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Sociolinguística Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra 2 a edição | Nead - UPE 2011

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SociolinguísticaProf. Dr. Benedito Gomes Bezerra

2a edição | Nead - UPE 2011

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)Núcleo de Educação à Distância - Universidade de Pernambuco - Recife

Bezerra, Benedito Gomes

Letras: Sociolinguística/ Benedito Gomes Bezerra. - Recife: UPE/NEAD, 2011.

44 p. il.

ISBN - 978-85-7856-075-1

1. Educação – Aspectos Sociais 2 Sociolinguística 3. Ensino de Línguas 4. Investigação Social 5. Educação à Distância I. Universidade de Pernambuco, Núcleo de Educação à Distância II. Título.

B574s

CDD 370.19

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Reitor

Vice-Reitor

Pró-Reitor Administrativo

Pró-Reitor de Planejamento

Pró-Reitor de Graduação

Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa

Pró-Reitor de Extensão e Cultura

Prof. Carlos Fernando de Araújo Calado

Prof. Rivaldo Mendes de Albuquerque

Prof. José Thomaz Medeiros Correia

Prof. Béda Barkokébas Jr.

Profa. Izabel Christina de Avelar Silva

Profa. Viviane Colares S. de Andrade Amorim

Prof. Rivaldo Mendes de Albuquerque

UNIVERsIDADE DE PERNAmbUCo - UPE

NEAD - NÚCLEo DE EDUCAÇÃo A DIsTÂNCIA

Coordenador Geral

Coordenador Adjunto

Assessora da Coordenação Geral

Coordenação de Curso

Coordenação Pedagógica

Coordenação de Revisão Gramatical

Gerente de Projetos

Administração do Ambiente

Coordenação de Design e Produção

Equipe de design

Coordenação de suporte

EDIÇÃo 2011

Prof. Renato Medeiros de Moraes

Prof. Walmir Soares da Silva Júnior

Profa. Waldete Arantes

Profa. Silvania Núbia Chagas

Profa. Maria Vitória Ribas de Oliveira Lima

Profa. Angela Maria Borges CavalcantiProfa. Eveline Mendes Costa LopesProfa. Geruza Viana da Silva.

Profa. Patrícia Lídia do Couto Soares Lopes

Igor Souza Lopes de Almeida

Prof. Marcos Leite Anita SousaGabriela CastroRafael Efrem Renata MoraesRodrigo Sotero

Afonso BioneProf. Jáuvaro Carneiro Leão

Impresso no Brasil - Tiragem 150 exemplaresAv. Agamenon Magalhães, s/n - Santo AmaroRecife - Pernambuco - CEP: 50103-010Fone: (81) 3183.3691 - Fax: (81) 3183.3664

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SociolinguíStica

Prof. Dr. benedito Gomes bezerraCarga Horária | 60 horas

EmEnta

Estudo da relação entre língua/linguagem e sociedade. Variação e mudança lin-guística. Norma padrão, norma culta e outras normas. Preconceito linguístico. Po-lítica linguística. A pesquisa sociolinguística. Sociolinguística e ensino de língua.

objEtivo gEral

Compreender aspectos teórico-metodológicos e empíricos referentes à vincula-ção entre língua e sociedade.

aprESEntação da diSciplina

Caro estudante!

Você vai achar a sociolinguística uma disciplina fascinante. Os conteúdos discu-tidos em sociolinguística são de fundamental importância para a boa formação do professor de língua portuguesa, e seriam igualmente importantes para pro-fessores de qualquer matéria, pois todos lidam com a língua de uma forma ou de outra. Diversas questões a respeito da relação entre língua e sociedade serão discutidas aqui.

Inspirados na sociolinguística, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para a Língua Portuguesa estabelecem que o ensino deve levar em conta, de forma muito séria, a diversidade linguística e a consequente variação existente em nossa língua.

Nesta disciplina, portanto, não estaremos apenas falando de teorias. O estudo da sociolinguística nos permitirá entender o que é variação e qual a sua importân-cia, o que é preconceito linguístico e como evitá-lo e combatê-lo.

Não perca essa oportunidade e aproveite-a ao máximo.

Boa sorte e muita disposição para continuar aprendendo e crescendo em sua formação!

Abraços!Benedito

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7Capítulo 1 77Capítulo 1

objEtivoS ESpEcíficoS

• Conhecerosprincipaisconceitosusadosemsociolinguística.

• Entenderoobjetivoeatarefaaquesepropõeasociolinguística.

introdução

Desde o início de sua história moderna, marcada pela publicação do Curso de Lin-guística Geral de Ferdinand de Saussure, a linguística se apresenta como uma área extremamente abrangente e diversificada. Com os crescentes questionamentos e crises enfrentados primeiramente pelo estruturalismo e em seguida pelo gerativis-mo, a linguística se desdobrou cada vez mais em variadas tendências e enfoques, a maioria dos quais têm em comum uma perspectiva funcionalista lato sensu.

A sociolinguística é uma das subáreas da linguística que se consolidou nos anos de 1960, em especial com os estudos e pesquisas desenvolvidos pelo linguista americano William Labov (nascido em 1927), voltados para a relação entre lín-gua e sociedade. Tratava-se de mais uma abordagem ao fenômeno linguístico que se afirmava em aberta discordância com os modelos linguísticos formalistas, em especial com o gerativismo.

Neste capítulo, apresentaremos os principais conceitos utilizados em sociolin-guística, considerando que esta é uma matéria de fundamental importância para a formação do professor de língua portuguesa, pelas claras implicações que acar-retam para o ensino.

1. origEnS da SociolinguíStica

De acordo com Calvet (2002), o linguista francês Antoine Meillet, contemporâ-neo de Saussure e conhecido como seu discípulo, dele divergia por considerar a língua como “um fato social” e por insistir no caráter social da linguagem. Em outras palavras, os impulsos em direção à sociolinguística são tão antigos quanto a própria linguística saussuriana. Meillet poderia, portanto, ser considerado com um entre os vários precursores da sociolinguística.

aprESEntando a SociolinguíStica:

concEitoS E dEfiniçõESProf. Dr. benedito Gomes bezerra

Carga Horária | 15 horas

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8 Capítulo 1

Entre esses precursores, deve-se ainda citar o inglês Basil Bernstein, especialista em sociologia da edu-cação. Diante do fato de que as crianças oriundas de classes trabalhadoras apresentavam um índice de fracasso escolar bem maior que o de crianças das classes abastadas, Bernstein, após analisar as produções linguísticas de ambos os grupos, logo encontrou o que considerava ser a explicação.

Para Bernstein, as crianças pobres, oriundas de classes trabalhadoras, fracassavam na escola por dominarem apenas um código linguístico restrito, aprendido no âmbito das respectivas famílias, en-quanto a escola exigia o emprego de um código elaborado. Os filhos oriundos de classes financei-ramente favorecidas, pelo contrário, dominavam o código elaborado desde as suas casas, uma vez que cresciam ao lado de pais que tinham hábitos de lei-tura e compravam livros, por exemplo. Percebe-se, portanto, que há uma relação direta entre a lingua-gem das crianças e fatores como o estrato social e econômico a que pertenciam. Esse tipo de percep-ção está na origem das pesquisas sociolinguísticas, segundo as quais levar em consideração a relação entre sociedade e linguagem é imprescindível para a compreensão desta.

A despeito de todas as contribuições anteriores, o nome do linguista americano William Labov fi-gura como o grande incentivador e verdadeiro pai da sociolinguística. As pesquisas de Labov se tor-naram célebres, investigando aspectos da variação fonética na fala dos habitantes da ilha de Martha’s Vineyard, em Massachusetts (1963), a diversidade de pronúncia, determinada pela estratificação so-cial,do/r/emdiferentes lojasdedepartamentoem Nova Iorque (1966), além da pronúncia do in-glês por adolescentes negros no bairro do Harlem em Nova Iorque.

Foi Labov quem mais claramente lutou, a par-tir dos anos de 1960, pelo reconhecimento de uma forma de fazer linguística que não des-cuidasse dos fatores sociais que interferiam na produção da linguagem. Conforme o lin-guista brasileiro Fernando Tarallo, foi Labov

“quem, mais veementemente, voltou a insistir na relação entre língua e sociedade e na possibilida-de, virtual e real, de se sistematizar a variação exis-tente e própria da língua falada” (1994, p. 7).

Foi graças aos estudos de Labov que o tema da variação linguística entrou na ordem do dia dos pesquisadorese,hoje,figuracomoumdosaspec-tos mais importantes recomendados pelos PCN para o ensino de língua portuguesa em nosso país.

2. intErESSES da SociolinguíStica

O pressuposto essencial da sociolinguística é de que todas as línguas naturais humanas se carac-terizam pela heterogeneidade e variabilidade. Em sua vertente mais conhecida, a sociolinguística, baseada nas pesquisas de Labov, elege a variação como seu tema principal. A variação, por sua vez, é vista como geral e universal, podendo ser descrita e quantificada de acordo com métodos científicos e estatísticos. Essa forma de fazer sociolinguística ficou conhecida, por isso mesmo, como Sociolin-guística Variacionista, Sociolinguística Quantitati-va ou, ainda, como Teoria da Variação.

Entre os interesses específicos da sociolinguística, Mollica (2008, p. 10) cita “contato entre as lín-guas, questões relativas ao surgimento e extinção linguística, multilinguismo, variação e mudança”. Ao tratar de temas como a variação, a tarefa do sociolinguista é caracterizar o fenômeno que está observando, verificar a avaliação positiva ou nega-tiva que os falantes conferem a ele e determinar se as variantes em competição se acham em processo de mudança ou se tendem a conviver entre si por tempo indeterminado. Como diz Mollica,

“em última análise, deve definir se o caso é de variação

estável ou de mudança em progresso” (2008, p. 10).

Para que as noções que estamos desenvolvendo aqui se tornem cada vez mais claras para você, va-mos examinar mais especificamente os principais conceitos relacionados com a variação, para que possamos estabelecer as diferenças entre eles.Fo

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9Capítulo 1

3. variação E concEitoS corrElacionadoS

É comum haver, no discurso sobre a variação, certa dificuldadenomanejodeconceitosmuitopróxi-mos e até muito semelhantes do ponto de vista da terminologia. Conceitos como variação, variável, variante e variedade linguística podem ser facil-mente confundidos, por isso precisam estar bem esclarecidos.

Por variação linguística nos referimos ao fenômeno universal, próprio de todas as línguas, que pressu-põe a existência de formas linguísticas alternativas, empregadas para veicular basicamente com o mes-mo significado. Essas formas alternativas se deno-minam variantes.

Por variantes, portanto, nos referimos às

“diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade” (TA-

RALLO, 1994, p. 8).

Também para Bagno (2007, p. 50),

“a definição mais simples de variante é a de ‘cada uma das

formas diferentes de se dizer a mesma coisa’”.

Uma vez que se trata de diversas formas de dizer a mesma coisa, as variantes de uma determinada comunidade de fala, como lembra Tarallo (1994), encontram-se sempre em situação de mútua con-corrência. Os diversos motivos que podem levar os falantes a preferir uma ou outra variante resultam na possibilidade de seu agrupamento ou subdivi-são conforme os seguintes polos:

padrão x não padrãoconservadora x inovadora

estigmatizada x de prestígio

A regra mais geral é que a variante padrão é, ao mesmo tempo, variante conservadora e de prestí-gio. Confira o exemplo:

1. Hojenósiremos ao cinema.2. Hojenósvamos no cinema.

Como você pode verificar, embora os dois enun-ciados comuniquem a mesma ideia, eles serão ava-liados de forma diferente pelos falantes com base em sua realidade sociocultural. A variante 1 pode

ser classificada como padrão, conservadora e de prestígio, o que significa dizer que ela está de acor-do com a norma-padrão, corresponde a uma forma mais tradicional de dizer e confere mais prestígio social aos seus usuários. Por sua vez, a variante 2 é não padrão, por não corresponder ao estabele-cidopelanorma-padrão, e, embora seja inovado-ra, por trazer para a língua uma forma nova de dizer a mesma ideia contida em 1, é estigmatizada, ou seja, seus usuários poderão ser discriminadoscomo pessoas que não sabem usar a língua “cor-retamente”. A forma não-padrão e estigmatizada, aindaque seja inovadora,acarreta,portanto,umjulgamentosocial(nãolinguístico)negativosobreseus falantes.

Uma variável, por sua vez, representao conjuntode variantes que se usa, para dizer essa “mesma coi-sa”de formasdiferentes.Vejamos isso citandooexemplo trazido por Tarallo (1994, p. 9), referente à variação na marcação do plural no sintagma no-minal (SN) em português. No caso, as três varian-tesmostradasabaixoconstituem,conjuntamente,a variável “marcação de plural no SN”.

De acordo com Bagno (2007, p. 50),

“uma variável sociolinguística é algum elemento da língua, alguma regra, que se realiza de maneiras diferentes, confor-

me a variedade linguística analisada”.

O estudo dessas regras variáveis constitui o inte-resse central da sociolinguística, incluindo a de-terminação da frequência de uso de cada variante contida na variável.

E ainda, o termo variável é utilizado em sociolin-guística em dois sentidos diferentes. No sentido de designar formas linguísticas usadas alternativa-mente para dizer a mesma coisa, como o exemplo acima, consideramos que se trata de uma variável dependente, pois o emprego de cada variante que a compõe é determinado ou influenciado por gru-pos de fatores de caráter social ou estrutural.

A esses fatores, que podem ser externos à língua, tais como sexo, idade, origem geográfica, status so-cioeconômico, atividade profissional, escolaridade e relação com redes sociais, denominamos de vari-

1. aS mEninaS bonitaS

2. aS mEninaS bonita

3. aS mEnina bonita

variávEl variantES

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10 Capítulo 1

áveis independentes. Nesse sentido, como lembra Mollica (2008), o termo variável pode designar tanto um fenômeno em variação (marcas de plural no SN, como exemplificado) como o grupo de fatores responsável por regular o uso de uma ou outra variante. No exemplo dado, um fator que condiciona fortemente o uso do item 1 (“as meninas bonitas”) é a escolaridade, entre outros.

Por fim, o termo variedade linguística compreende as diversas ramificações ou formas de usar uma deter-minada língua, ligadas a grupos sociais ou a regiões geográficas específicos, por exemplo, configurando aproximadamente o que em outros tempos ou lugares se chamaria de dialetos. Pensando na língua por-tuguesa, podemos afirmar que ela não é falada de uma única forma em todos os países que a têm como idioma, tampouco é falada de uma maneira única no Brasil. Identificamos sem muita dificuldade falares que caracterizam regiões brasileiras como o nordeste ou o sul, para citar apenas essas duas regiões tão diferentes entre si. As dificuldades na fala não dizem respeito apenas ao sotaque, mas também a aspectos propriamente linguísticos e discursivos de variada natureza. Gaúchos e nordestinos usam o pronome tu, por exemplo, de modo totalmente diferente. Poderíamos, portanto, nos referir a uma variedade gaúcha do português brasileiro, bem como a uma variedade nordestina dessa mesma língua.

Variedade, portanto, é um dos muitos “modos de falar” uma língua, no dizer de Bagno (2007). Conforme o autor, as variedades de uma língua podem ser identificadas em grande número. Por exemplo, o modo de falar dos homens acima de 40 anos, com curso superior completo, renda acima de dez salários mínimos e moradores da zona sul do Rio de Janeiro constitui uma variedade específica da língua portuguesa (p. 47). A língua, tomada globalmente, constitui um grande feixe de variedades, todas elas com características próprias que as diferenciam entre si.

As diversas variedades não podem ser subdivididas entre “certas” e “erradas”, “bonitas” e “feias” ou “ricas” e “pobres”. Todas as variedades são perfeitamente funcionais e capazes de atender às necessidades comu-nicativasdeseusfalantes.Eventuaisjulgamentossobreovalorpretensamentemaiordeumavariedadeemrelação a outra são de natureza apenas social e cultural, nada tendo a ver com os atributos exclusivamente linguísticos de cada uma.

