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SOCIOLOGIA DA ACESSIBILIDADE Autora Carla Cristina Garcia 2009 Esse material é parte integrante do Videoaulas on-line do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.videoaulasonline.com.br

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SOCIOLOGIA DA ACESSIBILIDADE

Autora

Carla Cristina Garcia

2009

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Capa: IESDE Brasil S.A.Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

G216 Garcia, Carla Cristina. / Sociologia da Acessibilidade. / Carla Cristina Garcia. — Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008.

156 p.

ISBN: 978-85-7638-864-7

1. Acessibilidade. 2. Desenho universal. 3. Diversidade. 4. Direitos humanos. 5. Inclusão social. I. Título.

CDD 303.4

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

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SumárioDiversidade humana e deficiência: discriminação, exclusão e preconceitos | 7

Diversidade humana: histórico dos conceitos gerais a partir das Ciências Sociais | 7A noção de cultura e a diversidade | 9Deficiência e exclusão na mitologia grega | 11O texto bíblico e a deficiência | 12

A construção do conceito de corpo na sociedade ocidental | 17Saúde, doença e deficiência | 21Os corpos deficientes | 23

Deficiência e incapacidade | 27Deficiência e estigma | 27Deficiência ou incapacidade? | 28Pessoas portadoras de deficiência: definições | 29O modelo médico e o modelo social da deficiência física | 31O Sistema de Classificação Internacional de Funcionalidade | 33

Questões contemporâneas sobre diversidade humana, discriminação e igualdade de oportunidades | 37

Pequeno histórico do desenvolvimento do conceito de inclusão | 40Igualdade de oportunidades | 41Acessibilidade: integração e inclusão | 42Inclusão e deficiência | 43

Pensando a acessibilidade | 49Conceitos gerais | 49Em busca de indicadores de acessibilidade | 50Acessibilidade universal | 53O desenho para todos | 54

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Cidades e acessibilidade | 59

Políticas sociais e legislações pelos direitos à cidadania plena das PPDs | 69As legislações internacionais para as pessoas portadoras de deficiências (PPDs) | 69A legislação no Brasil | 72Conceitos legais de pessoa portadora de deficiência | 74O conceito de acessibilidade na legislação brasileira | 77

Os idosos e a acessibilidade | 81Acessibilidade e transportes para os idosos | 83Arquitetura e acessibilidade para os idosos | 85

A acessibilidade e a Educação Inclusiva | 93A acessibilidade à educação para pessoas portadoras de deficiência em números | 94Inclusão e igualdade de oportunidades na educação | 97

Esporte e deficiência | 103As paraolimpíadas | 105O esporte para pessoas portadoras de deficiência no Brasil | 107A institucionalização do Desporto Adaptado Brasileiro | 108

Acessibilidade digital | 113

Acessibilidade no mundo do trabalho | 123

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ApresentaçãoNa maior parte das sociedades ocidentais contemporâneas, a questão da

acessibilidade tem sido tratada como um conceito moderno de abordar os

problemas que enfrentam as pessoas portadoras de deficiências (PPDs). De

uma forma mais ampla, o termo acessibilidade refere-se a tudo o que se possa

alcançar, conseguir ou possuir. De maneira mais específica, pode-se definir

acessibilidade como o direito de ir e vir de todas as pessoas, com autonomia

e independência, isto é, o direito básico garantido a todos os cidadãos, e que

atualmente tem ganhado a devida atenção em todo o mundo. Considerando

que o objetivo da acessibilidade universal e do desenho para todos (sua

ferramenta básica) envolve e inclui todas as pessoas, reconhece-se que existe

um grupo social que, para poder desenvolver uma vida independente e

autônoma, requer necessariamente dos equipamentos urbanos, produtos

e serviços acessíveis. Nesse sentido, considera-se que o grupo com maiores

necessidades de acessibilidade é o de pessoas portadoras de deficiência, tendo

em vista ser este o coletivo social que mais se vê afetado pelas barreiras do

entorno, sejam as das edificações, de comunicação ou informativas. O estudo

da acessibilidade permite apreender – entre outras coisas – a relação existente

entre as reais necessidades de acesso da população e as ações realizadas pelos

governos para que essas demandas sejam atendidas em termos de oferta

de recursos para satisfazê-las. Esse enfoque permite identificar quais são

os fatores que facilitam ou dificultam a busca, a obtenção e a utilização dos

equipamentos urbanos, sejam eles quais forem.

