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ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ
SONATA ANDINA DE JAIME M. ZENAMON:
ANÁLISE TÉCNICO-INTERPRETATIVA RESGATANDO A
VISÃO DO COMPOSITOR SOBRE SUA OBRA
Luciana Elisa Lozada Tenório
Curitiba Agosto, 2010
ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ
SONATA ANDINA DE JAIME M. ZENAMON: ANÁLISE TÉCNICO-INTERPRETATIVA RESGATANDO A
VISÃO DO COMPOSITOR SOBRE SUA OBRA
Luciana Elisa Lozada Tenório
Trabalho de conclusão do projeto de
Iniciação Científica, realizado por
Luciana E. L. Tenório, Bolsista da
Fundação Araucária de apoio ao
desenvolvimento científico e
tecnológico do Paraná – 2009/2010
Orientador: Orlando Cézar Fraga
Curitiba Agosto, 2010
AGRADECIMENTOS
Agradeço principalmente ao compositor Jaime Zenamon pela grande
disposição e colaboração neste trabalho, ao orientador Orlando Fraga pelo auxílio no
desenvolvimento da pesquisa, e ao violonista Aluísio Coelho Barros pelo intenso
envolvimento e participação em todas as gravações realizadas no trabalho. Também
agradeço ao apoio de meu pai Nelson Tenório, e especialmente à minha mãe, Isela
Anelice Lozada, que me incentivou muito a investir neste projeto. Finalmente, gostaria
de agradecer à Fundação Araucária pelo apoio financeiro e à Embap pelo apoio
organizacional para o desenvolvimento da pesquisa.
RESUMO
Este trabalho se resume a um material de apoio ao intérprete que deseja
executar a obra Sonata Andina de Jaime M. Zenamon. Visto que não há qualquer
bibliografia sobre o assunto, o trabalho procura reunir o maior número possível de
informações sobre o contexto da obra, sua interpretação e dúvidas à respeito de sua
versão editada, trabalhando diretamente com o compositor. Todos os conhecimentos
adquiridos através do contato com Jaime Zenamon, foram utilizados em uma análise
musical com a qual foi possível identificar os elementos que compõe esta obra e assim
entender melhor seu discurso musical; resgatar a interpretação do ponto de vista do
próprio compositor; fazer algumas correções na edição e sugerir alternativas técnicas
relevantes, a fim de facilitar o trabalho do intérprete sem comprometer o sentido do
texto musical, muito pelo contrário, ressaltando-o, de acordo com a visão interpretativa
proposta.
Palavras-chave: Jaime Zenamon – Análise – Interpretação – Sonata Andina
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................... pág. 4
2. JAIME ZENAMON .................................. ....................................................... pág. 5
3. SONATA ANDINA .................................. ....................................................... pág. 5
4. ANÁLISE DO PRIMEIRO MOVIMENTO .................. ..................................... pág. 7
5. ANÁLISE DOSEGUNDO MOVIMENTO .................... .................................... pág. 19
5.a. CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS E INTERPRETATIVAS ..... .................. pág. 28
5.b. CORREÇÕES REALIZADAS NA EDIÇÃO ............... ............................. pág. 30
6. ANÁLISE DO TERCEIRO MOVIMENTO .................. ..................................... pág. 32
7. CONCLUSÃO ..................................... .......................................................... pág. 43
8. BIBLIOGRAFIA ................................... .......................................................... pág. 44
9. ANEXOS......................................................................................................... pág. 46
4
1. INTRODUÇÃO
Quando um intérprete aborda uma obra musical, os primeiros materiais que tem
como referência para a interpretação geralmente são: a partitura e suas indicações,
possivelmente algumas gravações e o conhecimento através de pesquisa bibliográfica
e análise, do estilo, da harmonia e outras características que lhe permitem deduzir a
interpretação de fraseio, de articulação, de dinâmica e caráter da música.
Por vezes, o intérprete se depara com situações em que estes artifícios são
escassos ou insuficientes para criar uma interpretação sólida, e compreender
realmente o discurso musical e seu contexto. Este é o caso da obra Sonata Andina, de
Jaime Zenamon.
Dessa carência surgiu a idéia de realizar este trabalho, mais precisamente, após a
realização de um masterclass com Zenamon, em que o compositor acrescentou
informações muito importantes sobre a obra, modificando completamente minha
interpretação. Cheguei à conclusão de que este trabalho seria importante para o
intérprete que, por ventura, não tenha acesso ao compositor e deseje saber mais à
respeito da Sonata Andina.
Quanto à pesquisa, este trabalho se dividiu em duas etapas: A primeira etapa
tratou de resgatar a visão do compositor sobre sua obra por meio de entrevistas,
levantando dados importantes para a contextualização da peça, questões
interpretativas e até mesmo correções na edição da partitura. Após esta coleta de
dados foi realizada a segunda etapa, na qual a obra foi analisada musicalmente pela
autora do trabalho, tendo como elemento direcionador, o grupo de informações obtido
na primeira etapa da pesquisa e a finalidade de compreender melhor o texto musical e
apresentar, quando necessário, soluções técnicas relevantes para uma melhor
execução da obra.
5
2. JAIME ZENAMON
Jaime Zenamon é um compositor, violonista e regente que nasceu em La Paz,
Bolívia, no dia 20 de fevereiro de 1953; Se mudou para Curitiba com sua família no
ano de 1972, onde se naturalizou. Em 1978 fundou o curso de Bacharelado em Violão
da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, onde atuou como professor de violão,
até 1980. De 1980 até 1992, radicou-se em Berlim onde atuou como professor de
violão a convite da Escola Superior de Artes (Hochschule der Kunste. Atualmente
reside em Curitiba e trabalha como compositor, regente e ministra masterclasses,
seminários e palestras em diversos países.
