente, bem conhecido pelo fato de

    indicar que a comunidade indgena no poderia mais ser chamada negra, coisa que

    no deixa de lembrar o decreto de San Martn, que, em 1821, determinar que: No

    futuro, os aborgines no sero chamados ndios ou nativos; eles so filhos e cidados

    do Peru e sero conhecidos por peruanos (Linch apud Anderson 2008:264). Trata-se

    de mais um apagamento no processo de construo de comunidades imaginadas, nas

    quais as comunidades indgenas no o sero mais, passando a fazer parte e a ter

    obrigaes com os estados nacionais que se formavam na Amrica da poca.

    Esta constituio duma nova homogeneizao de que se falava acima foi agora

    implementada, ou melhor imaginada discursivamente, sobre a memria da lngua de

    Portugal, que no comear a ser relativizada at o sculo XIX, com a independncia

    poltica e a configurao de

    trs regies de significao, marcadas por lugares enunciativos conflitantes em termos

    de autoridade simblica sobre a lngua: o primeiro (...) o da lei com suas indefinies;

    os outros dois lugares enunciativos referem-se ao de alguns fillogos, gramticos e

    historiadores, e ao de literatos (...); dum lado, aqueles que falam sobre as lnguas, os

    gramticos e os fillogos, pensando dominar um saber sobre estas e julgando-se no

    direito de classificar, modelizar e avaliar os usos literrios e no-literrios; e, de outro,

    os escritores que falam sobre a lngua que usam, comprometidos que esto com os

    regimes enunciativo-literrios de sua poca, muitas vezes inseridos em projetos

  • 25

    histricos e estticos opostos aos saberes hegemnicos em circulao (Mariani

    2008:41).

    Nesse caldo primordial que vem luz, diz Mariani (2008:43), a contradio

    constitutiva da memria de nossa lngua, uma lngua que, se nos seus comeos foi

    uma lngua de colonizao em luta com outras lnguas, para firmar-se como lngua

    nacional apagou essas outras lnguas bem como sua heterogeneidade interna,

    firmando a hegemonia dos colonizadores e a sua cultura sobre os povos nativos.

    Qual a relao de tudo o dito acima com praticantes da traduo do portugus?

    Tudo o anterior faz do coletivo tradutrio que tem o portugus do Brasil como uma

    das lnguas de trabalho um caso intenso de utentes caracterizados pela insegurana

    lingustica (Labov 20085), referida s reaes negativas (desprestgio) em relao aos

    usos lingusticos, essenciais ao seu labor profissional.

    Insegurana lingustica , precisamente, a descrio que Lucchesi (2011:179) d

    para a sociedade brasileira no geral, derivada em grande medida da assuno, em

    finais do sculo XIX, de fenmenos gramaticais que forjaram a atual norma culta

    portuguesa (Pagotto 1998:54). Trata-se em especial da nclise dos clticos derivada

    da reduo das vogais tonas que caracteriza a prosdia do portugus europeu

    contemporneo, diferentemente da tendncia colocao pr-verbal que se encontra

    no portugus clssico e apesar do fortalecimento das vogais tonas no Brasil.

    Fenmenos como a prclise caracterstica dos usos cultos da lngua no pas, mas

    contrria ao padro prescritivo adotado produzem um sentimento de insegurana

    lingustica que afeta a todos os segmentos da sociedade brasileira, conforme deixam

    transparecer afirmaes do tipo: o portugus muito difcil e brasileiro no sabe

    falar portugus (Pagotto 1998:54).

    Trata-se dum problema de legitimidade, a qual afeta no s s prprias formas

    lingusticas, como s situaes de uso e aos interlocutores e interlocutoras que dela

    participam, carregada ainda com o peso das hierarquizaes culturais cuja

    organizao foi empreendida no processo de colonizao das Amricas. Para

    Bourdieu (2008),

    5 Em 1972, referindo-se aos dados obtidos em pesquisa com falantes de Nova Iorque sobre a pronncia

    do r, Labov (2008:146) afirma que a insegurana lingustica posta de relevo pelo intervalo bastante

    amplo de variao estilstica (...); por seu esforo consciente de correo; e por suas atitudes fortemente

    negativas para com seu padro de fala nativo.

  • 26

    [p]odemos, assim, enunciar as caractersticas que um discurso legtimo deve preencher,

    os pressupostos tcitos de sua eficcia: ele pronunciado por um locutor legtimo, isto

    , pela pessoa que convm por oposio ao impostor (linguagem religiosa/padre,

    poesia/poeta etc.); ele enunciado numa situao legtima, isto , no mercado que

    convm (no oposto do discurso do louco, uma poesia surrealista lida na Bolsa de

    Valores) e dirigida a destinatrios legtimos; ele est formulado nas formas fonolgicas

    e sintxicas legtimas (o que os lingistas chamam de gramaticalidade), salvo quando

    pertence definio legtima do produtor legtimo transgredir essas normas.

