SOLIDARIEDADE E INDIVIDUALISMO

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    ENTRE O INDIVIDUALISMO

    E A SOLIDARIEDADE:Dilemas da poltica e da cidadania

    no Rio de Janeiro*

    Mrcia Pereira Leite

    RBCS V ol . 15 no 44 outubro/ 2000

    De cidade maravilhosa acidade partida: duas representaes

    do Rio de Janeiro

    Desde o incio do sculo o Rio de Janeiro

    representado como a cidade maravilhosa, ttuloque lhe foi conferido a partir do livro de poemas L aville merveilleuse, de uma escritora francesa encan-

    tada com a cidade que visitara logo aps a reurba-

    nizao empreendida por Pereira Passos, orienta-da pelos padres estticos da belle poque. A umRio de Janeiro embelezado, higienizado e embran-quecido foi ento atribudo o papel de cartopostal da Repblica (Carvalho, 1987, p. 41). Cres-

    centemente, a cidade foi tambm valorizada pelabeleza de sua natureza, afabilidade de seu povo evitalidade de sua cultura popular, atributos incor-

    porados por seus habitantes definio de suaidentidade. Ser carioca, por nascimento ou decorao, passou a significar ter o esprito alegre,inovador e democrtico da cidade que promoveriaa integrao de todos, acima das diferenas de raae classe, nas praias, escolas de samba e campos de

    futebol. Subestimavam-se, assim, as dinmicas deconflito social na produo da imagem de umparaso tropical.1

    O esvaziamento poltico do Rio de Janeiroresultante da mudana da capital do pas paraBraslia, em 1960, foi compensado exatamentepela valorizao desta imagem de cidade maravi-lhosa, com forte nfase em sua face de centrocultural e poltico que, se padecia de escassez de

    recursos e de poder decisrio, gestava novoscomportamentos, modas e experimentos, ao mes-mo tempo em que sediava e promovia o debate

    * Este artigo constitui um dos captulos de minha tese dedoutoramento sobre cidadania e violncia no Rio deJaneiro, desenvolvida no Programa de Ps-Graduaoem Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia eCincias Sociais da Universidade Federal do Rio deJaneiro, sob a orientao da professora dra. ReginaReyes Novaes, em concluso. Em sua primeira verso foiapresentado no GT Rituais, Representaes e Violnciana Poltica, no XXIII Encontro Anual da Anpocs, Caxam-

    bu, MG, 19-23 de outubro de 1999. Agradeo aoscolegas do GT pelos comentrios, especialmente aCsar Barreira e a Mrcio Goldman, debatedor, pelaspertinentes sugestes. Essa mesma verso do trabalhofoi apresentada tambm no GT Violencia, SeguridadCiudadana, Derechos Humanos y Gobernabilidad, noXXI Congresso da ALAS, Concepcin, Chile, 12-16 deoutubro do mesmo ano, beneficiando-se igualmentedos comentrios dos colegas. Sou grata ainda a PatrciaBirman e a Haroldo Abreu pela cuidadosa leitura ediscusso deste artigo.

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    sobre as grandes questes polticas nacionais. Des-

    ta forma, a representao do Rio de Janeiro pro-gressivamente incorporou novos significados, que

    articulavam o papel de vitrine do pas para oexterior ao lugar de caixa de ressonncia cultural epoltica no plano interno. Nesta qualidade ainda recorrentemente referido por polticos de expres-

    so local e/ ou nacional como o farol da nao, aexperimentar comportamentos, processos e pro-blemas e a sinalizar alternativas e solues.2

    Ao longo dos anos 90, entretanto, o Rio deJaneiro adquiriu o perfil de uma cidade violenta.Assassinatos, roubos, assaltos, seqestros, arras-tes nas praias, brigas de jovens em bailes funk econfrontos armados entre quadrilhas rivais ou

    entre estas e a polcia ganharam as ruas de umaforma inusitada por sua freqncia, magnitude,localizao espacial, potencial de ameaa e reper-cusso na mdia local e nacional. Sucessivos gover-nos (municipais e estaduais), eleitos com a pro-messa de controlar ou acabar com a violncia nacidade, e implementando polticas bastante dife-

    renciadas com vistas a este fim, pouco ou nadaconseguiram fazer para reverter este quadro.

    Interpretando o crescimento da violncia na

    chave da questo social, vrios de seus analistaspassaram a nomear o Rio de Janeiro como umacidade partida (Ventura, 1994; Ribeiro, 1996,entre outros).3 Com isso, de um lado, referiam aum dilaceramento do tecido social por contradi-es e conflitos resultantes de um modelo de

    crescimento econmico e expanso urbana quealijara de seus benefcios parte considervel dapopulao carioca. De outro, aludiam ao que vinhasendo referido pela mdia carioca como uma opo-sio quase irreconcilivel entre as classes mdiase abastadas e a populao moradora nas favelas

    espalhadas nos morros e subrbios da cidade e em

    sua periferia. Remetiam, assim, criticamente, aosentimento difuso de medo e insegurana que

    circulava entre as primeiras e imagem, propagadapor setores da mdia, de que a cidade estaria nolimiar da submisso ao crime e brbarie.4 Arepresentao do Rio de Janeiro como uma cidadepartida terminou, contudo, por reforar os nexossimblicos que territorializavam a pobreza e a

    marginalidade nas favelas cariocas.5

    As novas modalidades de violncia presentes

    no Rio de Janeiro essa poca associavam-se sdinmicas do trfico de drogas e armas e aos

    inmeros confrontos entre policiais e traficantes eentre quadrilhas rivais de traficantes entrincheira-das nos morros e favelas da cidade. De l pareciaemergir um mal a se irradiar para a cidade. A

    percepo da ineficincia das polticas pblicas desegurana e a vivncia, por uma parte de seusmoradores, de situaes caractersticas de contex-

    tos de guerra (mortes, trocas de tiros, invases etc.)no espao urbano propiciaram o desenvolvimentode uma cultura do medo6 que redefiniu asrelaes dos cariocas com o territrio urbano ecom seus concidados, alterando-lhes a sociabili-

    dade. A cidade outrora tida como aberta e hospita-leira encheu-se de portes, guaritas e grades, bemcomo de seguranas e de vigias.7 O tema daviolncia tambm adquiriu centralidade na pautada mdia e dos polticos na cidade.

    As diferentes correntes de opinio e projetospolticos, que divergiam sobre a origem da violn-

    cia, sua abrangncia e os instrumentos para enfren-t-la, podem ser, grosso modo, sintetizadas em duasperspectivas. A primeira, liderada pelo aparato

    policial civil e militar e contando com a adeso ativade vrios polticos, de setores da mdia e de partedos moradores da cidade, oriunda principalmentede suas camadas mdias e abastadas, clamava porordem e segurana e pela disciplinarizao dasclasses perigosas.8 Considerava que a situao

    excepcional da cidade de guerra no admitiacontemporizaes com polticas de direitos huma-nos e com reivindicaes pelo respeito aos direitoscivis dos moradores nos territrios conflagrados. Asegunda, liderada por um grupo de organizaesno-governamentais e de intelectuais formadores

    de opinio na cidade, e que contava com a adeso

    de alguns rgos de imprensa e de setores mdiospolitizados e/ ou intelectualizados, defendia a com-

    binao de polticas de promoo da cidadania,destinadas principalmente a jovens moradores emfavelas e periferias, com alternativas eficientes nocampo da segurana pblica.

    Neste artigo, analiso inicialmente a constitui-o de um cenrio de violncia, medo e inseguran-

    a no Rio de Janeiro, apresentando seus vrios

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    episdios emblemticos e discutindo como foram

    interpretados pela primeira perspectiva. Em segui-da, exploro algumas comparaes entre as cidades

    do Rio de Janeiro e de So Paulo. Apoiada em vriaspesquisas, demonstro como o crescimento da vio-lncia e da insegurana favoreceu a emergncia deum pensamento refratrio ao respeito e/ ou reco-

    nhecimento de direitos de cidadania de segmentosconsiderados potencialmente disruptivos da ordemsocial. Detendo-me no Rio de Janeiro, examino as

    conexes entre a representao da cidade emguerra e o desenvolvimento de uma ambigidadeem relao cidadania desses segmentos, porpresumi-la incompatvel com a segurana pblica.Demonstro como, neste universo semntico, a no-

    o prevalente de cidadania priorizava uma leiturados direitos civis como patrimnio de alguns econtra parte da cidade, em que o desrespeito aosdireitos humanos dos presos e criminosos, a violn-cia policial e a violao de direitos civis de morado-res de favelas e periferias no eram tematizadoscomo algo que ferisse a cidadania, sendo assim

    tolerados por autoridades, por diversos setores damdia e por parte dos moradores da cidade. Por fim,examino a constituio do campo discursivo alter-

    nativo, em que as propostas de pacificao do Riode Janeiro se combinavam a valores vinculados noo de cidadania e a redes de solidariedadeconstitudas com o objetivo de promov-los.

