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Susan Sontag — Ensaios Sobre Fotografia: 1. Na Caverna de Platão 1/14 Susan Sontag Ensaios Sobre Fotografia Lisboa, Publicações Dom Quixote (Colecção: Arte e Sociedade, nº5, 1986, 178 pp. Título original: “On Photograhy” (Penguin Books) NA CAVERNA DE PLATÃO A humanidade permanece irremediavelmente presa na Caverna de Platão, continuando a deliciar-se, como é seu velho hábito, com meras imagens da verdade. Mas ser-se educado por fotografias não é o mesmo que ser-se educado por outras imagens mais antigas e mais artesanais. Na realidade, a quantidade de imagens que nos rodeia e exige a nossa atenção é agora muito maior. O inventário teve o seu início em 1839 e desde então tudo, ou quase tudo, parece ter sido fotografado. Esta insaciabilidade do olhar fotográfico altera os termos da reclusão na caverna, o nosso mundo. Ao ensinar-nos um novo código visual, as fotografias transformam e ampliam as nossas noções do que vale a pena olhar e do que pode ser observado. São uma gramática e, mais importante ainda, uma ética da visão. Por fim, o resultado mais significativo da actividade fotográfica é dar-nos a sensação de que a nossa cabeça pode conter todo o mundo — como uma antologia de imagens. Coleccionar fotografias é coleccionar o mundo. Os filmes e programas de televisão iluminam os écrans, vacilam e desaparecem; mas na fotografia a imagem é também um objecto, leve, barato e fácil de transportar, acumular e conservar. Em Les Carabiniers (1963) de Godard dois pobres e preguiçosos camponeses deixam-se atrair para o Exército Real com a promessa de que poderão pilhar, violar, matar ou fazer ao inimigo o que mais lhe agradar, e ainda ficar ricos. Mas a mala que Miguel Angelo e Ulisses, anos mais tarde, trazem triunfalmente para as suas mulheres, só contém postais, centenas de postais ilustrados de monumentos, grandes armazéns, mamíferos, maravilhas da natureza, métodos de transporte, obras de arte e outros tesouros classificados do mundo inteiro. A ironia de Godard parodia com expressividade a magia equívoca da imagem fotográfica. As fotografias são talvez o mais misterioso de todos os objectos que constituem e dão consistência ao ambiente ÍNDICE GERAL: • Introdução (p.11) • Na Caverna de Platão (p.13-32) • A América Vista Através de Fotografias, Sombriamente • Objectos Melancólicos (p.53-80) • O Heroísmo da Visão (p.81-104) • Os Evangelhos Fotográficos • O Mundo das Imagens (p.135-158) • Breve Antologia de Citações (Homenagem A W . B.) (p.159-178)

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Susan Sontag — Ensaios Sobre Fotografia: 1. Na Caverna de Platão 1/14

Susan SontagEnsaios Sobre Fotografia

Lisboa, Publicações Dom Quixote (Colecção: Arte e Sociedade, nº5, 1986, 178 pp.Título original: “On Photograhy” (Penguin Books)

NA CAVERNA DE PLATÃO

A humanidade permanece irremediavelmente presa na Caverna de Platão,continuando a deliciar-se, como é seu velho hábito, com meras imagens da verdade.Mas ser-se educado por fotografias não é o mesmo que ser-se educado por outrasimagens mais antigas e mais artesanais. Na realidade, a quantidade de imagens quenos rodeia e exige a nossa atenção é agora muito maior. O inventário teve o seu inícioem 1839 e desde então tudo, ou quase tudo, parece ter sido fotografado. Estainsaciabilidade do olhar fotográfico altera os termos da reclusão na caverna, o nossomundo. Ao ensinar-nos um novo código visual, as fotografias transformam e ampliamas nossas noções do que vale a pena olhar e do que pode ser observado. São umagramática e, mais importante ainda, uma ética da visão. Por fim, o resultado maissignificativo da actividade fotográfica é dar-nos a sensação de que a nossa cabeçapode conter todo o mundo — como uma antologia de imagens.