Nos últimos anos, essas discussões têm adquirido novas dimensões sociais e

políticas, e a Sociologia não se excluiu desse debate que até pouco tempo era

travado fundamentalmente no âmbito da Assistência Social, da Saúde ou da

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Educação. A Sociologia da Acessibilidade trata de criticar os conceitos relacionados

a essas questões e superar o entendimento de que a mera presença, disponibilidade

de recursos e até mesmo a legislação assegurem sua plena utilização pela

população em geral e para as PPDs em particular. Além disso, a Sociologia pode,

a partir de seus pressupostos teóricos, tratar da origem paradigmática da questão

das desigualdades e da exclusão, relacionando-as aos problemas da acessibilidade.

Segundo Teske (2005, p. 335), o debate sociológico contribui para

[...] o aprofundamento e a clarificação conceitual para o conhecimento teórico-metodológico acerca de experiências fundamentadas no contexto onde as pessoas com deficiência são os sujeitos principais. Isso permitirá um estudo teórico que possa subsidiar as políticas públicas referentes a desigualdade que ultrapassam a economia e adentram o social, em que a sociedade possui inúmeras dificuldades de praticar o reconhecimento político das diferenças.

Nesse sentido, o debate sociológico sobre a acessibilidade permite identificar

tanto os fatores que obstaculizam, bem como os que facilitam a busca e

obtenção de acesso e contribuem com estudos que possibilitam a articulação

teórica no sentido de reformular conceitos como o de diferenças e desigualdades

enfrentadas pela sociedade contemporânea. Tendo em vista ser esse um tema

amplo e transversal, o universo a ser pesquisado é vasto. Pode-se afirmar que se

trata de um cenário fragmentado e multifacetado que exige que o sociólogo faça

um recorte epistemológico para dar conta da construção de um debate crítico

sobre o problema.

Por fim, agradeço aos amigos Marcela Cavalcanti e Marcos Slavov por seu apoio e

carinho durante todo o processo de elaboração deste livro.

A autora

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* Pós-Doutora pelo Instituto José María Mora (México). Doutora e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora titular da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Diversidade humana e deficiência: discriminação,

exclusão e preconceitosCarla Cristina Garcia*

Diversidade humana: histórico dos conceitos gerais a partir das Ciências Sociais

Na maior parte das sociedades humanas de que se tem documentação histórica, as reações sobre as diversidades entre as pessoas aparecem de forma variada: tanto no que se refere às diferenças perce-bidas entre a mesma população quanto em relação às várias etnias com as quais mantinham contato. Desde a Antigüidade existem relatos de guerreiros, viajantes, comerciantes, além dos mitos que relatam sobre as diferenças físicas e sociais das demais culturas. As reações variavam desde o medo e a repulsa até a curiosidade e o apreço (MAIR, 1984; LARAIA, 1986; MAGGIE, 1996).

Aspectos culturais e físicos imediatamente perceptíveis da singularidade dos “outros” eram res-saltados como vestimentas, ornamentos corporais, estatura, cor da pele, cabelos, olhos e linguagem. Os costumes mais difíceis de serem entendidos e outras diferenças mais profundas e que só poderiam ser apreendidas por um olhar mais detalhado sobressaíam aos olhos daqueles que passavam um tempo entre os “estrangeiros”.

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8 | Sociologia da Acessibilidade

Vale lembrar que a maior parte das explicações sobre a diversidade humana enfatizaram os as-pectos negativos dos “outros”, tendo como parâmetro as características físicas e culturais dos povos sob cujo ponto de vista se pensava a diferença: a sociedade ocidental branca. Em muitos casos negou-se a qualidade de “humanos” a algumas culturas.

A essa atitude as Ciências Sociais chamam “etnocentrismo”, ou seja:

A Interpretação das idéias ou das práticas de uma outra cultura em termos de sua própria cultura. Os julgamentos etnocêntricos deixam de reconhecer as verdadeiras qualidades das outras culturas. Um indivíduo etnocêntrico é alguém que não tem capacidade, ou vontade, de observar outras culturas nas próprias condições delas. (GIDDENS, 2005, p. 567)

Muitos dos exemplos que pareçam demonstrar atitudes mais positivas em relação à alteridade, podem encobrir na verdade o etnocentrismo. Rousseau, por exemplo, um crítico da sociedade euro-péia, cunhou a idéia do “bom selvagem”. As cortes européias deleitavam-se com o exotismo meio ani-mal meio humano da população das colônias.

No século XVI, com a expansão colonial européia, características como a cor da pele e outros traços físicos dos povos encontrados por exploradores passaram a ser um aspecto privilegiado no imaginário europeu, como marcador das diferenças entre as culturas (MAGGIE, 1996, p. 226). A partir dessa época, o pensamento europeu desenvolveu uma forma específica de classificar e pensar “as coisas do mundo”.

A busca pelo conhecimento, que separou a religião e a filosofia e criou o método científico, pas-sou a desenvolver critérios de observação sistemática e de classificação em hierarquias racionais que foram aplicados às novas formas de vida (vegetal, animal e humanas) que passaram a ser estudadas.