Quanto à sua formação, teve aulas de violão erudito com Abel Carlevaro
(Uruguai), Almosnino (Hungria) e Avber Brender (discípulo de Andrés Segovia –
Israel); aulas de composição com Guido Santórsola (Itália), Alceu Bocchino (Brasil),
Nicola Flagello (Itália/E.U.A), Wladimir Nokolovsky (discípulo de Shostakovich –
Calendônia/Rússia); aulas de regência com Carlos Prates (Brasil), Guido Santórsola
(Itália/Uruguai) e frequentou como ouvinte, as aulas do maestro Hebert Von Karajan
(Alemanha).
3. SONATA ANDINA
A Sonata Andina é uma obra para duo de violões, composta em 1982. Foi
publicada pela Editora Margaux, em 1988. É constituída de três movimentos: I.Vivo,
II.Lento e III.Bien animado. Segundo Jaime Zenamon, esta peça foi composta quando
ele residia na Alemanha, para um duo de violões que o compositor mantinha com a
violonista norte-americana Laurie Randolph. Zenamon avalia esta obra como sendo
descritiva:
Eu morava naquela época na Alemanha e imaginava bons tempos quando eu estudava no Uruguai. As pampas, as estepes, os churrascos, aquela coisa de andar à cavalo... Isso não existe na Europa, aquelas estepes, aquelas pampas, e aí você tem a parte Andina, ter a parte Andina na mente facilita a sua fantasia, você começa a associar a música às montanhas, aos cavalos. Por isso, essa peça se chama música descritiva, ela esta descrevendo alguma passagem, algum momento que te influenciou muito na vida[...]1
Pode-se perceber que é de grande valia que o intérprete tenha em mente este
tipo de imagem e reconheça os elementos musicais que criam essa atmosfera andina.
1 Entrevista realizada com Jaime Zenamon, no dia 29 de setembro de 2009.
6
Para ilustrar o depoimento do compositor, a figura 1 mostra a foto de uma paisagem
tipicamente andina:
Fig. 3.12
Em entrevista, o compositor fez um pequeno relato dos momentos e
influências que foram significativos para a criação desta peça:
Eu tive professores uruguaios e argentinos[...]Os seminários de Porto Alegre abriram uma perspectiva enorme e a gente teve ajuda de pessoas fantásticas, que nem pais da gente, mães, uma coisa assim, absurda. A família Zarate, o Jorge Martinez Zarate3 e a mulher dele, eram mais do que família, porque o apoio que eles deram era muito sério, muito grande e então você vê que isso tem uma influência para toda a vida, e esses momentos que a gente passava nos ambientes dos alunos, tinha muita influência do folclore argentino e uruguaio e foi o momento em que eu conheci alguns personagens como Mercedes Sosa, Cacho Tirao, que era um violonista, Eduardo Falú, Juan Falú, Atahualpa Yupanqui.4 Enfim, essa parte me influênciou muito, influênciou esses cantos, essa maneira de fazer música.5
2 Foto disponível em <http://www.visitingargentina.com/blog/wp-content/uploads/andes,_patagonia,_argentina.jpg>
3 Importante violonista e professor de violão, que juntamente com outros professores criou um dos mais
atuantes centros violonísticos da atualidade, na Argentina. (DUDEQUE, Norton Eloy, História do Violão. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1994, p. 99).
4 Mercedes Sosa, Cacho Tirao, Eduardo Falú, Juan Falú e Atahualpa Yupanqui são importantes nomes de músicos “folcloristas” que contribuiram e participaram de um período que ficou conhecido, na Argentina, como o “boom del folklore” (1960-70). As décadas de 1960 e 1970 foram períodos prolíferos em termos de experimentação estética com zambas, chacareras, cuecas, bailecitos, vidalas, milongas, estilos, etc. (RUIZ, Irma. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2ª ed. New York: Oxford University Press, 2001. Vol. 1, p. 881.) 5 Entrevista realizada com Jaime Zenamon, no dia 05 de outubro de 2009.
7
Foram encontradas algumas gravações desta obra, no entanto, a mais
importante e significativa para este trabalho, foi a gravação do duo de Jaime Zenamon
e Laurie Randolph no álbum Gitarrenmusik des 20 Jahrhunderts, gravado em LP, em
Berlin, 1988.
4. ANÁLISE DO PRIMEIRO MOVIMENTO
Andamento: Vivo
Sugestão de tempo: = 100
Forma: A – B – A’
Segundo o próprio compositor, o ponto de partida para a composição do
primeiro movimento de Sonata Andina foi o primeiro acorde da peça, executado pelo
violão 2, representado na figura 4.1, que surgiu de forma intuitiva. Jaime Zenamon
gostava do som desse acorde e improvisava utilizando-se do ligado entre a nota la e
sol, cujo efeito lhe agradava:
Fig 4.1
Logo depois teria surgido a idéia do ritmo 6/8, cuja base está nos ritmos
folclóricos sul-americanos como o malambo6 e a chacarera7, que apresentam como
forte característica a sobreposição e justaposição dos ritmos 6/8 e 3/4. Como se vê
nos compassos 5 e 6 da figura 4.2, essa característica polirritmica é explorada no
movimento I da Sonata Andina.
A seção A, compreende o primeiro compasso até o compasso 72, e no que se
refere à melodia, encontramos duas visões diferentes a respeito de sua primeira frase:
6 Malambo é o nome que se dá na Argentina a uma dança entre dois homens, em que cada um, por turno e competencia, faz diferentes tipos de sapateado desafiando-se mutuamente. Sua música é executada pelo violão e seu caráter é vivo. ((MAYER-SERRA, Otto. Música y músicos de Latinoamerica.México, DF; Nova Iorque: Atlante: W.M. Jackson, 1947. p.574 e 575)
7 A chacarera é uma dança argentina, realizada por casais que dançam separados. Sua forma musical cosiste, no geral, em uma introdução instrumental e a parte vocal. A música toca-se geralmente com violão, acordeon e bombo. É uma dança de ritmo ágil, em 6/8, e caráter muito alegre e festivo. (MAYER-SERRA, Otto. Música y músicos de Latinoamerica.México, DF; Nova Iorque: Atlante: W.M. Jackson, 1947. p.273 e 274)
8
como se vê na figura 4.2, a primeira visão esta notada na partitura por meio da
ligadura de frase, que sugere que a frase a inicia-se no compasso 5 e termina no
compasso 14, refletindo a opinião do compositor Jaime Zenamon sobre o trecho.