Coleccionar fotografias é coleccionar o mundo. Os filmes e programas de televisãoiluminam os écrans, vacilam e desaparecem; mas na fotografia a imagem é tambémum objecto, leve, barato e fácil de transportar, acumular e conservar. Em LesCarabiniers (1963) de Godard dois pobres e preguiçosos camponeses deixam-se atrairpara o Exército Real com a promessa de que poderão pilhar, violar, matar ou fazer aoinimigo o que mais lhe agradar, e ainda ficar ricos. Mas a mala que Miguel Angelo eUlisses, anos mais tarde, trazem triunfalmente para as suas mulheres, só contémpostais, centenas de postais ilustrados de monumentos, grandes armazéns,mamíferos, maravilhas da natureza, métodos de transporte, obras de arte e outrostesouros classificados do mundo inteiro. A ironia de Godard parodia comexpressividade a magia equívoca da imagem fotográfica. As fotografias são talvez omais misterioso de todos os objectos que constituem e dão consistência ao ambiente

ÍNDICE GERAL:

• Introdução (p.11)

• Na Caverna de Platão (p.13-32)

• A América Vista Através de Fotografias, Sombriamente

• Objectos Melancólicos (p.53-80)

• O Heroísmo da Visão (p.81-104)

• Os Evangelhos Fotográficos

• O Mundo das Imagens (p.135-158)

• Breve Antologia de Citações (Homenagem A W . B.) (p.159-178)

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que consideramos moderno. Na realidade, as fotografias são experiências capturadas,e a câmara o instrumento ideal da consciência na sua atitude aquisitiva.

Fotografar é apropriarmo-nos da coisa fotografada. Significa envolvermo-nos numacerta relação com o mundo que se assemelha ao conhecimento e, por isso, ao poder.Tem-se pressuposto que uma primeira queda na alienação, agora evidente, que noshabituou a resumir o mundo em palavras impressas, deu origem a esse excesso deenergia faústica e de mal-estar psíquico indispensáveis para a construção dassociedades modernas, inorgânicas. Mas a imprensa parece uma forma muito menostraiçoeira de filtrar o mundo, de o converter num objecto mental, do que as imagensfotográficas, que fornecem hoje em dia a maior parte do conhecimento que temos doque foi o passado e do alcance do presente. O que se escreve sobre uma pessoa ouum acontecimento é uma mera interpretação, à semelhança de depoimentos visuaisartesanais como a pintura e o desenho. As imagens fotográficas não parecem tanto serdepoimentos sobre o mundo como seus fragmentos, miniaturas da realidade que todospodem fazer ou adquirir.

Mas as fotografias, que jogam com a escala do mundo, podem elas próprias serreduzidas, ampliadas, cortadas, retocadas, adulteradas e trocadas. Envelhecemquando atacadas pelas doenças habituais dos objectos de papel; desaparecem;tornam-se valiosas, compram-se e vendem-se; são reproduzidas. As fotografias, quearmazenam o mundo, parecem incitar ao armazenamento. São guardadas em álbuns,emolduradas e colocadas sobre as mesas, postas nas paredes, projectadas sob aforma de diapositivos. São exibidas em jornais e revistas; classificadas pela polícia;expostas em museus e coligidas pelos editores.

Durante muitas décadas, o livro foi o modo mais utilizado para organizar (enormalmente miniaturizar) fotografias, garantindo-lhes assim a longevidade, senão aimortalidade — as fotografias são objectos frágeis que facilmente se rasgam ou seextraviam — e um público mais vasto. A fotografia num livro é, obviamente, a imagemde uma imagem. Mas como é, antes de mais, um objecto impresso e plano, umafotografia perde muito menos as suas qualidades essenciais quando reproduzida emlivro do que uma pintura. Ainda assim, o livro não é um meio completamentesatisfatório para fazer circular pela generalidade do público um conjunto de fotografias.A sequência em que as fotografias devem ser olhadas é proposta pela ordem daspáginas, mas nada obriga os leitores a seguirem a ordem recomendada ou indica aquantidade de tempo que devem dedicar a cada fotografia. O filme de Chris Marker, SiFavais quatre dromadaires (1966), uma meditação brilhantemente orquestrada sobrefotografias de todos os géneros e assuntos, sugere um modo mais rigoroso e subtil dearmazenar (e ampliar) fotografias. Tanto a ordem como o tempo exacto para olharcada fotografia são impostos, o que aumenta a legibilidade visual e o impactoemocional. Mas as fotografias transcritas num filme deixam de ser objectoscoleccionáveis, como apesar de tudo ainda são quando apresentadas em livro.