    As distintas lnguas, variedades e variantes usadas por uma sociedade esto

    submetidas ao mercado lingustico, que lhes atribui valores diferentes, de modo mais

    ou menos conscientemente conhecido por quem as usa, pois fundamental atuao da

    lngua legtima o desconhecimento de sua verdade objetiva, princpio da violncia

    simblica que se exerce atravs dela, acionando mecanismos de monitoramento e a

    impresso dum modelo:

    A disposio que leva a se vigiar, a se corrigir, a procurar a correo atravs de

    correes permanentes nada mais que o produto da introjeo duma vigilncia e de

    correes que inculcam, seno o conhecimento, pelo menos o reconhecimento da

    norma lingstica; atravs desta disposio durvel (que, em certos casos, est no

    princpio duma certa insegurana lingstica permanente), se exercem continuamente,

    sobre aqueles que a reconhecem mais do que a conhecem, a vigilncia e a censura da

    lngua dominante (Bourdieu 2003:159).

    Essas formas de vigilncia vm sendo qualificadas no Brasil como formas de

    preconceito lingustico, termo de extenso uso no Brasil desde a edio do volume

    de Bagno (1999) sob esse ttulo, amplamente reeditado desde o seu lanamento. Sobre

    esse conceito, Bagno (1999:40) diz: O preconceito lingstico se baseia na crena de

    que s existe uma nica lngua portuguesa digna deste nome e que seria a lngua

    ensinada nas escolas, explicada nas gramticas e catalogada nos dicionrios. Trata-

    se, claro, duma crena, pois, de fato, todas as lnguas, como tambm o portugus,

    constituem feixes de variedades e [a] esse entrecruzar-se de dialetos sociais,

    espaciais e de normas lingusticas impem-se as normas especficas da lngua escrita

    que neutralizam muitas das diferenas da fala quotidiana, mas esto longe de anul-

    las (Mattos e Silva 1988:2).

    Como qualquer outro conceito proveniente de espaos cientficos, o

    preconceito lingustico vem sendo acolhido no seio das representaes sociais pelas

    quais as pessoas encaixam categorias novas nas anteriores, de modo a elas no

    entrarem em conflito com o seu habitus. Nesse sentido, na denncia do preconceito

    lingustico no Brasil ecoa a criminalizao do preconceito racial, numa projeo de

  • 27

    campos que pode ter tido uma consequncia ou efeito colateral, no sentido de tender a

    integrar os juzos da avaliao lingustica no campo do que deve permanecer no

    explicitado por proibido, por impuro. Embora a origem do preconceito lingustico

    (Bagno 1999) no seja concebida como atinente a um fenmeno da ordem do

    individual (posteriormente Bagno6 dir que no h preconceito lingustico, mas

    social), termina sendo representado como tal, numa generalizao que nega a ao de

    contradies sociais e de conflitos de poder como condicionantes da sua operao7.

    Nesse movimento de representao, mulheres e homens sujeitos aqui agentes,

    embora talvez inconscientes reduzem o preconceito lingustico como qui o

    faam com qualquer outra modalidade de discriminao a uma recusa do respeito

    pela diferena, qual se lhe nega uma igualdade que lhe pertence por direito.

    apagada, ento, a conscincia de que o preconceito no distribudo socialmente de

    forma equitativa; isto , nem todas as formas padecem idntico nvel de

    estigmatizao (na verdade, muitas desfrutam dum status de privilgio, que com

    frequncia se apresenta como natural ou inato).

    Nesse cenrio, especialmente difcil a situao do coletivo de profissionais da

    traduo, no apenas pelo fato de terem o portugus como uma das lnguas de

    trabalho, mas tambm por se dedicarem a essa prtica. bem conhecido o adgio

    traduttore, traditore, que denota nitidamente a descrena tradicional a que o saber

    consensual condena a prtica tradutria. No mercado lingustico, pelo menos no

    brasileiro, agentes profissionais da traduo raramente constituem locutores ou

    locutoras legitimadas, como pem de relevo tanto as representaes sociais que

    rodeiam o ofcio, quanto as prprias condies laborais a que o coletivo que o realiza

    est com frequncia submetido.