Nesse sentido, os critérios de classificação das diversidades vegetais e animais foram tomados como normas principais de demarcação das diferenças humanas.

Darwin com sua obra A Origem das Espécies foi um importante marco da revolução metodológica que expressava uma “síntese revolucionária” na ciência classificatória naturalista das espécies. Sua teo-ria da evolução biológica das espécies introduziu uma visão dinâmica que se desvinculou das ciências classificatórias naturais referentes às explicações da origem “inata” das diferenças entre as espécies. Não obstante, desde meados do século XIX até meados do século XX, nos debates científicos sobre raça, esse pensamento dinâmico não se havia consolidado. Segundo Ventura dos Santos (1996, p. 125-127), a obra de Darwin e de outros com modelos evolucionistas levaram um longo tempo para se consolidarem nas Ciências Sociais que se baseavam na construção de categorias como “tipos raciais” e “raças”.

O clima do pós-guerra europeu, nos fins da década de 1940 e década de 1950, trouxe reações radi-calmente contrárias aos fundamentos da eugenia, levada ao extremo pela política nazista. Essa transição foi significativamente marcada na Assembléia da Organização na Nações Unidas para a Educação a Ci-ência e a Cultura (Unesco) de 1949 (VENTURA DOS SANTOS, 1996, p.129-132). Nessa Assembléia, alguns intelectuais, como Claude Lévi-Strauss, foram convidados a participar e exerceram influência no relatório final, contrário à ênfase na diversidade racial como explicação de fenômenos socioculturais e ambientais. A negação da diversidade biológica e sua influência em certas características individuais dos grupos hu-manos levaram a uma forte reação por parte de geneticistas, biólogos e antropólogos físicos.

Às classificações da diversidade humana, baseadas na morfologia física e no conceito de raça, so-brepunham-se igualmente aspectos do comportamento e formas de pensar e sentir (aspectos sociocul-turais). O evolucionismo darwinista inspirara, inicialmente, uma hierarquização da diversidade humana e das “raças” em que a raça “branca” estaria no ápice da escala de evolução, devido a sua “superioridade” tecnológica e, acreditava-se, moral.

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9|Diversidade humana e deficência: discriminação, exclusão e preconceitos

Por influência do darwinismo social, o projeto de dar conta da diversidade cultural levou os pri-meiros cientistas sociais a debruçarem-se sobre os relatos de viajantes de exploradores e administrado-res coloniais que falavam sobre o exotismo das sociedades ditas “inferiores”, incivilizadas, simples, em relação a uma visão industrial da técnica, e, finalmente, primitivas por serem remanescentes de formas antigas da evolução das sociedades humanas. O relativo isolamento geográfico dessas sociedades e po-vos contribuiu para essa visão, mas a persistência dessas sociedades em resistir ao longo do tempo de forma bastante diferente da tradição européia colocou um problema crucial para a visão evolucionista e etnocêntrica da diversidade humana, o que motivou importantes mudanças em alguns conceitos a partir dos resultados das pesquisas com “culturas diferenciadas” no interior das sociedades “complexas”, ou seja, da sociedade ocidental.

A noção de cultura e a diversidadeDe todo modo, ainda que no campo das Ciências Sociais haja um amplo escopo de abordagens

para a discussão da diversidade humana, a noção de cultura é o fundamento para a compreensão dos movimentos pelos quais passaram essas ciências, inicialmente apenas por parte da Antropologia do início do século XIX, que pretendia abordar todos os aspectos das questões acerca da diversidade hu-mana. É importante ressaltar que o mesmo debate que substitui o conceito de raça pelo de população na Antropologia também ocorreu no âmbito da Sociologia.

Algumas das principais correntes teóricas que influenciaram a construção do conceito de cultura são o Evolucionismo e suas influências no Difusionismo e na Sociologia francesa de Durkheim e Mauss, o Marxismo e a Sociologia de Max Weber, o Estruturalismo de Lévi-Strauss, o Funcionalismo inglês e as vertentes culturalistas americanas.

A noção de cultura era o cerne de uma discussão que separava o determinismo biológico “racial” das manifestações de comportamento aprendidas pelos indivíduos de uma sociedade após o nasci-mento. Esses aspectos eram considerados então como de ordem “ambiental” no debate das relações entre raça e cultura. Na prática, o estudo da cultura referia-se a costumes maneiras e técnicas tradicio-nais específicas de uma sociedade. Essa vertente culturalista enfatiza a descrição e o entendimento da diversidade humana.