Ainda conforme Bagno (2007, p. 48), as variedades linguísticas podem ser classificadas em dialetos, socio-letos, cronoleto e idioleto, embora se trate de termos nem sempre usados pelos especialistas. Dialeto corres-ponde ao modo de usar a língua em um determinado lugar ou região. Socioleto se refere ao modo de falar de um grupo de falantes caracterizado por uma mesma herança sociocultural (classe econômica, grau de escolaridade, profissão etc.). Já o modo de falar característico de uma determinada faixa etária é chamado de cronoleto, enquanto o termo idioleto, por fim, designa o modo característico de falar de um determina-do indivíduo. Dialeto seria, pois, uma variedade regional da língua, enquanto socioleto seria a variedade social, cronoleto, a variedade generacional e idioleto, a variedade individual.

4. variação E HEtErogEnEidadE linguíStica

Que as línguas variam, é um fato. Como argumenta Beline (2007), basta pensar inicialmen-te nas línguas faladas em todo o mundo. Sabemos que se fala português no Brasil, em Portu-gal e nas outras seis nações que compõem a chamada Comuni-dade dos Países de Língua Portu-guesa (confira no mapa).

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Figura 2: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

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11Capítulo 1

Entretanto, se pensarmos nos demais países, mes-mo naqueles que são vizinhos do Brasil, sabemos que falam outras línguas, como o espanhol, por exemplo. No próprio Brasil, muitas outras línguas são faladas além do português: as línguas indígenas (cerca de cento e oitenta!), as línguas de imigrantes italianos,alemães,japonesesetc.

Olhando o fenômeno um pouco mais especifica-mente, também não temos dificuldade em per-ceber que a fala de paulistanos não é igual à de baianos, nem de amazonenses igual à de cariocas. São de conhecimento geral casos de variação lexi-cal como usar macaxeira, aipim ou mandioca para se referir ao mesmo alimento, dependendo da região e do falante. É interessante notar, no entanto, que a variação não impede que os mais diferentes falan-tes de português se entendam entre si, nem impe-de que se sintam falando essencialmente a mesma língua, apesar da diversidade e heterogeneidade desta.

Não há dúvida de que as línguas variam, que não falamos (nem escrevemos) todos da mesma ma-neira. Nosso uso da língua varia em aspectos que vão desde a pronúncia (fonética) até a sintaxe e o vocabulário (léxico). Pode até ser que nem todos percebam ou admitam esse fato.

Conforme Bagno (2007), para pessoas formadas emumatradiçãoeducacionalcomoanossa,cujasraízes, no que tange à língua, remontam a uma lon-ga história de estudos clássicos, ligados à escrita e à literatura em especial,

“sómereceonomede línguaumconjuntomuitoparti-cular de pronúncias, de palavras e de regras gramaticais que foram cuidadosamente selecionadas para compor... [a] norma-padrão, isto é, o modelo de língua ‘certa’, de ‘bem

falar’” (p. 35).

Para se entender a variação como fenômeno uni-versal das línguas naturais e, particularmente, da língua portuguesa, esse tipo de mentalidade, in-felizmente muito generalizada, não serve, porque reduz a língua a algo muito mais simples do que ela é, além de ser uma mentalidade preconceituosa.

Ao contrário do que diz toda uma tradição de estu-dossobrealíngua,eapesardetodoumconjuntodemídias sociais que divulgam e mantêm a noção de uma língua única, que teoricamente seria usada de uma só maneira “certa”, a verdade é que a língua é

“heterogênea, múltipla, variável, instável e está sempre em

desconstrução e reconstrução” (BAGNO, 2007, p. 36).

Apesar de que pensar na língua como um comple-xo sistema de práticas comunicativas e discursivas, realizado de formas diferentes, por pessoas dife-rentes e em contextos diferentes, é muito menos confortável que alimentar a ilusão de uma norma--padrão geral, aplicável a todos, o fato de que as línguas variam não é um problema. Pelo contrário, o fenômeno da variação linguística é decorrência natural da própria complexidade da vida humana.

Assim, nossa língua é complexa porque nós, como pessoas e como civilização, somos seres complexos. Essa complexidade, também no que diz respeito à língua, longe de configurar um problema, repre-senta a riqueza desse patrimônio de todos os bra-sileiros, que é a língua nacional. Por outro lado, a variação e a heterogeneidade linguística correspon-dem a uma marcante heterogeneidade e até desi-gualdade social. Não é à toa que um dos fatores que condicionam ou interferem na variação é pre-cisamente a escolaridade, num contexto social em que nem todos os cidadãos têm acesso à educação de qualidade nos níveis básico e superior.

A sociolinguística, por conseguinte, procura rela-cionar conhecimento e pesquisa científica sobre a língua com os múltiplos contextos sociais em que a língua é utilizada. Dessa forma, se torna uma área de estudos capaz de contribuir diretamente para a aplicação do conhecimento científico à vida real e diária das pessoas, especialmente no tocante ao ensino e à formação da mentalidade dessas pessoas sobre a língua que falam.

5. nEm tudo na língua varia, nEm varia dE QualQuEr jEito

Embora a variação possa se verificar em qualquer nível da língua, nem tudo na língua varia. Só é possível falar de língua porque muitas das suas ca-racterísticas são estáveis e organizadas. Em outras palavras, a língua possui uma gramática, entendida comoumconjuntoordenadode regrasquedefi-nem seu funcionamento. As diversas variedades da língua, apesar de suas diferenças mútuas, também concordam com respeito a funcionarem segundo regras bem definidas, devendo-se entender regras, aqui,comoumconjuntodeconhecimentosqueos

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12 Capítulo 1

falantes detêm, e que organizam a maneira como esses falantes usam a língua, independentemente de terem passado pela escola.

Bagno (2007, p. 49-50) apresenta alguns exemplos de fenômenos em que a língua portuguesa do Bra-sil não mostra sinais de variação. Vamos a eles:

• A consoante /f/ não apresenta diferença depronúncia em nenhuma variedade regional ou social da língua portuguesa, ao contrário de /s/, que pode ser pronunciado como [s], [z] ou até [x], dependendo do contexto fonético ou de características regionais.

• Oartigodefinidoésemprecolocadoantesdosubstantivo a que se refere (“a casa”) e nunca depois,pormenosescolarizadoquesejaofa-lante (ninguém diz “casa a”).

• Opronomeoblíquoficasemprejuntodover-bo, não admitindo um elemento intercalado: dizemos “Ana me sustentou durante muito tempo”, mas não “Ana me durante muito tem-po sustentou”.

• Os verbos regulares, na primeira pessoa dosingular do presente do indicativo, sempre ter-minam em –o (“amo”, “bebo”, “parto”) e não variam como na primeira pessoa do plural, por exemplo, quando podemos ter “amamos” ou “amamo”.

• Emqualquervariedadedoportuguês,overbogostar é sempre seguido da preposição de: todos dizem“eugostode laranja”,enão“eugostolaranja”.

Por não apresentarem variação, esses exemplos se enquadram no que chamamos de regras categóri-cas, pois pertencem ao repertório comum de todos os falantes brasileiros, independentemente de clas-se social, escolarização, origem regional ou quais-quer outros fatores. Já nos casos em que há possi-bilidade de variação, como na marcação do plural em “as meninas” x “as menina”, dizemos que se trata de uma regra variável, ou simplesmente vari-ável, pois dependendo de certos fatores, qualquer uma das duas formas pode ocorrer em português.

Outro ponto importante é que a variação não é aleatória, isto é, não se trata de um fenômeno de-sordenado. A variação é organizada e estruturada

por uma série de fatores linguísticos e sociais. Para compreender bem essa ideia, faça o que se pede:

Pronuncie cuidadosamente cada uma das palavras:

raspa x rasgaescama x esgana

fisco x fisgo

Agora, leia de novo as palavras prestando atenção no som do /s/ em cada uma delas.

Você percebeu a diferença entre o /s/ das palavras da primeira coluna e o /s/ da

segunda coluna?

Na verdade, apesar de a letra, na escrita, ser a mesma, no primeiro caso a pronúncia é [s],

mas na segunda coluna de palavras a pronúncia muda para [z]. Por quê?

Sevocêéumbomobservador,e jáestápegandoojeitodepesquisadoremlinguística,entãonotouque, na primeira coluna, o /s/ vem sempre antes de uma consoante /k/, que é foneticamente surda, assim como o próprio /s/. Já na segunda coluna, o /s/ vem seguido de /g/, uma consoante sonora. Esse contexto fonológico determina a diferença de pronúncia do /s/, criando uma interessante regra, que se traduz em maior conforto para o nosso siste-ma fonador. A regra poderia ser escrita assim:

Sempre que vier antes de uma consoante surda, o /s/ terá a pronúncia surda [s]; quando preceder uma consoante sonora, o /s/ terá a pronúncia sonora [z].

Essa regra, apesar de provavelmente não fazer parte de nenhum livro de gramática da língua portuguesa do Brasil, é dominada e seguida por todos os brasileiros. Trata-se um caso de variação linguisticamente condicionada, não dependendo de fatores sociais como escolaridade, classe social, sexo ou qualquer outro.

No entanto, é possível ouvir, em nossa língua, ou-tras pronúncias para palavras como essas. Vamos rever o quadro, considerando a possibilidade das seguintes pronúncias para cada palavra:

raspa x rasga[raxpa] x [rajga]escama x esgana

[ixkama] x [ijgana]

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13Capítulo 1

Você já ouviu alguém falar assim? Provavelmente, sim e, nesse caso, você seria capaz até de dizer de que região do país essa

pessoa que fala “chiando” vem, não é mesmo?

Estamos, portanto, diante de um caso de variação condicionada por fatores externos à língua; nesse caso, a procedência regional. Podemos, com boa razão, desconfiar de que nosso falante vem do Rio de Janeiro, onde, na opinião de quem não nasceu lá, as pessoas “falam chiando”.

Tanto as possibilidades de pronúncia determina-das e limitadas por fatores linguísticos como as possibilidades alternativas condicionadas por fato-res sociais (regionais ou outros) são parte legítima das possibilidades mais amplas da língua. Em to-dos os casos, trata-se de riqueza e de complexidade da língua, e nunca de “erro” ou de “ignorância” dos falantes. É isso que torna a língua fascinante. Como afirma Bagno (2007, p. 43), a língua é:

Um sistema que possibilita a expressão de um mesmo conteúdo informacional através de regras diferentes, todas igualmente lógicas e com coerência funcional... E mais fas-cinante ainda: um sistema que nunca está pronto, que o tempo todo se renova, se recompõe, se reestrutura, sem todavia nunca deixar de proporcionar aos falantes todos os

elementos para sua plena interação social e cultural.

Vemos, portanto, que a língua varia, mas não varia de qualquer forma. A língua é regrada, no sentido de que é organizada e ao mesmo tempo flexível. A gramáticadecadalínguaofereceumconjuntodepossibilidades de como se dizer alguma coisa, ao mesmo tempo em que limita essas possibilidades de forma bem ordenada e sistemática.

6. o vErnáculo braSilEiro

A sociolinguística, ao contrário dos estudos mais tradicionais sobre a linguagem, opera fortemente e até prioritariamente com a modalidade falada da língua, sem deixar, é claro, de investigar os fenô-menos de seu interesse também na escrita. Nesse sentido, os sociolinguistas referem-se à modalida-de falada da língua como o vernáculo, entendido como

“o veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de interação social, do tipo comunicação face a face” (TARALLO, 1994, p. 19).

Portanto, como lembra Bagno (2007), o termo ver-náculo é usado, em sociolinguística, numa acep-ção marcadamente diferente do sentido que lhe é atribuído nos dicionários de língua portuguesa. Segundo o Dicionário Aurélio Século XXI, por exemplo, vernáculo designa a “linguagem genuína, correta, pura, isenta de estrangeirismos”, ou ain-da, num sentido mais neutro, vernáculo seria si-nônimo de “próprio da região” ou “nacional”. No entanto, William Labov (citado por Bagno, 2007, p. 51) utilizou o termo num sentido técnico como “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao monitoramento da fala”.

De acordo com Tarallo (1994), falar de vernácu-lo é falar da língua conforme usada em situações bastante informais, como a interação com amigos e familiares, em casa, nos bares, clubes, parques, corredores da escola ou da faculdade. É a língua como falada entre parentes, amigos, namorados e outros. Característica do vernáculo é que ele é fala-do sem a preocupação de “falar certo”. É diferente de quando falamos diante de autoridades como professores, patrões ou outras pessoas com a pre-ocupação de mostrar que sabemos usar a língua.

Embora não despreze, de forma alguma, outros materiais linguísticos, a sociolinguística prefere trabalhar, em suas análises, com materiais prove-nientes do vernáculo. A ideia é que fica mais fácil compreender a variação, por exemplo, se os dados linguísticos analisados tiverem sido produzidos em situações espontâneas, quando os falantes não estavam pensando em falar “corretamente”, mas estavam se expressando livremente em situações reais de uso da língua. Segundo Bagno, o vernácu-lo parece ser

“a fonte mais segura para a investigação dos fenômenos de mudança linguística que afetam determinada língua num

dado momento histórico” (2007, p. 51).

O vernáculo, numa perspectiva de heterogenei-dade linguística, não é único e indivisível. Cada comunidade de fala ou grupo social apresenta seu próprio vernáculo ou estilo que, naquela variedade linguística,

“representa a fala mais espontânea, menos monitorada, que emerge sobretudo nas interações verbais com menor grau de formalidade e/ou com maior carga de emotivida-

de” (BAGNO, 2007, p. 51).

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14 Capítulo 1

A vantagem de se estudar o vernáculo é que ele permite identificar quais são as regras efetivamente vigentes na língua no momento da investigação, ou seja,queusoslinguísticosaspessoasestãorealmen-te praticando e quais regras estão sendo deixadas de lado ou modificadas. Por exemplo, as pesquisas sociolinguísticas mostram que os brasileiros quase não usam mais os chamados pronomes oblíquos de terceira pessoa (o, a, os, as), preferindo substi-tuí-los por ele, ela, eles, elas. Confira abaixo:

1. Variante padrão, conservadora e de prestígio: Comprei o livro, mas o esqueci em casa.

2. Variante não padrão, inovadora e estigmatiza-da: Comprei o livro, mas esqueci ele em casa.

Fica claro para qualquer bom observador que a va-riante 1, embora socialmente prestigiada, está em processo de extinção na fala dos brasileiros. A va-riante 2, embora estigmatizada, é a mais frequente e provavelmente substituirá a variante padrão no futuro.

O grande problema para a investigação do verná-culo é representado pelo que Labov chamou de “o paradoxo do observador”, que pode ser assim traduzido:

Para ter acesso à grande quantidade de dados necessários para a análise, o pesquisador precisa interagir diretamente com os falantes. No entanto, como fazer isso sem que sua presença afete a naturalidade (o caráter vernacular) da fala

dos seus informantes?

Posto de outra forma, como coletar a fala espontâ-nea dos membros da comunidade pesquisada, se eles sabem que sua linguagem está sendo analisa-da pelo pesquisador? O problema se torna ainda maior se considerarmos que a gravação não pode

Font

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Figura 3: Reflexos do vernáculo brasileiro

ser secreta, sem a ciência e a permissão dos infor-mantes, pois isso traria implicações éticas negativas para a pesquisa.

A solução que Labov encontrou para o dilema foi coletar narrativas de experiência pessoal que colo-cassem os informantes em situações de grande en-volvimento emotivo, de modo que se desligassem do fato de estarem sendo gravados ou observados. Ao falarem de si e de acontecimentos pessoais mar-cantes, a tendência dos falantes é serem mais es-pontâneos e menos atentos às formas de expressão linguística. Isso era ainda mais reforçado, nas pes-quisas de Labov, por se induzirem narrativas que envolviam forte carga de emotividade, mediante perguntas como:

“Você já esteve numa situação em que pensou que ia morrer?”.