    6 A esse respeito, Bagno (2003:16) afirma: o preconceito lingustico no existe. O que existe, de fato,

    um profundo e entranhado preconceito social. Se discriminar algum por ser negro, ndio, pobre,

    nordestino, mulher, deficiente fsico, homossexual etc. j comea a ser considerado publicamente

    inaceitvel (o que no significa que essas discriminaes tenham deixado de existir) e politicamente

    incorreto (lembrando que o discurso do politicamente correto quase sempre pura hipocrisia), fazer

    essa mesma discriminao com base no modo de falar da pessoa algo que passa com muita

    naturalidade (...). que a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coero social, talvez seja

    o mais complexo e sutil, sobretudo depois que, ao menos no mundo ocidental, a religio perdeu sua

    fora de represso e de controle oficial das atitudes sociais e da vida psicolgica mais ntima dos

    cidados. 7 Ocorre, assim, um fenmeno semelhante ao tradicionalmente denominado auto-dio na Galiza:

    atribuda a atitudes individuais anti-ticas a causa de atos de discriminao que no se verificam tanto

    em funo do carter individual de quem os exerce, mas como produto duma discriminao gerada no

    seio maior da sociedade. O sintoma , portanto, tomado pela doena.

  • 28

    Aparecem, portanto, neste trabalho, dois campos (Bourdieu 1983) que se

    entrecruzam: o tradutrio e o lingustico. Enquanto campos, ambos so microcosmos,

    espaos em que so estabelecidas relaes conforme uma lgica prpria, irredutvel

    doutros campos. Resultam de processos de diferenciao social organizados pela

    criao dos diversos objetos (lingustico, tradutrio, artstico, educacional, poltico,

    religioso, etc.), como tambm pela delimitao dos princpios que governam a sua

    compreenso, segundo um campo de foras que constrange a atuao de agentes

    neles envolvidos.

    O campo tradutrio um daqueles por volta dos quais este trabalho se constri

    abordado aqui enquanto uma prtica articulada por uma constelao de agentes

    que abrange profissionais, estudantes e docentes da rea, num coral de vozes onde as

    representaes do saber consensual dialogam com o conhecimento especializado. J o

    campo lingustico implica outro fazer, com uma problematicidade dotada duns

    contornos especficos, os do portugus do Brasil no sculo XXI, que sero

    apreendidos pela anlise de formaes discursivas de agentes como os anteriormente

    citados. Sendo o fazer lngua um fazer situado, ele ser estudado em relao a quem o

    pratica sob formas socio-historicamente situadas a traduo e que, ao mesmo

    tempo, constri coletivamente um dizer sobre ele, sobre o seu ser e o dever ser, em

    certos loci em que as suas percepes so elaboradas (e, eventualmente,

    reelaboradas).

    Apesar da relativa autonomia de cada um dos campos onde ocorrem as

    dinmicas sociais, eles se inter-relacionam, seja pelos conflitos existentes (que

    implicam no mtuo reconhecimento), quer pelas homologias que possam manter entre

    si. Pode haver algum tipo de paralelo entre as transformaes internas e externas aos

    campos (Bourdieu 1983:156-7), mas

    [c]ada campo tem suas prprias formas, de revoluo e, portanto, sua prpria

    periodizao. E as rupturas dos diferentes campos no so necessariamente

    sincronizadas. O que ocorre que as revolues especficas tm uma certa relao com

    as mudanas externas.

    sobre esse universo, organizado em torno do portugus do Brasil, da traduo,

    da formao e das crenas de tradutoras e tradutores, que girar o texto que se

    apresenta logo a seguir. Antes de comear, apenas uma tentativa de resposta a um

    questionamento curioso: por que epigrafar com Saramago um trabalho acerca do

  • 29

    portugus do Brasil? Deslize? Mera provocao? Lembre-se, apenas, que Saramago

    comeou a sua vida profissional em grande medida como tradutor, revisor e poltico,

    antes de escritor. Alis, a subverso que As intermitncias da morte opera

    literariamente no campo religioso confirma a ferrenha resistncia desse campo em se

    retirar das mentes, que ainda bebem das suas fontes o lxico de que se valem para

    ancorar8 as suas experincias noutros campos da experincia humana. A obra de

    Saramago nada mais do que um excepcional encontro da oralidade com a escrita.

    Por isso, com a devida irreverncia: por que no Saramago, como poderia ter dito

    Raimundo Silva?

    8 Ancoragem consiste no processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em

    nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que ns

    pensamos ser adequada (Moscovici 2015:61).

  • 30

    JUSTIFICATIVA

    Ao princpio, como natural, houve invejas, houve conspiraes, deu-se um ou outro caso de tentativa

    de espionagem cientfica para descobrir como o havamos conseguido, mas, vista dos problemas que

    desde ento nos caram em cima, cremos que o sentimento da generalidade da populao desses pases

    se poder traduzir por estas palavras, Do que ns nos livrmos. A igreja, como no podia deixar de ser,

    saiu arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto , os desgnios de deus so o que

    sempre foram, inescrutveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal,

    significa que no nos permitido espreitar pela frincha da porta do cu para ver o que se passa l

    dentro.