    O Rio de Janeiro como uma cidadeviolenta

    A representao do Rio de Janeiro como umacidade em guerra foi gestada a partir de uma sriede episdios violentos que ali ocorreram no inciodos anos 90. Formulada no interior de um discurso

    que chamava a populao a escolher um dos lados

    de uma cidade pensada como irremediavelmentepartida, a metfora da guerra foi reafirmada, ao

    longo da dcada, toda vez que se ampliou apercepo de agravamento da situao de violn-cia no Rio de Janeiro, ou que o tema foi posto naagenda poltica pela disputa eleitoral para a prefei-tura do municpio ou a governana do estado. Essaperspectiva desdobrou-se, como se ver adiante,

    em uma leitura particularista da cidadania e, no

    limite, em um compromisso com uma soluo

    violenta para o problema da violncia.Essa verso sobre a violncia na cidade sus-

    tentava que o cenrio de paraso chocara em suasentranhas um ovo de serpente (Ventura, 1994),que se transmutava em crimes, trfico de drogas emeninos de rua, delinqncia e desordens urba-

    nas. Seu espao privilegiado e eixo de irradiaopara a cidade seriam as favelas espalhadas nosmorros das reas mais valorizadas do Rio e nos

    bairros pobres, em seus subrbios, espraiando-seainda por sua periferia. Seus personagens seriamos moradores desses locais, em especial o segmen-to mais jovem, alm de bandidos e traficantes que,entrincheirados nas favelas, distribuam a droga na

    cidade. Os adeptos desta viso difundiam a idiade uma sociedade em crise, que no mais dispunhade mecanismos institucionais eficazes para admi-nistrar os conflitos sociais e, por isso, perdera ocontrole de suas classes perigosas. As demandaspor ordem encontravam justificativa em Hobbes,aludindo quebra do pacto civil/ civilizatrio e

    irrupo do estado de guerra: os brbaros invadi-am a cidade.

    Presumindo que se vivia de fato uma guerra

    que opunha morro e asfalto, favelados e cidados,bandidos e policiais, os partidrios desta perspec-tiva aceitavam a violncia policial em territriosdos e contra os grupos estigmatizados e assistiampassivos ao envolvimento de policiais militares emvrias chacinas. A morte de 11 jovens favelados

    moradores na periferia (Acari), em junho de 1990,o assassinato de sete menores que dormiam sportas da igreja da Candelria, uma das principaisdo Rio de Janeiro, em julho de 1993, e o massacrede 21 pessoas residentes em uma das favelas maispobres e violentas da cidade (Vigrio Geral), em

    agosto do mesmo ano, crimes pelos quais foram

    acusados, respectivamente, cinco, sete e 49 polici-ais militares, denotam uma escalada nesse envolvi-

    mento.As imagens das crianas e jovens chacinados

    e dos corpos enfileirados em caixes no cho dafavela foram divulgadas pelos meios de comunica-o em todo o mundo. A repercusso internacionaldas chacinas de Acari, Candelria e Vigrio Geral

    alterou, na avaliao dos principais jornais cario-

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    cas, a imagem do Rio (e do Brasil) no plano interno

    e no exterior. Se internamente a cidade passou aser considerada uma prvia do destino que aguar-

    daria as demais metrpoles brasileiras, para omundo, doravante, as imagens da cidade e do pasoscilariam entre o maravilhoso e o terrvel, entre osamba e o carnaval de um lado e a morte dos

    meninos de rua de outro.9 A reao dos habitan-tes da cidade s chacinas foi, no entanto, bastantediversificada. De fato, o nico caso a produzir um

    sentimento unvoco de injustia parece ter sido achacina de Vigrio Geral,10 o que deve ser credita-do, em boa parte, ao fato de jornais e redes deteleviso terem enfatizado a condio de trabalha-dor ou estudante das pessoas assassinadas e, par-

    ticularmente, ao fato de entre as vtimas encontrar-se uma famlia evanglica, atributos que pareciamatestar seu no comprometimento com o campo damarginalidade e do crime.

    A chacina de Acari provocou um sentimentode solidariedade pelas mes dos adolescentes mor-tos, que peregrinaram pelas autoridades em busca

    de informaes e realizaram um protesto quasemudo na principal praa pblica da cidade. As Mesde A cari tornaram-se uma verso local e em menor

    escala das Madres de la Plaza de Mayo, em suamesma persistente luta por justia.11 J o noticirioa respeito da chacina da Candelria revelava ascontradies dos comerciantes e freqentadoreshabituais da regio com os meninos de rua, sugerin-do que a ao da Polcia Militar satisfazia a uma

    demanda de ordem e segurana, constituindo umaresposta eficaz ao problema de assaltos e furtos queo Estado no teria estrutura, vontade e amparo legalpara solucionar.12 No episdio tambm se manifes-tava um tema presente no debate da cidade. Desde1990, quando entrara em vigor o Estatuto da Crian-

    a e do Adolescente, a polcia freqentemente se

    eximia da vigilncia e represso legal aos menoresinfratores sob o argumento de que sua inimputabili-

    dade penal e o respeito a seus direitos humanosinviabilizavam qualquer tipo de controle e punio.A idia de que a sociedade era impotente frente ao desse grupo alimentava sua converso emuma das faces do mal.

    Para a corrente de pensamento que estamos

    analisando, os efeitos perversos da presena, in-

    contida e incontrolvel, de menores e/ ou jovens

    infratores teriam se manifestado com os arrastesnas praias no final de 1992. Brigas entre grupos

    adversrios de jovens moradores em bairros po-bres e favelas, em sua maioria negros ou mestios,produziram tumultos, correrias e pnico em umadas reas mais valorizadas da cidade. Apesar de,

    materialmente, terem resultado apenas em peque-nos furtos, tiveram grande efeito no plano simb-lico, produzindo uma intensa insegurana e a

    percepo de que a ordem social e a seguranapblica beiravam o caos. A ruptura das fronteirasmateriais e simblicas entre as classes sociais nacidade por grupos de jovens pobres, negros, su-burbanos e favelados, fartamente anunciada pela

    mdia, atemorizava parte das classes mdias eabastadas do Rio de Janeiro. Esses jovens pertenci-am a grupos ou galerasfunk rivais, sediadas emdiferentes favelas, e sua violncia decorria, segun-do a mdia, de suas conexes com o trfico dedrogas.13 As galeras funk eram referidas na im-prensa e auto-referidas como bondes do mal, em

    uma aluso tanto ao transporte coletivo usado parair ao baile funk quanto sociabilidade queenvolviam, aos cdigos que quebravam e ruptura

    espacial e social que promoviam. Atravs de suces-sivos deslocamentos que associavam o funk violncia e ao crime e estes favela, a mdia passoua apresentar o funk eiro como o personagemparadigmtico da juventude moradora da favela(Cunha, 1997, p. 109).

    Num outro plano, os jornais, particularmenteo Jornal do Brasil, responsabilizavam sobretudo ogoverno estadual por uma poltica de direitoshumanos incompatvel com a segurana pblica eque seria conivente com a ilegalidade e a desor-dem.14 O mesmo jornal amplificava a ameaa

    disruptiva articulando-a aos resultados da disputa

    eleitoral para a prefeitura da cidade, em curso poca. Seus editoriais sustentavam que, se eleita, a

    candidata do Partido dos Trabalhadores, Beneditada Silva, negra, favelada e evanglica, governarias para as favelas e os arrastes se espalhariampela cidade (Dolhnikoff et al. , 1995).15

    Essa formulao alimentava e era alimentadapela percepo do Rio de Janeiro como uma

    cidade sitiada por favelas. Percepo que se devia

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    ao nmero de favelas, sua visibilidade nos mor-

    ros das reas mais valorizadas do Rio e, particular-mente, ao crescimento da populao favelada em

    uma proporo muito superior do restante dacidade.16 Diversas reportagens discutiam a faveli-zao da cidade com textos e imagens que aciona-vam a idia de cerco e o medo de aniquilamento.17

    Neste repertrio simblico, os arrastes atualiza-vam uma hiptese sempre presente no imaginriocarioca: o morro descer, isto , seus habitantes

    tomarem a cidade hiptese vislumbrada noCarnaval, quando a cidade palco dos desfiles dasescolas de samba, em sua maioria sediadas nosmorros, mas ento destituda de sua carga deameaa, pois mediada pela festa e pela sensualida-

    de (Leite, 1998). Outros arrastes nas praias e emalgumas ruas das cidades, nos veres de 1993 e1994, produziam mais medo e insegurana.

    Ao medo juntava-se o preconceito. Nos finaisde semana ensolarados, a polcia carioca passou adeter nas praias mais valorizadas da cidade jovenspobres, suburbanos, quase sempre negros ou mes-

    tios andando em grupos, sob a suspeita de quepromoveriam arrastes. O controle e/ ou a proibi-o de seu acesso s praias nos fins de semana

    tambm foram temas de debates e reportagens(Silva, 1996), alimentando os jornais cariocas compropostas de alterao dos itinerrios das linhas denibus que ligavam os subrbios s praias dacidade e de instalao de portes e/ ou guaritas nosacessos orla martima. A cada arrasto ou situao

    violenta experimentada na cidade, essas propostasocupavam a agenda poltica por dias seguidos,expressando a articulao da insegurana comdesconfiana e preconceito em relao aos pobres,negros e favelados, ainda mais se jovens e funkei-ros.

    Outras imagens desconfortveis da violncia

    eram freqentemente divulgadas pela mdia. Re-crutados pelo trfico, adolescentes, muitos quase

    crianas, trabalhavam como olheiros (vigias), avi-es (entregadores), soldados (guardas armados) ougerentes de bocas-de-fumo (pontos de venda). Aseduo da juventude pobre pelo estilo de vida epelo padro de consumo propiciados pelo trficode drogas tambm estava em discusso na cidade.

    Vrias pesquisas sugeriam que o que devia ser

    explicado no era tanto a adeso da juventude

    criminalidade, mas antes a razo de parte dos jovens no aderir ao trfico. Alba Zaluar, por

    exemplo, apontava como um dos principais fatoresde atrao dos jovens para a criminalidade a perdada relevncia do trabalho no plano subjetivo,enfatizando que a queda do poder de compra do

    salrio mnimo, o aumento da jornada de trabalhomediante horas-extras e/ ou biscates, o dficit deempregos para trabalhadores desqualificados e a

    diluio da distino entre trabalhador e bandidona perspectiva do aparato policial de Estado eramelementos que, observados na vida de seus pais,somavam-se s experincias dos jovens na forma-o de uma viso negativa do trabalho, que

    conjugava explorao, submisso e humilhao.De outro lado, a entrada na esfera do crime erapercebida como lhes propiciando os signos depoder e consumo capazes de satisfazer as deman-das de uma cultura hedonista, das exignciasnarcsicas e do mundo masculino (Zaluar, 1994,pp. 8-9 e 235 ss).

