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Sombra de um anjo - 2ª edição

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Um corredor escuro, uma garota e uma voz misteriosa, sombras avançando em sua direção e, num piscar de olhos, uma multidão de pessoas mortas a observando pacientemente, como se esperassem algo. É assim que vive Samantha Lyterin, uma garota aparentemente normal, mas assombrada por vultos e visões do futuro. Ela se vê de uma hora para outra destinada a manter o equilíbrio em uma guerra onde de um lado estão os anjos, querendo proteger a humanidade, e do outro, sombras que buscam incansavelmente a arma que permitiria a ascensão de Lucian.

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  • Ana Beatriz Brando

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  • Ana Beatriz Brando

    So Paulo, 2014

    TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

    Sombra de um anjo

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  • 2014ImPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAzIL

    DIREITOS cEDIDOS PARA ESTA EDIO NOvO ScULO EDITORA

    cEA cENTRO EmPRESARIAL ARAgUAIA IIAlameda Araguaia, 2190 - 11o andar

    Bloco A conjunto 1111cEP 06455-000 Alphaville Industrial SPTel. (11) 3699-7107 Fax (11) 3699-7323

    [email protected]

    copyright 2014 by Ana Beatriz Brando

    coordenao editorial Letcia Tefilo

    Diagramao claudio Tito Braghini Junior

    capa Alexandre Santos / Pergaminno Design

    Preparao Patrcia Almeida

    Reviso Dbora Donadel

    Patrcia de Almeida murari

    Brando, Ana Beatriz Sombra de um anjo / Ana Beatriz Brando. -- Barueri, SP : Novo Sculo Editora, 2014. -- (Talentos da literatura brasileira) 1. Fico brasileira I. Ttulo. II. Srie. 13-13827 CDD-869.93

    1. Fico : Literatura brasileira 869.93

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndices para catlogo sistemtico:

    Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995)

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  • Com amor, minha famlia e amigos.Sem vocs esse sonho no seria realizado.

    2014ImPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAzIL

    DIREITOS cEDIDOS PARA ESTA EDIO NOvO ScULO EDITORA

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  • Por um momento, pensei em mudar o futuro, mas logo tirei aquela ideia da minha cabea; afinal, eu no podia

    arriscar a vida de mais ningum, eu tinha que ter coragem de enfrentar o meu destino.

    Samantha Lyterin

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  • 7Prlogo

    Meu nome Samantha Lyterin, tenho 17 anos e a minha vida uma droga.

    Minha me morreu quando nasci e no sei nada sobre ela. Meu pai morreu com dois tiros na cabea, dados por um cara que foi contratado para mat-lo apenas porque ele bebia at desmaiar num bar e depois no pagava. Eu tinha trs anos quando isso aconteceu.

    Fui mandada para um orfanato e fiquei l at eu ter minha primeira viso, aos nove anos. Acharam que eu era louca quando contei, ento me mandaram para um hospital psiquitrico, onde fiquei at os doze anos, ou melhor, at eu aprender a ficar com o bico calado sobre tudo o que eu via. Depois de inmeros tratamentos para uma doena que no existia e vrias tentativas de fugas, uma enfermeira teve pena da pobre e louca rf e me adotou.

    Kathryn Mark era uma mulher baixinha, gordinha e carinhosa, de fala mansa e olhar triste, que me tratava com carinho. Eu e os quatro filhos que ela teve com o primeiro marido, que morreu na guerra, morvamos em uma casa simples, onde no faltava nada. Eu ia pra escola e ajudava a

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  • 8cuidar dos afazeres e dos meus novos irmos: Jack e Joseph eram gmeos e tinham sete anos, Sophia tinha quatro anos e o pequeno Benjamin, trs.

    Era uma vida boa, no posso negar. At minhas vi-ses me deixaram em paz por um tempo, mas tudo mudou quando Kath conheceu um cara no trabalho, Frank, um porco nojento. Os dois tinham inmeras brigas sempre por motivos idiotas, mas nunca vou me esquecer da ltima...