    Saramago, J. (2005:74)

    Em que pese a antiguidade do afazer tradutrio, pouco se tem produzido ao

    longo dos sculos em que ele tem se desenvolvido, ou mesmo nas ltimas dcadas,

    em relao ao ensino da traduo e, sobretudo, menos ainda no que diz respeito ao

    ensino de lnguas para essa prtica. Mas o que so as lnguas para o afazer tradutrio e

    quem o pratica? E, ainda, em que aspectos podem os estudos sociolingusticos

    contribuir para um melhor entendimento dessa relao, aqui no caso de contextos

    como a prtica tradutria em que o portugus do Brasil intervm como uma das

    lnguas de trabalho?

    Sobre certos campos, como o da traduo profissional, pesam contradies

    socioeconmicas, sociolingusticas e relacionadas ao prprio senso comum que rodeia

    dita prtica. Nele, o espao da formao s mais um cenrio, dentre outros possveis

    onde localizar as consequncias da ao do poder sobre indivduos que a padecem.

    Mas definitivamente o campo da traduo constitui um mbito onde ocorrem tenses

    muito esclarecedoras da relao de falantes de portugus do Brasil com a sua lngua.

    Com efeito, constitui j um lugar comum a afirmao de que as lnguas,

    enquanto caracterizadas pela variao, so objetos instveis, dinmicas, aversas

    esttica pela sua natureza, ou mesmo pelas concepes que especialistas tm sobre

    elas. No entanto, apesar desse quadro, deve se destacar que a ideia de instabilidade e a

    sua percepo esto atreladas em boa parte situao de padronizao e aos esforos

    dedicados a esse processo. No tocante ao portugus do Brasil, o problema pode se

    resumir no depoimento duma intrprete brasileira na presena da que escreve, ao

    realizar uma pergunta onde mostra o desejo verbalizado dum dever ser, dum como

    se comportar. Estas frases encerram as suas inquietaes: A questo : como que eu

  • 31

    traduzo? Como eu escrevo ou como eu falo?. Colocaes desse tipo podem ser teis

    como ponto de partida para elaborar o saber consensual das representaes sociais, ou

    pelo menos os dramas em que se coloca, entre especialistas, a relao do coletivo

    tradutrio com o portugus do Brasil. Outro dilema, derivado dessa macro-colocao,

    remete para o fato de se inferir do questionamento acima que o coloquial/vernculo

    pode ser percebido, por parte de tradutores e tradutoras de portugus do Brasil, como

    um elemento que, ao ficar de fora da norma padro, no se encontra na e pela escrita

    suficientemente representado, ou no aceito em determinadas esferas de distintas

    camadas sociais e de usos formais. Nesse caso, como traduzir para portugus do

    Brasil o vernculo de lnguas em que este fenmeno no se percebe dessa forma? Para

    o portugus do Brasil, o vernculo dessas lnguas seria, ento, intraduzvel? Ou

    traduzvel dentro dum campo imaginrio, tambm duma norma avessa ao uso, porm

    estabelecida dentro duma perspectiva poltica, em prol da esttica ou dum novo

    padro presumvel?

    Esse espao de desconforto, de contornos seno desconhecidos, ao menos

    flexveis e hoje polmicos o da avaliao dos usos lingusticos, intimamente

    associado ao universo consensual do preconceito construdo de forma implcita na

    prtica tradutria profissional e, j de maneira explcita, na formao de agentes da

    traduo, a qual no tem como se furtar reflexo acerca do valor que lhes

    atribudo, ou no, aos distintos usos lingusticos.

    Assim, a vontade de pensar como capacitar tradutores e tradutoras reflexivas,

    com autonomia para lidar com a heterogeneidade lingustica no contexto do portugus

    do Brasil, que levar o pensamento a partir deste ponto. Trata-se de refletir sobre a

    relao existente entre um campo aplicado mais rgido e singular dos usos da lngua

    o tradutrio e as possibilidades expressas na pluralidade do dia a dia, mas tentando

    fugir a esse afanoso e ingrato mister gramatical de catar pulgas em juba de leo

    (Cunha 1981:40).

  • 32

    METODOLOGIA DE PESQUISA: OBJETIVOS, PERGUNTAS E

    ASSERES

    as trs fotografias que levavam no bolso no deixavam dvidas de que a morte, se chegasse a ser

    encontrada, seria uma mulher ao redor dos trinta e seis anos de idade e formosa como poucas. De

    acordo com o padro obtido, qualquer delas poderia ser a morte, porm, nenhuma o era em realidade.