    Uma outra face do envolvimento da juventu-de pobre com o trfico de drogas foi revelada pormeio de pesquisas que mapearam a criminalidade

    letal no Rio de Janeiro, identificando como suasprincipais vtimas os jovens pobres, com baixaescolaridade, pretos ou mestios, do gnero mas-culino e idade entre 18 e 24 anos.18 Apoiadosnestes dados, cuja hiptese explicativa seria aexistncia de algum envolvimento desse grupo

    com redes de drogas, os pesquisadores concluamque o problema mais grave, no que concerne sduas pontas, passiva e ativa, da criminalidadeviolenta, a juventude (masculina) excluda dacidadania (Soareset al., 1996, p. 257).

    A produo acadmica foi apropriada pela

    mdia na construo de um diagnstico sobre a

    violncia e sua relao com a juventude pobre doRio que encontrava alento nos dados demogrficos

    e do mercado de trabalho. Apesar de relativamentebaixo, o desemprego no Rio de Janeiro encontra-va-se concentrado na populao de baixa rendadas favelas, penalizando principalmente os jovenscom menor escolaridade.19 Tambm os ndices deinformalidade eram bem maiores nas favelas do

    que no resto da cidade.20 Esses dados indicavam

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    uma crise no mundo do trabalho, que parecia no

    mais ser capaz de incorporar continuamente novose velhos trabalhadores crescente expanso da

    produo e dos servios e, assim, integr-los ssuas instituies e a seus valores, lgica e ticado trabalho.

    A perspectiva que entendia o Rio de Janeiro

    como uma cidade em guerra fez uma leitura dessacrise vinculando informalidade a legalidade.21

    Interpretando as situaes de conflito e violncia

    como fruto da crise do mundo do trabalho, estacorrente de pensamento conclua que, uma vezliberadas de suas mediaes, as classes perigosasirromperiam de forma cada vez mais incisiva nacidade.

    Qual cidadania, se estamos em

    guerra?

    Tal como o Rio de Janeiro, as grandes cidadesbrasileiras, e particularmente So Paulo, sofreramos efeitos no s do aumento dos crimes e da

    violncia, mas tambm de uma mudana expressi-va de suas modalidades, que, em grande parte,desde meados dos anos 80 encontram-se vincula-

    das expanso do trfico de drogas e s suasconexes com os cartis internacionais. A reao aesses novos cenrios de violncia, insegurana emedo freqentemente recorreu metfora daguerra de todos contra todos que estaria em cursopondo em risco, cotidianamente, o mais funda-

    mental dos direitos dos indivduos: o direito vida.Esta formulao desdobrou-se em fortes re-

    clamos por ordem e segurana como garantia dosdireitos e liberdades individuais.22 Demanda quepode ser interpretada como inscrita em uma pers-pectiva de fortalecimento cvico e universalismo,

    que viesse a suprir a carncia de uma tradio

    cvica na sociedade brasileira. Muitos autores en-tendem esta carncia como fruto do modo de

    institucionalizao da cidadania entre ns, que setraduziu em uma percepo frouxa dos direitos egarantias individuais e na inexistncia ou ineficciados mecanismos para proteg-los.23 A valorizaodos direitos civis tenderia a expressar, assim, ummovimento de crescente conscincia de direitos e

    de problematizao do precrio acesso justia,

    representando uma possibilidade de ampliao

    efetiva da cidadania, no sentido de sua universali-zao (Carvalho, 1987 e 1996; Zaluar, 1995).

    Penso, ao contrrio, que o sentido destemovimento no unvoco. Essas demandas, tendopor matriz o medo e a insegurana, podem tam-bm remeter intolerncia e ao particularismo,

    alimentando sentimentos, atitudes e processos quecorroam as bases daquele desenvolvimento dadimenso cvica da cidadania.

    Vrias pesquisas realizadas na ltima dcadarevelam a relao entre o crescimento da violnciae da insegurana e a emergncia de um pensamen-to que, distanciando-se dos temas da solidariedadee da justia social que presidiram a ampliao da

    cidadania nas sociedades modernas,24 refratrio hiptese de extenso dos direitos de cidadania anovos segmentos sociais. J ao final da dcadapassada, Pierucci (1987) demonstrava que SoPaulo era uma cidade que se fechava aos migrantespobres do norte e nordeste do pas e suaesperana de uma vida melhor.25 Rompia, assim,

    sua tradio de acalentar esses sonhos com apromessa de recompensar o trabalho rduo ehonesto com ascenso social.26 Dos discursos de

    seus informantes, das classes mdias paulistanas,emerge uma percepo da cidade e de seus pro-blemas mediada por sentimentos de xenofobia eagressividade contra esses migrantes, responsabili-zados pelo desemprego, pela misria, delinqn-cia, violncia e por toda sorte de degradaes e

    desordens urbanas.27 Associando os discursos dainsegurana e da intolerncia, as solues propos-tas, como ressalta Pierucci, encontram-se no cam-po da apartao e da excluso: da reverso dofluxo migratrio repatriao dos bandidos paracumprirem penas em seu estado de origem.

    A partir de pesquisa feita em bairros popula-

    res e de classe mdia nas duas metrpoles, AlbaZaluar tambm aponta o surgimento de uma

    demanda crescente por ordem como um dosprodutos do medo da criminalidade violenta. Des-taca, no caso do Rio de Janeiro, o diagnstico deum insupervel conflito social e o fracasso institu-cional em lidar com ele, que exige e apia umaatuao policial mais eficiente e dura e governos

    fortes, e elege polticos de direita que defendem a

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    pena de morte.28 Referindo-se a So Paulo, Zaluar

    (1995, pp. 399 e 401) sublinha que, com a equaoimigrao-desemprego-violncia, a adeso de-

    mocracia tende a se restringir valorizao dosprocessos eleitorais, particularmente para o Exe-cutivo.

    As imagens da cidadania no Rio de Janeiro

    que recolhi em minha pesquisa so tambm sig-nificativas a esse respeito, indicando uma claraconexo entre a consolidao da representao da

    cidade em guerra e o desenvolvimento de umaambigidade em relao ao respeito dos direitoscivis e humanos de favelados, por presumi-losincompatveis com a segurana pblica. Desde oincio da dcada, sob o influxo dos acontecimentos

    analisados na seo anterior, parte da populaocarioca parece viver sob a metfora da guerra, quevincula, de modo difuso, a criminalidade violenta eo narcotrfico s contradies que opem morro e

    asfalto, traficantes e trabalhadores, favelados ecidados. Com isso, renovam-se os estigmas sobreos favelados e problematiza-se o reconhecimento

    de sua cidadania e de seu direito cidade.29

    Nas duas maiores cidades do pas, medo epreconceito fundem-se e materializam-se em uma

    paisagem urbana dominada por grades e aparatosde segurana, em que as favelas e as periferias soconotadas como celeiros da marginalidade. Daproposta de repatriao de imigrantes nordestinosanalisada por Pierucci deteno arbitrria de jovens pobres e s propostas de impedir seu acesso

    s praias que se seguiram aos arrastes no Rio deJaneiro, estamos falando de um campo discursivoque legitima a segmentao da cidade e o usoseletivo de seu territrio. O direito cidade nomais concerne totalidade de seus habitantes; osespaos pblicos no mais se prestam convivn-

    cia entre desiguais (Pierucci, 1987; Pires Caldeira,

    1996; Zaluar, 1995; Leite, 1995). neste contexto que a revalorizao dos

    direitos civis vem crescentemente se distanciandode uma perspectiva de universalizao das liberda-des e garantias individuais e da democratizao doacesso justia no mbito da cidade, como queremCarvalho e Zaluar. Conectados a uma tematizaoda cidade e da cidadania a partir da problemtica da

    ordem e da segurana, os direitos civis so reivindi-

    cados como patrimnio de alguns e contra parte da

    cidade/ sociedade. Elementos centrais para a estru-turao desse campo discursivo so a percepo da

    alteridade como ameaa e desta como imune aqualquer tipo de soluo poltica ou institucional,restando portanto o conflito aberto, nas ruas, oum ais propriam ente, um a situao de guerra.30

    Representar o conflito social nas grandescidades como uma guerra vem implicando acionarum repertrio simblico em que lados/ grupos em

    confronto so inimigos e o extermnio, no limite,uma das estratgias para a vitria, pois com facili-dade admitido que situaes excepcionais deguerra exigem medidas tambm excepcionais eestranhas normalidade institucional e democrti-

    ca. neste universo semntico que se insere aqualificao da violncia policial em bairros popu-lares, favelas e periferias e do desrespeito aosdireitos civis de indivduos de classes popularessuspeitos de participao ou conivncia com acriminalidade violenta como simples excessos,males necessrios e secundrios na guerra contra o

    crime.31 De resto, o argumento da eficincia sesobrepe ao da democracia e cidadania, absolven-do polticas e foras de segurana pblica dos

    acidentes de percurso inevitveis em um con-fronto de tal envergadura.