Malinowiski, considerado o “pai do trabalho de campo”, método privilegiado de estudos etnoló-gicos, enfatizava que os estudiosos deveriam descrever todos os aspectos vinculados numa dada so-ciedade ao complexo, por exemplo, da função alimentar: técnicas agrícolas, formas de distribuição dos alimentos entre grupos e indivíduos, instituições de trocas (comércio ou circulação de bens) etc. Mali-nowiski via a sociedade por meio de uma metáfora anatômica em que na morfologia das sociedades as instituições cumpriam as mesmas funções que os órgãos e sistemas do corpo humano.

Não obstante, foi com Lévi-Strauss que o conceito de estrutura, influenciado pelas teorias da Lin-güística, tornou-se mais abstrato e ligado a questões mais sociais do que as metáforas tomadas de disciplinas como a Biologia e a Mecânica. Lévi-Strauss critica e sintetiza a definição de cultura como “hábitos, atitudes, comportamentos, maneiras próprias de agir, sentir e pensar de um povo” e enfatiza a “estrutura subconsciente de pensamento”. Para o Estruturalismo de Lévi-Strauss, a diversidade humana não é importante, e sim a similaridade humana de pensamento. Nessa teoria, o conceito de cultura ga-nha um sentido residual. “Residual, porém irredutível”, como coloca Carneiro da Cunha (1986), em que a identidade de grupo é fundamental na construção da pessoa humana.

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10 | Sociologia da Acessibilidade

Para as Ciências Sociais, atualmente, a cultura pode ser entendida como um sistema simbólico (GEERTz, 1973), característica fundamental e comum da humanidade de atribuir, de forma sistemática, racional e estruturada, significados e sentidos “às coisas do mundo”. Observar, separar, pensar e clas-sificar atribuindo uma ordem totalizadora é fundamental para se compreender o conceito de cultura, atualmente definido como “sistema simbólico”, e sua diversidade nas sociedades humanas.

Desse modo, os rumos conceituais e as construções teóricas atuais das Ciências Sociais (o indivi-dualismo, a fragmentação, a alta especialização técnica e a dificuldade de se articularem níveis distintos de relações qualitativas e quantitativas entre os fenômenos no modo globalizado hegemônico de pen-sar) são os problemas mais enfatizados (DUMONT, 1985; DUARTE, 1998). Estudos voltados para grupos marginalizados nas regiões urbanas, grupos pertencentes às classes populares e altas da sociedade mo-derna, levaram a uma análise crítica da visão de mundo ocidental moderna e da globalização, inclusive a da própria cultura científica nas áreas médicas e deve-se ressaltar sobre a visão social da deficiência física (VERANI, 1994; DUARTE, et al., 1998; LUPTON, 1999; GLAT; PONTES; PETERSEN; BUTTON, 2002).

No que concerne a discussão principal desta aula, ou seja, a discussão sobre diversidade humana e deficiência, interessa aprofundar como essas questões são tratadas tanto no que se refere às expli-cações de ordem biológica quanto às culturais e éticas. Nesse sentido, é importante analisar como a deficiência é tratada tanto no âmbito da cultura quanto nas discussões sobre a “Nova Genética” (GLAT; PONTES; PERTESEN, BUNTON, 2002).

Começando pelo debate travado nesse último campo, a nova genética na sociedade capitalista global, ao produzir estudos visando a melhoria da qualidade de vida humana no sentido de prevenir doenças e evitar “riscos de deficiência”, poderia estar, numa visão crítica, criando uma reedição individu-alista da eugenia, sob o argumento de uma aposta no futuro “positivo” para a prevenção e controle de doenças e deficiências físicas herdadas, construindo, assim, novas identidades de sociedade e eliminan-do grupos e indivíduos “inferiores” de “risco”, baseados em diferenças biológicas referentes não à cor da pele, mas à herança genética e à possibilidade da deficiência física.

Ao tomar como objetos de estudo o Projeto Genoma e o Biosfera II1, Sfez afirmou que hoje o ini-migo não é mais só o selvagem, que precisa ser civilizado, e o marginalizado. Disse: “o inimigo está em nós, no perímetro da cidade poluída, do bairro desmembrado, nas famílias, em nossos corpos enfermos, em nossos genes” (SFEz, 1996, p. 25).

Essa questão contrasta cotidianamente com a realidade da maioria das pessoas que vivem no flagelo da fome e da doença, numa situação paradoxal, pois “no momento em que toda humanidade poderia estar usufruindo das promessas da modernidade e dos decantados avanços da ciência, a maior parte dela não tem, nem mesmo, as condições básicas para uma vida digna” (SILVA,1999b, p. 52).

No âmbito da cultura, é importante analisar de que forma o imaginário da sociedade ocidental, por meio de seus mitos, foi construindo, ao longo dos séculos, a imagem do deficiente físico.