De acordo com a segunda visão, a frase a inicia-se no primeiro compasso,
com um intervalo de quinta que atua como um eco e, ao mesmo tempo, um gesto
melódico, numa seqüência de quatro compassos e após desenvolver-se é finalizada
no compasso 14. Esta visão é sugerida pela observação das funções harmônicas e
melódicas do trecho, dessa forma, a frase a apresenta um sentido coerente pois inicia
com o primeiro grau da tonalidade de Sol Maior, tanto harmonicamente quanto
melodicamente, e após se desenvolver tendo como base o acorde vizinho de La Maior
(uma espécie de “bordadura harmônica”) a melodia e harmonia retornam à tônica.
Fig. 4.2
O compositor fez comentários sobre a interpretação desta primeira frase, visto
que as indicações da partitura são subjetivas e podem resultar diferentes dependendo
9
da idéia de cada intérprete. Primeiramente o compositor citou a importância do arpejo
no primeiro acorde, a fim de aumentar sua ressonância, logo, fez um comentário à
respeito da indicação de dinâmica forte, notado na partitura:
[...]Isso é o que eu quis dizer com forte, é uma entrada magistral. Não um grito, sabe, que assusta a pessoa, porque o forte para mim não quer dizer estridente[...]Tinha um grande pianista que falava isso, como ele me abriu os olhos... Ele dizia: “forte não quer dizer gritante, forte quer dizer – vou tentar traduzir – com força, não um grito desesperado, quer dizer sólido”[...] No forte você usa a inércia, e é muito mais fácil tocar forte do que gritante, tenso. E nessa entrada isso faz muita diferença, a entrada sólida. E ainda, isso dá mais segurança, em qualquer música que comece assim, você entra com absoluta confiança, te deixa mais seguro do que pensar: “vou ter que tocar forte”, aí você se amarra, você fica nervoso.8
Apesar de haver apenas a indicação forte, Jaime Zenamon sugeriu que os
intervalos de quinta repetidos no início melodia fossem tocados com um gradual
diminuendo, assim como sinos, ou como um eco. Também discorreu sobre a leveza
que implica o acompanhamento executado pelo violão 2 e o cuidado com os acentos
no decorrer do movimento, a fim de não haver exageros, já que se trata de uma peça
extremamente violonística, que não necessita muito esforço para soar bem no
instrumento.
Continuando com a análise, podemos identificar no período que acabamos de
observar, um motivo que será importante no decorrer da peça, o chamaremos de
motivo 1. O motivo que acabamos de citar está implícito em outros motivos que na
verdade são derivados dele, como o exemplo no compasso 6, mostrado na figura 4.3:
Motivo 1:
Fig.4.3
Na figura 4.4, observamos que do compasso 15 ao compasso 18 ocorre uma
seqüência e uma escala que se caracterizam como uma ponte para a frase b .
8 Entrevista realizada com Jaime Zenamon, no dia 29 de setembro de 2009.
10
Observa-se que uma imitação à quinta inferior do motivo 1 é utilizada como uma
ligação entre a frase b e a frase c , que virá a seguir:
Fig. 4.4
Observe na figura 4.5, os compassos 28 a 31 onde ocorre a frase c no violão
1. A nova frase é formada pelo motivo 1, que por sua vez é imitado mais adiante pelo
violão 2. Nesse trecho há uma inversão de papéis entre os violões, o que segundo
Jaime Zenamon não teria ocorrido, não fosse por uma sugestão de Laurie Randolph,
uma vez que o compositor tinha a idéia de que em um duo de violões, um violão
deveria executar a melodia e o outro a harmonia, delimitando-se bem os papéis de
cada um, em um mesmo trecho, como ele próprio afirma neste depoimento:
Eu morava com uma moça naquela época e ela me deu muitas boas idéias, era uma americana, muito boa violonista e ela me disse: ”Eu gosto muito quando um violão dá pro outro”. E eu achava que um violão deveria acompanhar e o outro fazer a melodia, ou as vezes trocar, mas não assim, no meio. E através dela eu abri a “cuca” um pouco, porque a crítica é ótima, e ela me criticava, dizia: “Por que você não faz isso? Por que não faz aquilo?”. Foi uma convivência muito legal, ela tocava muito bem e como ela era de fora, me dava idéias.9
9 Entrevista realizada com Jaime Zenamon, no dia 29 de setembro de 2009.
11
Fig. 4.5
Apesar da inversão de papéis, o compositor enfatiza que o momento da
mudança deve ser auditivamente imperceptível, pois se trata da continuação de uma
mesma idéia musical.
Logo após uma seção rítmica, surge uma ponte constituída de arpejos em que
se observa uma imitação literal e duas inversões retrógradas, destacadas na figura
4.6. A ponte leva à frase a’ , iniciada no compasso 44, chamada assim por retomar
elementos da seção A, presentes no motivo rítmico-melódico do acorde inicial
circulado no compasso 44, na figura 4.7:
Fig. 4.6
12
Fig.4.7
Na figura 4.8 observamos a frase c’ , que utiliza os mesmos motivos
melódicos dos compassos 28 a 31 transpostos e imitados de forma não literal. A
escala que antecede a frase funciona como um levare10, novamente o motivo 1 é
imitado e ocorre a inversão de papéis entre os violões.