    Dentre vrios episdios similares ocorridosna cidade do Rio de Janeiro, cito dois que meparecem exemplares do ponto que quero destacar.O primeiro, as aes no mbito da Operao Rio

    uma operao militar de combate ao narcotrfi-co e criminalidade realizada no segundo semes-tre de 1994 que teve por estratgia principal ocerco aos morros e favelas e envolveu diversoscasos de espancamentos, torturas, prises arbitrri-as, revista de crianas etc. As diversas violaes de

    direitos civis, noticiadas pela imprensa, foram tole-

    radas por parte significativa dos moradores dacidade, que apoiou a Operao Rio celebrando o

    novo sentimento de segurana de que desfrutava(Caldeira, 1996; Leite, 1995 e 1998). Apesar dasdenncias e protestos das entidades de defesa dedireitos humanos, esse apoio explcito s lhe foiretirado quando se verificou que no produzia osresultados esperados em termos de diminuio das

    taxas de criminalidade (Caldeira, 1996).32

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    80 REVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS SOCIAIS - VOL. 15 No 44

    O segundo, mais recente, o caso do assas-

    sinato de uma estudante, filha de um empresrio,em meio a uma onda de crimes em um bairro de

    classe mdia, em abril de 1998.33 Preso comosuspeito, um trabalhador confessou o crime. Logoa seguir, no entanto, denunciou Corregedoria daPolcia Civil que a confisso fora obtida sob tortura.

    O exame de corpo delito s foi realizado 24 diasdepois da priso. Durante quase trs meses, mes-mo quando inocentado pela deteno dos verda-

    deiros criminosos, este homem permaneceu preso, j ento sob suspeio de roubo de carro, o quetambm no se confirmou. Essa violao de seusdireitos civis foi registrada pelos principais jornaisda cidade, mas no suscitou nem a comoo, nem

    as atitudes (pronunciamentos, correntes de opi-nio ou movimentos) que tm sido produzidas, noRio de Janeiro, em apoio s vtimas da violncia,como por exemplo, no prprio caso, em relao estudante, sua famlia e a outros moradores emLaranjeiras.34

    A situao relatada tambm indica como a

    percepo da violncia e o sentimento de ameaadiversificam-se na cidade, seguindo o desenho daapropriao social do territrio. Se as camadas

    mais abastadas temem a possibilidade de seqes-tro e as camadas mdias traduzem a violncia porbalas perdidas, assaltos, trombadinhas e pivetes,os favelados com freqncia experimentam a vio-lncia do poder desptico do narcotraficante donodo morro e das incurses policiais s favelas, com

    tiroteios que no poupam os moradores e o desres-peito sistemtico a seus direitos civis.35 Essasmltiplas perspectivas revelam que a percepo deum episdio violento como ameaador nem sem-pre geral para toda a cidade, ainda que a mdiatenda a generalizar alguns eventos como concer-

    nentes a todos, pautando a cidade de acordo com

    as principais estratgias que se defrontam no cam-po jornalstico (Bourdieu, 1997; Fausto Neto et al.,

    1995).

    Particularismo e intolerncia

    Esse campo discursivo que analisamos tam-bm recobre a tematizao dos direitos humanos

    dos presos/ criminosos. No caso de So Paulo,

    Pierucci demostra como a questo dos direitos

    humanos perpassada pelo que denomina odiscurso da intolerncia. Seus informantes identi-

    ficam o sintagma direitos humanos [...] com a idiade mordomia para os presos, que logo reconhe-cem como proposta da Igreja Catlica, particular-mente do ento cardeal d. Paulo Evaristo Arns,

    encampada pelo governo do PMDB.36 Segundo oautor, esse reconhecimento gera um anticlericalis-mo e se articula ao crescimento eleitoral da nova

    direita na cidade (Pierucci, 1987, pp. 27-28). Seusdados nos indicam uma percepo do tema dosdireitos humanos dos presos como uma inversode valores, que protege criminosos em vez doscidados decentes ou homens de bem e dos

    policiais que arriscam sua vida para defend-los.A idia de mordomia dos presos expressa umarevolta pelo fato de os presos viverem sem traba-lhar e s custas dos contribuintes. Penso que o maissignificativo, no entanto, nas entrevistas reproduzi-das pelo autor a concluso de que o bandidopermanece impune.37 Percepo que, como se

    sabe, tem alimentado a adeso da populao pena de morte ou execuo extrajudicial pelapolcia ou por esquadres da morte, alternativas

    com freqncia consideradas mais eficazes nocombate ao crime.38

    A Comisso de Justia e Paz da Arquidiocesede So Paulo encontrou dados consistentes com asconcluses de Pierucci em pesquisa realizada em1990, nas trs maiores regies metropolitanas do

    pas (Grande Rio, Grande So Paulo e GrandeRecife): 71% dos paulistas e 69% dos cariocasconcordavam total ou parcialmente que, no Brasil,o criminoso tem mais direitos do que a vtima. Apesquisa revelou ainda uma correlao entre nvelsocioeconmico baixo e o entendimento de que a

    violao dos direitos humanos estava ligada

    esfera das necessidades bsicas.39

    Em pesquisaanterior (Leite, 1995) tambm identifiquei uma

    rejeio ao tema dos direitos humanos, que apare-cia como perversamente referido aos presos/ crimi-nosos (esse pessoal [...] no faz nada pelos pobres,s se preocupa com bandidos). interessanteobservar que quase todos os entrevistados, mora-dores nas cercanias de uma favela da zona oeste da

    cidade, registraram a violncia policial e manifesta-

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    ENTRE O INDIVIDUALISMO E A SOLIDARIEDADE 81

    ram descrdito na justia (a justia s condena

    preto e pobre). Nenhum, entretanto, associoudireitos humanos proteo do indivduo (co-

    mum) em face da violncia estatal/ policial.40 Emminha pesquisa atual pude notar como o mesmoargumento intensificado diante da percepo deescassez de recursos do Estado. Um de meus

    entrevistados, presidente de uma associao demoradores de favela e grande admirador de Brizo-la, a quem considera o pai das favelas, s crtico

    ao ex-governador quanto sua poltica de direitoshumanos, que considera um absurdo, pois faz oEstado gastar com quem no merece.

    No Rio de Janeiro, desde o incio da dcada,diferentes interpretaes sobre o tema da cidada-

    nia e dos direitos humanos vm sendo disputadaspelo aparato de segurana, pela mdia, por suces-sivos governos e por organizaes da sociedadecivil. No perodo que correspondeu consolidaoda metfora da guerra na cidade (1994-98), ogrande confronto verificava-se entre autoridadespblicas, que qualificavam os direitos humanos

    como conivncia com ou opo pela criminalidadecontra a polcia e a segurana, e organizaes no-governamentais, que defendiam uma poltica de

    segurana pblica sob controle democrtico e comrespeito aos direitos humanos e civis dos segmen-tos atingidos pela violncia policial. Velrios eenterros de policiais constituam os palcos preferi-dos pelos primeiros, para enfatizar a inverso devalores que estaria em curso e assinalar que se

    tratava de escolher um lado da cidade partida aproteger. Esta construo discursiva pode ser ob-servada, por exemplo, na declarao do entosecretrio estadual de Segurana Pblica, generalNilton Cerqueira, em velrio de policial morto emconfronto em favela: [...] ao criticarem a ao da

    polcia, esses socilogos no contribuem para a

    represso ao crime. Muito pelo contrrio, acabamdificultando o trabalho da PM nos morros e favelas.

    Essa atitude est virando uma espcie de proteoaos traficantes ( Jornal do Brasil, 20/ 5/ 1996).41

    Mesmo o ento chefe da Polcia Civil, delega-do Hlio Luz, considerado um homem de esquer-da vinculado ao Partido dos Trabalhadores, en-contrava-se inserido nessa matriz discursiva, vincu-

    lando a interesses escusos o repdio de setores da

    sociedade [s formas de] combate criminalidade

    no Rio de Janeiro. A propsito das 201 mortes (seisdas quais comprovadamente de menores) registra-

    das em autos de resistncia (resistncia a tiros ordem de priso) nas 37 delegacias da capital,entre janeiro de 1995 e fevereiro de 1996, Helio Luzponderou que as vtimas no eram cidados co-

    muns, tendo perdido sua cidadania ao portaremarmas e enfrentarem a autoridade pblica. Mas,no s aos bandidos ele no reconheceu a cidada-

    nia. Pois, apesar de afirmar que 99,9% dos favela-dos [so] gente honesta e trabalhadora, condenouos governos anteriores por submeterem a polticade segurana pblica ao respeito sua cidadania:defendendo a inviolabilidade das casas nos morros

    da cidade (ou seja, respeitando os direitos civis dosmoradores em favelas), teriam acabado por permi-tir a instituio de santurios do crime nas mes-mas.42

    Dos episdios analisados possvel depreen-der o quanto de particularismo e intolernciapode acompanhar a revalorizao dos direitos civis

    na cidade, indicando que o sentido da demandapor direitos civis no necessariamente unvoco.Noticiados pelos principais jornais, conhecidos

    pelos cariocas, o desrespeito aos direitos humanosdos presos/ criminosos e a violncia policial sobremoradores de favelas e pessoas das classes popu-lares no vm sendo tematizados pelo conjunto dacidade como algo que fira a cidadania e, assim,constitua uma questo concernente a todos. Os

    resultados da pesquisa Lei, Justia e Cidadania(CPDOC-FGV e ISER, 1997) so elucidativos a esserespeito, ao mostrarem que neste universo semn-tico coabitam o desconhecimento por parte doscidados de seus direitos e das garantias legais43 euma percepo dos direitos dos outros que admite

    a violao dos direitos civis sob o argumento do

    controle da criminalidade: 63,4% dos entrevistadosconcordam totalmente (e 6,9% tendem a concor-

    dar) que os bandidos no devem ter direitosrespeitados; 51,8% toleram linchamentos, mesmoquando consideram errado este tipo de violnciacivil (40,6%). Por fim, 40,4% dos entrevistados justificam o uso de mtodos violentos para confis-so de suspeitos em alguns casos, enquanto 4,1%

    justificam sempre a violncia policial. Estes dados

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    indicam um forte compromisso com uma idia

    mnima de direito civil (a integridade fsica depessoas sob a guarda do Estado) (CPDOC-FGV e