A deficiência física foi histórica e simbolicamente considerada fator de exclusão social, e as nar-rativas míticas contam sobre a rejeição, a punição e a exclusão dos deficientes em conseqüência de

1 Projeto Genoma é o nome de um trabalho conjunto realizado por diversos países visando desvendar os mistérios do código genético de um organismo (podendo ser animal, vegetal, de fungos, bactérias ou de um vírus) através do seu mapeamento. Seu marco inicial é considerado o Projeto Genoma Humano. O projeto Biosfera II consistiu na construção de uma redoma no deserto do Arizona (EUA), onde foram confinados oito cientistas, entre 1991 e 1993, com mais 3 800 espécies. No seu interior reproduziam-se diversos ambientes naturais terrestres, como florestas, pântanos e até um minioceano. Teve como objetivo a realização de estudos de dinâmica ecossistêmica e o desenvolvimento de tecnologia para aplicação em futuras bases e estações espaciais, visando criar condições sustentáveis de vida e produção de alimentos.

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11|Diversidade humana e deficência: discriminação, exclusão e preconceitos

sua aparência física. Considerando que o mito tem por finalidade interpretar e fornecer sentido a uma realidade significativa na vida social do grupo ao compreender a sua função simbólica, pode-se revelar o sentido profundo das realidades sociais que afetam o grupo em questão e desse modo empreender uma análise da deficiência física por meio da leitura de alguns mitos constitutivos do imaginário ociden-tal: a mitologia grega e a Bíblia cristã.

Nessas narrativas, a deformidade ou a deficiência denotam ausência de integridade corporal e as-simetria, que simbolicamente remeteria a significados relacionados a valores morais desfavoráveis. A des-crição do corpo na presença de uma deformidade física, como no mito de Hefestos e em algumas histórias bíblicas que se descreverão a seguir, evocam adjetivos como “feio”, “manco” e “de pernas débeis”.

Deficiência e exclusão na mitologia gregaTodos os deuses do panteão grego representam características humanas, tanto as consideradas

boas quanto as ruins. Na sociedade ocidental cristã, os mitos gregos, apesar de considerados pagãos, foram assimilados na cultura e fazem parte do imaginário, ainda que inconsciente, dessa civilização. Muitos de seus elementos sobrevivem na sociedade moderna. Desse modo, é necessário compreender o mito em sua função simbólica e como relato de um acontecimento originário no qual os deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa (CROATTO, 2001). O mito não pode ser en-tendido como cópia da realidade, mas sim como sua interpretação. É uma narrativa construída e, como toda palavra, tem função social. Narra o fato fictício como instaurador de uma realidade e, como texto, é polissêmico. Sua narrativa situa-se num tempo absoluto, acronológico, pré-cósmico, diferente do tem-po histórico. Desse modo, o mito tem a função de dar sentido à realidade, portanto, trata de aspectos da vida humana (CROATTO, 2001).

Hefestos, apesar de ser um deus do Olimpo, recebeu atributos pejorativos em conseqüência de sua deformidade e foi desprezado e excluído por sua aparência física.

Hefestos é o único deus com uma deficiência física. Filho de zeus e Hera, sua origem é narrada de diferentes formas, mas todas estão relacionadas à rejeição por parte de seus pais: “Nascera coxo e sua mãe sentiu-se tão aborrecida ao vê-lo que o atirou para fora do céu”.

Outra versão diz que zeus atirou-o para fora com um pontapé, devido à sua participação numa briga entre zeus e Hera. O defeito físico de Hefestos seria conseqüência dessa queda (BULFINCH, 2001, p. 12-13).

Hefestos habitava a Ilha de Lemnos, à qual chegou após ter sido chutado por seu pai e rolar pelo Olimpo abaixo durante um dia inteiro. Era o único deus que trabalhava, atividade que não era bem vista no panteão: “Mestre das artes do fogo e governando o mundo industrioso dos ferreiros, dos ourives e dos operários. É visto soprando seu fogo e penando na sua bigorna, em que fabrica as armas dos deuses e dos heróis [...]” (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 485).

O ofício de ferreiro situa-se, entre os ofícios ligados à transformação dos metais, como “o mais sig-nificativo quanto à importância e à ambivalência dos símbolos que implica” (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 423). Vivia num vulcão, habitando as sombras e em relação com as entranhas da terra, de onde extraía o metal, e, com o fogo subterrâneo, forjava armas maravilhosas para deuses e heróis e jóias para deusas e belas mortais, entre outros objetos e artefatos incríveis.