    Depois de ingentes esforos, depois de calcorrearem lguas e lguas por ruas, estradas e caminhos,

    depois de subirem escadas que todas juntas os levariam ao cu, os agentes lograram identificar duas

    dessas mulheres, as quais s diferiam dos retratos existentes nos arquivos porque haviam beneficiado

    de intervenes de cirurgia esttica que, por uma assombrosa coincidncia, por uma estranha

    casualidade, haviam acentuado as semelhanas dos seus rostos com os rostos dos modelos

    reconstitudos.

    Saramago, J. (2005:128)

    A emergncia nos anos 1920 do paradigma interpretativista, em reao ao

    positivismo clssico herdeiro do sculo XIX, incentivou a ateno ao contexto scio-

    histrico em que se inseriam as cincias humanas e sociais. D-se ento incio a um

    movimento de transformao em elementos centrais dum paradigma que, a partir

    desse ponto, passou a ser compreendido como superado, abrindo-se um caminho mais

    amplo construo de modelos cognitivos e socioculturais de investigao. Isso

    trouxe consigo mudanas tanto nas prticas de pesquisa em si quanto no pensamento

    sobre elas, em especial pela reconsiderao da possibilidade de pesquisas neutras, e da

    neutralidade dos e das agentes que as realizam. Afinal, nenhuma observao

    possvel sem estar ancorada numa perspectiva determinada, nem que seja pela tomada

    de deciso de ser levada a cabo. No h discurso nem ao que no partam dum certo

    lugar de fala e dum ponto de vista alheio a valores ou intocvel a crticas.

    Diversos mtodos e prticas fazem parte dos empregados na pesquisa

    interpretativista, qualitativa, no intuito de determinar os significados atribudos a

    aes na vida social, tangenciando a compreenso de distintas camadas discursivas e

    referendando-se entre o senso comum e a norma acadmica. Trata-se de entender

    fenmenos sociais cujo sentido emana do (con)texto em que esto inseridos e tentar

    entend-los desde a sua localizao na complexidade das redes culturais de

    significados nas quais se desenvolve a sociedade estudada.

    A abordagem qualitativa no pretende alcanar a verdade, o que certo e

    errado, posto que se ocupa prioritariamente com entender a lgica que permeia as

    prticas que se do no dia a dia, envolvidas por atos, smbolos e discursos, tanto dos

  • 33

    realizados quanto dos reprimidos, tanto do dito quanto do silenciado. Minayo

    (1999:21) descreve as tessituras dessa extensa rede que forma o que se chama aqui

    realidade, do ponto de vista da pesquisa qualitativa:

    Ela se preocupa, nas cincias sociais, com um nvel de realidade que no pode ser

    quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de significados, motivos,

    aspiraes, crenas, valores e atitudes, o que corresponde a um espao mais profundo

    das relaes, dos processos e dos fenmenos que no podem ser reduzidos

    operacionalizao de variveis.

    Pelos objetivos que se almeja alcanar, esta que comea aqui uma pesquisa

    social, que estuda imbricaes, nem sempre claras ou desprovidas de cortinas turvas

    de fumaa, entre valores, crenas, representaes, atitudes e opinies. Remete para

    uma realidade social que especfica, condicionada pelo momento histrico, pelo

    lugar, pela organizao econmica, pelo imaginrio e as mentalidades do contexto

    especfico em que est inserida. H, ento, historicidade, situando no tempo e no

    espao cenrios e agentes em estudo, pois as especificidades dos eventos sociais

    abordados marcam as cores e os tons da investigao nestes campos. Na abordagem

    qualitativa, completa assim a autora:

    [os] autores (...) no se preocupam em quantificar, mas, sim, compreender e explicar a

    dinmica das relaes sociais que, por sua vez, so depositrias de crenas, valores,

    atitudes e hbitos. Trabalham com a vivncia, com a experincia, com a continuidade e

    tambm com a compreenso das estruturas e instituies como resultado da ao

    humana objetiva. Ou seja, desse ponto de vista, a linguagem, as prticas e as coisas so

    inseparveis (Minayo 1999:24).

    Existem diversas formas de se buscar esse qualitativo que se espraia desde a

    Filosofia Sociologia, desde os livros da antiguidade grega ao trabalho de campo

    contemporneo. Uma das abordagens mais marcadas da pesquisa interpretativa a de

    cunho etnogrfico de ethnoi, os outros, e graphos, escrita, registro , que vem

    se desenvolvendo desde o final do sculo XIX. A etnografia tradicional moderna

    implica a insero de pesquisadores e pesquisadoras durante um longo perodo na

    vida numa comunidade, de cuja cultura se aproxima pela observao dum outro, a

    inquirio e anotao de todas aquelas informaes consideradas relevantes na sua

    caderneta de campo para a sua posterior interpretao, como, a partir dos postulados

    de Lvi-Strauss em Regarder, Ecouter, Lire, props Roberto Cardoso de Oliveira

    (2006:17), ao refletir sobre o mtodo etnogrfico no seu Olhar, ouvir, escrever.