    ISER, 1997, p. 44).44As palavras de uma das coordenadoras da

    pesquisa, em entrevista em que divulga seus resul-tados, podem nos ajudar a entender como esta

    questo vem sendo construda na cidade do Rio deJaneiro: como se o direito fosse um bem escasso.E j que h pouco, o bandido no merece ter. um

    privilgio (entrevista de Dulce Pandolfi, O Dia,17/ 8/ 1997). Nesta lgica, os direitos civis so per-cebidos como um privilgio que os cidados noquerem partilhar nem com bandidos, nem comaqueles que por alguma razo se encontram em

    estado de subcidadania.No caso do Rio de Janeiro, o principal opera-

    dor da demanda por mais cidadania, que simulta-neamente exige garantias das liberdades e direitoscivis para as classes mdias e altas e tolera asupresso de sua condio de prerrogativas fun-damentais para indivduos de setores populares e/

    ou favelados, a construo de duas imagenspolares a partir da metfora da guerra. De um lado,os cidados identificados como trabalhadores,

    eleitores e contribuintes e, nesta qualidade, pesso-as de bem, honradas, para quem a segurana condio primordial para viver, produzir, consu-mir. De outro, os inimigos representados no/ pelomorro. Categoria que no distingue, dentre seusmoradores, favelados e marginais. De fato, o uso

    da metonmia corresponde a uma aproximaodos dois segmentos, atribuindo aos primeiros ora acondio de refns, ora a de cmplices dos segun-dos, cujo lado teriam escolhido ao optarem pelocampo da ilegalidade (moradias em terrenos inva-didos, sem pagar impostos e servios pblicos,

    insero marginal no mercado de trabalho etc.).45

    Dois pontos associados nesta formulao devemser ressaltados. Primeiro, a cidade ilegal corpori-

    ficada no morro apresentada como territrio dano-cidadania, submetida a uma fora concorrente do Estado. Segundo, a responsabilidade doEstado na proteo desses segmentos quando emcombate ao crime diluda tanto pela situao deguerra, quanto porque, responsabilizados por

    suas escolhas pretritas, no h inocentes entre os

    favelados. Assim, caberia aos mesmos arcarem

    com os custos de terem optado por um doslados da cidade partida. Um lado que, como

    vimos, no percebido por grande parte da cidadedo Rio de Janeiro como concernente esfera dacidadania.

    A proposta de pacificao da cidade

    do Rio de Janeiro

    A partir da segunda metade da dcada de 90,entretanto, vem encontrando cada vez mais resso-nncia na cidade uma corrente de pensamento eopinio alternativa examinada na seo anteriore que foi sugerida em algumas de suas passagens.

    Esta corrente vem propondo a pacificao dacidade por meio de solues democrticas para oproblema da violncia e da segurana pblica, comisso significando o respeito aos direitos humanos ecivis de toda a populao e a submisso dasatividades policiais ao controle da sociedade civil.Advoga a necessidade de domesticar a polcia e

    de levar a cidadania para as favelas e periferias,integrando seus habitantes, particularmente os jo-vens, cidade.

    Alm dos mltiplos projetos voltados para a juventude pobre das favelas e periferias,46 que seinserem nas redes de solidariedade que examinareiadiante, gostaria de destacar a realizao de vriosatos e campanhas cvicas que tiveram por eixo acelebrao de uma dimenso comunitria da vida

    social e a valorizao dos efeitos simblicos pass-veis de serem por ela produzidos. Penso especial-mente em diversos atos pela paz, iniciados com oabrao Candelria (um dos marcos inauguraisda atuao do Viva Rio na cidade), em 1993, naesteira das chacinas de Acari, Candelria e de

    Vigrio Geral, e que culminaram, dois anos depois,

    no movimento Reage Rio, passando por diversasmanifestaes de afirmao de liberdade religiosa e

    compromisso de todas as religies com a causa dapaz, pela Ao da Cidadania contra a Misria e pelaVida e por vrias edies (de 1994 a 1999) dacampanha pelo desarmamento. Esses diversos atose campanhas, mais do que voltados para reivindica-es pontuais da sociedade civil relativamente ao

    Estado, buscaram fazer florescer nos cidados o

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    ENTRE O INDIVIDUALISMO E A SOLIDARIEDADE 83

    sentimento de pertencimento cidade e envolvi-

    mento com seus co-cidados. Para isso, investiramclaramente na educao dos cidados nas virtudes

    cvicas, uma espcie de paidia que valorizava asolidarizao de seus interesses e seu compromis-so, mais existencial do que poltico, com os destinosda nao e da cidade, com a realizao da paz, da

    fraternidade e da justia.47 Tiveram, no meu enten-der, trs eixos principais de atuao. Primeiro,buscaram se constituir em uma demonstrao prti-

    ca de que a cidade podia abrigar favela e asfalto;camadas mdias, pobres e ricos; pentecostais, ma-cumbeiros e catlicos, vivendo essa diversidadeno como ameaa, mas como pluralidade e expres-so de sua especificidade como cidade maravilho-

    sa.48 Segundo, colocaram em discusso a polticade segurana pblica em curso e, terceiro, afirma-ram um campo discursivo alternativo tematizaoda cidadania atravs da metfora da guerra.

    Configurado como contraponto ao campo dametfora da guerra, este campo discursivo alterna-tivo tambm atravessado por disputas de sentido

    cuja anlise foge aos objetivos deste artigo.49

    Gostaria apenas de destacar que ele representa umponto de inflexo na tematizao da violncia na

    cidade do Rio de Janeiro, que se articula a umanova concepo de cidadania e de poltica, que aliparece estar se gestando com o recurso s idias depaz e solidariedade.

    Vale lembrar que a perspectiva que supunhaa existncia de uma guerra entre morro e asfaltodominou o Rio de Janeiro durante grande parte dadcada de 90. Vitoriosa nas eleies de 1992 paraa Prefeitura da cidade, foi incorporada poltica desegurana pblica desenvolvida nos planos muni-cipal (governo Csar Maia, 1993-96) e estadual(governo Marcello Alencar, 1995-98).50 Entretanto,

    quando as duas perspectivas novamente se defron-

    taram nas eleies para o governo do estado (parao perodo 1999-2002), parte considervel da popu-

    lao da cidade aderiu proposta de pacificaoque vimos examinando e que constituiu um pontocentral dessa campanha.51 O que, certamente, estlonge de significar a sua hegemonia. Antes, oconfronto entre ambas continua a se verificar deforma permanente no Rio de Janeiro. A associao

    entre favelas, marginalidade, crime e violncia

    persiste no repertrio discursivo da cidade, sendo

    acionada a cada vez que se renova a perceposobre o aumento da violncia.52 Contudo, o resul-

    tado eleitoral da corrente que advoga a pacificaoda cidade talvez indique uma perda de legitimida-de das solues violentas, at porque estas sevinham revelando ineficazes do ponto de vista das

    polticas de segurana.

    As redes de solidariedade comopromotoras da cidadania

    Para concluir, gostaria de indicar brevementealguns dos elementos que me parecem centrais naressemantizao das noes de cidadania e de

    poltica que acredito estar em curso no s no Riode Janeiro, mas tambm em outras grandes cidadesbrasileiras. No caso do Rio, vimos que a cidadeatravessou, ao longo da dcada de 90, um processode disputa pelo sentido da noo de cidadania. Deum lado, em face das dinmicas de violncia,conflito, insegurana e privao que se configura-

    ram na cidade, os direitos civis foram tematizadosa partir de uma leitura privatizadora que os com-preendia como patrimnio exclusivo dos cida-

    dos de bem. Esta leitura da cidadania propiciavauma concepo dos direitos polticos que tendia arestringir aos processos eleitorais o tempo espec-fico da poltica, em detrimento de uma dinmicaparticipativa. Em ambos os casos, a noo decidadania foi se distanciando da valorizao do

    espao pblico como o lugar do encontro, danegociao e da conciliao de interesses diver-gentes que caracteriza uma cultura poltica demo-crtica. O que poderia indicar um esgaramento dasolidariedade cvica, com o correspondente retor-no da cidade para a esfera privada, como analisa

    Reis (1995), recorrendo ao conceito de familismo

    amoral de Banfield (como um ethos que delimitaos sentimentos de pertencimento e solidariedade

    ao mbito exclusivo da famlia) para pensar asdificuldades da solidariedade e integrao socialem contextos de extrema desigualdade, como obrasileiro.

    Contudo, como contraface dessa tendncia,um outro movimento vem propondo, nas grandes

    cidades brasileiras e com especial nfase no Rio de

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    Janeiro, sentidos alternativos cidadania e pol-

    tica mediante a valorizao da idia de solidarieda-de e do compromisso com a idia de paz. Trata-se

    de mltiplas aes e projetos de resgate da solida-riedade entre os cidados, com forte nfase nosseus deveres, e no mais em seus direitos, ou emsua participao poltica. Valorizam, sobretudo, a

    responsabilidade (moral e/ ou cvica) dos cidadospara com a comunidade (o grupo, a cidade ou anao). Promovidas por diversas ONGs, igrejas,

    grupos de jovens, empresas, movimentos e outrasassociaes da sociedade civil, no recusam porprincpio a mediao estatal, mas nela raramenteencontram inspirao, vigor e impulso original.Antes, revelam uma escolha estratgica de ao da

    cidadania, que se quer complementar ao esta-tal ou oposta sua inao e que constitui umaresposta crise de cidadania, com a decorrenteperda do poder de atuao, normatizao e inte-grao da esfera pblica (Leite e Abreu, 1994).