Fig. 4.8
10 “Levare é o gesto do regente que antecede e serve para preparar o tempo forte a seguir” (DOURADO, Henrique A. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004). Nesta análise, adaptamos este termo para definir um trecho musical que antecede e serve para preparar ou atingir, a frase musical principal.
13
A partir do compasso 62, como mostra a figura 4.9, o compositor insere um
novo material melódico e harmônico, que funciona como uma transição para a seção
B, pois nela aparecem notas alteradas criando uma tensão modulatória que conduz à
próxima seção, que por sua vez apresenta as aterações citadas em sua armadura de
clave:
Fig.4.9
14
A seção B (compassos 73 a 107) apresenta dois momentos distintos
separados por uma fermata. As principais características do primeiro momento, que
abrange os compassos 73 a 96, são a utilização de padrões de arpejo mostrados na
figura 4.9 e 4.10, e a finalização com uma melodia que surge no compasso 86 e é
executada pelo violão 2 (figura 4.11). É interessante notar que novamente o
compositor inverte os papéis melódico-harmônico dos violões no meio da frase
melódica como se vê no compasso 93, na figura 4.11.
Fig.4.10
Fig. 4.11
O segundo momento da seção B inicia-se no compasso 97, com um pequeno
contraponto a duas vozes realizado pelo violão 1, que segue como uma breve melodia
para encerrar a seção B. O violão 2 por sua vez realiza um acompanhamento que
revela uma estrutura ritmica-intervalar semelhante ao acompanhamento feito pelo
acorde inicial da peça, já apresentado nas frases a e a’, um fator que reforça a
15
semelhança entre os trechos é a articulação das tercinas, que é a mesma nos três
momentos (frase a, frase a’ e compassos 101 a 105 da seção B), como se pode
observar na figura 4.12, na comparação entre o acompanhamento destacado da
seção B e o acompanhamento da frase a’ , que todavia possuem semelhança entre a
alternância da acentuação rítmica em 6/8 e 3/4.
Fig. 4.12
Agora, analisaremos a seção A’ (compassos 108 a 149), assim chamada por
retomar elementos do início da obra, como a armadura de clave que volta à sua forma
inicial mas desta vez atuando em Mi Menor, em princípio, e retornando em seguida à
tonalidade de Sol Maior. Outro elemento que retorna é a citação e imitação motívica já
apresentada na seção A , como se vê na figura 4.13. Apesar da fórmula de compasso
estar notada em 3/4, o ritmo se alterna entre o ritmo ternário e o ritmo binário em 6/8,
como ocorre na seção A :
16
Fig. 4.13
A figura 4.14 mostra que a partir do compasso 114 há uma sequência que
entra em destaque, o que, segundo Zenamon, deve ser feito preferencialmente por
meio do timbre e não por intensidade, como podem sugerir os acentos que aparecem
na partitura. Novamente encontramos uma referência ao motivo ritmico-melódico do
acompanhamento feito pelo acorde que inicia a peça, uma referência já feita
anteriormente, mostrada na figura 4.12, acima:
Fig. 4.14
A seguir, na figura 4.15 podemos ver a frase c” , transposta e com algumas
pequenas modificações intervalares em relação à frase c . Ao invés da esperada
imitação do motivo 1 que se seguiu nas frases c e c’ , é apresentada uma nova frase
que completa o período, a chamaremos de frase d :
17
Fig. 4.15
Na figura 4.16, após o trecho considerado como um levare, observa-se um
retorno à frase a , ligeiramente modificada, mas ainda assim com a presença do
motivo 1 e suas variações, que estão circulados na figura. A fórmula de compasso
volta a ser 6/8, como no início da peça. Nos compassos 146 e 147 ocorre uma
liquidação11 que causa a impressão de finalização da peça.
11
Liquidação é privar gradualmente as formas-motivo de seus elementos característicos, dissolvendo-as em forma amorfas, tal como as escalas e acordes arpejados. Segundo Schoenberg, um dos propósitos da liquidação é neutralizar a extensão ilimitada. (SCHOENBERG, A. Fundamentos da composição musical. São Paulo: EDUSP, 1993, p. 186)
18
Fig. 4.16
Apesar da liquidação dar a impressão de constituir o final da peça, este se dá
por meio do sufixo que surge em seguida, como mostra a figura 4.17. O sufixo, em
forma de um motivo já apresentado na frase d , tem a função de causar surpresa e
contraste em relação ao “falso fim” que o precede, isso se comprova tanto pela
respiração que ocorre antes do sufixo, quanto pelo contraste entre as dinâmicas mp e
f, e as indicações de andamento rallentando e a tempo. Esta interpretação do final
é reforçada pela sigestão de interpretação do póprio Zenamon: “bem seco”.12
12
Entrevista realizada com Jaime Zenamon, no dia 29 de setembro de 2009.
19
Fig. 4.17
5. ANÁLISE DO SEGUNDO MOVIMENTO
Andamento: lento
Forma: A-B-A´
Logo no primeiro compasso da seção A (compassos 1 ao 51), o compositor
lança um elemento que caracteriza a obra: a sonoridade da escala pentatônica.
Abaixo, a figura 5.1 representa o primeiro compasso da obra, apresentando uma
pequena correção na última nota do violão 2. Ao invés da nota sol, como está escrito
na edição da editora Margaux, a nota correta é um fá sustenido, como se pode ouvir
na gravação feita pelo duo do compositor com a violonista Laurie Randolph e como foi
confirmado em entrevista com Jaime Zenamon.13
Fig. 5.1
13 Entrevista realizada no dia 1º de outubro de 2009.
20
Nota-se que o segundo movimento inicia com o sinal de dinâmica p (piano).