    Trata-se de encontrar a lgica do relativismo que rege a interpretao de cada cultura

  • 34

    do ponto de vista do coletivo que a integra; quer dizer, de identificar formaes

    discursivas e a forma como se encaixam em uma matriz social mais ampla, matriz

    essa que as condiciona, mas tambm por elas condicionada (Bortoni-Ricardo

    2008:49).

    Do ponto de vista metodolgico, este estudo organizado a partir dos objetivos

    geral e especficos que so expostos logo a seguir. A fim de explicitar as intuies

    primeiras da pesquisadora, independentemente de se elas foram confirmadas ou no

    aps a coleta e anlise dos dados, so formuladas tambm, j de incio, as asseres

    subjacentes busca de possveis respostas implcita na questo de pesquisa.

    Assumem-se, ento, as orientaes de Bortoni-Ricardo (2008:53), segundo as quais

    [n]a pesquisa qualitativa, no se levantam hipteses como na pesquisa quantitativa, mas

    aconselhvel elaborar asseres que respondam aos objetivos. A assero um

    enunciado afirmativo no qual o pesquisador antecipa os desvelamentos que a pesquisa

    poder trazer.

    Em concreto, e dentro duma abordagem qualitativa, que no pretende ter

    relevncia estatstica, recorre-se reviso de bibliografia e a tcnicas que implicam a

    utilizao de diversos instrumentos de coleta de dados, como questionrios, guias de

    entrevista semi-estruturadas e para grupo focal que se juntam nos anexos 1 a 10 ,

    com os quais se objetiva alcanar distintas estratificaes dos discursos emitidos

    sobre o tema em estudo. Como se ver, a perspectiva em ocasies longitudinal

    (como na seo 4.4.). J em 4.5.2., a aplicao dos mesmos instrumentos a grupos

    distribudos ao longo dos distintos semestres dum curso universitrio de Traduo

    pretende oferecer subsdios para um panorama geral sobre a abordagem dos assuntos

    pesquisados pelo corpo discente.

    Por meio do leque de tcnicas de pesquisa adotadas, pretende-se embasar do

    ponto de vista terico-metodolgico e colher informaes para refletir sobre a forma

    como o coletivo responsvel pelo afazer tradutrio do portugus de Brasil se relaciona

    com alguns dos fantasmas que o perseguem. A princpio, esse grupo de profissionais

    deveria aprender, na prtica ou por formao, a lidar com a variao lingustica,

    simplesmente ajustando o registro ao ponto em que o gnero textual traduzido se

    localiza no continuum fala-escrita, do menos ao mais monitorado. Mas a possibilidade

    da pergunta como que eu traduzo? Como eu escrevo ou como eu falo? ouvida

    pela que escreve, como foi dito, duma tradutora brasileira, com curso superior

  • 35

    completo na rea pe de manifesto que, ao menos no relativo a profissionais da

    traduo de portugus do Brasil, a questo tem as suas peculiaridades e que, do ponto

    de vista da sua formao, o problema no resolvido simplesmente obviando a sua

    existncia.

    Traando um panorama que problematiza questes de norma lingustica do

    ponto de vista de praticantes da traduo de portugus do Brasil, este trabalho

    pretende contribuir para que sejam melhor conhecidos dois universos pouco atendidos

    at hoje pelas pesquisas acadmicas de diversas reas, ainda que por motivos

    diferentes: o das tradutoras e tradutores em formao no Brasil, pela escassa insero

    nos ambientes universitrios do pas que vem caracterizando tradicionalmente essa

    rea; e o do coletivo de profissionais da rea, cuja tambm tradicional atomizao no

    campo laboral dificulta o desenvolvimento de estudos sobre as suas concepes

    acerca das prticas que desenvolvem. Agregada a isso est a pouca visibilidade do

    trabalho de traduo, uma vez que o seu produto final praticamente naturalizado,

    desde que no existam nele problemas graves o suficiente para chamarem a ateno

    na hora da recepo. Fora em relao a especialistas, a agentes que participam

    diretamente no processo de traduo ou a quem trabalha em reas de fronteiras

    lingusticas ou em ambientes multilngues, a traduo, por via de regra, no aparece

    aos olhos de quem recebe os seus produtos.

    Assim, pela insero desta pesquisa em cenrios especficos, povoados por

    pessoas que s vezes no falaro desde o anonimato, tenta-se retratar espaos que,

    embora no pretendam ser definitrios da totalidade de agentes e ambientes que

    poderiam fazer parte deles, dentro do macrocosmos da traduo do portugus do

    Brasil, constituem microcontextos indicativos, isso sim, da problematicidade que

    neles caracteriza a norma lingustica. De fato, consoante Bourdieu (1996:15),

    no podemos capturar a lgica mais profunda do mundo social a no ser submergindo

    na particularidade de uma realidade emprica, historicamente situada e datada, para

    constru-la, porm, como caso particular do possvel.