    Muitos autores (Franco, 1994; Novaes, 1998;Landim, 1998, entre outros) tm valorizado essas

    iniciativas, que representariam o surgimento de umestado de fermentao social que, no vazio deixa-do pela derrota do socialismo e pelo enfraqueci-

    mento dos movimentos sociais e de trabalhadores,tenderia a instaurar uma nova e positiva dinmicana sociedade brasileira. Uma exploso de solidarie-dade expressaria, realimentando-as, mltiplas for-mas de participao voluntrias e/ ou com algumgrau de profissionalizao, em ONGs, campanhas,

    aes pontuais, projetos, redes e fruns , comobjetivos tambm diversificados. Esse campo tam-bm inclui os diversos fruns, redes e conselhosque promovem uma participao da sociedade civilna formulao ou implementao de polticas p-blicas (como, por exemplo, no caso do Rio de

    Janeiro, os conselhos do oramento participativo,

    de sade, escola-comunidade, a Agenda Social Rioetc.), as campanhas (como o Viva Rio, a Ao da

    Cidadania contra a Misria e pela Vida, a Ao daCidadania contra a Violncia, o Reage Rio e o RioDesarme-se), os projetos e as ONGs designadascomo filantrpicas (Scherer-Warren, 1999) ou pro-positivas (Gohn, 1999).

    Essa rede de solidariedade traz cena um

    novo personagem. O ator que emerge o cidado

    orientado por um esprito cvico, que encontra

    inspirao em um associativismo de tipo america-no e/ ou de uma dimenso religiosa pblica

    (Bellah, 1970). Essa reinveno nacional de umareligio civil combina valores e smbolos religio-sos e nacionais numa prtica cvica. No contexto deenfraquecimento dos espaos cvico-polticos de

    militncia e de fragmentao e desarticulao dosatores sociais que vimos enfrentando nesta ltimadcada, essas diversas campanhas, projetos e ativi-

    dades vm oferecendo uma resposta ao sentimen-to de injustia e vontade de atuar na sua supera-o. Trata-se, aqui, de recuperar a cidadania pelongulo da fraternidade e pela produo de umanova fundamentao das relaes solidrias, que

    abandona os pactos sociais e polticos e os substi-tui por aes cvicas de forte contedo moral comoformas de enfrentar os conflitos sociais e promovera paz. A solidariedade articulada politicamentetende assim a ser substituda por uma compaixodifusa pelos desfavorecidos. Em alguns casos, asredes de solidariedade tambm se fundamentam

    em uma lgica mais instrumental de integrao desegmentos que a excluso social teria levado sfranjas da marginalidade e do crime.

    Esse quadro traz, sem dvida, uma renova-o do civismo e dos valores solidrios que produzefeitos importantes para os segmentos atingidospor essas iniciativas. Porm, muitas dessas iniciati-vas difusas e fragmentadas tendem a abdicar dodebate e da disputa na esfera pblica sobre a

    amplitude dos problemas da cidade, do estado e/ou do pas, optando por lidar estritamente comseus efeitos. Com isso, deslocam-se do campopropriamente poltico de formulao, negociaoe pactuao de interesses. Nada garante, pois, quea intensa e fragmentada participao a que vimos

    assistindo na sociedade brasileira seja parte de um

    processo de renovao da poltica e da democra-cia. Mas nada tambm garante que no venha a se

    constituir como tal. Antes, como indicado ao longodeste artigo, o sentido desses processos vem sendodisputado por projetos diversos a partir dos vrioscontedos que conferem idia e prtica dacidadania.

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    ENTRE O INDIVIDUALISMO E A SOLIDARIEDADE 85

    NOTAS

    1 Essa idealizao da cidade e da sociabilidade que nela

    preponderaria foi construda a partir das imagens pro-duzidas por vrios de seus cronistas e por parte daproduo acadmica sobre o Rio de Janeiro (Carvalho,1985), constituindo, desde o incio do sculo, parte daconstruo identitria dos cariocas.

    2 Quero com isso sugerir que o caso do Rio de Janeiro bom para pensar os novos sentidos que a noo decidadania vem adquirindo, no s por combinar, comose ver a seguir, as dinmicas de insegurana e privao,que se associam crise da cidadania e desconstruode direitos sociais vividas por toda a sociedade brasilei-ra, com os processos locais de exacerbao da violnciae da cultura do medo, mas tambm por ser representadono imaginrio nacional como esfera de antecipao eexperimentao de situaes disruptivas e das formas

    possveis de seu equacionamento. Uso como exemplo aexpresso farol da nao com a qual o presidenteFernando Henrique Cardoso reiteradamente tem sereferido cidade no que concerne problemtica daviolncia. Ver a respeito, por exemplo, o noticirio do Jornal do Brasil e de O Globo sobre o movimento ReageRio em novembro de 1995.

    3 A expresso cidade partida foi cunhada por ZuenirVentura, um dos principais cronistas da cidade, a partirda anlise da dualidade entre o mundo do asfalto e asfavelas cariocas desenvolvida por Carvalho (1994).Popularizada em livro com este ttulo, esta imagem foi,desde ento, fartamente utilizada pela imprensa emoposio representao do Rio de Janeiro comocidade maravilhosa.

    4 Para um exemplo ver o editorial do Jornal do Brasil de19 de outubro de 1992, o dia seguinte a um grandearrasto nas praias da zona sul da cidade.

    5 Nos anos 50 e 60, a literatura sociolgica tendeu aperceber a pobreza urbana territorializada nas favelas,como antes o fazia em relaco aos cortios, ao passo quenas dcadas de 70 e 80 privilegiou as periferias dasmetrpoles como territrio da pobreza (Valladares,1991). Parece-me, entretanto, que com o fim da polticade remoo de favelas no Rio de Janeiro, a partir de1975, e o crescimento do nmero de favelas na cidadenos anos subseqentes (de 376 favelas em 1980 para 603em 1996, um crescimento de 60% no perodo), promo-veu-se novo deslocamento na territorializao da po-breza em direo s favelas. Alm disso, renovou-se a

    relao da pobreza e da favela com a criminalidadeatravs da associao de trabalhadores pobres e favela-dos a bandidos. Ver, para o ltimo ponto, Valladares(1991 e 1998), Zaluar (1985) e Fausto Neto (1995). Norepertrio simblico do Rio de Janeiro, o par favela-asfalto ainda hoje remete a distines em termos deterritrio e equipamentos urbanos, alm de aludir aoestigma da marginalidade e da desordem que recobre otermo favela.

    6 Uso a expresso com o sentido atribudo por Soares, isto, como uma certa estrutura simblica de articulao

    entre representaes: tudo o que se parece com violn-cia, das vozes altas no fundo do corredor indisciplinano trnsito, da briga de galeras aos homicdios brutais,tendia a ser homogeneizado e definido como manifes-

    taes tpicas de um fenmeno comum: a violnciacarioca pensada como expresso mxima da decadn-cia da cidade [...] (Soares et al., 1996, p. 259).

    7 A crise desta identidade de cidade maravilhosa a partirdos vrios episdios violentos que analisarei a seguirfavoreceu a representao de uma ruptura da sociabili-dade especificamente carioca e, com isso, o sentimentode ameaa de ruptura completa de qualquer forma desociabilidade. Ver, a respeito, o artigo de Soares ecolaboradores (1996) intitulado Rio de Janeiro, 1993: atrplice ferida simblica e a desordem como espetculoe a tima seo deste artigo.

    8 No Brasil, a identificao das classes populares comoclasses perigosas pelo aparato repressivo e policialtem suas origens na criminalizao do movimento ope-rrio e sindical do incio do sculo (Pinheiro, 1981). Namesma poca, construa-se uma imagem negativa dafavela, como locus da pobreza e da marginalidade, emque a degradao moral se combinava sanitria nodiscurso higienista (Valladares, 1998).

    9 Cf. Jornal do Brasil, 15/ 2/ 1998, que destacava umadeclarao de Chico Buarque sobre a percepo doBrasil no exterior.

    10 As chacinas, entretanto, suscitaram uma forte reao devrios dos mais importantes formadores de opinio doRio de Janeiro, que, como se ver adiante, organizaram,ao longo da dcada, diversos movimentos e campanhascontra a violncia e pela pacificao da cidade, como oViva Rio, o Reage Rio e campanhas pelo desarmamento.

    Sobre a organizao e dinmica do Viva Rio ver Soareset al. (1996); para o Reage Rio ver Leite (1997).

    11 Este ponto foi enfatizado pelos jornais, particularmentepor O Globo, durante a campanha Reage Rio, em 1995.Para o tema ver Leite (1997).

    12 De acordo com Alba Zaluar, 30% da populao dacidade apoiou o massacre da Candelria. Cf. entrevistapublicada no Jornal do Brasil, 4/ 6/ 1995. Na mesmapoca, 47% dos cariocas apoiaram um cabo da PolciaMilitar que executou com trs tiros um assaltante jsubjugado, em frente a um grande shopping da cidadee diante das cmeras de televiso. Cf. Leite (1995).

    13 Sobre a vinculao dos temas da cor e da desordemnesses episdios ver Soares et al. (1996, pp. 246 ss). Parauma breve e clara descrio dos bailes funk e dosembates entre suas galeras ver Ribeiro (1996) e Cunha(1997). Notar que a associao entre o funk e acriminalidade se fazia, por exemplo, na acusao recor-rente de que os bailes eram usados pelas organizaescriminosas para recrutar novos soldados para o trficode drogas. Para um exemplo ver O Globo, 28/ 11/ 1995.

    14 O governador do estado, em seu segundo mandato, eraLeonel Brizola, velha liderana poltica do pas. Seusprojetos de educao pblica, de urbanizao de favelase, principalmente, sua poltica de direitos humanos, que

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    limitava as incurses policiais nos morros e periferias,foram adquirindo naquela conjuntura, para setores dapopulao e da mdia carioca, o sentido de uma tomadade posio a favor das favelas contra o resto da cidade.