Segundo Tarallo (1994, p. 22), os diversos módu-los de perguntas incluíam os seguintes assuntos: históriapessoaldoinformante,jogosebrincadei-ras de infância, brigas, namoros e encontros amo-rosos, casamento, perigo de morte, medo, família, religião, amigos, serviços públicos, violência, esco-la, trabalho, esportes etc.

Investigações nessa linha têm um grande potencial de colaboração com o ensino de língua portugue-sa, uma vez que podem, entre outras coisas, indicar o que deve ou não ser prioridade nos currículos, ao definir as características do vernáculo brasilei-ro em um determinado momento histórico. Seria razoável, nessa linha, indicar os fenômenos linguís-ticos de uso frequente na língua como prioritários para o ensino; por outro lado, não seria indicado insistir em ensinar aos alunos regras desusadas e em extinção na língua.

Para os efeitos deste primeiro capítulo, bastam as informações dadas até aqui com sua respectiva problematização. No próximo capítulo, retornare-mos ao tema da variação de uma forma bem mais detalhada.

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15Capítulo 1

atividadES |Pesquise na internet e/ou em outras fontes so-bre a obra de William Labov, conhecido como o pai da sociolinguística: quais foram as prin-cipais pesquisas que ele realizou e que livros publicou? Como você avalia a contribuição de Labov para a sociolinguística e, por extensão, para a compreensão e o ensino de língua por-tuguesa?

rEfErÊnciaS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por aca-so: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.

BELINE, Ronald. A variação linguística In: FIO-RIN, J. L. (Org.) Introdução à linguística. I. Ob-jetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 121-140.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma in-trodução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.

MOLLICA, Maria Cecilia. Fundamentação teó-rica: conceituação e delimitação. In: MOLLICA, Maria Cecilia; BRAGA, Maria Luiza (Orgs.). In-trodução à sociolinguística: o tratamento da variação. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 9-14.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguísti-ca. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005.

SAIBA MAIS!

Para aprofundar o conteúdo deste ca-

pítulo e ampliar seus conhecimentos

sobre a disciplina sociolinguística como

um todo, além de textos de divulgação

e trabalhos científicos disponíveis na In-

ternet, sugiro as seguintes leituras:

• Umaboasínteseintrodutóriaseen-

contra no livro de Fernando Tarallo,

A pesquisa sociolinguística, da Série

Princípios, publicado pela editora

Ática. Além das informações gerais

sobre a disciplina, o livro, pequeno

e de fácil leitura, oferece passos e

sugestões metodológicas para a

pesquisa na área.

• De uma natureza dife

rente, mas

igualmente relevante, é o livro de

Louis-Jean Calvet, Sociolinguística:

uma introdução crítica, publicado

pela editora Parábola. O livro, tra-

duzidodofrancês,apresentaadis-

ciplina numa perspectiva europeia,

não se restringindo à explicação da

teoria, mas abordando-a de forma

críticacomodizosubtítulo.

rESumo

Neste capítulo, tivemos um primeiro contato com a sociolinguística e seus principais con-ceitos. A intenção, nesse primeiro momento, foi apresentar a disciplina como uma das vertentes mais relevantes e atuais da pesquisa em linguística no Brasil e também no mundo. Depois de algumas informações sobre as origens da sociolinguística, bem como sobre o fundador da sociolinguística como disciplina contemporânea, William Labov, aprendemos um pouco sobre os interesses da área, concentrados principalmente na fala vernacular do português brasileiro e girando em torno da noção de variação linguística. Conceituamos, por conseguinte, as noções de variação, variante, variável e variedade linguísticas, além de discutirmos o importante conceito de vernáculo. Vimos que a variação, embora seja um fenômeno extremamente comum e recorrente na língua, não é um fenômeno aleatório e desordenado. Como resultado das discussões encetadas neste capítulo, concluímos que os estudos variacionistas podem apresentar uma expressiva contribuição para o ensino da língua portuguesa no Brasil.

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17Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2

objEtivoS ESpEcíficoS

• Conhecerostiposoumodalidadesdevariaçãolinguística.

• Compreenderosfatoresextralinguísticosdeterminantesdavariação.

introdução

O ensino tradicional de língua portuguesa, reforçado pelos meios de comunica-ção, formou e alimenta a ideia de língua como um bloco uniforme e homogêneo. ComovimosnoCapítulo1,hojeénecessário reconhecerquea línguanãoéuniforme nem homogênea, mas essencialmente variada e variável. Conforme Bagno (2007), a língua é um “substantivo coletivo”, pois se refere a um vasto conjuntoderealizaçõespossíveispelosseusfalantes.ParaIlarieBasso(2006),auniformidade da língua portuguesa é pelo menos parcialmente um mito que foi alimentado por fatores como o nacionalismo, uma visão reducionista do fenôme-no linguístico e uma insensibilidade para com a variação.

A realidade da variação não é exclusividade do português brasileiro, nem do português europeu, como podemos ver pelas palavras do escritor José Saramago (citado por Bagno, 2007, p. 39): “Quase me apetece dizer que não há uma lín-gua portuguesa, há línguas em português”. Além de ser um fenômeno natural em português e em qualquer outra língua, a variação também é um fenômeno complexo, que se manifesta de diversas formas. A seguir, veremos em detalhes que formas são essas.

1. nívEiS linguíSticoS da variação

De acordo com Bagno (2007), a variação pode ocorrer, em princípio, em todos os níveis da língua, do fonético/fonológico ao morfológico, sintático, semântico, lexicaleestilístico-pragmático.Vejamoscadaumdessesníveis,seguindodepertoa abordagem de Bagno (2007, p. 39-40):

• Variação fonético-fonológica: em palavras como porta ou torta, o r tem diversas pronúncias no português brasileiro. Entre as regiões nordeste e sudeste, nota-

a variação linguíStica: tipologia

Prof. Dr. benedito Gomes bezerraCarga Horária | 15 horas

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18 Capítulo 2

mos também uma diferença na pronúncia de o e e em palavras como movimento e coletivo (sons abertos no nordeste e fechados no sudeste).

• Variação morfológica: o Dicionário Aurélio Século XXI apresenta formas como pegajoso, peguento e pegajento como sinônimos, embora formados com sufixos diferentes.

• Variação sintática: as frases abaixo têm o mes-mo sentido, embora varie a forma como seus constituintes são organizados:

1. Uma história que ninguém prevê o final. 2. Uma história que ninguém prevê o final dela. 3. Umahistóricacujofinalninguémprevê.

• Variação semântica: palavras como vexame significam coisas diferentes dependendo da região em que são utilizadas: “vergonha/emba-raço” ou “pressa”.

• Variação lexical: usamos palavras diferentes para dizer a mesma coisa: cachaça, cana ou aguardente; aipim, mandioca ou macaxeira; jeri-mum ou abóbora.

• Variação estilístico-pragmática: Dependendo da situação de uso e de fatores como o grau de formalidade e a intimidade que tem ou não tem com seus interlocutores, a mesma pessoa pode usar os seguintes enunciados:

1. Queiram se sentar, por favor. 2. Senta aí, galera.

2. tipologia da variação linguíStica

Conforme Ilari e Basso (2006), a variação linguís-tica classifica-se em diacrônica, diatópica, diastrática e diamésica. Bagno (2007) acrescenta ainda a noção de variação diafásica. A seguir, veremos o que signi-fica cada uma delas.

2.1 variação diacrônica

Literalmente, o termo diacrônico, derivado do idio-ma grego, significa “através do tempo”. O tempo é, portanto, um importante fator de variação: toda língua varia e muda com o passar do tempo. O

pesquisador pode mensurar a variação diacrônica por meio de duas estratégias: a primeira é o tempo aparente, em que a investigação se concentra em di-ferentes faixas etárias, o que permite chegar a con-clusões sobre o status da língua nos diferentes mo-mentos refletidos pelas experiências das gerações. Nesse caso, o estudo consiste em examinar um “recorte transversal da amostra sincrônica em fun-ção da faixa etária dos informantes” (TARALLO, 1994, p. 65).

Ilari e Basso (2006) apresentam alguns exemplos. Um deles é: somente os mais velhos compreendem a expressão “estar de bonde” como significando “es-tar com a namorada”. Outro exemplo de variação verificável em tempo aparente diz respeito ao sen-tido do verbo ficar como sinônimo de um tipo de relacionamento afetivo passageiro e sem compro-misso, sentido fácil de entender para os adolescen-tes, mas muito estranho para os adultos e idosos.

Casodesejasseobservarin loco fenômenos de varia-ção e mudança linguística, usando a estratégia do tempo real, o pesquisador teria que, por exemplo, acompanhar a evolução dos falantes da adolescên-cia até idade adulta e, assim, verificar que fenôme-nos se manifestariam e como. Em vez disso, que dificilmente seria viável, os pesquisadores podem, na falta de gravações de voz, lançar mão de docu-mentos do passado que potencialmente reflitam o vernáculovigentenomomentohistóricodesejado.

O essencial, como ressaltam Ilari e Basso (2006), é nãopensarnalínguacomoumconjuntodeformasestabelecidas em caráter definitivo no passado, por obra de algum tipo de “assembleia de sábios”, e sim ver a língua como uma entidade dinâmica e emconstantemudança.Alínguaquefalamoshojeé resultado de diversas mudanças ocorridas no pas-sado, em momentos distintos, além de apresentar formas ainda em concorrência ao lado de expres-sões provenientes de diferentes momentos históri-cos. Confira a seguir um pequeno recorte de um exemplo apresentado pelos autores (p. 154):

São Paulo, 1830Hontem pela manhãa se me enviou um negro do gentio de Guiné,muitoboçal,etrajadoàmaneiradosquevemem

comboi, e se me dice, foi pegado, vagando como perdido...

Neste texto do século dezenove, a palavra boçal sig-nificava que o negro ainda não estava totalmente aculturado e não falava a língua portuguesa com de-

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19Capítulo 2

senvoltura. Significado, portanto, muito diferente do atual. O conceito de variação diacrônica ressal-ta, nesse caso, o papel do tempo como fator decisi-vo para a alteração do sentido da palavra. Note que não estamos considerando especificamente a gra-fia da língua, que muda por decreto de tempos em tempos, mas o termo como representado na fala e seu respectivo conceito. Não seria difícil, assim, en-contrar outros exemplos de palavras e expressões que mudam de conotação com o passar dos anos.

2.2 variação diatópica

Ao contrário da variação diacrônica, que está rela-cionada com diferenças de usos linguísticos verifi-cados com o passar do tempo, a variação diatópica (termo derivado do grego, significando “através do lugar”) se refere aos “modos de falar de lugares di-ferentes” (BAGNO, 2007, p. 46). Esses lugares po-dem ser países, regiões, estados ou os ambientes rural e urbano, entre outros. Conforme Ilari e Bas-so (2006, p. 157), a variação diatópica compreende “as diferenças que uma mesma língua apresenta na dimensão do espaço”, por ser falada por pessoas situadas em diferentes pontos geográficos de um país ou de países diferentes.

No que diz respeito à língua portuguesa, a variação diatópica, em seu sentido mais amplo, se dá pelas diferenças verificáveis entre o chamado português europeu (PE) e o português brasileiro (PB). Algu-mas pessoas, sejam elas estudiosas da linguagemounão, defendemque hoje não falamosmais oportuguês, e sim o “brasileiro”, pois não se trataria mais da língua trazida por nossos colonizadores, mas de uma nova língua formada em nosso país com a contribuição de outras culturas.

Seja qual for nossaopinião sobre esse assunto, o fato é que as diferenças entre o português conforme falado (e até escrito) em Portugal e nas antigas colônias lusi-tanas da África e da Ásia e o português falado (e escrito) no Brasil são numero-sas e inegáveis. Essas diferenças são pro-fundas o suficiente

para exemplificar com clareza a noção de variação diatópica. Ilari e Basso (2006) alistam os seguintes contrastes entre o PE e o PB:

• Nafonética/fonologia,oPEsecaracterizapeloenfraquecimento das vogais pretônicas, pela pronúncia do /R/ como vibrante múltipla e pelo /l/ com pronúncia velarizada em final de sílaba; no PB, o /l/ é substituído pela semivo-gal /w/, no mesmo contexto.

• AocontráriodoPB,queadmiteconstruçõesiniciadas por pronomes clíticos, como em Me dá um cigarro, o PE não admite tais construções.

• EmPE,usa-seopronomesi como anafórico de pronomes de tratamento, como em Doutor, esta carta é para si; em PB, usa-se outra expressão de tratamento: Doutor, esta carta é para o senhor.

• PEePBusamexpressõesdiferentesparaano-ção de continuidade manifesta pelo verbo: Não estou a perceber (PE) x Não estou percebendo (PB).

• OPEusaexpressõescondicionaiscomoSe eu sabia, eu vinha, que é discriminada em PB culto.

• Hánumerosasdiferençasdevocabulárioen-tre PE e PB. Citemos apenas alguns substanti-vos: grossista/atacadista, cerveja de pressão/cho-pe, rapariga/moça, SIDA/AIDS, casa de banho/banheiro etc.

• OPEusapalavrasprópriasdalínguaemsitua-ções nas quais o PB recorre a empréstimos do inglês: arca frigorífica/frízer.

Muito interessante, na variação entre o PE e o PB, são as diferenças entre expressões idiomáticas como as referidas no quadro:

pE pE/pb pb

tEimoSo fEito um burro tEimoSo como uma mula tEimoSo QuE nEm a mulHEr do piolHo

falar como uma gralHa falar pEloS cotovEloS falar maiS QuE o HomEm da cobra

comprar a troco dE rEza comprar por uma pEcHincHa na bacia daS almaS

comprar por uma micHaria/ninHaria

cHovEr a potES cHovEr a cântaroS cHovEr canivEtES

fEio como oS trovõES fEio dE doEr fEio como a mulHEr do guarda

Surdo para além do EStúpido Surdo como uma porta Surdo fEito um muro

pEScar um marido arranjar um marido fiSgar um marido

apanHar pEla mEdida grandE apanHar apanHar como cacHorro SEm dono

comEr como um piSco comEr comEr como um paSSarinHo

dormir como um prEgo dormir como uma pEdra dormir como gato dE HotEl

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20 Capítulo 2

Quanto à língua portuguesa no Brasil, a variação é um fenômeno inegável, embora não impeça que brasileiros de diferentes regiões entendam-se mu-tuamente.Ouseja,aoladodavariação,existeuni-dade suficiente para que a língua se afirme como patrimônio de todos os brasileiros. Infelizmente, a variação é quase sempre identificada em termo de estereótipos, com expressiva dose de preconceito: a fala nordestina, o sotaque baiano, cearense ou paraibano, ao lado do dialeto caipira do sul e su-deste do país, são costumeiramente descritos como formas exóticas e de algum modo desviantes no português brasileiro, em vez de serem vistos como manifestação da riqueza e complexidade da língua.

Nesse trecho, note que o numeral dez é grafado déiz, marcando uma diferença inexistente entre a fala caipira e a fala culta. A maioria, se não todos, os falantes brasileiros pronunciam a palavra assim, apesar da escrita oficial. Não se trata de um fenô-meno da fala caipira, mas de uma característica ge-ral do português brasileiro. Noutros casos, como trabaiá, vemos de fato uma variação em relação à forma trabalhar, no que diz respeito ao segmento /lh/, substituído por /i/. No entanto, a pretensa variação relativa ao apagamento do /r/ final não é exclusiva da fala caipira, e sim uma marca da maior parte das variedades, inclusive cultas, do português por todo o Brasil. Esse fato evidencia como a varia-ção quase sempre é vista como exótica e é frequen-tementeobjetodepreconceitosocial.