Acredito que é interessante fazer uma citação de Zenamon,à respeito de sua visão
sobre este tipo de dinâmica:
[...]Tinha um grande pianista que falava isso, como ele me abriu os olhos... ele dizia: “[...]piano, não quer dizer fraco, sabe fraco de saúde, quer dizer suave, com muita delicadeza”. São coisas diferentes, então quando vocês vão fazer um piano, ao contrário, é preciso um peso do corpo enorme, o Carlevaro falava pra mim “as maiores carícias se fazem com o corpo inteiro”. Se você quer fazer uma carícia, não vai fazer um movimento fraco, assim você vai estar limpando sujeira. No caso de uma carícia você usa muita energia, por incrível que pareça [...]14
Segundo o compositor, esta peça foi escrita, principalmente em seu aspecto
melódico, com base em uma escala pentatônica menor, conhecida como hirajoshi, e
por meio de análise podemos perceber que ele também utiliza muito outra escala
pentatônica, muito similar, chamada kumoi.15 A figura 5.2 nos mostra as duas escalas
citadas, partindo da nota dó, para fins de comparação:
Fig. 5.2
14 Entrevista realizada com Jaime Zenamon, no dia 29 de setembro de 2009.
15 Segundo Shigeo, As escalas hirajoshi e kumoi-joshi foram criadas inicialmente como modos de afinação do koto, instrumento japonês, baseadas na escala japonesa in. Desde então, se popularizaram no Japão. (SHIGEO, Kishibe. The traditional Music of Japan. Tokyo, Japan: Ongaku No Tomo Sha Edition, 1984.) A nomenclatura uitlizada neste trabalho é a mesma utilizada pelo autor Persichetti, em um de seus livros. Nele, ele afirma que as escalas kumoi e hirajoshi estão entre as escalas pentatônicas mais utilizadas na música erudita do século XX. (PERSICHETTI, Vincent. Armonia del Siglo XX. Madrid: Real Musical, 1985, p. 48).
21
A música tipicamente andina geralmente utiliza em suas melodias a escala
pentatônica16, Zenamon afirma que o objetivo da escolha da sonoridade do modo
menor foi a expressão de um caráter melancólico, que remete à realidade humilde e
sofrida das pessoas que habitam a região montanhosa dos Andes.
Falaremos mais tarde sobre como Zenamon utiliza estas escalas em sua
música. Neste momento, voltaremos nosso foco a uma frase iniciada no segundo
compasso que é executada pelo violão 1 e acompanhada por um cromatismo
descendente executado pelo violão 2. Esta frase, que chamaremos de frase a , será
um dos dois elementos melódicos recorrentes em todo o segundo movimento, e é
representada na figura 5.3:
Fig. 5.3
A figura 5.3 nos mostra que no compasso 5 ocorre uma espécie de elisão em
que o final da frase a tocada pelo violão 1 serve como apoio harmônico para que o
violão 2 repita o início da mesma frase. Outra observação a ser feita é uma pequena
correção na articulação da edição que no terceiro compasso não apresenta ligadura
entre as duas notas si do terceiro e quarto tempo, não obedecendo ao padrão de
articulação observado nas notas repetidas, no restante da frase. É interessante
16
BAUMANN, Max Peter. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2ª ed. New York: Oxford
University Press, 2001. Vol. 2, p. 824.
22
comentar que a frase possui um caráter descritivo muito forte, como descreve
Zenamon, neste depoimento:
Esta frase é bem expressiva e calma, é quase um caminho e isso eu me lembro bem, por que as pessoas do altiplano têm um andar melancólico, amargurado, elas andam encurvadas, com um peso enorme. Elas são baixinhas, tem umas costas enormes por causa do pulmão, porque lá é muito alto, e são muito judiadas, muito sofridas, parece que você vê as fendas da terra no rosto das pessoas, pela ação do sol, é uma coisa muito impressionante. Então, nesse sentido, associei a frase com esse caminhar.17
A utilização deste tema se dá por meio da imitação de seus fragmentos. A
figura 5.4 demonstra de que forma estas imitações são realizadas:
Fig. 5.4
O segundo material temático que será utilizado no decorrer da peça, é
apresentado claramente nos compassos 6, pelo violão 2 e nos compassos 10 e 11,
pelo violão 1, trata-se da escala kumoi, já citada anteriomente, iniciando com a nota
mi, como mostra a figura 5.5:
17
Entrevista realizada no dia 1º de outubro de 2009.
23
Fig. 5.5
Este tema, que nada mais é do que a escala kumoi em 1º modo, é imitado
literalmente em vários momentos, como se pode ver na figura 5.6. Porém, por se tratar
de uma escala pentatônica levaremos em consideração outros tipos de uso deste
material e também observar a utilização da escala hirajoshi, muitas vezes apresentada
em conjunto com a escala kumoi.
Fig. 5.6
De acordo com o autor Vincent Persichetti, pode mos obter cinco modos de
uma escala pentatônica iniciando uma nova escala de cinco sons a partir de cada grau
da escala principal (1º modo)18, como exemplifica a figura 5.7, logo abaixo,
18
PERSICHETTI, Vincent. Armonia del Siglo XX. Madrid: Real Musical, 1985, p. 49.
24
apresentando a escala hirajoshi a partir da nota si, que por sua vez é apresentada em
alguns momentos da seção A do segundo movimento, mostrados mais adiante pela
figura 5.8:
Fig. 5.7
Na figura 5.8, podemos observar que além de serem utilizadas em seus
diversos modos, incrementando a melodia, alguns graus das escalas são utilizados na
forma de um arpejo constante, o que não possui tanto apelo melódico, mas cria uma
sonoridade peculiar ora com função de acompanhamento quando o outro violão
executa uma melodia, ora formando uma massa sonora em conjunto com o outro
violão, quando este também executa um arpejo.