    Comeou por um motivo bobo, um copo de cer-veja que Ben derrubou em cima de Frank quando passou correndo pela sala e esbarrou na mesa onde o briguento e os amigos jogavam cartas. Ele se levantou e pegou Ben, na poca j com seis anos, pela gola da camisa. Ele j esta-va com a mo cerrada prestes a dar um soco no menino, quando eu corri e pulei em suas costas com o brao em volta de seu pescoo. Apertei o mais forte que eu con-segui e gritei pela ajuda de Kathryn. Com o susto, ele soltou o garotinho e se jogou de costas contra a parede. Bati a cabea com fora e ca sentada no cho sentindo o sangue escorrer pelo meu cabelo, j prestes a desmaiar, mas antes pude ver Kath correr na direo dele com uma faca tentando acert-lo na barriga. Com um movimento rpido, ele pegou a faca da mo dela e a acertou no co-rao, girando a faca no lugar. Depois disso no vi mais nada, s a escurido.

    J faz um ano que isso aconteceu. Kathryn Mark morreu naquele dia e Frank foi preso e condenado priso perptua. Os pequenos moram agora com o irmo dela, eu ia visit-los sempre que tinha folga no meu trabalho de caixa de supermercado. Acabei me mudando para uma pequena penso de garotas depois do incidente. Minha vida

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  • 9era um tdio, a no ser por um pequeno detalhe: minhas vises estavam cada vez mais frequentes.

    Me lembro como se fosse hoje do dia em que elas comearam. Eu tinha nove anos, era uma garotinha ino-cente e bl-bl-bl. Eu pulava feliz pelo jardim do orfanato at tropear em alguma coisa e cair de cara no cho. Co-mecei a chorar, o que acontece sempre quando crianas caem e batem o nariz. Foi ento que a vi. Uma pena negra. No daquelas de pombo ou de pssaro, essa era diferente, era do tamanho do meu antebrao.

    Eu a peguei e analisei, afinal uma garotinha daquela idade no imaginaria que aquilo faria mal a ela. Alis, nin-gum poderia imaginar. Foi ento que aconteceu: eu tive uma viso. PUF! Pisquei e eu estava em outro lugar. Uma sequncia de cenas se formou em minha cabea. S me lembro de flashes de luz e asas brancas e negras. Tambm havia uma voz. Samantha! Samantha, acorda! Preciso que acorde, Samantha!. Quando voltei a mim, estava no meio do jardim, encolhida, chorando e gritando.

    Foi a que minha vida piorou.Desde que tive cabea para pensar em tudo o que ha-

    via acontecido comigo desde o incio da minha vida, decidi que eu no iria me revoltar ou virar uma delinquente como os outros por a. verdade que tive meu perodo de rebel-dia logo depois de conseguir sair daquele lugar infernal que era o hospital psiquitrico. Kath sofreu um pouco comigo, at andei roubando umas carteiras, o que me rendeu alguns dias no reformatrio, e no me orgulho disso at hoje, mas posso dizer que foi uma experincia interessante. No final, Kath me ensinou que devemos aprender a aceitar nosso

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    destino e lutar para ter uma vida digna, ento resolvi igno-rar minha vises e me dedicar aos estudos.

    Tenho certo talento na vida, era o que me diziam os professores da escola onde cursei o ensino mdio, e se ver-dade que tirar dez em Botnica, Biologia, Anatomia e essas coisas ter talento, ento eu sou merecedora de um prmio Nobel. Porm, sou boa apenas em matrias que falam sobre toda a espcie de ser vivo, nada de Matemtica, Economia e coisas assim. Motivo pelo qual os outros zombavam de mim, diziam que s era boa nessas matrias porque para fazer poes e bruxaria era necessrio saber bastante sobre seres vivos. Eu no tinha muitos amigos, alis, no tinha nenhum. Eu era daquelas garotas que sempre sentam num canto do refeitrio para ler livros sobre plantas, vestindo-se de um jeito esquisito.

    Era assim que eu vivia: trabalhava no mercado de ma-nh, depois ia pra escola e voltava para meu quarto na pen-so, onde ficava o resto do dia pensando na droga da minha vida. O quarto era enorme, com grades nas janelas, pois a dona dizia que ns vivamos num mundo muito perigoso para as mulheres. Ele tinha uma decorao brega, papel flo-rido demais nas paredes, mveis que estavam muito velhos e que um dia j tinham sido brancos e minha cama tinha um edredom floral vermelho e preto que pinicava muito.