Independentemente disso, a variação diatópica no português brasileiro é uma realidade e pode ser exemplificada em diversos níveis de uso da língua. Vejamosalgunsexemplosdeformasistemática:

a. Aspectos lexicais: dependendo da região, o mesmo conceito pode ser expresso por pala-vras diferentes:

lanternagem = funilaria macaxeira = aipim = mandioca venda = bodega = mercearia = quitanda jerimum = abóbora fruta do conde = pinha = ata b. Aspectos idiomáticos: há expressões regionais

que praticamente configuram um falar local próprio, que dificilmente pode ser entendido até mesmo de um estado para outro na mesma região. Por exemplo, expressões como “tá com a bobônica!” ( tá com a peste!, tá danado!, entre muitos outros sentidos possíveis) parecem mui-to típicas de Pernambuco. Na verdade, ouvi a expressão pela primeira vez em Garanhuns, no Agreste Meridional do estado. Não me lembro de ter ouvido alguém falar assim antes, em quinze anos de Recife (também é verdade que umapesquisarápidanaInternetmostrahojeum uso relativamente intenso da expressão em uma mídia que não respeita fronteiras regio-nais). Nessa mesma linha, grande é a riqueza de nosso idioma. Provavelmente, para enten-der expressões como “só o mie (desbuiado)” (= só o milho debulhado), significando algo muito bom, muito legal, ou até mesmo uma garota muito bonita, precisa ser cearense e/ou ter

Deve-se ressaltar também que muitos textos que se propõem mostrar variedades populares do portu-guês são construídos de forma caricatural, exage-rando em muito a variação real. Apresentam a fala popular de forma exageradamente divergente da norma culta, enxergando como variação caipira o que característica do português em geral. Podemos citar como exemplo alguns termos retirados de parte da letra da música “Couro de boi”, composta por Teddy Vieira e Palmeira:

Conheço um velho ditado que é dos tempos dos zagais,Diz que um pai trata déiz fio, déiz fio num trata um pai,Sentindo o peso dos anos, sem podê mais trabaiá,O véio peão estradeiro, com o seu fio foi morá,O rapaiz era casado, e a muié deu de impricá,Você mande o veio imbora, se não quisé que eu vá,O rapaiz coração duro, com véinho foi falá.

Font

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Figura 1: Dialeto caipira

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21Capítulo 2

vivido algum tempo em Fortaleza. Daí o sen-tido não só folclórico dos muitos dicionários regionais que, infelizmente, na maioria das ve-zes são construídos apenas como curiosidades humorísticas.

O mapeamento sistemático das variações e sua distribuiçãoregionalestánabasedosprojetoscha-mados de atlas linguísticos. Vários deles se encon-tram disponíveis ou em elaboração no Brasil há algunsanos.Veja,nográficoabaixo,umailustra-çãodoprojetoAtlas Linguístico de Pernambuco, em elaboração pelo pesquisador Edmilson Sá, douto-rando em linguística na Universidade Federal da Paraíba. Trata-se da análise estatística da ocorrên-cia do termo utilizado por falantes nas faixas etária de 18 a 30 e 50 a 65 anos para designar “a parte roxa do cacho da banana” e mostra que, embora predomine largamente o termo mangará, também são utilizados outras sete palavras para designar a mesma coisa.

c. Aspectos fonéticos/fonológicos: nas diversas regiões brasileiras, é possível verificar variações napronúnciadediversosfonemas.Vejamosal-guns casos mais evidentes e reconhecidos, lem-brando sempre que alguns deles imediatamen-te apontam para a região em que são falados e não raro contribuem para atribuir prestígio ou estigma (avaliação preconceituosa) aos seus fa-lantes, embora, do ponto de vista linguístico, ne-nhumaformasejainferiorousuperioràoutra.

d. Aspectos morfossintáticos: o português bra-sileiro, nas diversas regiões, apresenta modos diferentes de realizar construções que apresen-tamomesmosentido.Vejamosalgunscasos:

mais /maiz//maish/

vamos /vamuz//vamu//ramu/

dente /denti//dentchi//dente/

Uso ou omissão deartigo definido antes denomespróprios:

Ontem foi o casamento do Luís.Ontem foi o casamento de Luís.

Uso de tu e você como pronomes de segunda pessoa:

Tu vais.Tu vai.

Você vai.

Uso ou omissão dopronome reflexivo:

Esta é a igreja onde ele congrega.Esta é a igreja onde ele se congrega.

Font

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Figura 2: Dicionário regional: Orélio Cearense

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Figura 3: Atlas Linguístico de Pernambuco

2.3 variação diaStrática

Além das diferenças de uso no português falado do ponto de vista temporal (variação diacrônica) e do ponto de vista geográfico (variação diatópi-ca), que são ricas e variadas, conforme vimos, ou-tra importante diferença é a que se verifica entre a fala das camadas mais escolarizadas da população e as camadas menos escolarizadas. No caso brasi-leiro, especificamente, notamos que essa diferença também apresenta um aspecto socioeconômico: as camadas mais escolarizadas são também as mais ricas, e as menos escolarizadas, por sua vez, são as mais pobres dentre a população brasileira.

Esse tipo de variação, que se encontra “quando se comparam diferentes estratos de uma população” (ILARI e BASSO, 2006, p. 175), chama-se, por isso mesmo, de variação diastrática. Na definição de Bagno (2007, p. 46), variação diastrática é “a que se verifica na comparação entre os modos de falar das diferentes classes sociais”. As variedades

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22 Capítulo 2

do português brasileiro faladas pelas camadas não escolarizadas ou menos escolarizadas da população às vezes são chamadas, de modo bastante generali-zante e talvez simplista, de “português subpadrão”, “português sub-standard” ou ainda “português não padrão”, por oposição ao “português padrão” das classes altas e mais escolarizadas. No entanto, pare-ce mais razoável admitir que o português brasileiro realmente subsiste na forma de diversas variedades não padrão, que se contrapõem a um padrão idea-lizado que não corresponde à fala real de nenhum grupo social existente.

De modo geral, algumas diferenças podem ser apontadas entre as variedades não padrão e a varie-dade padrão do português, nos diversos níveis de realização da língua:

a. Nível fonético

faladegrandepartedosbrasileiroshoje,indepen-dentemente de classe social ou escolaridade. Por esse mesmo raciocínio, efetivamente não existe variação fonética entre as formas pió e pior, mas apenas formas diferentes de representar na escri-ta (frequentemente embutindo estereótipos) a fala das classes populares e a fala das classes socialmen-te favorecidas.

c. Nível sintático

Quedaounasalizaçãodavogalátona inicial:

incelença x excelência

Queda de material fonético apósavogaltônica:

figo x fígadoCiço x Cícero

centimo x centímetroquilomo x quilômetro

Monotongação de ditongos crescentes:

sustança x substância

Usode/i/ou/l/emvezde/lh/: foia x folhamuié/mulé x mulhercuié/culé x colher

b. Nível morfológico

Perda da desinênciade número na primei-ra pessoa:

nós cantamo/cantemo x nós cantamos

Acréscimo de advérbio de comparação a adje-tivos já comparativos:

mais mió x melhormais pió x pior

Alémdos aspectos destacados acima, já bastanteclaros por si mesmos, cabe uma observação sobre as formas mió (= melhor) e pió (= pior), constan-tes do segundo exemplo. Deve ser ressaltado que, nessecaso,avariaçãofonéticasubjacenteésignifi-cativamente exagerada pelo modo como as formas populares são registradas na escrita.

Rigorosamente, para a maioria dos falantes em to-das as regiões do Brasil, só existe variação fonética no primeiro par (mió x melhor), e esta consiste na omissão de /lh/ na variedade popular. A alteração de /e/ para /i/ não é de forma alguma exclusiva das classes populares, assim como a omissão do /r/ final igualmente se caracteriza como um marca da

Perda da con-cordância ver-bo-nominal na terceira pessoa:

Os doce mais bonito é para as visita.Os doces mais bonitos são para as visitas.

Uso de duplanegação:

Ninguém não sabia de nada.Ninguém sabia de nada.

Orações relati-vas com varian-tes cortadoras ou copiadoras:

A casa que eu morei.A casa que eu morei nela.A casa em que eu morei.

Uso de prono-mes do caso reto como ob-jeto:

Eu vi ele.Eu o vi.

Quanto às diferenças verificadas entre as varie-dades populares e as variedades cultas, também é importante ressaltar que elas não são aleatórias nem desorganizadas, mas são reguladas por uma gramática com regras próprias, variáveis em rela-ção ao padrão culto, mas igualmente legítimas no sistema da língua portuguesa. Conforme ressaltam Ilari e Basso (2006), quando tratamos das varie-dades populares do português brasileiro, estamos diante de outras possibilidades do mesmo código, e não diante de erros ou desvios ocasionados por uma pretensa incapacidade mental ou intelectual de seus falantes.

Um problema sério para a comparação entre va-riedades populares e variedades cultas é que as pri-meiras se verificam quase exclusivamente na fala e não na escrita. Quando encontramos as varieda-des populares, representadas em textos escritos, essa representação ou transcrição inevitavelmente mostra uma tendência, fruto de estereótipos e até de preconceitos, no sentido de caricaturar a fala popular, exagerando suas diferenças em relação à escrita padrão. Confira abaixo um exemplo disso na transcrição de um trecho de entrevista entre pesquisadora e menino de rua. Observe como se transcrevem, respectivamente, a fala da pesquisa-dora e a fala do adolescente.

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23Capítulo 2

Pesquisadora: Você quer contar como os policiais mataram o Adauto?

Menino: Nóis tava dormino lá em casa, às treis hora da manhã, i os PM chegaro, deu um tiro na porta, pegô na perna do “fulano” aí em se-guida ez arrebentô a porta, aí deu oto tiro, pegô na cabeça do Adauto, ez viro que tinha acertado o Adauto. Falaro: “Vamo saí fora que certô o menino aqui”...

O primeiro aspecto a observar é que, na repre-sentação escrita da fala da pesquisadora, repre-sentante das classes escolarizadas, o enunciado segue rigorosamente o padrão ortográfico oficial, ainda que, muito provavelmente, ela não pronun-cie o /r/ final dos verbos quer e contar, seguindo a tendência de grande parte, talvez da maioria, da populaçãobrasileirahoje,independentementedegrau de escolarização. A fala da representante das classes mais favorecidas, portanto, é de certa forma idealizada e aproximada artificialmente do padrão ortográfico convencionalmente estabelecido.

Já na representação da fala do menino de rua, tí-pico representante das classes não escolarizadas e socialmente desfavorecidas, os indícios de variação recebem forte acentuação na transcrição para a es-crita, exagerando em muito a distância entre a fala popular e o padrão culto. Se é verdade que formas como dormino (= dormindo) e oto (= outro) repre-sentam variantes mais ou menos populares, a rigor não existe variação alguma em nóis (= nós) e treis (= três), apesar de que a forma como as palavras estão transcritas levam a essa impressão. Até o fa-lante mais culto do português também pronuncia assim essas palavras, sob pena de parecer pedan-te e artificial caso não pronuncie a semivogal /i/ que, apesar de não existir na escrita, efetivamente faz parte dessas palavras em nossa língua. Obser-ve, portanto, como é difícil e, ao mesmo tempo, importante desenvolver a capacidade de encarar o fenômeno da variação linguística com um olhar livre de preconceitos.

2.4 variação diaméSica

Segundo Bagno (2007), a variação diamésica se verifica na comparação entre a “língua falada” e a “língua escrita” como “meios” de comunicação, tendo a categoria de gênero textual como um con-ceito fundamental. Conforme Ilari e Basso (2006), trata-se de uma dimensão, às vezes, esquecida na

análise da variação, e está relacionada “aos vários veículos e meios de expressão que a língua utiliza” (p. 180).

Na ótica desses autores, a variação diamésica tem a ver primeiramente com as “profundas diferenças que se observam entre a língua falada e a língua es-crita” (p. 181). Uma dessas diferenças diz respeito à avaliação que as pessoas fazem de sua própria fala. Por exemplo, ainda segundo os autores, as pessoas dizem né, ocêis, dissero ou téquinico e pensam que estão dizendo não é, vocês, disseram ou técnico. Em outras palavras, muitos acham que falam da mes-ma forma que escrevem.

Quando se trata de fala e escrita, os equívocos são muitos e há espaço para muita confusão. A propó-sito disso, acabamos de mencionar autores que se referem à “língua escrita” e à “língua falada”. Ora, rigorosamente, não existe língua escrita ou falada, mas apenas língua. Escrita e fala não são tipos ou espécies de língua, como se fossem dois sistemas linguísticos em oposição. Só existe a língua; fala e escrita são formas de representação dessa língua, e não línguas em si mesmas. Acredito que os autores citados concordariam com essa tese, mas a sua for-ma de escrever sobre o assunto deixa margem para confusão.

Fala e escrita, como modalidades de uso da lín-gua, obviamente diferem entre si, mas não em ter-mos dicotômicos, como bem ressaltou Marcuschi (2001). Diferentemente da perspectiva dicotômi-ca ainda advogada por Ilari e Basso (2006), pela qualaescritaseriaplanejadaeafalanãoplaneja-da, Marcuschi chama a atenção para o contínuo dos gêneros textuais em que a relação fala x escrita acontece. Nesse contínuo, podemos encontrar tex-

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Figura 4: Diferenças fala x escrita

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24 Capítulo 2

tos bemplanejados tanto na fala comona escri-ta. Pensemos, por exemplo, num artigo científico (escrita) e num discurso de formatura (fala). Além disso, a relação entre os gêneros textuais na fala e na escrita não é estanque. O discurso de formatu-ra, por exemplo, pode se apoiar em observações escritas, no todo ou em parte.

O fundamental é que a variação não é exclusivi-dade da fala. Tanto a fala como a escrita variam. Parece certo que se pode afirmar a tese de que todo uso da língua, em qualquer nível, gênero ou regis-tro, em princípio está sujeito à variação. Então,sempre que pensamos na fala como variável e na escrita como estabilizada, não variável, na verdade estamos pensando em determinados gêneros pro-totípicos de uma ou outra modalidade e não na fala e na escrita como um todo.

É razoável pensar que um bilhete, embora repre-senteaescrita,estejamuitomaisabertoàvariaçãodo que uma apresentação oral acadêmica (fala). In-versamente, uma conversa informal entre amigos (fala) potencialmente apresentará mais variação que uma ata de condomínio (escrita). Mais uma vez, não se trata de oposição entre fala e escrita, mas de formas diferentes de uso da língua, em di-ferentes contextos sociais, em diferentes níveis de formalidade ou informalidade e em diferentes gê-neros textuais.

Portanto, não só os usos da fala e da escrita apre-sentam características próprias, embora não dico-tômicas, como também os gêneros textuais, dis-tribuídos pelas duas formas de representação da língua, igualmente variam em função de aspectos como domínios discursivos (discurso político, dis-cursojornalístico,discursoreligiosoetc.)eculturasdisciplinares e profissionais (informática, direito, medicina, história, sociologia, linguística etc), en-tre outros. Assim, a linguagem utilizada para es-crever um artigo científico obviamente não será a mesma empregada em bate-papos virtuais.

Como ressaltam Ilari e Basso (2006), os gêneros, além de apresentarem marcas formais peculiares e se guiarem por aspectos convencionais próprios, também podem utilizar a língua de maneira bas-tante específica, caracterizando o que os autores chamam de “sublíngua”. O exemplo dado é o do gênero boletim de ocorrência policial, em que são empregadas expressões como “o carro procedia pela mão de direção” ou “o elemento efetuou disparos contra

a autoridade policial”. De alguma forma, gêneros tipicamente acadêmicos dificilmente são entendi-dos por quem não faz parte da academia, assim comogênerosdodiscursojurídicoraramentesãocompreendidosporquemnãoéadvogadooujuiz.

2.5 variação diafáSica

Conforme Bagno (2007), por variação diafásica de-vemos entender a noção de variação estilística, isto é, “o uso diferenciado que cada indivíduo faz da língua de acordo com o grau de monitoramento” (p. 47) a que se submete ao longo de seu comporta-mento verbal, em diversos contextos interacionais.

Embora menos desenvolvido na literatura, esse ponto é importante por ressaltar o fato de que até mesmo no nível individual não utilizamos a língua sempre da mesma forma. Variamos nos-sos usos de acordo linguísticos com situações de maior ou menor informalidade, de mais ou menos tensão emocional, de maior ou menor intimidade com a situação comunicativa que estamos viven-ciando, entre outros fatores. Para dar um exemplo concreto: há situações em que nos sentimos mais à vontade para falar “Encontrei ele na rua” em vez de “Encontrei-o na rua”.

