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O barranquenho não precisa ser reconhecido como dialeto, porque já é um dialeto, isto é,
uma fala ou variedade que se caracteriza por possuir características próprias. O que está em
causa, num futuro mais ou menos próximo, é o seu reconhecimento com o estatuto de língua
oficial minoritária, como sucedeu ao mirandês a partir de 1999". Isabel sabino, vereadora
"Não somos espanhóis, somos
portugueses diferentes"
"Língua nova", produto do con-
tacto, durante séculos, de dois ou-
tros idiomas latinos, o português e
o espanhol, o barranquenho é um
património cuja fonte ainda está
viva e fervilhante. Falta dar-lhe
um suporte escrito, fixar-lhe a or-
tografia e o vocabulário, preparar
o terreno para que um dia possa
ser ensinada nas escolas. É nisso
que está a trabalhar o município
de Barrancos através de um pro-
jeto de salvaguarda que, a médio
prazo, poderá culminar no esta-
tuto de língua oficial minoritária.
A segunda a seguir ao mirandês.
Praça da Liberdade É por aqui que os homens se reúnem à conversa. Em barranquenho, puro e duro, claro está
* osé Escovai ainda hoje está convencido
de que foi por causa da sua "fala" que
»i •> reprovou naquela fatídica prova oral
quando frequentava o quinto ano no liceu
de Beja. "Provavelmente devo ter dito uma
'barranquenhada' que toda a gente riu e daí
entrei num complexo tal que não fui capazde abrir a boca", lembra, a rir, na distância
que lhe dão os seus 70 anos. A atitude en-
tretanto mudou e hoje, manifestamente "or-
gulhoso" do dialeto que bebeu com o leite
materno, já se entretém a teorizar e a dis-
cutir expressões e vocábulos próprios deste
falar da raia baixo-alentejana. Encostados à
fachada da Sociedade União Barranquense,
a dita "sociedade dos ricos" do antiga-
mente, os homens evocam aquele que pri-
meiro o identificou e estudou, o linguista e
etnógrafo Leite de Vasconcelos, na célebre
Filologia Barranquenha, publicada postu-
mamente, em 1955, e que hoje figura na lista
de edições do município. "Acho que ele não
defendia isto como um dialeto. Parece-me
que não", aventa. "É um dialeto sim, por-
que há muitas palavras que não têm nada a
ver, nem com Espanha, nem com Portugal",
contrapõe Francisco Mendes, 64 anos, quevive fora da vila raiana há mais de 40 mas
vai regressando em cada festa de família ou
comunitária, como a Expoßarrancos, queterminou há dias. "Sinto-me absolutamente
orgulhoso de ter uma língua própria", diz,
inchado, e vai lançando expressões para o
ar, das quais, em muitos casos, desconhece
a origem. "Por exemplo, o abati, que signi-fica quase - Abati me caio - quando em es-
panhol é casi. Ou Tepaha a tfí, que signi-fica qualquer coisa como Já viste isto; o que
te parece isto?".
Num país que globalmente fala a uma
só voz, soará estranho o conceito de dialeto
ou fala. Mas é disso que se trata, sem tirar
nem pôr. A câmara municipal local, com o
apoio científico da Universidade de Évora
(professoras Ana Paula Banza e Filomena
Gonçalves) e do Centro de Linguística da
Universidade de Lisboa (professora Maria
Victoria Navas), uma parceria já longa que,
em 2008, resultou na declaração do bar-
ranquenho como Património CulturalImaterial de Interesse Municipal, confirma-
-o, perentória. "O barranquenho não pre-cisa ser reconhecido como dialeto, porque
já é um dialeto, isto é, uma fala ou varie-
dade que se caracteriza por possuir carac-
terísticas próprias", explica Isabel Sabino,
vereadora do município. E acrescenta que
o que está em causa, "num futuro mais ou
menos próximo", é o seu reconhecimento
com o estatuto de "língua oficial minoritá-
ria", como sucedeu ao mirandês a partir de
1999, quebrando a monocromia linguísticalusa. Um processo que se adivinha "longo"
mas cujos primeiros passos já começaram a
ser dados, através do projeto de Preservação
e Valorização do Barranquenho, aprovado
em outubro último no âmbito de uma me-
dida do Programa de Desenvolvimento
Rural (Proder). Em 24 meses, pretende-se
proceder à "normalização" do barranque-nho, variedade que não possui tradição es-
crita e que, como tal, carece de ser fixada.