25
Fig. 5.8
26
O compositor também utiliza um acorde de quarta em primeira inversão
(compassos 35 a 38), que reforça a sonoridade pentatônica do trecho, segundo a
afirmação de Persichetti: “Os acordes de três, quatro e cinco sons por quartas justas
tem um sabor pentatônico. A forma com cinco sons contém todos os graus da escala
pentatônica diatônica.” Na figura 5.9, pode-se observar o acorde em questão e suas
formas de apresentação na peça:
Fig. 5.9
A seção B abrange os compassos 52 a 59 e é caracterizada por sua divisão
rítmica em compasso ternário e por arpejos executados simultaneamente pelos dois
violões criando uma massa sonora em que se destaca uma melodia, indicada na
partitura por meio do sinal “>” . A melodia resultante é mostrada na figura 5.10:
Fig. 5.10
Uma linkagem é utilizada para conectar a seção B com a seção A’ , ela é feita
através do acorde de quarta em primeira inversão já utilizado anteriormente na peça,
mostrado na figura 5.9.
A seção A’ (compassos 60 a 85) retoma os elementos característicos da
seção A , como a frase a , mostrada na figura 5.11:
Fig. 5.11
27
Citando também as escalas pentatônicas e acordes de quarta, mostrados nas
figuras 5.12, 5.13 e 5.14:
Fig. 5.12
Fig. 5.13
28
Fig. 5.14
5.a. CONSIDERAÇÕES SOBRE ASPECTOS TÉCNICOS E INTERP RETATIVOS
Por apresentar situações peculiares, este movimento merece um subcapítulo à
parte que trate de questões técnicas e interpretativas como as que virão à seguir:
Logo no início da seção A, a partir do segundo compasso, o violão 2 realiza
harmônicos que são tocados com a mão direita utilizando o dedo indicador e o anular.
Para uma maior clareza dos harmônicos o intérprete deve procurar tocar na região
mais próxima à ponte possível. O próprio Jaime Zenamon afirma que por vezes
utilizava o dedo mínimo, ao invés do anular para realizar esse tipo de passagem, a fim
de tocar mais próximo à ponte do violão, e consequentemente com mais clareza.
É interessante fazer um comentário à respeito da técnica utilizada para realizar
o efeito tambora, presente nos compassos 17-18 e 77-78. Este efeito pode ser
realizado tanto com a parte lateral esquerda do polegar direito que percute as cordas
em uma região próxima à ponte19 do violão, mas também pode ser realizado da
19 Também chamada cavalete, em instrumentos de cordas, é uma espécie de barra localizada entre o tampo e as cordas. A ponte tem a função de levantar as cordas para estabelecer uma certa distância acima do tampo ou escala, e transmitir as vibrações das cordas para o corpo do instrumento, serve também como um dos dois pontos terminais do comprimento vibrante da corda. (BOYDEN, David D; COOKE, Peter; WALLS, Peter. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Disponível em http://hemingways-studio.org/dictionary/grove_main.htm )
29
mesma forma com as “costas” do polegar. Deste modo, o contato da unha com as
cordas favorece a sonoridade plena dos harmônicos dos acordes e ainda destaca a
nota da primeira corda.
O arpejo executado pelo violão 1, no compasso 18, apresenta uma digitação
sugerida pelo compositor. No entanto, ela apresenta uma dificuldade técnica
considerável para a mão esquerda, visto que exige uma abertura grande entre os
dedos 3 e 4, posicionados na 11 ª casa, e o dedo 2, posicionado na 8ª casa. Uma
sugestão de digitação tecnicamente mais fácil para este trecho, sem que se perca a
fluidez do arpejo, pode ser observada na figura 5.a.1:
Fig. 5.a.1
Nos compassos 19 a 22 o violão realiza um trecho solo. Está implícita certa
liberdade ao intérprete que realiza o trecho sozinho, porém não há nenhuma indicação
na partitura. Para que não haja dúvidas, uma sugestão para a edição seria a
incorporação da indicação “livre e molto expressivo”, revelando a interpretação
concebida pelo compositor Jaime Zenamon que afirma: “Esta parte é muito livre, é
uma parte extremamente lírica, não há tempo.”20
No compasso 23, exclusivamente, há uma mudança no padrão de arpejo
executado pelo violão 2. Jaime Zenamon não se recorda se isso foi um erro de edição,
mas pelo fato de haver alteração em várias notas, deduz que ele deva ter feito essa
pequena mudança conscientemente para chamar a atenção do intérprete. Mesmo
assim, segundo o próprio compositor, não há uma razão musical nessas alterações,
portanto, fica a critério do intérprete decidir o arpejo que deseja fazer. Tomando como
exemplo a recorrente repetição de padrões rítmicos, melódicos e harmônicos que
20
Entrevista realizada no dia 1º de outubro de 2009.
30
podemos observar no decorrer da peça, acredito que a melhor opção neste caso seja
repetir o padrão de arpejo utilizado desde o princípio.
Uma curiosidade sobre este movimento chama a atenção do intérprete que
escuta a gravação do duo de Zenamon e Randolph. Nesta gravação, o trecho dos
compassos 63 a 73, que se trata de uma repetição ligeiramente modificada dos
compassos 39 a 49, é omitido. Segundo Jaime Zenamon, isso foi, provavelmente,
mais uma sugestão de Laurie Randolph, pois lhe pareceu que o trecho tornava a
música um pouco repetitiva e longa. A idéia original do compositor prevê esta
repetição, da forma que está editada na partitura, mesmo assim, o compositor acredita
que o intérprete deve escolher a versão que mais lhe agrade.