    Minha vida comeou a mudar quando um certo dia fui abordada no final da aula pela minha professora de Bio-logia. Ela me perguntou sobre minhas aspiraes do futu-ro, me livrar dessas malditas vises era o que eu queria responder, mas me contentei em apenas falar um eu no sei. Ento ela me disse que tinha entrado em contato com um amigo, reitor de uma pequena universidade da cidade,

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    e que ele tinha visto meu histrico escolar e me oferecido uma bolsa integral no curso de Biologia, com direito a uma renda mensal para algumas despesas e um quarto no campus da faculdade.

    Foi assim que meus dias como caloura da Universida-de Sant France comearam, e no, no consegui entrar em nenhuma fraternidade e nem em nenhum grupo de nerds. Continuei sendo a menina deslocada que senta sozinha no refeitrio.

    Eu passava grande parte do meu tempo livre em uma estufa que havia nos arredores da faculdade. Quando a en-contrei por acaso em uma das minhas caminhadas procu-rando um lugar tranquilo para estudar, ela estava comple-tamente destruda e as flores, murchas. Depois de alguns meses de dedicao de minha parte, ela estava praticamente nova, cheia de flores e cores para todos os lados.

    Geralmente eu ficava l para no ver os vultos que me assombravam em outros lugares. A estufa era o nico lugar em que eu encontrava um pouco de paz. Nunca tive um diagnstico exato, eu havia pesquisado em todo o tipo de livro de anatomia, at de botnica, com medo de ter inge-rido algo que me deixou louca, mas no havia nada, nunca.

    Minha rotina se resumia a me levantar todos os dias s cinco horas da manh, as aulas comeavam s seis, termina-vam s trs da tarde, tnhamos dois intervalos de meia hora. Depois comeavam as aulas extracurriculares, voc podia fazer do que quisesse: culinria, botnica, desenho, msica, basebol etc. Eu fazia duas: Botnica e Astronomia, que era outro assunto que me fascinava.

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    Corredores

    Eu estava exausta, havia acabado de voltar da aula de Botnica e estava suja de terra dos ps cabea; usava uma sandlia gladiador de couro marrom, um short jeans e uma camiseta tingida verde e amarela, meu cabelo estava preso com pauzinhos vermelhos, como aqueles japoneses, e algu-mas mechas caam do coque.

    Abri a porta de meu dormitrio e dei de cara com uma garota de cabelos azuis-turquesa. Ela estava sentada na minha cama olhando o quarto e quando me viu, deu um pulo. Sorriu, acenou e falou:

    Oi! Tudo bem? Sou a Helena, sua nova companhei-ra de quarto.

    Olhei boquiaberta para ela. Uma companheira de quarto? Como assim?! Balancei a cabea e falei:

    Deve estar no quarto errado, eu... No estou, no. Olha, eu sei que deve ser difcil pra

    voc acreditar e tal, mas quando eu e meus pais estvamos escolhendo meus companheiros de quarto no nos deram muitas opes, j que estamos no meio do semestre, ento ou era voc ou uma menina que cheirava sopa, como

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    no suporto sopa voc foi a escolhida.... srio! Quando entrei no outro quarto e senti aquele cheiro, a nica coisa que passava pela minha cabea era: ser que noite ela vai arrancar os meus dedos e cozinh-los junto com um monte de legumes para comer no almoo?... Desculpe, eu falo um pouco demais.

    Tudo bem. Era bom que ela falasse bastante, assim eu no teria

    que contar nada da minha histria e nem responder a ne-nhuma pergunta.

    A garota tinha os olhos castanho-claros, vestia uma saia branca e uma camiseta preta. Ela tagarelava sem parar sobre o que havia achado do campus da faculdade.