Isso mostra, adicionalmente, que a própria ocor-rência da variação no nível individual se configura como um aspecto da competência comunicativa que desenvolvemos ao longo da vida, de modo que, como bem ressalta Bagno, “não existe falante de estilo único” (2007, p. 45). A língua varia, inclu-sive no nível individual.

3. variação E prEconcEito: uma rElação pErigoSa

A variação, embora categorizada como diacrôni-ca, diatópica, diastrática, diamésica e diafásica, não se dá a cada vez num desses formatos. Na re-alidade, a variação é simultaneamente tudo isso. Em outras palavras, numa só instância de uso da língua é possível verificar variantes decorrentes de aspectos temporais e geográficos, bem como variantes relacionadas com grau de escolaridade, classe social, modalidade de uso da língua, gêne-ro textual utilizado e contexto de uso em que o falante se encontra.

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25Capítulo 2

A constatação da variação permite desfazer a ilu-são da grande uniformidade da língua portuguesa. Conforme Ilari e Basso (2006), foi na década de 1950 que essa ideia foi construída por estudiosos que comparavam o português brasileiro especial-mente com línguas europeias marcadas por gran-des diferenças dialetais. Diante de certas situações linguísticas que caracterizam países da Europa como Itália, Alemanha, Portugal, França e Espa-nha, o Brasil realmente apresenta uma “unidade surpreendente”, pois todos os brasileiros, de norte a sul, mesmo com todas as diferenças nas varie-dades de língua que praticam, se entendem sem maiores dificuldades.

Bagno (1999) considera a tese da uniformidade como um dos mitos que dão sustentação ao pre-conceito linguístico. Para o autor, essa ideia ficou tão arraigada em nossa cultura que pode ser en-contrada no pensamento de grandes intelectuais brasileiros. Entre estes, Bagno cita o antropólogo DarcyRibeiro,paraquem“osbrasileirossão,hoje,um dos povos mais homogêneos linguística e cul-turalmente e... falam uma mesma língua, sem diale-tos” (p. 15). Como vimos ao longo deste capítulo, isso até pode ser considerado verdadeiro, contanto que não invalidade o fato de que a língua falada no Brasil é enormemente variada e variável, como qualquer outro idioma mundial.

Fechar os olhos para a variação acarreta, na visão de Bagno (1999), a imposição de uma norma lin-guística padrão por parte da escola, como se essa norma fosse a única possível no português, ou como se todos os brasileiros falassem ou tivessem que falar da mesma maneira, independentemente de idade, região, escolaridade, classe social, sexo etc. Na ótica de Ilari e Basso (2006), a ideia de que o português brasileiro é uma língua uniforme pode nos levar a esquecer não só a variação regional, dia-tópica, mas todas as demais formas de variação, as que estudamos neste capítulo e ainda outras pos-síveis. Isso nos levaria, como de fato tem levado a maioria das pessoas, a uma concepção limitada e equivocadadoquesejaalínguaquefalamos.

Um problema maior do que não reconhecer a va-riação e tratá-la como deformação, desvio, vício, crime ou pecado contra a língua. Dessa forma, reedita-se a atitude clássica, inaugurada pelos gre-gos e seguida pelos romanos, de tratar os demais povos e suas línguas maternas como “bárbaros”, implicando, com isso, que se trataria de pessoas

não inteligentes, não civilizadas, verdadeiros selva-gens. Tanto é que o termo bárbaro, que etimologi-camente é apenas uma onomatopeia criada pelos gregos para se referir aos sons linguísticos que não representassempalavrasdasualíngua,atéhojetrazconotações extremamente negativas, ligadas a de-sordem, selvageria e perversidade. Tudo isso com base numa atitude negativa em relação à forma de falar de outras pessoas.

Infelizmente, no português brasileiro, como nou-tras línguas contemporâneas, a atitude negativa em relação à variação linguística também tem se tradu-zido em preconceito social contra as pessoas que não falam “corretamente”. Quase invariavelmen-te, as diferenças linguísticas são atribuídas à falta de estudo (que realmente é um fator importante, mas não absoluto), falta de inteligência (o que é um completo absurdo), peculiaridades étnicas (“pra mim fazer” seria “língua de índio”) e origem regional (“fala de matuto”), entre outros fatores. Esses preconceitos obscurecem a realidade de que a língua toda varia, e não só a língua falada pelas classes menos favorecidas: a variação não é “privi-légio” de pobres, analfabetos, matutos e favelados, mas é um traço dos usos linguísticos de falantes de todas as classes sociais, todos os níveis de escolari-dade, moradores da cidade e do campo, residentes de condomínios fechados e das favelas.

Reconhecer e avaliar adequadamente a variação, portanto, é um caminho seguro para o combate ao preconceito linguístico, que deveria ser uma res-ponsabilidade de todos os brasileiros, assim como todos concordam em combater as demais formas do problema. Ao que parece, como assevera Bagno (1999), a tendência, cada vez mais clara, de lutar contra as mais variadas formas de preconceito so-cial infelizmente não tem atingido o preconceito linguístico. Segundo o autor, muito pelo contrá-rio, “o que vemos é esse preconceito ser alimen-tado diariamente em programas de televisão e de rádio,emcolunasde jornalerevista,emlivrosemanuais... sem falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: a gramática nor-mativa e os livros didáticos” (p. 13). Nesse contex-to, considerando que vivemos numa sociedade democráticaequesedesejajusta,todasasnossasenergias podem e devem ser postas a serviço de uma concepção de língua capaz de combater o pre-conceito e a discriminação motivados pela forma como as pessoas utilizam a língua, esse patrimônio valiosíssimo de todos os brasileiros.

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SAIBA MAIS!

Para aprofundar o conteúdo deste capítulo e ampliar seus conhecimentos sobre o

tema da variação, há muitos e interessantíssimos trabalhos que podem ser lidos. Es-

ses trabalhos compõem desde livros completos a textos de divulgação, postados em

blogs e sites pessoais ou institucionais, e trabalhos científicos disponíveis na Internet,

podendo ser acessados sem maiores dificuldades. Cito apenas uma pequena amostra,

quevocêpodeampliarcombaseemsuaprópria

pesquisa.

• Parasabermaissobreprojetosdeconstruçãode

atlaslinguísticos,quemapeiam

sistematicamente a variação nas diversas regiões brasileiras, veja o site do Projeto

Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) em http://twiki.ufba.br/twiki/bin/view/Alib/We-

bHome.Esseprojeto,conformeosorganizadores,jác

oncluiulevantamentosem

16 estados brasileiros e alcançou 213 localidades em todo o país.

• Para um exemplomaislocalizado e próximo, c

onsulte tambémoblog do pes-

quisador Edmilson Sá, que vem se dedicando, como parte de sua pesquisa de

doutorado, a construir o Atlas Linguísticos de Pernambuco (ALIPE). Os principais

resultados, bem como os municípios pernambucanos que foram objeto de pesqui-

sa, encontram-se em http://alipeedmilsonjsa.blogspot.com/.

• Paraumexemplodepesquisa sociolinguística s

obre variaçãoaliadaàmilitân-

ciaacadêmica,jornalísticaepolíticacontraopre

conceito,vejaositedolinguista

Marcos Bagno, autor do conhecido livro Preconceito linguístico: o que é, como se

faz, em http://marcosbagno.com.br/site/.Alivocêencon

trarámuitostextosinte-

ressantes, publicados em diversos veículos de comunicação.

• Paramaisconteúdos ricose interessantes,veja

tambémositedapesquisadora

StellaBortonidaUniversidadedeBrasília:http://

www.stellabortoni.com.br/.

rESumo

Neste capítulo, nosso objetivo foi tra-çar um panorama abrangente do que seja a variação linguística, primeira-mente mostrando como ela se dá em todos os níveis imagináveis de utiliza-ção do sistema linguístico. Em segui-da, nos dedicamos a definir e exem-plificar uma tipologia bastante geral e abrangente da variação linguística, incluindo a variação diacrônica, dia-tópica, diastrática, diamésica e diafá-sica. Concluímos, refletindo sobre a íntima relação entre a atitude diante da variação e o preconceito contra os usuários dessa língua que inevitavelmente varia, e tem nisso um dos seus aspectos mais fascinantes e belos. Percebemos a importância de compreender esse tema, não só para o aprendizado teórico de uma disciplina, mas para nossa própria formação como cidadãos.

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Figura 5: Gíria como variação

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27Capítulo 2

atividadES |Pesquise na Internet exemplos concretos da disseminação de preconceito linguístico e, consequentemente, de desrespeito à variação linguística conforme exposta neste capítulo: as chamadas “pérolas” dos vestibulares ou do ENEM, cartazes e anúncios “errados” etc. O que você acha dessas coisas? O que significam?

rEfErÊnciaS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por aca-so: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato (orgs). O portu-guês da gente: a língua que estudamos a lín-gua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: ati-vidades de retextualização. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

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29Capítulo 3Capítulo 3

objEtivoS ESpEcíficoS

• Compreenderoconceitodenormalinguística.

• Conhecerostiposdenormasexistentesnalíngua.

• Entenderasorigensdanoçãodenormapadrãonoportuguêsbrasileiro.

introdução

Para a maioria das pessoas, a impressão é que as línguas se organizam de uma única maneira e, portanto, podem ser usadas, na fala e na escrita, de maneira “certa” ou “errada”. Como vimos nos capítulos anteriores, isso não é verdade. Toda língua se constitui emumconjuntodevariedades comdiferenças entresi, cada uma delas podendo ser utilizada de acordo com os contextos sociais de interação. Além disso, cada sociedade acaba definindo uma dessas variedades como preferível em relação às demais, especialmente em contextos formais de interação.

Essa variedade da língua, eleita de forma mais ou menos inconsciente por cri-térios culturais e ideológicos, entre outros, e não por qualidades linguísticas in-trinsecamente superiores às qualidades das demais variedades, passa a regular oficialmente as práticas comunicativas na oralidade e na escrita. Passa também a ser valorizada como superior às demais variedades, sendo eleita como modelo para o ensino e sendo exigida nas situações formais de uso, como nos contextos profissional e acadêmico, por exemplo. Em uma palavra, essa variedade de uso da língua se torna padrão e adquire grande prestígio social, capaz de transferir, em princípio, esse prestígio para os seus usuários.

Esse processo e essa maneira de lidar com as variedades empíricas ou idealizadas da língua envolvem o conceito de norma, que discutiremos neste capítulo. Vere-mos que, na língua portuguesa, como virtualmente em qualquer língua natural, convivem diversas normas linguísticas, ainda que socialmente se dê visibilidade apenas à chamada norma padrão. Examinaremos como esse conceito surgiu e con-solidou-se na sociedade brasileira. Falaremos ainda sobre conceitos como norma culta e norma popular, e perceberemos que esses conceitos são muito mais plurais que podemos imaginar.

norma linguíStica E outraS normaS

Prof. Dr. benedito Gomes bezerraCarga Horária | 15 horas

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30 Capítulo 3

1. afinal, o QuE é norma linguíStica?

De acordo com Ilari e Basso (2006), a busca de uma norma para o português brasileiro foi, ao lon-godahistórianacional,objetodepreocupaçãodediversos autores com propósitos muito diferentes, assumindo três características igualmente diversifi-cadas. Nesse sentido, em nome da mesma palavra norma, procurou-se realizar diferentes objetivos,como mostramos a seguir:

1. A definição de uma norma literária propria-mente brasileira, livre das imposições oriundas de Portugal. No século XIX, um autor brasilei-ro, do período romântico, que muito se empe-nhou em defender “o direito de legislar sobre a língua que falamos” foi o cearense José de Alencar.

2. A elaboração de uma norma para o português escrito culto, representada pela polêmica em torno da construção do texto do Código Ci-vil entre os anos de 1902 e 1907, envolvendo o político Rui Barbosa e o gramático Ernesto Carneiro Ribeiro. A referida polêmica não ver-sava sobre o conteúdo do Código, mas sobre aspectos de sua redação, em que cada um dos lados defendia sua versão como a “certa” e a do outro, como “errada”.

3. A busca de uma norma fonética para o por-tuguês brasileiro, representada por congresso que, na primeira metade do século XX, pro-curavam regulamentar a pronúncia da língua para permitir o seu uso no canto lírico e no teatro. A ideia desses congressistas, entre os quais se encontravam figuras ilustres como os escritores Mário de Andrade e Manuel Bandei-ra, o filólogo Antônio Houaiss e o gramático Celso Cunha, tendia ora para escolher o sota-que de uma determinada região (geralmente o Rio de Janeiro) como norma para o país, ora para fazer uma média entre os sotaques das di-versas regiões.

Nesse último sentido, para você ter uma noção maisexatadoteordessasdiscussões,vejaoquedizMário de Andrade no fragmento abaixo (citado por ILARI e BASSO, 2006, p. 222):

Quem quer que frequente o teatro nacional ficará desagra-davelmente ferido ante a diversidade de pronúncias que

se entrechocam no ar. Essa diversidade deriva em parte de atores estaduanos que, trazendo consigo suas pronúncias regionais e não fazendo nenhum esforço para unificar es-sas pronúncias em benefício e unidade fonética, tornam a obra de arte um mistifório malsoante, irregular de estilo e de sonoridade, muitas vezes, por isso, de penosa compre-ensão para o ouvinte.

Entre todas essas modalidades de norma, a que mais exerceu e exerce influência sobre a socieda-de brasileira é a noção de norma da língua escrita. Esta se afastou muito da linguagem popular em geral, principalmente por se basear nos usos literá-rios e no português europeu.

No entanto, como demonstra Faraco (2008), o conceito de norma surgiu nos estudos linguísticos exatamente com a intenção de captar a heteroge-neidade da língua, e não como meio de eleger e perpetuar uma variedade linguística como legítima em detrimento das demais. Um dos grandes lin-guistas a falar sobre norma, ainda no quadro teó-rico do estruturalismo saussuriano, foi o romeno Eugenio Coseriu, no início da década de 1950.

A dicotomia língua x fala, defendida pelo estru-turalismo, consolidava a concepção da existência de um sistema invariável (a língua) e remetia a va-riabilidade aos usos individuais (a fala), que não interessava à ciência. Coseriu assume a dicotomia como ponto de partida, mas propõe acréscimo do conceito de norma, trocando a dicotomia por uma tricotomia. Assim, sem descartar o conceito saus-suriano de língua, Coseriu entende norma como “cada um dos diferentes modos sociais de realizar os grandes esquemas de relações do sistema”, con-forme explica Faraco (2008, p. 36).

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Figura 1: Norma linguística

Norma linguística, portanto, não se refere ao que é possível dizer numa língua, e sim ao que efetiva-mente se diz num determinado grupo ou comu-

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31Capítulo 3

nidadesdefalantes.Normaéoconjuntodeusos“normais” para uma determinada comunidade linguística. O mesmo sistema linguístico (língua) pode dar origens a diferentes normas linguísticas, de acordo com os diferentes grupos sociais forma-dos por seus falantes.

Segundo Faraco (2008, p. 37), podemos definir normacomo“determinadoconjuntode fenôme-nos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sin-táticos e lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada comunidade de fala”. Perce-bemos, portanto, que norma aqui não é sinônimo de regra ou regulamento, mas de “normalidade”, de uso costumeiro numa determinada comunida-dede fala.Veja,portanto,queos linguistasdefi-nem norma de maneira totalmente diferente do senso comum e das diversas vozes sociais que re-presentam a gramática normativa ou tradicional.

Um aspecto fundamental no conceito de norma lin-guística é que toda norma é organizada e coerente. Não existem normas linguísticas caóticas, sem regras ou sem gramática. Observe os enunciados abaixo.

As casas são grandes e bonitas.As casa são grande e bonita.As casa é grande e bonita.