Quer através de uma convenção ortográfica
que "represente os seus traços gerais", regu-lamentando as correspondências própriasentre o plano fónico e o plano gráfico, queratravés de um dicionário Barranquenho-
-Português e Português-Barranquenho, que
estabeleça o seu "inventário de vocábulos
exclusivos".
Além das medidas de normalização,sem as quais não será possível "registar a
tradição oral barranquenha, nem utilizar
o barranquenho como veículo de ensino e
promoção dos valores culturais da comu-
nidade", prossegue a vereadora, está ainda
prevista uma nova edição melhorada da
obra El barranquefio - Un modelo de len-
guas en contacto. Um livro que recolhe os
estudos científicos mais recentes sobre a
língua barranquenha e que resulta de um
trabalho de campo realizado, entre 1987 e
1990, pela investigadora espanhola MariaVictoria Navas (ver caixa).
Um povo com repixuxe Mesmo não estando
ainda disponível em Barrancos, Francisco
Mendes já o tem, porque é um "interessado"
nestas matérias e não hesitou em mandá-lo vir de Madrid. Já Maria Isabel Amaro,
que surpreendemos em plena amena cava-
queira com uma conhecida à saída da mer-
cearia, rapidamente muda a "frequência"
linguística para nos explicar, em portu-guês e com vaidade, que "temos um livro e
tudo com o dialeto barranquenho; está lá no
posto de turismo e é muito giro de se ler".
Imaginamos que seja o velhinho FilologiaBarranquenha. A "reprogramação" é tão
automática que Maria Isabel nem se dá
conta. "Eu não consigo falar de outra ma-
neira, só consigo falar em barranquenho",confessa, alheia às diferenças, óbvias, entre
o discurso de-há pouco, praticamente inde-cifrável para um leigo, e este agora com quese nos dirige. À nossa observação, respondecom um sorriso infantil e argumenta, des-
pachada: "Quando vêm pessoas de fora, usa-
mos as palavras de outra maneira. A genteinventa as palavras, é uma língua mistu-rada. Não aplicamos o l em certas palavrase o s também não. Mel dizemos mé e Isabeldizemos Isabé".
À entrada do recinto da Expoßarrancos,o grupo de teatro local mostra aos visitan-tes num pequeno expositor as produções
postas em cena em apenas um ano e três
meses de existência. Ana Rico, de 22 anos,
é uma das atrizes e, também ela, não destoa
da forte consciência identitária que distin-
gue Barrancos. "Sinto-me orgulhosa, gostode ser barranquenha, gosto deste dialeto
único. Muitas vezes, quando saímos daqui,dizem que somos espanhóis. Mas nós não
somos espanhóis, somos portugueses só
que somos diferentes", sentencia, com ge-nica, valentia. Ou, como se diz em barran-
quenho, com repixuxe."É como se fosse parte do nosso pró-
prio ADN enquanto povo", refere-se-lhe
Francisco Oliveira, diretor do coletivo te-atral que, tanto quanto possível, procura
adaptar os guiões, escritos em português,
para a fala barranquenha, já na fase de en-
cenação. "Temos a consciência de que te-
mos um papel cultural, de preservação das
tradições e, neste caso, promover o dialeto
é o nosso pequeno contributo", descreve o
responsável, consciente, nos seus 38 anos,de que talvez a sua geração tenha sido a úl-
tima a começar a falar o "espanhol" (o quemuitos chamam ao dialeto próprio) an-tes mesmo de aprender o português oficial.