    Qual o seu curso? perguntou. Biologia. E voc? E por que voc foi transferida

    para c no meio do semestre? Medicina Veterinria. Eu amo os animais! S vim

    pra c porque fui convidada a me retirar da outra faculda-de. Isso apenas porque passei por uma fase rebelde e pichei propriedade pblica e roubei uns refrigerantes da cantina disse ela, revirando os olhos. Tudo bobagem. Eu sabia que era errado. Fiz porque queria que meus pais prestassem um pouquinho de ateno em algo que no fosse trabalho, mas ao contrrio do que eu pensava, eles decidiram se livrar de vez de mim, me mandando pra uma universidade de tempo integral. Bom, mas qual o seu nome?

    Samantha. Sammy, vou te chamar de Sammy. Voc faz parte de

    alguma irmandade? Eu queria muito entrar na Delta, mas difcil, sabe? Tem que ter indicao ou ter uma beleza incr-vel, e eu no tenho nenhuma das duas.

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    No, eu tambm no tenho respondi, no vendo a hora de aquela conversa acabar. Uma garota de irmandade, era s o que me faltava!

    Helena era uma garota meiga, prato cheio para aque-les que adoram transformar os no populares em saco de pancada e motivo de diverso, aquela menina era to ino-cente... Com certeza no duraria mais de trs dias sem levar uma surra de algum. Eu tinha pena dela e at estava indo com sua cara, mas seu futuro era bem previsvel...

    No! No! No! Agora no! J estava acontecendo, eu estava tendo uma viso.

    Era ela, Helena, eu via tudo aquilo como o... Digamos que era o vilo. Eu a prendia contra um armrio, ela chorava e falava No! Por Favor!. Eu tinha uma faca na mo, a levei na direo do pescoo de Helena e o cortei, fazendo com que o sangue escor-resse por suas roupas e ela casse morta no cho.

    Quando voltei a mim mesma, Helena ainda tagarelava sobre como tudo aquilo era legal e nem sequer havia perce-bido a cara de horror que eu fazia.

    Uma coisa que eu havia aprendido depois de tantos anos era que, seja o que fosse que acontecesse em minhas vises, eu deveria ficar calada. Mas eu mal conhecia aquela garota, no podia deix-la morrer.

    Certo, ahn... Preciso tomar um banho, mas no saia sozinha do quarto. NUNCA falei.

    Fui na direo do banheiro. Como ainda no conhe-cia minha nova colega de quarto muito bem, resolvi usar o banheiro coletivo que ficava no final do corredor. Eu estava completamente suja de terra, tomei banho e escovei os den-tes. Enquanto me trocava, vi sombras rodearem meus ps.

    D um tempo!

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    Pisei em uma delas, o que no fez a mnima diferena, a no ser o arrepio percorrendo minha espinha. Balancei a cabea e me olhei no espelho. No reflexo, havia uma garota de olhos azuis, cabelos ondulados e compridos cor de cara-melo. No parecia ter passado por tudo o que passou. Sorri e balancei a cabea, minhas bochechas estavam rosadas, eu tinha o rosto fino e os olhos grandes. Soltei o cabelo e o penteei, ele caa at a altura do quadril. Vesti short jeans, uma camisa preta, cuja bainha amarrei na altura da cintura, e fiz uma tiara com um leno vermelho, com o lao virado para cima.

    Andei descala at o quarto e sentei na cama. Agora Helena estava sentada na cama dela, os lenis e o edredom eram brancos.

    Quer conhecer o lugar? perguntei. Quero! Ai que mximo! Por que est to animada? que eu nunca morei sozinha antes!Balancei a cabea, me levantei da cama e peguei mi-

    nha bolsa, fiz um gesto para que Helena me acompanhasse e samos do quarto. Os corredores eram comuns, at bo-nitos. Os armrios eram verde-escuros, o cho era cinza--escuro e as paredes brancas; ao fundo de cada corredor, na parede contrria da porta de entrada, havia uma enorme janela que ocupava mais da metade da parede, iluminando todo o corredor.

    Samos por uma porta de ferro enorme e chegamos ao grande campus. Havia vrios jovens sentados em grupos na grama, cada um com sua turma. Os nerds prximos das rvores com seus livros, os populares juntos em uma mesa ao lado da rua que dava direto para a entrada do prdio

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    principal, os alternativos de outro lado e uma poro de outros grupos espalhados pela grama.