Dependendo da norma linguística vigente, ou ain-da, dependendo das condições sociais do falante, qualquer uma das três formas é possível no portu-guês brasileiro. Nenhuma delas contraria a estrutu-ra (o sistema) de nossa língua. No entanto, não é possível dizer *A casas são bonitas ou *Casas bonitas as são. Essas construções não são produzidas por nenhum falante de língua portuguesa, pois a gra-mática da língua não as permite. Observe ainda que não se trata de algo que se aprende na escola. Nenhumapessoa,mesmoanalfabeta,jamaisfalaráqualquer uma dessas frases. O conceito de norma, portanto, compreende apenas conjuntos de usosque são possíveis na estrutura da língua e no inte-rior dos diversos grupos sociais.

Faraco (2008) ainda destaca que o conceito de nor-ma linguística põe sob suspeita a própria noção de erro, tão cara à tradição escolar e normativa brasi-leira. Não seria possível tratar como “errada” uma construção como As casa são bonita, mas apenas reconhecer que ela representa uma norma diver-gente da norma padrão. Julgar “errada” uma frase assim significa aplicar os critérios de uma norma

(padrão) para avaliar outra norma (popular). Efe-tivamente não se trata de erro, mas de diferença ou diversidade de usos, e um deles passa a ser criticado com base em uma lógica que nada tem de linguística: as casa são bonita não tem o mesmo prestígio social que as casas são bonitas, embora isso nada tenha a ver com certo e errado, bonito ou feio. O critério de certo e errado é arbitrário, pois escolhe, entre duas formas igualmente permitidas pelo sistema, uma que “pode” e outra que “não pode” ser dita.

O que existem, como se pode notar, são normas e não uma norma de uso da língua. Cada comuni-dadepossui suas própriasnormas.Eo conjuntodessas normas confere à língua portuguesa a sua heterogeneidade e diversidade. O fato de que um falante gaúcho diz tu vai, enquanto um pernambu-cano fala você vai não significa que um fala “mais bonito” que o outro, ou que um fala “certo” e o outro, “errado”. Gaúchos e pernambucanos falam de forma diferente, e isso constitui um aspecto da riqueza do fenômeno linguístico. Ambos, apesar de se expressarem de forma diferente, se reconhe-cem como falantes legítimos da mesma língua por-tuguesa, e não de línguas diferentes.

2. norma culta, norma padrão E outraS normaS

Se é verdade que, no interior da língua portu-guesa, o que existem são normas linguísticas, e

em vez de uma única norma padrão válida para todos os falantes, que normas são essas?

Como entender expressões como “norma culta”, “norma padrão” ou “norma popular”?

A definição desses termos não é nada fácil nem pa-cífica. O que se sabe, como destaca Faraco (2008, p. 46), é que pares dicotômicos como português cul-to x português popular ou português padrão x português não padrão são incapazes de descrever a complexi-dade dos fatos linguísticos. São apenas simplifica-ções usadas para descrever o fenômeno linguísti-co de forma geral. Igualmente inútil e incorreto é identificar o “português formal” com a escrita e o “português informal” com a fala. Sabendo que se trata de uma realidade complexa, a seguir vamos nos dedicar a uma tentativa de esclarecer a questão.

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32 Capítulo 3

a. O que é mesmo norma culta?

Uma primeira e necessária constatação é que a expressão “norma culta” é inadequada e extrema-mente ambígua, pois presume que as outras nor-mas podem ser consideradas “incultas”, além de absolutizar e uniformizar o adjetivo “culto”. Sóhaveria uma forma de ser culto; os demais seriam incultos. A realidade linguística mostra que há di-versas normas cultas, e não apenas uma.

De modo geral, para os linguistas, norma culta se refere ao conjunto de usos reais da língua por falan-tes privilegiados que podem, por critérios objeti-vamente estabelecidos, ser considerados “cultos”. Tradicionalmente, sociolinguistas admitem, para fins de pesquisa, que um indivíduo culto é aquele que possui nível superior completo.

Faraco (2008) ainda aponta três sentidos em que a expressão norma culta foi utilizada pelo senso comum. Em primeiro lugar, usou-se norma culta para evitar o uso da palavra gramática, especialmen-te para se referir ao ensino de língua portuguesa: ensinava-se “norma culta” e não a “gramática”, pa-lavra que se tornou um tanto suspeita de formalis-mo. Em segundo lugar, a expressão norma culta foiusadatambémparadesignar“oconjuntodospreceitos da velha tradição excessivamente conser-vadora e pseudopurista” (FARACO, 2008, p. 26). Por último, usou-se a expressão norma culta como sinônimo de “língua escrita”: “dominar” a norma culta seria dominar a língua escrita.

A essa altura, você poderia perguntar: o que é mesmo a norma culta, afinal?

Pararespondera isso,os linguistasnãotêmhojeuma resposta simples, mas, em geral, todos concor-dam em utilizar os parâmetros estabelecidos pela pesquisadora Stella Maris Bortoni-Ricardo (http://www.stellabortoni.com.br/), da Universidade de Brasília. Conforme essa estudiosa, a diversidade da língua portuguesa no Brasil e, consequentemente, a definição de norma culta, deve ser observada de acordo com as seguintes relações de continuidade que se entrecruzam:

• Ocontinuum rural-urbano.

• Ocontinuum oralidade-letramento.

• Ocontinuum da monitoração estilística (estilo mais monitorado-menos monitorado).

Assim, a norma culta seria, entre outras coisas, a “variedade de uso corrente entre falantes ur-banos com escolaridade superior completa, em situações monitoradas” (FARACO, 2008, p. 49). Essencialmente, seria a variedade de uso desses falantes fazendo uso da escrita em situação for-mal. Daí se infere também que um mesmo falan-te não usa o mesmo padrão culto o tempo todo. Depende de com quem está falando, para quem está escrevendo, onde está falando ou escrevendo etc. Ressalte-se que a parcela da população brasi-leira que se enquadra nesse critério não chega a dez por cento de todos os brasileiros. A norma culta é apenas uma das variedades da língua e, mesmo assim, não é única e uniforme, mas diver-sa e multifacetada.

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Figura 2: Futuro homem culto

No entanto, para aqueles que se pautam pela gra-mática normativa, norma culta é o modelo idea-lizado de “língua certa” que é imposto a todos os falantes e não se caracteriza como variedade lin-guística de nenhum grupo social. Equivale ao que os linguistas chamam de norma padrão.

A norma culta é, na verdade, um conceito plural. Não existe uma só norma culta, mas diversas nor-mas cultas. Na opinião de Faraco (2008), a con-fusão reinante sobre o termo é resultado do fato de que ele “pulou os muros da universidade e se tornou muito frequente no discurso da mídia e da escola” (p. 23). Assim, a confusão mais frequen-te é tomar norma culta como sinônimo de norma padrão. Outro problema é entender norma culta como a norma prescrita por gramáticas e dicioná-rios, que deveriam se chamar, conforme Faraco (2008), de norma gramtical, até considerando que as pessoas cultas fazem uso da língua muitas vezes de forma não abonada por essa norma.

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33Capítulo 3

b. Norma culta ou norma “curta”? uma concepção de norma que reduz a língua a um padrão artificial, idealizado, que se tenta impor a todos os falantes como o único uso possível.

Caracterizando mais detalhadamente a “norma curta”, Faraco (2008, p. 94) a define como “um conjunto de preceitos dogmáticos que não en-contram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um estudo adequado de nossa norma culta/comum/standard”. Nesse sentido, a norma curta é represen-tada pelos consultórios gramaticais ligados à mídia (“comandos paragramaticais”, no dizer de Bagno), pelosmanuaisdeestilodosgrandesjornaiseporcursinhos pré-vestibulares, entre outros. Caracte-rística da norma curta é uma atitude “mais realista queo rei”,ou seja,umaposturanormativamaisrígida que a própria gramática normativa. Em ge-ral, seus atores são profissionais de outras áreas do saber que, por alguma razão, se tornam “especialis-tas” em língua portuguesa.

A norma curta, entendida como “a miséria da gramática” (FARACO, 2008), representa um con-juntodepreceitosextremamenterigorososesembase nas boas gramáticas normativas e nos bons dicionários da língua. Segundo Faraco (2008), essa norma curta é “o reino da inflexibilidade, das afir-mações categóricas, do certo e do errado tomados em sentido absoluto. A norma curta é o mundo das condenações raivosas, das rabulices gramati-cais” (p. 95). Um exemplo muito claro disso foi a recente polêmica levantada na mídia sobre um livro didático que pretensamente estaria ensinan-do os alunos a “falar errado”, quando o livro nada mais fazia que apresentar o tema da variação lin-guística conforme estabelecem os PCNs de língua portuguesa.

A norma “curta” relaciona-se diretamente com o conceito de norma padrão.

c. Norma culta e norma padrão

A tentativa de construção de um padrão linguís-tico para as línguas resulta, em parte, do próprio processo histórico de constituição da autonomia e independência dos Estados contemporâneos. A adoção de uma norma padrão cumpre a função de desautorizar aspirações regionais por independên-cia, negando aos grupos dissidentes a legitimidade do ponto de vista da diversidade linguística. Em

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Figura 3: Norma “curta”

Quando se trata dos usos da língua, o discurso purista predomina na sociedade brasileira. Esse discurso impõe uma série de restrições aos usos legítimos dos falantes em nome da “norma culta”. Por isso, Faraco (2008) ironicamente rotula essa atitude como “norma curta”. A norma “curta” é opressiva por se basear em proibições e restrições sobre o que se pode falar e o que não se pode fa-lar. Em geral, trata-se de discutir detalhes insigni-ficantes como se fossem questões extremamente centrais e determinantes para o futuro da língua e de seus falantes. Faraco (2008) dá o seguinte exem-plo: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2007, ao fazer uma crítica indireta e irônica à linguagem do então presidente Lula, afirmou que o Brasil queria ter “dirigentes melhor educados”.

Fazendo o feitiço virar contra o feiticeiro, a mídia criticou FHC por não usar a forma “culta” “mais bem educados”. Segundo as interpretações, FHC cometeu um “erro” de português. A norma “cur-ta” consiste exatamente nisso. Não devia haver ne-nhum problema em reconhecer a forma usada por FHC como uma forma culta. Se o ex-presidente cometeu um erro, foi o erro de ser preconceituoso em relação ao falar “inculto” de Lula como repre-sentante das classes populares.

A “norma culta”, portanto, se torna norma “curta” quando se apresenta como uma norma “que ape-quena a língua, que encurta sua riqueza, que não percebe (por conveniência ou ignorância?) que o uso culto tem abundância de formas alternativas e não se reduz a preceitos estreitos e rígidos” (FA-RACO, 2008, p. 66). O conceito, embora irônico, serve bem para chamar a atenção para a miopia de

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34 Capítulo 3

todos os casos, a norma padrão se baseia numa varie-dade linguística tomada como ideal, mas geralmen-te abstraída dos usos das elites dominantes. Desde o início, a norma padrão se afasta dos usos reais e se codifica em gramáticas e dicionários da língua quando se refere a usos, ou os toma da literatura, como se esta fosse modelo para a linguagem coti-diana, ou de usos arcaicos ou adotados do portu-guês europeu.

Segundo Faraco (2008), o português europeu ado-tado foi a variedade literária representada pelo romantismo, que se oferecia como modelo para a produçãoescritadosbrasileiros.Hojesesabequeessa atitude representava uma violência simbólica em vários níveis. Primeiro, por tomar a linguagem literária como modelo para a linguagem em geral. Segundo, por tomar a linguagem literária de outro país, outro contexto, como modelo para a língua portuguesa em nosso país. Terceiro, e consequen-temente, por deixar de fora a fala e a escrita pro-priamente brasileiras.

Em sua origem, a construção da norma padrão brasi-leira, ao contrário da norma de outros países, não ocorria como oposição a uma situação de dialeta-ção. A língua portuguesa no Brasil, de certa forma, sempre foi “admiravelmente uniforme”. Apesar das diferenças regionais, as pessoas se entendem na mesma língua do norte ao sul do país. Também nãosetratavadeunificaropaís,poisestejáestavaunificadodesdeaindependência.Ograndeobje-tivo do surgimento da norma padrão brasileira foi combater a linguagem popular (esse foco se man-témclaramentehoje),entendidapejorativamentecomo “língua de índios”, “língua de negros” ou “língua de matutos”.

Na concepção de Faraco (2008), os usuários do por-tuguêsbrasileironãoprecisammais,seéquejápre-cisaram, de uma norma padrão, pois as variedades cultas não correm nenhum risco de desaparecimen-to ou descaracterização. Segundo Bagno (2007), deveríamos inclusive evitar até mesmo o termo norma culta, preferindo falar de variedades prestigia-das (que normalmente são variedades ou normas cultas) e variedades estigmatizadas (em geral, associa-das às classes populares, a faixas etárias como a dos adolescentes ou a grupos sociais como os caipiras e os analfabetos). A existência de variedades estigma-tizadas se deve exatamente, entre outros fatores, à ação da norma “curta”, que relega as variedades divergentes ao desprezo e à desvalorização social.

d. Norma culta ou norma “oculta”?

Em um interessante livrinho publicado em 2003, A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira, Marcos Bagno surpreende seu público ao afirmar que “não existe preconceito linguístico”. Como se diz no livro e em texto no site do autor (http://marcosbagno.com.br), cujo conteúdo seguimosde perto nesta exposição, esta é a frase que mui-tos gostariam de ler, especialmente se es-tampada num texto do autor da conhe-cida obra intitulada Preconceito linguístico. Será que Marcos Bagno, nesse livro, estava se contradi-zendo? Como diz o texto no site, “vamos com calma, vamos por partes”: Fazendo um trocadilho com o termo norma culta (comoFaraco já tinha feitoaousarnorma curta), Bagno (2003) usa norma oculta para aprofundar o estudo das relações entre língua e poder no Brasil e avança para a afirmação de que o preconceito linguístico na sociedade brasileira é, na verdade, um profundo e entranhado preconceito social. Portanto, não existe preconceito linguístico, mas preconceito social.

Conforme a sinopse do livro disponível no site, Bagno lança um olhar inquiridor sobre a história da constituição das línguas para desvendar nossa realidade sociolinguística. O olhar do autor sobre a história se funde com uma apurada pesquisa so-ciolinguísticaecomacríticacorajosadoconceitode “erro de português”, sempre aplicado com ri-gor, mas segundo critérios bem relativos, por aque-les que se consideram sacerdotes da classe letrada, incumbida de defender a pureza estática da língua (defensores da “norma curta”, diria Faraco).

Particularmente, Bagno discute, em A norma oculta, asreaçõesdejornalistaseintelectuaisdaimpren-sa nacional ao modo de se expressar do primeiro operário nordestino eleito para a presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva. É ilustrativo enxergar, seguindo a análise do autor, o peso do preconceito social travestido de aniquilamento da língua do outro, quando não se enxerga este outro como interlocutor válido.

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Figura 4: Norma oculta

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35Capítulo 3

Interessante, na análise de Bagno, é a confirmação da futilidade da crença em uma norma padrão que seria pretensamente “dominada” e utilizada por certos usuários privilegiados da língua, entre os quais se contam os intelectuais sempre prontos a apontar “atentados contra a língua” na fala de nordestinos, caipiras e analfabetos, ao mostrar que esses intelectuais, no momento mesmo em que criticam os “erros” dos outros, também cometem infrações contra a norma que pretendem defender. Vejamosumexemplo:

Primeiramente,leiaotextodajornalistaDoraKra-mer, do Jornal do Brasil, criticando a linguagem “errada” de Lula:

“Dúvida pertinente: até quando será considerado politica-mente correto ignorar que o presidente eleito do Brasil co-mete crassos e constantes erros de português? [...] daqui a pouco será preciso rever os currículos das escolas do ensino básico, a fim de adaptar as lições sobre plural e concordân-

cia [...]” (JB, 10/11/2002).

Agora,vejaessetrechoescritopelajornalista,ondeem poucas linhas ela comete, aplicando a sua es-crita os mesmos critérios normativos que ela usa parajulgarLula,umerroderegência(“haviareceiocom” em vez de “havia receio de”) e um erro de concordância (“vir a público gravações” em vez de “virem a público gravações”):

“Havia receio entre os petistas reunidos sábado passado, no Parque do Anhembi em São Paulo, com a possibilidade de vir a público gravações resultantes de grampos em tele-fones de altas figuras do partido” (JB, 03/07/2002).