    Fica ressalvado, desde j, que tambm no se pretende aqui transformar em

    propriedades necessrias e intrnsecas de um grupo qualquer (...) as propriedades que

    lhes cabem em um momento dado a partir de sua posio em um espao social

    determinado e em uma dada situao de oferta de bens e prticas possveis (Bourdieu

    1996:18). Nem todo o coletivo de profissionais da traduo ser ouvido, nem todos e

  • 36

    todas as aprendizas de traduo sero consultadas, no se diferenciando nesse aspecto

    esta das demais pesquisas. Os informantes, homens e mulheres, que participam deste

    estudo so seres cujas falas se configuram a partir das suas prprias concepes ticas

    e da sua situao scio-histrica especfica. So, contudo, agentes duma prtica que

    transita entre dois campos, ambos carregados hoje no Brasil duma tenso que

    padecem, como elas e eles o entendem e declaram, em alto grau.

    Em concreto as seguintes sero as questes, objetivos e asseres que orientaro

    a pesquisa que neste ponto se inicia:

    Questo de pesquisa:

    Quais as concepes sobre norma lingustica de agentes da prtica tradutria,

    profissionais e em formao, que tm o portugus do Brasil como uma das suas

    lnguas de trabalho?

    Objetivo geral:

    Mostrar a problematicidade presente em concepes sobre norma lingustica de

    agentes da prtica tradutria, profissionais e em formao, que tm o portugus do

    Brasil como uma das suas lnguas de trabalho, levando em considerao pesquisas

    sociolingusticas que colocam os problemas de norma dum ponto de vista no apenas

    descritivo, dialetolgico, mas especialmente no que diz respeito sua avaliao a

    partir dum processo, dum momento e dum lugar scio-histrico concretos.

    Objetivos especficos:

    1. Traar um panorama que pontue momentos relevantes nas concepes sobre

    norma lingustica do portugus do Brasil, com especial interesse em pesquisas

    geolingusticas, sociolingusticas e discursivas acerca dele, realizadas sobretudo desde

    finais do sculo XX.

    2. Descrever juzos avaliativos sobre norma lingustica de profissionais e

    aprendizes da traduo que trabalham com o portugus do Brasil.

  • 37

    3. Mostrar contribuies da Sociolingustica para pensar a abordagem didtica

    das lnguas na formao tradutria, especialmente em relao a profissionais que

    trabalham com portugus do Brasil.

    Assero geral:

    A problematizao explcita de questes relativas ao portugus do Brasil por agentes

    da traduo, profissionais ou estudantes, est relacionada com a situao de

    padronizao local, a qual precisa ser considerada nos processos de formao de

    especialistas da rea.

    Subasseres:

    1.1. Se ainda nos anos 1980 Cunha e Cintra (1985:15) afirmavam que o

    portugus do Brasil era menos heterogneo que o europeu, em especial desde os 1990

    a Lingustica brasileira investe em ressaltar a heterogeneidade lingustica do pas.

    1.2. A descrio da variedade lingustica do portugus do Brasil veio

    acompanhada de debates acerca do ser e o dever ser, formulados em termos do par

    dicotmico que contrape a Gramtica (com que se remete para a delimitao duma

    norma padro, no para o sistema morfossinttico) e a Lingustica (que alude

    descrio e defesa da variao lingustica e, fundamentalmente, das formas no

    padro). Essas controvrsias podem ter sido representadas de formas peculiares no

    Brasil por coletivos como o de estudantes de Traduo como o aqui estudado.

    1.3. As polmicas acima citadas se unem a uma teia discursiva onde convergem

    diversos momentos, no percurso scio-histrico do portugus do Brasil, em que a

    questo da norma lingustica foi problematizada em termos da relao com o Outro, o

    portugus.

    2.1. No discurso de praticantes da traduo profissionais, estudantes e quem

    forma esse grupo, podem ser encontradas problematizaes da norma que apontam

    para uma insegurana lingustica relacionada com a situao de padronizao do

    portugus do Brasil.

  • 38

    2.2. Enquanto profissionais da lngua e apesar da sua heterogeneidade, interna

    e entre ambas as categorias, a norma lingustica alvo de tensos debates por parte de

    agentes da traduo de portugus do Brasil, tanto em formao como profissionais,

    quando se integram em espaos de interao que se debruam sobre a prtica

    tradutria.