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12 | Sociologia da Acessibilidade

[...] às vezes, os ferreiros são monstros, ou identificam-se com os guardiões dos tesouros ocultos. Possuem, portanto, um aspecto temível, propriamente infernal; sua atividade aparenta-se à magia e à feitiçaria. E é por essa razão que, mui-tas vezes, os ferreiros eram mais ou menos excluídos da sociedade; e, na maioria dos casos, seu trabalho era rodeado de ritos de purificação, de proibições sexuais e de exorcismos. [...] Hefestos é apresentado como um demiurgo, criatura intermediária entre a natureza divina e a humana, sendo descrito por Homero como disforme e claudicante, “monstro esbaforido e manco, cujas pernas débeis vacilam sob o peso do corpo”. (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 424; 485)

Segundo Chevalier e Gueerbrant (1991, p. 328), “toda deformidade é sinal de mistério, seja malé-fico, seja benéfico”, e a deformidade de Hefestos inscreve-se na ausência de integridade corporal, como um elemento de desqualificação e de assimetria, o que elimina a paridade humana e “remete ao uno, esquerdo ou direito malditos”.

Hefestos foi representado nas artes plásticas ao longo dos séculos muitas vezes de forma am-bígua: os artistas costumavam disfarçar, dissimular ou suprimir sua deformidade numa tentativa de negá-la. As representações simbólicas do corpo deficiente, presentes no mito de Hefestos, fazem parte do imaginário relacionado à deficiência física, que pode ser constatado contemporaneamente nos dis-cursos do senso comum sobre a deficiência física.

O texto bíblico e a deficiênciaNo imaginário religioso da tradição cristã, os valores ligados à exclusão de doentes e de deficien-

tes físicos estão fundamentalmente baseados em critérios de pureza e impureza.

Nelson Kilpp (1990, p. 39), em seu estudo sobre as deficiências físicas no Antigo Testamento, faz uma leitura da doença e da deficiência, e aponta no texto bíblico referências a diversas doenças, as quais teriam em sua etiologia as “precárias condições higiênicas, sanitárias e medicinais”.

No texto bíblico são comuns as referências à lepra, às pestes, à fraturas, aos diferentes tipos de do-enças de pele e às más-formações e deformidades com diversas formas de deficiência física. São men-cionados, com maior freqüência, os surdos-mudos, citados mais comumente de forma figurada, cegos, também por vezes citados de forma figurada (e que adquiriam sua deficiência provavelmente por in-fecções, pela idade avançada ou por conseqüência da guerra), e o grupo dos “coxos”, que abrangia, de forma geral, todas as dificuldades de locomoção, incluindo o pé torto congênito, as deformidades e as paralisias (ou plegias), por causas congênitas ou adquiridas (KILLP, 1990).

No Antigo Testamento, as relações entre doença ou deficiência e vontade divina podem ser ob-servadas em Êxodo 4: 11 (apud KILLP, 1990), onde Deus se declara autor da deficiência quando fala a Moisés: “Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou Eu, o Senhor?”.

No livro do Êxodo 23: 25 (apud KILLP, 1990), a proteção divina contra a doença é vinculada ao cumprimento da vontade de Deus, deixando implícito que o desrespeito à lei ocasionaria enfermidade (punição): “Servireis ao Senhor seu Deus e ele abençoará o vosso pão e a vossa água; e tirará do vosso meio as enfermidades”.

Em Deuteronômio 25: 58-61 (apud KILLP, 1990), da mesma forma, Deus utiliza a doença como ameaça aos que infringirem a Sua Lei: “Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, [...] também o Senhor fará vir sobre ti toda enfermidade e toda praga que não estão escritas no livro desta lei, até que sejas destruído”.

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13|Diversidade humana e deficência: discriminação, exclusão e preconceitos

Em Levítico 21: 16-24 (apud KILLP, 1990), nas leis para os sacerdotes, pode-se observar o impedi-mento de todos os doentes e deficientes para os rituais, por serem considerados impuros por Deus, quan-do este pede a Moisés que anuncie a Arão, o sacerdote, e aos filhos de Israel que nenhum de seus descen-dentes que possuam qualquer defeito poderá oferecer ofertas a Ele, pois profanariam Seus santuários: “Nenhum homem em quem houver defeito se chegará: como homem cego, ou coxo, ou de rosto mu-tilado, ou desproporcionado, ou homem que tiver o pé quebrado ou mão quebrada, ou corcovado, ou anão, ou que tiver belida no olho, ou sarna, ou impigens, ou que tiver testículo quebrado”.

Nessa passagem estão impedidas para o ritual todas as pessoas consideradas deficientes, to-mando-se claramente sua aparência física como referencial para a exclusão. Mesmo a utilização de animais “defeituosos” para os rituais é proibida, por também serem considerados impuros, portanto indignos para o sacrifício (Lv 22:19-23 apud KILLP, 1990): “Quando alguém oferecer sacrifício pacífico ao Senhor, quer em cumprimento de voto ou do rebanho, o animal deve ser sem defeito para ser aceitável; nele, não haverá defeito nenhum. O cego ou aleijado, ou mutilado, ou ulceroso, ou sarnoso, ou cheio de impigens, não os oferecereis ao Senhor” [...].”