Usando esse tipo de “feitiço contra o feiticeiro”, Bagno procura desvendar o jogo ideológico portrás da defesa de um conjunto padronizado de

regras linguísticas e, dessa forma, retira o disfarce linguístico de uma discriminação que é, de fato, so-cial, ao demonstrar que a própria negação da exis-tência do preconceito linguístico é a prova mais que eloquente de que as coisas não podem con-tinuar como estão, se desejamos uma sociedadejustainclusivedopontodevistadousodalíngua.

A norma culta, portanto, é uma norma oculta in-clusiveporocultaressejogosocialdediscrimina-ção e dominação por meio dos usos linguísticos. Para entender verdadeiramente a nossa língua, temos de assumir a concretude histórica, cultural, a condição de atividade social dessa língua, enten-dendo que ela está sempre sujeita às circunstân-cias, às instabilidades, às flutuações de sentido, à própria opacidade e variabilidade da experiência humana.

Trata-se aqui, mais uma vez, de expor e de reafirmar as bases do imperativo de incorporar à educação em língua materna uma concepção dinâmica que nos leve a abandonar a inútil busca de estabilidade e de homogeneidade, típicas do modo tradicional e redutor de encarar as relações dos seres humanos entre si e consigo mesmos por meio da linguagem.

A história das línguas e das sociedades nos reve-la que, para haver alguma mudança nos conceitos de língua “certa” e língua “errada”, é preciso que tambémhaja,aomesmotempo,umagrandeera-dical transformação das relações sociais. No campo linguístico, conforme sugere o autor, uma transfor-mação significativa seria o reconhecimento de uma gramáticadoportuguêsbrasileiro,cujoscontornosdefatojávêmsendopreparadorporpesquisadoresquehábemmaisdetrintaanosestãoengajadosnainvestigação criteriosa da nossa realidade linguística.

rESumo

Neste capítulo, nosso objetivo foi discutir o conceito de norma, entendendo que sua defini-ção passa pelo esclarecimento de diversos equívocos comuns na maneira como a maioria das pessoas utiliza o termo. Vimos que, para os linguistas, norma é um conjunto de usos regulares típicos de um dado grupo social. No português brasileiro, como em qualquer língua, o que existe é uma diversidade de normas linguísticas, e não uma norma única que pudesse ser imposta a todos os falantes. Discutimos as particularidades do termo norma cul-ta como norma social efetivamente utilizada por usuários cultos, diferenciando-o de norma padrão como variedade idealizada que não corresponde aos usos de nenhum grupo social e que é imposta como regra para todos os usuários da língua. Numa crítica a essa visão estreita e ideológica dos usos da língua, representada pela norma padrão, discutimos ainda os conceitos de norma “curta” (Faraco) e norma “oculta” (Bagno).

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36 Capítulo 3

atividadES |Embora o ensino da variação linguística sejaindicado pelos Parâmetros Curriculares Na-cionais para a língua portuguesa, será que os livros didáticos de português têm incluído esse conteúdo entre suas preocupações? Uma boa pesquisa poderia ser feita sobre isso examinan-do-se diferentes exemplares de livros didáticos utilizados em nossas escolas. Você gostaria de fazer uma pequena experiência nesse sentido?

• Escolhaumlivrodidáticodeportuguêsdesuapreferência,queestejasendousadoatual-mente em alguma escola que você conhece ou em que trabalha.

• Examineolivro,procurandosaberseelemenciona temas como variação linguística, nor-ma culta, norma popular, preconceito linguístico etc.

• Sevocêlocalizouessestemas,oupartede-les, será que o livro os trata de forma adequa-da, considerando a variação como um aspecto natural da língua, ou os enfoca preconceituo-samente, privilegiando a norma padrão como única possibilidade de uso?

SAIBA MAIS!

Para saber mais sobre os assuntos aqui

tratados, bem como para acompanhar

discussõessempreatualizadassobreate-

mática da variação linguística e do ensino,

sugiro a consulta aos sites dos seguintes

pesquisadores.

• Marcos Bagno, autor de Preconceito

linguístico e diversos outros livros e

artigos científicos sobre língua e va-

riação, professor daUniversidadede

Brasília (UnB) - http://marcosbagno.

com.br/.

• Stella Maris Bortoni-Ricardo, autora

de Nós cheguemu na escola, e agora?

epesquisadoradaUnB-http://www.

stellabortoni.com.br/.

rEfErÊnciaS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por aca-so: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua & po-der na sociedade brasileira. – São Paulo: Pará-bola Editorial, 2003.

BORTONI-RICADO, Stella Maris. Nós chegue-mu na escola, e agora? sociolinguística & edu-cação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasilei-ra: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato (orgs). O portu-guês da gente: a língua que estudamos a lín-gua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.

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37Capítulo 4Capítulo 4

objEtivoS ESpEcíficoS

• Compreenderasimplicaçõespedagógicasdavariaçãolinguística.

• Refletirsobreaslimitaçõesdoensinodavariaçãolinguísticanaatualidade.

• Entenderaslinhasgeraisdeumapedagogiadavariaçãolinguística.

introdução

Ao longo dos capítulos anteriores, aprendemos como surgiu a sociolinguística e refletimos sobre os conceitos de variação e de norma linguística. O conhecimen-to produzido pelas pesquisas realizadas nessa área teve implicações para a política de ensino da língua portuguesa no Brasil. A partir de 1965, linguistas como AryonRodriguesjárefletiamsobreas“tarefasdalinguísticanoBrasil”,incluin-do nessas reflexões uma preocupação com os aspectos sociolinguísticos em vez de se concentrar apenas nos aspectos estruturais da língua.

Hoje,otemadavariaçãolinguísticajáé,paraobemouparaomal,bastanteco-nhecido quando se trata de pensar o ensino da língua portuguesa. Compreende-se quenãobastapreocupar-secomolinguístico(ouseja,comoensinoexclusivodaestrutura da língua), pois o sociolinguístico (as relações entre língua e sociedade) representa para o ensino, segundo Faraco (2008, p. 167), o desafio de “ampliar a mobilidade so-ciolinguística do falante (garantir-lhe um trânsito amplo e autônomo pela heterogeneidade linguística em que vive) e não con-centrar-se apenas no estudo de um objeto autônomo edespregado das prá-ticas socioverbais (o estrutural em si)”.

por uma pEdagogia da variação linguíStica

Prof. Dr. benedito Gomes bezerraCarga Horária | 15 horas

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38 Capítulo 4

Neste capítulo, procuraremos entender as impli-cações do estudo da variação para o ensino, en-quanto pensamos o que seria uma pedagogia da variação linguística e que limitações essa pedagogia enfrenta na atualidade1.

1. implicaçõES do EStudo da variação linguíStica

Como temos visto, entre os diversos ramos da lin-guística contemporânea, a sociolinguística tem se destacado por oferecer uma concepção de língua que alcançou certa visibilidade na mídia e em ou-tros fóruns de debate, particularmente por se opor com muita clareza à noção tradicional de uma lín-gua “admiravelmente unificada” de norte a sul do país, como se as pessoas falassem e escrevessem da mesma forma nas diversas regiões, sem variações relativas também à faixa etária, nível de escolariza-ção, situação de comunicação e outras.

No contexto brasileiro, coube à sociolinguística mostrar que a língua portuguesa, apesar de ser o idioma nacional, falado, escrito e compreendido em todo o país, não é nem poderia ser isento de variação, obedecendo a um pretenso padrão váli-do para todas as situações. O português brasileiro, como todas as línguas existentes, é uma entidade complexaesujeitaàvariaçãoemmúltiploscontex-tos de uso. Esse fato, longe de ser algo negativo, faz parte da riqueza da língua, capaz de se adaptar às múltiplas demandas de seus usuários nas diversas situações da vida.

Como falantes proficientes de nossa língua, exe-cutamos de formas bastante diferentes uma ação trivial como pedir um copo d’água, dependendo apenas de a quem estamos pedindo. Por exemplo, uma coisa é pedir água ao nosso irmão mais novo; outra coisa, muito diferente, é pedir a mesma coi-sa a uma pessoa totalmente desconhecida, numa terra desconhecida. A ação é a mesma, mas as es-tratégias linguísticas e discursivas mudam. Em ter-mos muito simples: tudo indica que não usaremos a mesma frase nem a mesma entonação de voz em ambos os casos, embora o sentido do que falamos sejaomesmo.

Com base nessa compreensão, os Parâmetros Cur-riculares Nacionais (PCNs) para o ensino de língua portuguesa também se posicionam com muita cla-reza. Na avaliação de Marcuschi (2008), com a qual concordo integralmente, os PCNs acertadamente adotam uma postura crítica em relação ao precon-ceito socialmente arraigado que defende a identi-ficação da fala de uma dada região como a língua “certa”. Corretamente, os PCNs reconhecem que nenhuma região detém uma fala “mais correta” ou “mais bonita”, apesar das noções folclóricas que existem nesse assunto. Por exemplo, como lembra Bagno (1999), um mito comum é aquele que con-sidera o português falado no Maranhão “o mais correto do Brasil”.

Assim, os PCNEM (para o ensino médio) ressal-tam a grande importância do tema da variação lin-guística no ensino de língua portuguesa. Falando do desenvolvimento de competências no aluno, o documento afirma que

“entre os procedimentos relativos ao desenvolvimento da competência gramatical, convém ressaltar aqueles que dizem

respeito à variação linguística” (p. 82, itálicos meus).

Não fazer isso, no ensino de língua portuguesa, é negar aos alunos um conhecimento mais exato e realista de sua língua, além de contribuir para desvalorizar as variedades mais populares de fala e escrita em português, que serão esquecidas em favor da “norma culta”.

A propósito disso, segundo os PCNs, o desenvolvi-mento das competências gramatical e interacional pressupõe que “a partir da observação da variação linguística”, os professores compreendam os valo-res sociais nela implicados e, consequentemente, estejamprontosparaajudarasuperar“oprecon-ceito contra os falares populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos”. Perce-bemos, assim, que é dever do professor “aplicar os conhecimentos relativos à variação linguística e às diferenças entre oralidade e escrita na produção de textos” (PCNEM, p. 82). Como você pode perce-ber, os PCNs dão uma grande ênfase à questão da variação linguística, sem a qual o ensino de língua portuguesa tem sido incompleto e não tem contri-buído para a igualdade social.

1 Já falamos um pouco disso no capítulo 4 do livro de Linguística II.

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39Capítulo 4

Fundamental, e em grande parte por causa da apli-cação da linguística ao ensino, é o reconhecimento de que “em nosso país convive uma enorme varie-dade linguística, determinada por regiões, idades, lugares sociais, entre outros”. Consequentemente, os alunos não podem ser expostos apenas ao ensino da gramática e suas regras e a exercícios que enfati-zam as noções de certo e errado, pois estas, segun-do os PCNs, “tão típicas da abordagem normativa ou prescritiva, cederiam espaço para as noções de adequação ou inadequação em virtude das situ-ações comunicativas de que o falante participa”.

Esse é, portanto, o tipo de ensino para o qual o professor de língua portuguesa deve estar prepara-do, pois “é papel da escola lidar de forma produti-va com a variedade linguística de sua clientela, sem perder de vista a valorização da variante linguísti-ca que cada aluno traz consigo para a escola e a importância de se oferecer a esse aluno o acesso à norma padrão” (PCNEM, p. 82).

É certo que há muitos desafios a superar nessa apli-cação da sociolinguística, por meio do conceito de variação, ao ensino. Logo surgem as dificuldades. Uma delas, apontada por Marcuschi (2008), é que os PCNs não têm uma resposta clara para o profes-sor que se pergunta:

“Então o que faço com o meu alunoque diz ‘nós vai’?”

Novamente, a concepção da linguística está muito bem expressa nos PCNs, quando lembram: “Não é porque a escola deva acolher as variedades linguís-ticas de seus estudantes, para posteriormente rea-lizar atividades de linguagem em torno delas, que o professor deva se eximir de conhecer muito bem o padrão culto da língua e as bases da gramática normativa” (PCNEM, p. 86).

Quer dizer, a questão não é excluir a norma culta do ensino de língua portuguesa, mas negar-lhe o privilégio de ser a única variedade digna de aten-ção por parte de professores e alunos: “A norma culta, considerada com uma das variedades de maior prestígio quando se trata de avaliar a compe-tência interativa dos usuários de uma língua, deve ter lugar garantido na escola, mas não pode ser a única privilegiada no processo de conhecimento linguístico proporcionado ao aluno” (p. 76).

Os PCNs, portanto, concluem pela necessidade de aplicar o conhecimento e a contribuição da socio-linguística ao ensino: “O conhecimento de alguns conceitos de sociolinguística é essencial para que nossos alunos não criem ou alimentem preconcei-tos em relação aos falares diversos que compõem o espectro do português utilizado no Brasil” (p. 27).

2. uma pEdagogia da variação linguíStica

A preocupação com a variação linguística no en-sino de língua portuguesa tem se refletido de di-ferentes formas. Um modelo clássico foi proposto por Magda Soares (1986) e ficou conhecido como a perspectiva do bidialetalismo. O aluno, especial-mente se proveniente das classes populares, ao in-gressar na escola, chegava falando um dialeto so-cial incompatível com a norma culta. O papel da escola seria ensinar ao aluno o dialeto social culto sem reprimir ou condenar o dialeto popular. Isso representava um grande avanço em relação à esco-la tradicional, que não reconhecia nenhum valor nas normas populares, e sim as considerava global-mente “erradas”.

De toda forma, a perspectiva do bidialetalismo re-presentava uma simplificação da realidade linguís-tica brasileira, como se os usos da língua pudessem ser subdivididos de maneira simples e inequívoca em cultos e não cultos ou populares. Já vimos que

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Figura 2: Ensino da variação

A conclusão, evidentemente equivocada, a que muitos chegam é que agora “vale tudo” no ensino de língua portuguesa. “Não vamos mais corrigir nossos alunos, pois o que importa é que ele consi-ga se comunicar.” Apesar de muito comum, essa é uma péssima forma de entender a linguística. Na verdade, é uma distorção da linguística, que nunca afirmou nem defendeu tais coisas.

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40 Capítulo 4

não é assim. A noção do bidialetalismo, portanto, hojeseencontrasuperadanasociolinguística.

Para se apreender a complexidade da variação, a distribuição social e a complexa inter-relação entre as variedades, considera-se mais apropria-da a noção de continuum. Significa dizer que não há apenas uma norma culta ou uma norma po-pular, mas normas diversas e inter-relacionadas, variando inclusive no uso que delas é feito por um mesmo falante em situações comunicativas diferenciadas.

Que aspectos deveriam ser incluídos numa pedagogia da variação linguística?

Conforme Oliveira e Wilson (2008),

“a observação e análise de distintos usos linguísticos – comoasgírias,osjargõesprofissionais,asmarcasdialetaisdas diversas regiões brasileiras, entre outras manifestações – relacionando esses usos com os fatores sociais que cer-cam os grupos que assim se expressam” (p. 238).

Numa pedagogia da variação linguística, a norma culta passaria a ser vista como mais uma variedade de uso, uma dentre as várias disponíveis na língua portuguesa, cujo prestígio não deriva de algumaqualidade intrínseca, como se o falar culto urbano fosse superior ao falar matuto, não escolarizado, por exemplo, mas de fatores sociais, políticos e eco-nômicos, entre outros. O domínio dessa variedade culta deve ser cultivado como um direito dos alu-nos, direito de aprender “uma prática necessária à ocupação dos postos de prestígio, uma ferramenta capaz de concorrer para a ascensão a lugares de maior visibilidade e mérito social” (OLIVEIRA e WILSON, 2008, p. 238).