    Andamos entre eles e vimos os prdios da faculdade que eram... eu no conseguia encontrar um adjetivo certo, algumas vezes os achava bonitos, outras os achava horrveis. Eram trs prdios, de um lado os dormitrios com cinco andares, o do meio era o prdio onde ficavam as salas de aula, o laboratrio, o auditrio, o refeitrio e a administra-o. No ltimo, que ficava ao lado dele, estavam as piscinas, o ginsio de esportes (que tambm era utilizado para a rea-lizao das festas e eventos da universidade) e, no fundo, um campo de futebol com uma pista de corrida em volta. As paredes eram divididas em duas partes, a de cima era branca e a de baixo era coberta por tijolos cinza-escuros e entre as pedras havia musgo. Costumava chover muito naquela cidade e o clima era to mido que eu chegava a ter medo de morrer afogada.

    Tirei os culos de sol da bolsa de couro vermelha que eu carregava e os coloquei, as lentes eram negras e redondas, no estilo John Lennon.

    Mostrei a ela todos os lugares possveis: os corredores onde ficavam as salas, a administrao, a sala do reitor (acres-centando meu desejo de que ela nunca fosse convidada a ir at l), a piscina de natao, que era aquecida, o refeitrio e os banheiros. Mostrei todos os lugares, menos um. Um que era meu e que no dividiria com ningum: a estufa.

    Aquele lugar noite era horrvel. Os alunos apro-veitavam a escurido para roubar, bater, namorar ou fazer outras coisas terrveis com os outros, mais parecia um re-formatrio do que uma faculdade, na minha opinio. Eu e Helena estvamos no corredor e estava escuro, j era noite.

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    Temos que voltar. Nunca saia sozinha do seu dor-mitrio depois das oito. Est ouvindo? pedi.

    Sim, sim disse ela, enquanto olhava para o outro lado e sorria, certamente maravilhada demais para prestar ateno. Eu no demorei nada para descobrir o motivo: garotos.

    Balancei a cabea e andei em direo ao quarto. Hele-na entrou logo depois de mim, tranquei a porta e fui direto para o banheiro. Eu gostava de andar descala pelos lugares, a fim de ter mais contato com a natureza, ento sempre que voltava para o quarto eu ia ao banheiro lavar os ps.

    Voltei e vesti meu pijama. Era um short de moletom cinza e uma regata branca. Os quartos tinham aquecedor, ento no era necessrio que nos agasalhssemos, pois apesar de estarmos em pleno vero as noites eram frias.

    Deitei na cama e apaguei o abajur, Helena j esta-va dormindo, com a roupa que havia chegado mesmo. Era cedo demais para eu dormir. Eu ficava grande parte do tempo deitada na cama, at ter certeza de que todos ha-viam dormido. Foi o que fiz, fiquei at uma hora da manh deitada e me levantei. Vesti um casaco de l cinza e meus chinelos brancos, andei na ponta dos ps at a porta e a abri. Sa do quarto e fechei a porta. Havia apenas algumas luzes acesas para iluminar o corredor, e s vezes elas piscavam, me deixando totalmente no escuro. Eu no tinha medo.

    Andei sem fazer barulho at o lado de fora do prdio. O cu estava nublado, anulando qualquer chance de procu-rar constelaes. Me dirigi direto para a estufa.

    Dentro dela a temperatura era de mais ou menos vin-te e cinco graus. Eu tinha flores de todos os tipos. A pro-fessora de botnica era a nica que sabia da existncia da estufa, e me doava sementes de flores. Ela havia at me dado

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    um dos maiores presentes que eu j havia ganhado, a minha flor favorita, uma tulipa negra. Eu cuidava dela como se fosse uma filha, era o meu xod.

    Eu tinha lrios, watsonias, rosas, helicnias, xias, giras-sis e todo o tipo de flor que conseguia imaginar, cada uma tratada de um jeito especial, de um jeito nico.