No texto do Novo Testamento pode-se constatar que, na maior parte das curas realizadas por Je-sus, além do servir a Deus como forma de se manter livre das doenças, está presente o estabelecimento de relações diretas entre a doença/deficiência e o pecado e entre a cura da doença e o perdão divino. Como exemplo, há o relato da cura de um paralítico em Cafarnaum:

[...] Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: homem, estão perdoados os teus pecados. [...] Qual é mais fácil dizer: Es-tão perdoados os teus pecados, ou Levanta-te e anda? Mas, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar os pecados – disse ao paralítico: Eu te ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para casa. (Lc 5: 17-26; Mt 9: 2-8; Mc 2: 1-12)

A mesma relação entre doença e pecado e entre cura e perdão é reafirmada em João 5: 14 (apud KILLP, 1990), onde após haver ministrado a cura a um enfermo, Jesus adverte: “Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior”. Algo similar se verifica em Tiago 6: 14-16: “Está alguém entre vós doente? [...] Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados”.

Pode-se observar que a doença e a deficiência física são consideradas a materialização do castigo divino, revelando aos olhos da sociedade o pecador, adquirindo, assim, um significado punitivo.

A questão do corpo perfeito e belo encontra-se simbolicamente representado no “Um”, que por sua vez é representado por um falo ereto, um bastão ou um homem de pé, ativo e associado à obra da criação – sendo esse símbolo da totalidade representante também do Deus único (CHEVA-LIER; GUEERBRANT, 1991).

A partir da análise das origens simbólicas e das relações entre deficiência física e punição divina dentro da cultura religiosa judaico-cristã e da mitologia grega, evidencia-se o estigma em relação à deficiência física. O estigma, generalizado na pessoa com deficiência, aponta-a como pecadora ou impura, portadora de um mal capaz de contaminar, devendo ser, portanto, punida e mantida afastada do convívio social. Pode-se dizer que os mitos, por corresponderem a narrativas de questões significativas para o ser humano, revelam con-teúdos muitas vezes inconscientes, representando e, ao mesmo tempo, interpretando as realidades sociais também como forma de penetrar nas origens dos temores que habitam o ser humano.

Se o medo mítico do contato com o diferente/deficiente tem repercussões sociais excludentes, a análise dos mitos pode nos ajudar a decifrar e compreender certas atitudes discriminatórias que encon-tramos na sociedade ocidental contemporânea.

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14 | Sociologia da Acessibilidade

Terrin (1998) aponta a importância da aparência física, do corpo perfeito e dos esforços empre-endidos atualmente pelas pessoas para a manutenção ou aquisição dos imperativos de saúde e beleza valorizados pela sociedade.

Observando o simétrico como parâmetro de perfeição e beleza, o que teríamos então na assime-tria da deformidade?

Os seres maléficos ou sombrios [...] são sistematicamente descritos como disformes [...]. Toda deformidade é sinal de mistério, seja maléfico, seja benéfico. [...] A anomalia exige, para ser compreendida, que se vá além das normas habitu-ais de julgamento e, desde logo, conduz a um conhecimento mais profundo dos mistérios do ser e da vida. (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 328)

A mutilação se relaciona à desqualificação, trazendo não apenas conseqüências sociais, mas a transgressão de uma ordem par (simétrica), humana (duas pernas, dois pés, dois braços, duas mãos, dois olhos) e o deformado, por ter sua paridade atingida, é colocado à margem da sociedade humana à qual transgrediu, “passando então a pertencer à ordem da noite, infernal ou celeste, satânica ou divina” (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991, p. 628).

Como se vê, a história biológica se funde na história cultural do corpo, na experiência, na expres-são da linguagem e na ideologia, desde a necessidade da produção coletiva do homem nas sociedades não-capitalistas, que deveria ter um corpo forte e saudável, em que os deficientes natos eram mortos e os que adquiriam algum tipo de deficiência durante o trabalho eram acolhidos pela sociedade, já que sua deficiência havia sido adquirida no trabalho em prol da comunidade. Ao homem era necessário operar máquinas, reforçar o exército de produção fabril, ter seu trabalho cada vez mais especializado, mas quando deficiente era acolhido por pena ou isolado em instituições que, de ambas as maneiras, o excluíam do seu direito de assumir seus deveres de cidadão.