Numa pedagogia da variação linguística, as formas de expressão trazidas para a escola pelos alunos, ainda que contrariem o padrão culto, não serão objetodediscriminação,masservirãocomopontode partida para o trabalho do professor. As formas linguísticas, específicas dos alunos das classes po-pulares, por exemplo, à luz da ciência linguística, não deverão ser vistas como menos eficientes ou linguisticamente inferiores. Devem ser encaradas apenas como diferentes, mas igualmente integran-tes do patrimônio vivo da língua portuguesa.

Sobre o ensino da norma padrão, não há dúvida dequeessesejaopapeldaescola,pois,comoafir-

ma Bagno (2001), só se pode ensinar algo que o aluno ainda não conhece. E a norma padrão, não sendo língua materna de ninguém, realmente pre-cisa ser ensinada para que o aluno tenha meios de se inserir nos eventos sociais e de letramento em que essa modalidade de uso da língua é requerida. É importante ainda que esse ensino seja crítico,podendo questionar a própria legitimidade da norma padrão em situações nas quais ela contraria frontalmente os usos espontâneos da língua portu-guesa contemporânea.

De acordo com Faraco (2008), entre as contribui-ções trazidas pela intervenção dos linguistas, no de-bate sobre o ensino da língua portuguesa, está um considerável avanço na pedagogia da leitura, par-ticularmente pela ampliação do leque de gêneros textuais que se propõe aos alunos. Em se conside-rando a importância da leitura de textos literários, compreende-se que o aluno precisa travar contato com diversos outros gêneros que serão relevantes para a organização da vida social, incluindo-se aí ostextosjornalísticos,dedivulgaçãocientífica,hu-morísticos etc.

Faraco (2008) também vê progressos no ensino de produção textual, advindos igualmente da nova concepção de gêneros textuais e da neces-sidade de ensinar uma diversidade deles. Além duma ampliação em relação ao ensino da “reda-ção”, despertou-se também para a importância de que a produção escrita se dê num contexto real de comunicação e que aconteça como um processo, não se valorizando apenas o texto como produto final.

No entanto, para Faraco (2008), ainda não se sabe bem o que fazer com a variação linguística, ou como incorporá-la ao ensino de forma efetiva. Vejamosumpoucomaissobreisso.

3. problEmaS no tratamEnto da variação linguíStica

Apesar dos avanços em reconhecer e utilizar a no-ção de variação linguística no ensino de língua por-tuguesa, alguns problemas são recorrentes. Segun-do Faraco (2008), o fenômeno da variação ainda é abordado de forma marginal e descuidada nos livros didáticos de língua portuguesa.

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41Capítulo 4

Primeiro, em geral, a tendência dos manuais didá-ticos e, consequentemente, dos professores é eleger como exemplos para a variação linguística a fala de pessoas analfabetas, oriundas do meio rural e, frequentemente, da região Nordeste do Brasil (va-riação geográfica). Então, fica parecendo que só a fala (e não a escrita) de analfabetos, caipiras ou matutos e nordestinos é que varia. Marcos Bagno (2007) chama a atenção para isso, ao denunciar que os exercícios com variação, nos livros didáti-cos, destacam sempre exemplos do personagem Chico Bento (caipira), do poeta cearense Patati-va do Assaré (nordestino e semianalfabeto) e do cantor e compositor Adoniran Barbosa (que usou uma linguagem de “analfabeto paulistano” em suas composições).

Faraco (2008, p. 180) destaca que “parece que não hálivrodidáticohojequenãotenhaumatiradoChicoBento”,cujalinguageméapresentadacomose fosse a representação de uma variedade rural do português, quando na verdade é “uma elaboração estereotipada de um certo falar rural”. Não é pre-ciso muito esforço para se verificar que a variação linguística é representada de forma artificial na “linguagemdoChicoBento”.Vejaabaixo:

Para confirmar o que estamos dizendo, bastam três observa-ções sobre o primeiro quadri-nho. Primeiro, a forma “fes-sora” dificilmente seria típica ou exclusiva de uma variedade rural. Tudo indica que alu-nos de origem urbana e rural igualmente a utilizariam. Em segundo lugar, vejamos a for-ma“castigá”,cujoequivalentena ortografia oficial é castigar. É muito óbvio para qualquer pessoa que observe a língua portuguesa contemporânea que a maioria dos falantes

brasileiros, inclusive os cultos e urbanos, não pro-nuncia o /r/ final das formas verbais infinitivas. Marcar esse uso com a escrita “castigá” é uma for-ma estereotipada, preconceituosa, de representar a fala rural, pois também a professora com certeza usariaamesmapronúncia.Porúltimo,vejaquenafala de Chico Bento o que aparece “qui” e na fala da professora, como “que”, quando sabemos que tanto pessoas cultas como analfabetas podem per-feitamentepronunciaro “e”da conjunçãocomo/i/. Novamente, essa não é uma boa representação da variedade rural, ou é uma representação cheia de preconceitos.

No dizer de Faraco (2008), o tratamento do “por-tuguês rural” se faz de modo anedótico, estereoti-pado e exagerado, não contribuindo em nada para a compreensão para a crítica dos preconceitos lin-guísticos que envolvem os falares rurais. A própria construção da linguagem do personagem reforça esses preconceitos, e os autores dos livros didáticos não percebem isso ao usar as tiras como exemplos.

O segundo problema é o tipo de atividade didática que se propõe para trabalhar variação linguística.

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Figura 3: Adoniran Barbosa

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Figura 4: Linguagem do Chico Bento

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42 Capítulo 4

Conforme Bagno (2007), a maioria das atividades solicita que os alunos “passem para a norma cul-ta” o conteúdo que apresenta variação linguística. Com isso, a ideia que se transmite é que a varia-ção linguística é algo inferior e errado, que precisa ser corrigido, reescrito na norma culta. É o que acontece não só em livros didáticos, mas em fer-ramentas adicionais como blogs educacionais que se dedicam a trazer “subsídios” para o professor. Uma clara demonstração desse fato pode ser vista no site de onde retiramos o exemplo da Figura 4 (linguagemdoChicoBento).Vejamosasquestõespropostas como atividade de compreensão, após apresentação da tirinha:

atividadE |1. Na tirinha acima, Chico Bento e a professo-ra utilizam o mesmo tipo de variedade linguís-tica? Qual é a variedade linguística evidente na fala de Chico Bento e qual é a variedade lin-guística evidente na fala da professora?

2. Que tipo de linguagem está sendo utilizada na tirinha? Justifique?

3. Reescreva as falas dos personagens utilizan-do a variedade padrão:

1º balão: _________________________________________________________________

2º balão: _________________________________________________________________

3º balão: _________________________________________________________________

4. Foi preciso fazer alguma alteração na fala da professora? Por quê?

Como se pode observar, depois induzir o aluno a ver a fala do Chico Bento e a fala da professora como representações de variedades linguísticas es-tanques, a atividade se concentra, nas questões se-guintes, na atividade de reescrita voltada para “cor-rigir” (embora não use esse termo) a fala popular. Essa forma de ensinar a variação contraria no seu âmago o propósito mesmo de se incluir tal conte-údo no ensino escolar. Parece que, nessa temática, muito progresso ainda precisa ser feito até chegar-mos a uma situação adequada e a um padrão de ensino satisfatório.

4. um caSo ExEmplar: o livro didático QuE EnSinava a “falar Errado”

Como uma ilustração clara do que vimos dizendo neste capítulo e, de algum modo, em todo este vo-lume, cabe um breve apanhado sobre a recente po-lêmica em torno do livro didático Por uma vida me-lhor,quefoiobjetodediscussãodamídiatelevisiva,radiofônica, impressa e virtual ao longo de todo o mês de maio de 2011. Muitas pessoas falaram e escreveram sobre o assunto, embora se pudesse verificar que muito poucas tinham lido o livro, ou pelo menos o capítulo 1, em que se encontram os trechos contestados.

O que se viu confirma o que diz o linguista Sírio Possenti sobre os intelectuais e profissionais da mí-dia que, mesmo não sendo linguistas, se aventu-ram a opinar sobre a língua e seu ensino:

“Os intelectuais brasileiros são incapazes de compreender

edeaceitarquehajavariaçãolinguística,dialetosregionais,

sociais, profissionais... Os intelectuais brasileiros leem gra-

máticas e dicionários como os fundamentalistas leem suas

Bíblias e Corões: em seu nome discriminam e se riem dos

‘infiéis’” (POSSENTI, 2009).

Mas como era mesmo que o livro “ensinava a falar errado”? Primeiramente, o propósito do capítulo, como expressa o título, é mostrar que “escrever é diferente de falar”. Logo, podemos perceber que a autora não pretendia defender o vale tudo, mas, pelo contrário, mostrar as diferentes maneiras como usamos a língua em situações de comunica-ção. Apresenta a variação linguística falando das diferenças entre variedade culta e variedade popu-lar e corretamente defende a eficácia comunicativa de ambas as variedades.

Quando começa a tratar da concordância, foco da polêmica, primeiramente apresenta a concordân-cia formal prescrita pela norma padrão, mas em seguida mostra que nas variedades populares existe outra forma de construir as frases. É então que apa-rece a primeira frase controversa, que foi repetida exaustivamente na mídia como prova de que o li-vro ensinava a falar errado:

Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.

Ao enfocar a concordância verbal, novamente é apresentada, após a exibição das formas cultas, a

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43Capítulo 4

possibilidade de encontrar, nas variedades popula-res, algo como:

Nós pega o peixe.

Para qualquer pessoa de boa vontade que lê o li-vro, fica claro que a intenção da autora era simples-mente, em consonância com os PCNs, apresentar o fenômeno da variação, lembrando que não existe apenas uma maneira de falar alguma coisa na lín-gua portuguesa. Lembra ela, noutra passagem ex-tremamente criticada, que o usuário dessas formas populares “corre o risco de ser vítima de precon-ceito linguístico”, o que também é muito eviden-te na sociedade brasileira.

O que os críticos não viram, ou não quiseram ver, foi o ensino da autora de que o aluno “tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião” ou “domine as duas variedades eescolhaaquejulgaradequadaàsuasituaçãodefala”. Enfim, é muito claro que o livro Por uma vida melhor não “ensina a falar errado”, mas se dedica a apresentar o tema da variação linguística, inclusive deformabastantetímidaeconservadora,jáqueamaior parte do capítulo se concentra em atividades formais e do tipo “passe para a norma culta”.

Interessante é que, nos textos falados e escritos de intelectuais e representantes da mídia, a variação ficava evidente no momento mesmo quando eles procuravam negá-la. Veja-se o caso do jornalistaCarlos Monforte, que, ao criticar o livro, soltou um “Como fica as leis da concordância?” em vez do padrão “Como ficam as leis da concordância?”. Semquerer,ojornalistaestavaconfirmandoatesequecombatia,ouseja,confirmavacomopróprioexemplo que a língua varia, inclusive na fala de usuários cultos.

nal O Estado de São Paulo,afirmavaque“ojornalis-mo nativo teve uma semana infeliz”, ao se envolver na polêmica sobre o livro de um modo que apenas exibiu o despreparo deles para falar do assunto.

Em síntese do conteúdo do livro, Possenti lista as principais teses defendidas no capítulo:

a que há diferenças entre língua falada e escrita, o que é um fato óbvio;

b. que cada variedade da língua segue regras dife-rentes das de outra variedade;

c. que há diferenças entre língua falada e escrita que não se restringem à gramática, mas atin-gem a organização do texto (um teste é gravar sua fala, e transcrever; quem pensa que fala como escreve leva sustos);

d. que na fala e na escrita há níveis diferentes: não se escreve nem se fala da mesma maneira com amigos e com autoridades. E

e. devem-se aprender as formas cultas da língua: todo o capítulo insiste nessa tese conservado-ra e todos os exercícios pedem a conversão de formas faladas ou informais em formas escritas e formais.

Ouseja,olivronadatemderevolucionário.Apenasprocura aplicar, de modo limitado, o conceito de va-riação linguística ao ensino, como orientam os PCNs.

O que mais se pode querer de um livro didático?

É a pergunta de Possenti, antes de apontar outros pequenos absurdos cometidos pela mídia, como, além de negar a existência do preconceito linguís-tico, insinuar que o livro estimula o preconceito contra os que falam ‘’certo’’. Como, porém, des-taca Possenti, o “suprassumo” foi a insinuação de que o livro seria a defesa da fala “errada” de Lula.

Enfim, o caso ilustra como o tema da variação linguística desperta sentimentos fortes, em que os pretensos defensores de uma “língua correta” se voltam impiedosamente contra os pobres falantes do “português errado” e, ao mesmo tempo, estão convencidos de que não existe preconceito linguís-tico. Este seria invenção de esquerdistas, coisa do PT (!). Apesar de algumas décadas de ensino da linguística nas universidades, ainda reina muita ig-norância sobre o uso da língua e predomina uma visão não científica sobre o que é a língua.

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Figura 5: Tudo a ver

Entre os vários especialistas que se pronunciaram na mídia, contrariando as vozes alarmistas, precon-ceituosas e desinformadas dos jornalistas em ge-ral, o linguista Sírio Possenti, da Universidade de Campinas(Unicamp),emartigopublicadonojor-

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44 Capítulo 4

Espera-se que, num futuro próximo, como resulta-do da formação de novos professores de língua por-tuguesa, mais bem fundamentados na ciência da linguagem, mude também a concepção de lingua-gem ainda presente no imaginário da população, que, mesmo não sendo falante da norma padrão,

muitas vezes, está pronta a concordar com seus de-fensores dessa norma, ao preço da sedimentação de uma “baixa autoestima linguística”, com as pes-soas em geral convencendo-se de que “não sabem português”, ou de que “português é muito difícil”.

rESumo

Neste capítulo, procuramos discutir as implicações do tema da variação linguística para o ensino de língua portuguesa no Brasil. Vimos que, graças às pesquisas linguísticas, as diretrizes oficiais de ensino atualmente incorporam a noção de uma língua heterogênea e variável, defendendo o direito que o aluno tem tanto de conservar e valorizar a variedade linguística que traz para o ambiente escolar como de aprender a variedade culta, para po-der interagir com sucesso em situações comunicativas altamente monitoradas na fala e na escrita. Percebemos ainda que, embora os livros didáticos, seguindo os PCNs, venham dan-do alguma atenção à variação linguística, o tratamento do tema ainda é limitado e estereo-tipado. Após apontarmos alguns problemas comuns em livros didáticos, concluímos com o exemplo recente da polêmica em torno do livro didático que estaria ensinando a falar errado.

SAIBA MAIS!

Para saber mais sobre os assuntos aqui tra-

tados, bem como para acompanhar discus-

sõessempreatualizadassobreatemáticada

pedagogia da variação linguística, reitero a

sugestão de consulta aos sites dos pesquisa-

dores mencionados no capítulo 3:

• MarcosBagno,autordePreconceitolin-

guístico e diversos outros livros e artigos

científicos sobre língua e variação, pro-

fessordaUniversidadedeBrasília(UnB)

- http://marcosbagno.com.br/.

• Stella Maris Bortoni-Ricardo, autora de

Nós cheguemu na escola, e agora? e

pesquisadora da UnB - http://www.

stellabortoni.com.br/. Alémdisso,sobreapolê

micadolivrodi-

dático, é possível encontrar diversos ví-

deos no site www.youtube.com, em que

diversos especialistas são entrevistados e

debatem a questão.

rEfErÊnciaS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por aca-so: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.

BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola, 2001.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasilei-ra: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

OLIVEIRA, Mariangela Rios de; WILSON, Victo-ria. Linguística e ensino. In: MARTELOTTA, Má-rio Eduardo (Org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 235-242.

POSSENTI, S. Língua na mídia. São Paulo: Pa-rábola, 2009.

SOARES, Magda B. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.

atividadE |Para o aprofundamento das questões enfo-cadas por este capítulo, pesquise na internet artigos, imagens e vídeos relacionados com a polêmica do livro que “ensinava a falar erra-do”. Com base em sua pesquisa, qual é a sua opinião sobre o assunto? Trata-se de um bom livro ou ele deveria, como foi proposto, ser recolhido das escolas para não prejudicar aaprendizagem dos alunos?