Se o intérprete opta pela realização do trecho citado pode levar em
consideração a inversão de conteúdo entre os dois violões, no compasso 74, para
facilitar a execução técnica, evitando grandes saltos, como mostra a figura 5.a.2
Fig.5.a.2
5.b. CORREÇÕES REALIZADAS NA EDIÇÃO
Além da correção já realizada no início do capítulo 5, mostrada pela figura 5.1,
há uma pequena correção na articulação do compasso 6. A figura 5.b.1 destaca a
ligadura que falta à edição:
31
Fig. 5.b.1
Nos compassos 43 e 67, o violão 1 realiza uma linha melódica de baixos, o
compositor conferiu o manuscrito da peça e constatou que a seguinte correção de
notas deveria ser feita, como mostra a figura 5.b.2:
Fig. 5.b.2
Em relação ao compasso 69, a figura 5.b.3 mostra que há um pequeno erro na
edição: a quintina presente no primeiro tempo do violão 2, na realidade é uma sextina
idêntica às outras que preenchem o compasso.
Fig. 5.b.3
32
6. ANÁLISE DO TERCEIRO MOVIMENTO
Andamento: Bien Animado (Sugestão de tempo: = 176);
Forma: A – B – A’ – Coda
Tonalidade: la menor
O terceiro movimento volta a ressaltar a polirritmia, sobrepondo e intercalando
os ritmos ternário e binário, sobre este ritmo o compositor comenta: “É um galope
mesmo. Porque esta peça é realmente andina, e tem muito a ver com os pampas, com
o galope dos cavalos. Ela tem essas paisagens bem claras”. A figura 6.1 mostra como
é feita essa sobreposição de ritmos:
Fig. 6.1
A seção A (compassos 1 a 72) se caracteriza melodicamente por um período
formado por antecedente e conseqüente, o período a , mostrado na figura 6.2, o trecho
esta escrito na tonalidade de lá menor e a harmonia se alterna entre acordes menores,
maiores, diminutos, com notas acrescentadas de sexta, sétima e nona, e acordes de
quarta, todos em forma indireta:
33
Fig. 6.2
A figura 6.3 mostra que esse período é ligeiramente modificado, o que o
transforma em período a’ . Este período é apresentado em sua forma completa, na
tonalidade de fá menor:
34
Fig.6.3
Em seguida, o antecedente do período a’ é citado novamente, desta vez na
tonalidade de mi menor, como mostra a figura 6.4:
Fig. 6.4
A articulação destas frases não está notada na partitura, mas o compositor faz um
comentário interessante sobre o assunto: “É muito fluente, muito ligado, é cantado
mesmo. Se eu fosse escrever isso hoje para algum instrumento, seria para cello, muito
bem cantado até o fim. Praticamente, o acompanhamento é suave, não muito
marcado”.
Outros elementos são identificados nesta seção como coadjuvantes dos temas
principais, pois atuam como ligações entre as citações dos períodos a e a’. Dentre
35
eles observa-se entre os compassos 20 e 26 o motivo 1 e suas imitações que estão
representados na figura 6.5:
Fig. 6.5
Ainda há outros dois motivos com a mesma função que podem ser observados
na figura 6.6:
Fig. 6.6
Além dos motivos citados acima, o compositor utiliza, assim como no primeiro
movimento, escalas para ligar uma idéia musical à outra. Uma sugestão de
interpretação é a realização de um leve rallentando no último tempo do compasso, a
36
fim de criar uma expectativa para a entrada da nova idéia musical que virá em
seguida.
A seção B (compassos 73 a 101), conforme afirmação do compositor foi
baseada ritmicamente na Zamba21:
A segunda parte seria um zamba argentino, que não tem nada a ver com o samba brasileiro. É o três por quatro argentino, que chamam de zamba, o andamento é quase melancólico, mas a influência é tipicamente folclórica, folclore de Córdoba, Argentina.22
A partir do compasso 92 o próprio compositor afirma que há influência européia
na utilização de melodias por intervalos sextas, quartas e quintas, aludindo à pratica
orquestral das trompas, como ilustra a figura 6.7:
Fig. 6.7
A seguir, a figura 6.8 apresenta uma novidade: a utilização de efeitos
percussivos utilizados como uma transição para a seção A’. Os golpes percussivos
devem ser realizados em lugares diferentes do tampo, por isso as figuras rítmicas
estão localizadas em lugares diferentes do pentagrama. Os acentos indicados no
primeiro compasso do trecho devem ser aplicados aos demais compassos, como se
vê na figura 8, que apresenta as células rítmicas utilizadas na transição:
21 É uma variante da Zamacueca, e como esta dança, sua origem remonta ao Peru, porém foi difundida pelo Chile, Bolívia e Argentina. Reúne em seu jogo coreográfico as características de um poema , onde sintetiza todo o proceso amoroso, desde as primeiras tentativas de aproximação, até a conquista.(MAYER-SERRA, Otto. Música y músicos de Latinoamerica.México, DF; Nova Iorque: Atlante: W.M. Jackson, 1947, p. 1124 e 1125)
22 Entrevista realizada no dia 1º de outubro de 2009, com o compositor Jaime Zenamon.
37
Fig. 6.8
As células rítmicas realizadas neste trecho deixam clara a influência da música
folclórica das regiões andinas, já citada anteriormente. O trecho (compassos 102 a
127) remonta à utilização do bombo23 nas músicas tradicionais como o malambo e a
chacarera. No caso das figuras que requerem o efeito tambora, as cordas devem ser
abafadas com a mão esquerda para que o efeito soe o mais próximo possível ao som
de um bombo. Visto que neste caso, a realização do golpe nas cordas utilizando a
unha não se faz necessário, pois não há notas que precisem ser destacadas, os
golpes próximos à ponte podem ser realizados com a parte lateral esquerda do
polegar direito.