O corpo marcado pela cultura é um signo polissêmico, uma realidade histórica e multifacetada. O corpo é a memória mutante das leis e dos códigos de cada cultura, registro das soluções e dos limi-tes científicos e tecnológicos de cada época. Nessa perspectiva, Soares (1999, p. 5) considera “o corpo como primeiro plano da visibilidade humana, como lugar privilegiado das marcas da cultura [...]”. Para Vigarello (1978, p. 9), “o corpo é o primeiro lugar onde a mão do adulto marca a criança, ele é o primeiro espaço onde se impõe o limite social e psicológico dados à sua conduta, ele é o emblema onde a cultura escreve seus signos tanto como um brasão”.

Texto complementar

Quinta-feira, 11 de outubro de 2007.

Filhos de Hefestos (FERREIRA, 2007)

Hoje é o Dia do Deficiente Físico. Data em que todos aqueles que já sofreram preconceito por sua condição deveriam se levantar e dizer: “eu sou capaz”. Como negar a capacidade da pessoa com

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15|Diversidade humana e deficência: discriminação, exclusão e preconceitos

deficiência ao ver Daniel Dias? Um garoto de apenas 19 anos, com má-formação congênita, que aprendeu a nadar há apenas dois e hoje é o líder do ranking do Circuito Paraolímpico. Como negar a competência de um deficiente em qualquer área de atuação ao ver o segundo colocado deste mesmo ranking, André Brasil, que conquistou tantos títulos no Parapan? E pensar que foi reprovado na classificação funcional. Pelos critérios, ele não poderia nem participar da categoria S 10 (menor grau de comprometimento) por ter uma deficiência mínima na perna esquerda. O Comitê Paraolím-pico Brasileiro entrou com um protesto contra a decisão do Comitê Internacional e, depois de uma briga de sete meses, quando o atleta entrou em depressão e engordou, seu direito a participar de competições como deficiente foi aceito. Que as conquistas de André Brasil, Daniel Dias, Edênia Gar-cia – com uma doença degenerativa em seus membros, que não a impediu de bater recordes –, de Leandro Marinho (portador de paralisia cerebral e melhor do mundo no futebol de sete), da formi-dável Rosenei (arremesso de peso), entre outros, mostrem aos homens a força e a superação dessa gente. Que estes vencedores façam a sociedade refletir sobre o direito ao emprego, à acessibilidade, à sexualidade... enfim, o direito à vida dessas pessoas, aos filhos de Hefestos, um competente ferrei-ro nas lendas da Grécia e portador de deficiência física.

Atividades1. Analise o texto complementar à luz do mito de Hefestos.

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16 | Sociologia da Acessibilidade

2. Por que se pode dizer que o Genoma é um projeto próximo ao conceito positivista?

3. Comente como a cultura e os mitos continuam a influenciar o pensamento do senso comum sobre as pessoas portadoras de deficiência.

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Gabarito

Diversidade humana e deficiência: discriminação, exclusão e preconceitos

1. Hefestos, filho de Zeus e Hera, foi jogado pelo próprio pai para fora do Olimpo por sua deficiência física, que o desqualificava como Deus, deixando-o na condição entre deus e humano. Sua deficiência o tornava feio, incapaz e até temido. Porém, isso não o impediu de construir armas e ornamentos belos, tornando-o um grande e competente ferreiro entre outros, e o mesmo acontece com as pessoas citadas no texto complementar. A deficiência sempre vista como fator decisivo da incapacidade do indivíduo não impediu que esses atletas brilhassem e demonstrassem capacidade e competência tanta ou até maior de pessoas não-portadoras de deficiência.

2. O Genoma busca o homem ideal, sem defeitos físicos, forte e saudável. Sendo assim, busca os mesmos ideais da eugenia, que teve seu embasamento no conceito positivista, que por sua vez colocava o homem branco ocidental acima dos outros tipos na história da evolução. O Genoma, por mais eficiente e produtor de “melhorias” para os homens, segrega mais ainda os deficientes dos não-deficientes, o que proporciona maior distanciamento e incompreensão da parte dos não-portadores para com os portadores de qualquer tipo de deficiência.

3. Tanto nos mitos como na sociedade moderna é presente a condição inferior dos portadores de deficiência. Isso se dá por conta do medo do diferente, pela ligação de deficiência com a morte e doenças, e com a questão até mesmo estética. Tanto no mito de Hefestos quanto no texto complementar, pode-se ver que as deficiências não são o impedimento de que alguém possa ser tão capaz ou mais do que pessoas não-portadoras de deficiência. Porém, essa idéia de que os deficientes são incapazes de muitas coisas ainda é muito forte na sociedade moderna. Sendo assim, não importa quanto tempo exista entre o mito e a história desses atletas, o preconceito para os portadores de deficiências ainda é a mesma.

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