    2.3. Os ecos do campo religioso se fazem presentes no Brasil em relao

    lngua e traduo, considerando os seus espaos de poder enquanto normas, pois

    aluses a estas duas so formuladas no raro naqueles termos por aprendentes e

    profissionais da traduo.

    3.1. No Brasil, a possibilidade de se atribuir uma natureza preconceituosa

    higiene verbal ou avaliao lingustica explcita (Cameron 1995)

    independentemente de esse carter ser de fato adequado em todos os casos vem na

    contramo da sua realizao por estudantes de traduo em contextos de ensino

    formal. De fato, o tratamento de questes problemticas do ponto de vista da norma

    lingustica parece ser evitado em contextos de formao tradutria, exceto naqueles

    em que no h alternativa sua abordagem e onde ficam em grande medida

    encapsuladas.

    3.2. Como discurso racional e prtica no necessariamente coincidem, pode

    existir um fazer contrrio ao dito, no tocante ao uso lingustico, por parte de agentes

    da traduo, como de qualquer falante. Em contextos de ensino-aprendizagem, cabe

    ao professorado criar espaos de verbalizao dessas contradies, nico mecanismo

    para que sejam reelaboradas por estudantes de traduo, e tratadas no sentido em que,

    enquanto agentes, decidirem.

    Para dar tratamento suficiente s questes colocadas, a presente tese

    organizada em cinco captulos. O primeiro deles destina-se a apresentar o conceito de

    norma lingustica, para, a seguir, refletir mais precisamente sobre o caso do portugus

    do Brasil, buscando um itinerrio scio-histrico e um cenrio em termos

    geolingusticos, sociolingusticos e discursivos. O segundo captulo discute

    contribuies da Sociolingustica na delimitao e abordagem de problemas de

    norma. central nessa seo a reflexo acerca do lcus da pesquisa sociolingustica

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    (da comunidade de fala, passando pelas redes sociais em direo s comunidades de

    prtica), incluindo uma discusso acerca da insero das interaes virtuais dentro

    desse campo, um ambiente importante no Brasil para a ocupao dum espao

    anteriormente difuso e atomizado como o do afazer tradutrio. Disserta-se tambm

    sobre o papel da avaliao explcita (ou higiene verbal, segundo Cameron 1995) no

    tocante norma lingustica e sobre as relaes entre os campos da Sociolingustica e

    dos Estudos da Traduo, observando o Brasil e o portugus como espaos de

    pesquisa. No captulo terceiro, so mapeadas e analisadas concepes sobre norma

    lingustica de agentes profissionais da prtica tradutria que trabalham com portugus

    do Brasil. Para tanto, recorre-se a uma lista de discusso da Internet, TRAD-PRT

    disponvel em http://br.groups.yahoo.com/group/trad-prt/ , a qual se apresenta como

    a mais antiga em atividade dentre aquelas que renem profissionais do ramo, fundada

    em 1995. So comentados ainda os resultados obtidos da anlise de duas entrevistas

    sobre questes pertinentes a esta pesquisa, efetuadas com profissionais da traduo do

    Brasil com reconhecimento no ramo, vinculao histria virtual da comunidade

    tradutria do portugus, e cujos perfis formativos so contrapostos: Danilo Nogueira e

    Ivone Benedetti. O captulo quarto traa um panorama de ideias sobre norma

    lingustica colhido num contexto especfico de ensino pblico brasileiro de nvel

    superior, destinado formao de profissionais da traduo. Para isso sero

    considerados olhares de aprendentes e de membros do corpo docente inseridos no

    ambiente pesquisado, que sero retratados atravs de informaes obtidas por meio de

    instrumentos de coleta de dados como entrevista, grupo focal e questionrios. A

    observao mais prxima, diria, vivenciada, e o mergulho no universo do Outro e do

    eu professora e tradutora, com inspiraes etnogrficas, marcam o recolhimento de

    dados do universo pesquisado neste estudo. No quinto e ltimo captulo, a modo de

    consideraes finais, sero retomadas, como resultados, as subsasseres enunciadas

    nesta seo, discutindo a sua confirmao ou no luz das informaes coletadas e

    discutidas nas sees anteriores. A seguir, como concluses, defende-se a relevncia

    de contributos da Sociolingustica no tocante ao melhor entendimento da configurao

    das relaes que tradutoras e tradutoras, profissionais e em formao, mantm com a

    norma lingustica do portugus do Brasil, para refletir sobre repercusses didticas

    derivadas de se levar em considerao esse tipo de questes em contextos formais de

    ensino-aprendizagem da prtica tradutria. Finalmente, outras problematizaes so

    sugeridas no tocante a problemas de norma e formao em traduo do portugus do

    http://br.groups.yahoo.com/group/trad-prt/
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    Brasil, enquanto caminhos possveis para pesquisas posterior