    Para a anlise das imagens sobre violncia urbana noprimeiro governo Brizola ver Rodrigues (1995), queexamina o Jornal do Brasil. Para o segundo perodo verSoares et al. (1996) e Leite (1995).

    15 Na mesma poca, ocorreram vrios conflitos religiososentre adeptos da Igreja Universal do Reino de Deus e daumbanda, particularmente nas favelas e reas perifri-cas ao Rio de Janeiro. Divulgados pela mdia como umaguerra que se pretendia santa, alimentavam nacidade o preconceito em relao aos evanglicos, tidoscomo ignorantes e fanticos. Este estigma terminava porrecobrir o conjunto dos favelados, uma vez que asfavelas eram o local de maior incidncia dos conflitos(Birman e Leite, 2000).

    16 De 1991 a 1996, o nmero de favelas no Rio de Janeirocresceu de 573 para 603. Enquanto a populao dacidade aumentou apenas 1,29%, nos quatro grandesconjuntos de favelas cresceu de 5,97% (Rocinha) a69,43% (Complexo da Mar). Dados do Censo Demo-grfico de 1991 e da Contagem Populacional de 1996,realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tstica (IBGE) e divulgados no jornal O Globo, 15/ 3/1998, 3 edio.

    17 Sobre essa construo atravs das imagens ver Leite(1998). Para a persistncia desse discurso nos jornaiscariocas ver, por exemplo, Jornal do Brasil, 26/ 1/ 1994 e19/ 5/ 1999, e O Globo, 30/ 11/ 1996 e 15/ 3/ 1998.

    18 Sobre esta faixa etria, que corresponde a 11,88% dapopulao do Rio de Janeiro, incidem 35,2% dos homi-

    cdios dolosos (Soares et al., 1996, p. 231).19 Para um exemplo mais atual: a taxa de desemprego no

    Rio de Janeiro em 1998 foi de 5,4%, a menor entre osprincipais centros urbanos do Brasil (a mdia nacionalalcanou 7,6%), mas em 30 de suas favelas ela atinge18,5% da populao. No que concerne especificamenteaos jovens de 15 a 17 anos, a mdia de desemprego daRegio Metropolitana do Rio de Janeiro de 13,5%. Nasfavelas, contudo, onde com freqncia mais forte apresso para que trabalhem ainda adolescentes, as taxasde desemprego oscilam entre 25,8% (Mangueira) e 50%(Mata Machado). Cf. pesquisa realizada pela SecretariaMunicipal do Trabalho e pela Sociedade Cientfica daENCE/ IBGE; dados divulgados em O Globo, 24/ 5/ 1999.Para detalhamento, consultar Cunha (2000).

    20 O trabalho informal, que atinge 26,02% da PEA naRegio Metropolitana do Rio de Janeiro, varia nas 30favelas entre 35,5% e 53,9%. Dados de pesquisa realiza-da pela Secretaria Municipal do Trabalho e pela Socie-dade Cientfica da ENCE/ IBGE, divulgados em O Globo,24/ 5/ 1999. Em sua maioria, so trabalhadores pobres edesqualificados, cuja fragilidade no mercado de traba-lho se revela em sua vinculao ao trabalho informal,com salrios mais baixos e sem acesso proteo legal.

    21 Veja-se, a ttulo de exemplo, o editorial Informais eviolentos, de um dos principais jornais cariocas: [...]

    trabalhadores tipicamente informais, traficantes, bichei-ros e camels representam quase metade da populaoeconomicamente ativa do Brasil, de 55 milhes depessoas. Ao viver na extensa franja da informalidade,

    produzindo clandestinamente, violando a lei, levamclara vantagem sobre a que produz legalmente, impon-do-lhe concorrncia desleal. Os que pagam impostospagam tambm pelos que sonegam. Os cidados pac-ficos pagam caro pelos que vivem pela violncia. Jornal do Brasil, 20/ 5/ 1999.

    22 Refiro-me s liberdades e aos direitos civis institudospela Constituio brasileira de 1988 e que foram sinteti-zados no relatrio da pesquisa Lei, Justia e Cidadaniacomo consistindo nos direitos inviolabilidade do lar,ao ressarcimento de danos infligidos pessoa, honrae propriedade, liberdade de circular em paz, direito aotratamento respeitoso por parte das autoridades e deoutros cidados, igualdade perante a lei e a uma justiarp ida e acessvel (CPDOC-FGV e ISER, 1997, p. 4).

    23 Para um exemplo, ver os resultados da pesquisa Lei,Justia e Cidadania, realizada pelo CPDOC-FGV e o ISERentre a populao maior de 16 anos da Regio Metropo-litana do Rio de Janeiro, no perodo de agosto de 1995a agosto de 1996, e que trabalhou com a definio decidadania institucionalizada na Constituio brasileirade 1988: 56,7% dos entrevistados no foram capazes decitar trs direitos de cidadania garantidos pela Constitui-o. Para 91% a aplicao das leis no igualitria,sendo que 93,8% consideram que, diante do mesmocrime, a justia mais rigorosa com os pobres do quecom os ricos. O que indica que o baixo recurso justiatanto se relaciona ao desconhecimento de direitosquanto ao descrdito quanto imparcialidade da justia,que tambm desfruta da imagem de morosa e ineficien-

    te (Grynszpan, 1997). Estes dados tambm revelam aexistncia de um forte sentimento de injustia na popu-lao, como ressalta Pandolfi (1997).

    24 O desenvolvimento da cidadania sob o liberalismodemocrtico, nas sociedades ocidentais modernas, foisintetizado por Marshall (1967). Para a anlise crticadessa formulao ver Leite (1991) e Abreu (1994).

    25 Entre 1940 e 1980, o pas experimentou uma fortecorrente migratria das regies Norte e Nordeste para oSul e o Sudeste, do campo para as (grandes e mdias)cidades, como efeito das polticas estatais de estmulo modernizao capitalista. No perodo, a populaoresidente em rea rural e em localidades com menos de20 mil habitantes declinou de 85% para 45%, enquantoa populao urbana crescia em relao ao total do pasde 7% para 22% nas cidades entre 20 mil e 500 milhabitantes e de 8% para 32% no caso de cidades compopulao superior a 500 mil habitantes (IPEA, 1996).So Paulo, o maior e mais industrializado estado doBrasil, foi o que mais atraiu esses migrantes, particular-mente para sua capital.

    26 Nos anos 80 rompeu-se o ciclo de ouro da industrializa-o brasileira, que abria s classes populares a possibi-lidade de integrao pelo trabalho e de mobilidadesocial para os descendentes atravs do sistema educa-

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    cional. O esgotamento dessas alternativas ou a extremalimitao de seu escopo possivelmente favoreceu pro-cessos e formulaes vinculados excluso dessessegmentos.

    27 A Regio Metropolitana de So Paulo a mais afetadapelo desemprego no pas, uma vez que as mais altastaxas de demisso se verificam exatamente na indstria.Dados da Fundao Sistema Estadual de Anlise deDados (SEADE) e do Departamento Intersindical deEstudos Estatsticos Sociais e Econmicos (DIEESE)indicam uma taxa de desemprego de 20,3% de suapopulao economicamente ativa, em maio de 1999.Trata-se de desemprego aberto, que inclui biscateiros ecamels. Cf. Jornal do Brasil, 25/ 6/ 1999.

    28 E, portanto, claramente em oposio poltica dedireitos humanos posta em relevo nos governos deLeonel Brizola (1982-85 e 1991-94), e que marca forte-mente as opes em termos de segurana pblica no Riode Janeiro.

    29 Como me referi na nota 26, com o esgotamento/limitao das possibilidades de integrao e mobilidadesocial pela educao e pelo trabalho, as favelas no maisso percebidas por seus moradores e pelos habitantesda cidade como freqentemente o eram nos anos 70 como um estado transitrio. O que se associa com asidias de gueto, confinamento e destino expressas emmuitas vises de cidade partida que circulam no Riode Janeiro.

    30 Examinando a construo da imagem do delinqenteem So Paulo, Pires Caldeira (1996) demonstra suaarticulao idia de um mal que se propaga com ofracasso das autoridades pblicas em cont-lo. Dadecorre a construo de barreiras simblicas e materiais

    vinculadas excluso e apartao social.31 O relatrio anual da Anistia Internacional ( Informe 98

    um ano de promessas quebradas) aponta a execuoextrajudicial de centenas de pessoas pela polcia e poresquadres da morte como a principal violao dosdireitos humanos no Brasil. Cf. Jornal do Brasil,17/ 6/1998, 3a edio. O que se conectava, no caso do Rio deJaneiro, com a chamada gratificao faroeste (criadaem novembro de 1995 pelo governo estadual e extintaem junho de 1998 pela Assemblia Legislativa), quepremiava policiais civis, militares e bombeiros comaumentos do soldo de 50% a 150% por atos de bravura.No caso dos policiais, eram qualificados como atos debravura os tiroteios com mortes. A gratificao faroes-te relacionava-se s orientaes do ento secretrio de

    Segurana (atirar primeiro e conferir depois); ambasproduziram, no perodo, uma exploso das mortes emconfrontos que envolviam policiais militares. A partir daposse deste secretrio, em meados de 1995, a mdiamensal de mortes saltou de 3,30% para 20,55%, passan-do a 22,5% no perodo de novembro de 1995 a fevereirode 1996. Cf. Fagundes e Aquino (1997). Para o caso deSo Paulo, consultar Mesquita e Bordini (1997), queexaminam homicdios de crianas e adolescentes, comdestaque para os tipificados como resistncia polciaseguida de morte.