    A estufa foi construda em uma regio de ladeira. A parte da frente era virada para a subida e a trilha que levava at a faculdade e a parte de trs era voltada para a descida e sustentada por enormes vigas. Havia tambm uma grande porta de vidro que ia do cho ao teto. Logo que descobri a estufa me perguntei o porqu de se ter colocado aquela porta ali, afinal no poderia ser a sada da estufa, j que ela ficava a pelo menos dez metros de distncia do cho. Pensei que talvez fosse esse o motivo pelo qual eu a adorava. Era ali que eu costumava me sentar para olhar a paisagem, ou as estrelas nas noites mais claras, isso ajudava a me desligar do mundo. Aquele era um lugar onde eu me sentia segura e feliz. E era exatamente ali que eu estava quando uma sensa-o quente atingiu as costas de minha mo, como se algum tivesse posto a mo por cima da minha. Quando olhei, no havia nada e a sensao havia sumido.

    Pode me assombrar em qualquer lugar, menos na minha estufa, por favor falei.

    Eu no sabia com quem estava falando, nem se real-mente havia algum ali, mas era melhor deixar bem claro para o caso de haver.

    J estava tarde e o sono estava chegando. Resolvi voltar ao dormitrio, ento tranquei tudo e caminhei em direo ao campus. Eu estava subindo a ladeira quando senti uma sensao estranha, um arrepio subindo por minha espinha.

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    Samantha ouvi algum sussurrar meu nome.Girei no lugar. Quem havia me chamado? Uma risada

    ecoou na minha cabea. Samantha. A mesma voz, s que agora falava alto,

    era um homem, pelo menos era o que parecia. mais inteligente do que isso, Samantha.

    O que voc quer? No havia ningum ali, devia ser tudo coisa da minha imaginao.

    No o qu. quem. Samantha, minha querida, voc sabe quem eu quero, tambm sabe quem eu sou. A voz era quase um ronronado, rouca e grossa.

    O que quer de mim?Novamente a risada. Eu girava no lugar, procurando

    quem poderia ser, mas no havia ningum, apenas o escuro.Corri para o meu quarto, a risada ficava cada vez mais

    alta em minha cabea. Cheguei ao corredor dos dormit-rios, as luzes pareciam piscar mais rapidamente, depois uma por uma foi se apagando atrs de mim. Quando finalmente cheguei ao meu quarto, percebi que a porta estava emper-rada, foi a que todas as luzes se apagaram. Eu no tinha medo, s sentia agonia por ficar no escuro. Minha respira-o comeou a ficar ofegante de tanto tentar abrir a porta. Ento desisti, encostei minhas costas nela e fechei os olhos. As luzes ficaram mais alguns segundos apagadas e se acen-deram, ficaram dois segundos acesas e mais dois apagadas, e assim foi.

    Depois de um tempo comearam a piscar mais len-tamente, abri os olhos e vi uma sombra negra vindo pelo corredor em minha direo.

    Vai se ferrar! Se quer me dar medo mande algo mais assustador do que isso falei.

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    A risada em minha cabea, que continuava alta, ces-sou nesse momento e disse:

    Foi voc quem pediu.A luz piscou mais uma vez e quando voltou a acen-

    der havia vrias pessoas no corredor, pessoas... mortas, e todas eram conhecidas. A professora de botnica, Helena, os alunos da minha sala e o homem que eu lembrava ser meu pai. Todos jogados no cho do corredor, com feies de pnico e sobre poas de sangue. O sangue comeou a escorrer em minha direo, me espremi contra o batente da porta tentando ficar o mais longe possvel dele, me virei rapidamente e tentei abrir a porta novamente. Agora sim eu estava com medo.

    Tudo parecia acontecer em cmera lenta, as luzes pis-cavam mais lentamente e o sangue vinha cada vez mais de-vagar em minha direo, tampei os ouvidos, fechei os olhos e gritei CHEGA!, fiquei imvel por alguns instantes e quando voltei a abri-los tudo havia sumido, o corredor es-tava limpo e no havia ningum nele alm de mim.

    Suspirei aliviada, mas no durou muito, as luzes pisca-ram mais uma vez e quando olhei para o meu lado esquer-do, todos os mortos estavam de p me encarando. Soltei um grito abafado e me joguei contra a porta. Ela abriu com um baque e eu ca no cho, chutei a porta e ela se fechou, me deixando no escuro, no cho do meu dormitrio. A voz tinha parado e eu podia ver por baixo da porta que as luzes haviam se apagado completamente.

    Que droga foi aquela? perguntei para mim mesma.

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