Juntamente com o efeito da percussão, a ponte reapresenta o período a , como
se pode ver na figura 6.9:
23 Nome onomatopéico e genérico para várias formas de grandes tambores da Espanha, Portugal e América do Sul. Dois tipos principais de construção são comuns: faces de largo diâmetro (50-70 cm) e um relativo corpo pequeno e os que possuem um corpo longo e cilíndrico, e faces de pequeno diâmetro, com ou sem cordas ou arcos para tensionar e esticar as peles, como o bombo argentino, utilizado por grupos urbanos de folclore andino, onde as peles são seguradas e tensionadas por cordas conectadas a arcos de madeira . Tanto a forma de extenso diâmetro quanto a forma cilíndrica são encontradas na Argentina. A primeira se refere ao bombo chato e a segunda ao bombo tubular. Há também outras formas diferentes de bombo, que geralmente são tocados de pé, andando ou sentado, ou em que o instrumentista senta-se montado sobre o instrumento que toca com as mão ou duas pequenas baquetas. As técnicas para se tocar o bombo variam entre a utilização de longas e duras baquetas e entre a utilização de batedores de cabeça macia para golpear as várias partes da pele ou armação. Na região dos Andes boliviana também são utilizados bumbos de largo diâmetro e forma cilíndrica para acompanhar grupos de flautas. (STOBART, Henry. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Disponível em http://hemingways-studio.org/dictionary/grove_main.htm )
38
Fig. 6.9
A seção A’ compreende os compassos 128 a 165, seu início reapresenta o
período a de forma literal, tanto melodicamente como harmonicamente. Logo depois,
surge uma linha melódica que utiliza elementos dos períodos a e a’, assim como o
ritmo e inflexões melódicas, mostrados na figura 6.10. O final do trecho sofre uma
alteração na armadura de clave que prepara a entrada da Coda na tonalidade de La
maior:
39
Fig 6.10
A Coda (compassos 166 a 197) cita motivos dos três movimentos. A figura 6.11
mostra as citações referentes ao primeiro movimento:
Fig. 6.11
Logo após estas citações, os violões seguem desenvolvendo estas idéias
musicais, criando outras novas frases como respostas para a frase a e a” do primeiro
movimento. A figura 6.12 nos mostra isso:
40
Fig. 6.12
O compositor também cria uma variação sobre as frases principais, como se
pode ver na figura 6.13:
Fig. 6.13
41
Com relação a esse trecho, uma sugestão é que o rasgueado24 seja feito com o
dedo indicador e que se inverta os papéis de cada violão, a fim de anular o grande
salto exigido ao violão 2 pela relação do compasso anterior com o compasso de início
dessa frase, como mostra a figura 6.14:
Fig. 6.14
Seguindo com o assunto das citações referentes aos outros movimentos da
obra, a figura 6.15 apresenta as citações referentes ao segundo movimento da Sonata
Andina. Nesta parte da Coda, Jaime Zenamon dá uma sugestão de interpretação ao
trecho que compreende os compassos 190 a 193: Apesar da notação “rápido” que
sugere a partitura desde o começo do trecho, o compositor acha interessante que a
velocidade aumente gradualmente, começando lento e terminando rápido.
24 Termo utilizado para descrever a técnica de dedilhar as cordas do violão com um movimento descendente ou ascendente do polegar, ou outros dedos da mão direita. (STRIZICH, Robert; TYLER, James. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Disponível em http://hemingways-studio.org/dictionary/grove_main.htm )
42
Fig. 6.15
A figura 6.16, apresenta a citação referente ao terceiro movimento da obra,
onde o compositor utiliza efeitos de percussão no instrumento, estes três compassos
funcionam como elemento surpresa, semelhante ao utilizado no final do primeiro
movimento.
Fig. 6.16
43
7. CONCLUSÃO
Através deste trabalho conclui que a visão de interpretação, o contexto e
demais informações obtidas com o compositor de uma obra, são muito relevantes para
o processo da construção de uma interpretação concisa e coerente. Porém, a meu ver
não seria o objetivo deste trabalho, traçar um modelo absoluto que deva ser seguido
por todos os intérpretes, pois acredito que o intérprete deve ter liberdade para colocar
em prática suas próprias idéias, já que as diferentes interpretações de uma mesma
obra são o que dá riqueza e sentido ao trabalho do artista, tanto o artista criador,
quanto o que irá reproduzir a obra. Mas, mesmo que a individualidade e personalidade
sejam importantes na interpretação, o papel deste trabalho, que além de um material
de auxílio interpretativo, se trata de um registro histórico, será o de promover uma
interação entre o intérprete e o compositor, quase como uma conversa, na qual as
duas partes discutem idéias e as conciliam na forma de uma interpretação que tenha
presente tanto a individualidade do intérprete, quanto os fundamentos oferecidos pelo
compositor.
44
8. BIBLIOGRAFIA
Entrevistas:
Entrevistas realizadas com o compositor Jaime M. Zenamon, pela autora, nos dias
29/09/2009, 01/10/2009 e 05/10/2009.
Livros e trabalhos acadêmicos:
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Oxford University Press, 2001.
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Zenamon. Artigo publicado nos anais do I Simpósio Acadêmico de Violões da
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DOURADO, Henrique A. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo:
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FRAGA, Orlando. Curso de Especialização 2009 – Análise II: Guia de Classe. Curitiba:
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Monografia (Curso de Especialização em Estética e Interpretação da Música do
Século XX).EMBAP, 2001.
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<http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/praticas_inter
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http://www.camdipsalta.gov.ar/INFSALTA/chacarera.htm
http://www.visitingargentina.com/blog/wp-
content/uploads/andes,_patagonia,_argentina.jpg
9. ANEXOS:
Os anexos deste trabalho compreendem:
• Três CDs que contêm gravações em áudio referentes às três entrevistas
realizadas com o compositor Jaime Zenamon, pela autora do trabalho e
por Aluísio C. Barros;
• Um DVD contendo a gravação em áudio e vídeo da obra Sonata
Andina, interpretada pelos violonistas Aluísio Coelho Barros e Luciana
E. Lozada Tenório antes do desenvolvimento da pesquisa;
• Um CD contendo a gravação em áudio da obra Sonata Andina realizada
após a finalização do trabalho de pesquisa, utilizando-o na interpretação
dos mesmos violonistas que realizaram a versão anterior ao trabalho.