    32 Entretanto, dois anos depois de sua realizao, a Ope-rao Rio ainda contava com um apoio forte oucondicional de, respectivamente, 41,5% e 26,4% daspessoas entrevistadas pela pesquisa Lei, Justia e Cida-

    dania.33 Refiro-me ao caso do assassinato de Ana Carolina da

    Costa Lino, em Laranjeiras, pelo qual foi detido comosuspeito Delson Santana, tcnico em refrigerao.

    34 As excees foram a atuao da Ordem dos Advogadosdo Brasil e do jornal O Globo. Este jornal ps o tema emdiscusso em editorial de 26 de junho de 1998, 2a ed., eacompanhou a libertao de Delson Santana pelongulo de uma injustia que cessava (O Globo, 18, 19 e20/ 6/ 1998).

    35 Esta foi a razo das fortes disputas pelo sentido de umdos principais movimentos contra a violncia na cidadedo Rio de Janeiro, o Reage Rio. Para diversos setoresligados s classes populares (Central nica de Trabalha-

    dores do Rio de Janeiro, Igreja Universal do Reino deDeus, organizaes comunitrias faveladas etc.), era ummovimento que concernia estritamente aos ricos, poistinha como questo bsica os seqestros e no temati-zava a violncia que incidia sobre pobres e favelados.Sobre esta discusso e para a anlise da competioentre diversos atores, no campo dos organizadores domovimento, pelo sentido do Reage Rio e pelo teor daspolticas pblicas na rea da segurana ver Leite (1997).

    36 O cardeal, um ativista dos direitos humanos dos presospolticos durante a ditadura de 1964, atuava fortementeno apoio ao sindicalismo da regio mais industrializadado pas (o ABC paulista) e liderou uma campanha pelosdireitos humanos dos presos comuns. O encampamentodessa poltica pelo partido que ento reunia a esquerda

    e estava no governo do estado e da cidade o PMDB possivelmente constitui um dos elementos de seusinsucessos nas disputas eleitorais seguintes pela prefei-tura da cidade. Enquanto o PMDB acumulava vitriasnas disputas eleitorais para o estado, a cidade de SoPaulo mais sensvel temtica da ordem e segurana elegia, com uma exceo que se deveu a circunstn-cias muito especficas, polticos de direita fortementecomprometidos com esse discurso. Processo similarocorreu com a liderana poltica do ex-governadorBrizola no Rio de Janeiro e com seu partido, o PDT, deforte expresso no interior do estado, perdendo votos elegitimidade na cidade. As eleies de 1988 foram asltimas em que o PDT conseguiu eleger o prefeito doRio de Janeiro.

    37 A grande maioria das pessoas hoje em dia nem quersaber de trabalhar, vai roubar. Por qu? Porque sabe quevai ficar impune. isto. Essa inverso de valores, eudigo que ela foi introduzida pela igreja: direitos huma-nos? Direitos humanos dos bandidos! (Pierucci, 1987,p. 28).

    38 A esse respeito, Alba Zaluar (1995, p. 412) nos lembraque a pena de morte [] majoritria nas ltimas pesqui-sas de opinio pblica feitas, s no tendo sido apro-vada no Congresso graas a esta firme oposio [daIgreja Catlica], tambm seguida por algumas igrejas

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    evanglicas. No caso de So Paulo, Pires Caldeira(1996) ressalta o apoio popular polcia que massacrou111 prisioneiros amotinados em Carandiru, a maiorpriso da cidade.

    39 Cf. Jornal do Brasil, 6/ 2/ 1994. Notar que os resultadosda pesquisa Lei, Justia e Cidadania, j citada, tambmrevelam a percepo dos direitos de cidadania comoprivilgios, favores ou bens materiais a serem adquiri-dos. Por esta razo, como afirma Pandolfi (1997), quan-do instados a citar direitos constitucionais dos brasilei-ros, os entrevistados freqentemente indicavam: umINPS sem fila, uma boa televiso, uma casa paramorar etc.

    40 Meus dados de campo sugerem que esta dissociaopode ser, em parte, explicada como uma estratgia doentrevistado para discriminar-se dos bandidos, parti-cularmente se ele rene as mltiplas dimenses doestigma, isto , se preto ou mestio, pobre e favelado.Esta estratgia pode se combinar defesa de prticasviolentas e no consistentes com a legalidade democr-tica para o controle da criminalidade, que discutireiadiante.

    41 A referncia aos socilogos engloba os pesquisadoresdo Instituto de Estudos Religiosos (ISER), que desenvol-veram vrias pesquisas sobre violncia no estado, inclu-sive o mapeamento dos homicdios letais citado anteri-ormente. Abrange tambm alguns dos articuladores dascampanhas pela pacificao da cidade, como o Viva Rio,o Reage Rio etc. Indica, pois, alguns intelectuaisformadores de opinio contrrios perspectiva daguerra. Para o confronto das duas posies, ver o debateONGs e segurana pblica, Jornal do Brasil, 22/ 5/1996.

    42 Cf. Jornal do Brasil, 10/ 4/ 1996. O levantamento dosautos de resistncia foi realizado por este jornal.

    43 Embora uma pessoa s possa ser presa por ordem judicial ou em flagrante delito, 42,1% dos entrevistadosconsideraram que poderia ser efetuada priso por sus-peita, 17,6% por falta de carteira de identidade e 15,8%por falta de carteira de trabalho, legitimando assim asprticas policiais abusivas tradicionais no pas.

    44 Priorizando o direito vida, as principais violaes aosdireitos civis so computadas basicamente como furtos,roubos, assaltos, agresses, homicdios, extorses eabusos de poder (isto , variadas formas de vitimiza-o). Operando com esta lgica, o senso comum nodestaca os outros direitos civis (cf. nota 22) como

    direitos elementares relacionados vida em socieda-de.

    45 Reproduzo, em suas linhas gerais, a argumentao do Jornal do Brasil e do prefeito Csar Maia apresentadaem situaes crticas na cidade em termos de violnciano perodo compreendido entre 1993 e 1996, queanalisei em pesquisa desenvolvida na UERJ. Nas entre-vistas com moradores de bairros de classe mdia nazona norte da cidade, realizadas neste contexto, foipossvel identificar significativa adeso a este discurso.O mesmo foi apurado em levantamentos de opinio

    publicados poca nos jornais. Cf. Leite (1995). Amesma estratgia discursiva foi utilizada por Csar Maiana campanha pelo governo do estado em 1998, destavez com insucesso, como indicarei adiante.

    46 Para o registro de algumas dessas experincias no Riode Janeiro, com destaque para as iniciativas da prpria juventude no campo da cultura, da cidadania e dafraternidade, ver Novaes e Mafra (1998).

    47 Para a explicitao das campanhas cvicas como partedo projeto de enfrentar a violncia na cidade atravs daampliao da cidadania, ver Soares et al. (1996, pp. 46ss.). Para a existncia de uma religiosidade difusa nestecampo, que se apresenta tanto na mediao religiosanos conflitos da cidade, quanto em uma tica queconfere sentido vida na cidade aproximando osdeveres dos cidados da tradio crist da caridade, verBirman e Leite (2000).

    48 Na observao do movimento Reage Rio que realizei,

    esta era uma questo claramente marcada. Os organiza-dores do movimento haviam resolvido juntar a cidadena Caminhada, organizando os participantes em vriasalas (vtimas da violncia, juventude, artistas, comunida-des faveladas, trabalhadores etc.) como se fora umaescola de samba. O que foi atribudo por alguns aointento de demonstrar a representatividade dos diversossegmentos participantes e, por outros, a uma certacautela. Os funk eiros estavam na ala da juventude,representando os jovens pobres das favelas, e de ambosos lados seu estigma era exacerbado com a onda deseqestros que constitua o motivo original da manifes-tao. Ouvi de vrios deles a observao, entre surpresae divertida, de que s assim as madames do asfaltoficam perto sem medo.

    49 Ver para um exemplo, no caso do movimento ReageRio, a nota 35.

    50 Notar que embora o governador do estado no perodo1995-98 no tenha operado com esse discurso naseleies de 1994, progressivamente, isto , medidaque se consolidava a metfora da guerra na cidade, elefoi promovendo um deslocamento de seu governo paraesse campo. Sobre o tema consultar Leite (1995).

    51 Vitorioso no segundo turno das eleies de 1998 com57,98% do total de votos vlidos, contra 42,02% dosatribudos ao candidato Csar Maia, o atual governadorGarotinho venceu facilmente no interior (37,33% contra18,64% de seu opositor) e perdeu de pouco na capital(20,65% contra 23,68% de Csar Maia). Mesmo conside-

    rando sua ampla votao na zona oeste e nas favelas eoutros fatores que influram no voto dos eleitores, esteresultado parece indicar que crescia na cidade o apoios propostas de pacificao, particularmente porque,acreditando que a se decidiam as eleies, o candidatoopositor conferiu ao tema da violncia e da seguranapblica a centralidade de sua campanha. Ver, porexemplo, sua entrevista ao jornal O Globo, 25/ 10/ 1999,2 edio, em que Csar Maia se apresenta como ocandidato da legalidade em oposio ao da ilegalidadee da delinqncia, Garotinho. Notar que, aqui, me refiroestritamente disputa eleitoral. Escapa ao mbito deste

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    artigo a anlise da relao entre as perspectivas exami-nadas e a poltica de segurana pblica implementadapelo governo Garotinho.

    52 Para um exemplo atual, verificar o editorial Ao ereao, a propsito dos conflitos entre favelados epoliciais em dois morros da cidade, nos primeiros mesesde 1999: A expanso galopante das favelas, comoresultado da permissividade que gerou entre outrascoisas o crime organizado, estabeleceu a fronteira pre-cria entre a populao legal e a populao que vive nailegalidade. ( Jornal do Brasil, 19/ 5/ 1999).

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