Uma realidade que está a mudar, mercê da
uniformização provocada pelos meios de
comunicação social e novas tecnologias de
informação, e que exige uma intervenção
urgente. "Como todas as línguas, o barran-
quenho se não se falar vai morrer. O barran-
quenho não se estuda e fala-se mais do queo latim, mas falta-lhe o suporte institucio-nal, o reconhecimento oficial, e isso é umamais-valia que este projeto pode trazer, fo-mentando a língua junto das novas gera-ções", defende Francisco Oliveira.
É essa também a meta da câmara muni-
cipal local, conhecedora da natureza "dinâ-mica" da linguagem e do risco de desapare-cimento perante a ausência de um suportefísico. "Este projeto permitirá que o bar-
ranquenho possa ser escrito e, como tal,
que mais facilmente perdure no tempo.Atingido este objetivo, pode então pensar--se em outros mais ambiciosos, que culmi-
nariam na possibilidade de que seja ensi-nado na escola", conclui Isabel Sabino.
"Como todas as línguas,o barranquenho se não
se falar vai morrer. 0
barranquenho não se
estuda e fala-se mais do
que o latim, mas falta-lheo suporte institucional , o
reconhecimento oficial".Francisco Oliveira
"Quando vêm pessoas de fora, usamos as palavras de outra
maneira. A gente inventa as palavras, é uma língua misturada.
Não aplicamos o / em certas palavras e o 5 também não. Mel
dizemos mé e Isabel dizemos Isabé". Maria Isabel Amaro
Nem
portuguêsnem
espanhol:barranquenho
;7g} $, íngua mista, nova, pro-
-11 duto do contato, dv-".' ika rante séculos, entre as
:
variedades meridionais portugue-sas e espanholas" - alentejano no
primeiro caso, e estremenho e an-
daluz, no segundo. É deste modo
que a investigadora Maria Victoria
Navas, do Centro de Linguísticada Universidade de Lisboa, de-
fine o barranquenho, fala que es-
tudou intensamente entre 1987 e
1990, em estâncias prolongadasna vila raiana, resultando daí a
obra El barranqueno: un modelode lenguas en contacto, editado
recentemente pela Universidade
Complutense de Madrid. Não é,
como erradamente se poderá su-
por, dada a condição fronteiriçado território, o resultado da "in-
fluência de uma língua sobre ou-
tra", mas a criação de um "código
novo", produto de duas línguas ro-
mânicas, garante a estudiosa, con-
siderando tratar-se de um caso
único na Europa latina. "Só há umcaso semelhante entre a fronteira
linguistica brasileira e uruguaia, o
chamado 'fronterizo', na Américado Sul", adianta.
Duas décadas passadas so-
bre o trabalho de campo, o pro-jeto Preservação e Valorização do
Barranquenho, promovido pelo
município local, propõe-se rever
e ampliar esta monografia. E além
de dados novos do ponto de vista
científico, a investigadora respon-sável veio encontrar transforma-
ções ao nível da própria popula-
ção falante, que se mantém como
"fonte viva" deste património."Tenho vindo a notar uma maior
autoestima em relação ao fenó-
meno linguístico. Ou seja, as pes-
soas que tiveram a oportunidadede adquirir uma escolarização em
português, inclusivamente estu-
dos médios ou superiores, sabem
distinguir perfeitamente quandofalam português e quando o fa-
zem em barranquenho. No pri-meiro caso, em situações formais,
no segundo, em situações infor-
mais, em família ou com amigos".Quanto ao vocabulário, dão-
-se a conhecer alguns arcaísmos
portugueses e certos emprésti-mos espanhóis, alguns meridio-nais, como "pantorrilla" (bar-riga da perna), "hipo" (soluço),ou "laganha" ("leganha", em es-
panhol e "ramela", em portu-guês), ilustra Maria VictoriaNavas. Também se inclui um ca-
pítulo teórico sobre as línguasem contacto e a situação linguís-tica do barranquenho face às lín-
guas vizinhas, além de um cor-
pus de literatura oral tradicional
narrada em espanhol meridio-nal na comunidade. CF