As fotografias fornecem provas. Qualquer coisa de que se ouve falar mas de que se

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duvida, parece ficar provado graças a uma fotografia. Numa das variantes da suautilidade, o registo de uma câmara incrimina. Desde a sua utilização pela polícia deParis na perseguição sanguinária aos Communards em Junho de 1871, a fotografiatornou-se um instrumento precioso dos estados modernos para a vigilância e controledas suas populações, que têm uma crescente mobilidade. Numa outra versão da suautilidade, o registo de uma câmara justifica. Uma fotografia passa por ser uma provaincontroversa de que uma determinada coisa aconteceu. Por mais distorcida que aimagem se apresente, há sempre a presunção de que algo existe ou existiu, algo que ésemelhante ao que vemos na imagem. Sejam quais forem as limitações (no caso doamadorismo) ou pretensões (no caso da capacidade artística) do fotógrafo, umafotografia — qualquer fotografia — parece ter uma relação mais inocente, e por issomais exacta, com a realidade visível do que os outros objectos miméticos. Virtuosos daimagem nobre como Alfred Stieglitz e Paul Strand, ao comporem vigorosas einesquecíveis fotografias década após década, mais não pretendiam do que mostrarem primeiro lugar algo que «está ali», à semelhança do possuidor de uma Polaroidpara quem as fotografias são um meio prático e rápido de tomar notas, ou doaficionado que, com a sua Brownie, tira instantâneos para recordar o seu quotidiano.

Enquanto que uma pintura ou descrição em prosa nunca podem ser mais do queuma simples interpretação selectiva, uma fotografia pode ser encarada como umasimples transparência selectiva. Mas, apesar da presunção de veracidade que confereà fotografia a sua autoridade, interesse e sedução, o trabalho do fotógrafo não é umaexcepção genérica às relações habitualmente equívocas entre arte e verdade. Mesmoquando os fotógrafos se propõem sobretudo reflectir a realidade, estão aindaconstrangidos por imperativos tácitos de gosto e de consciência. Os membros da FarmSecurity Administration, projecto fotográfico do fim dos anos 30, todos eles com imensotalento (entre outros, Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn e Russel Lee),tiraram dúzias de retratos frontais de cada rendeiro até estarem seguros de teremobtido o aspecto que pretendiam: a expressão correcta do rosto que transmitisse assuas próprias noções da pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria. Aodecidirem como deverá ser uma imagem, ao optarem por uma determinada exposição,os fotógrafos impõem sempre normas aos temas que fotografam. Embora, num certosentido, a câmara, não só interprete, mas capte de facto a realidade, as fotografias sãotanto uma interpretação do mundo como as pinturas ou os desenhos. As ocasiões emque tirar uma fotografia é um gesto relativamente irreflectido, promíscuo ou em que ofotógrafo se anula, não desmentem o didactismo da actividade no seu conjunto. É estaprópria passividade, ubiquidade, do registo fotográfico que é a «mensagem» dafotografia, a sua capacidade de agredir.

As imagens que idealizam (como a maior parte das fotografias de moda e deanimais) não são menos agressivas do que as que valorizam a ausência de beleza(como fotografias de aulas banalíssimas como sórdidas naturezas mortas e retratos decriminosos). Há uma agressão implícita sempre que se usa uma câmara. Isso é tãoevidente nas duas primeiras e gloriosas décadas da fotografia, as de 1840 e 1850,

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como nas seguintes, em que a tecnologia tornou possível uma crescente difusão damentalidade que vê o mundo como uma série de potenciais de fotografias. Mesmo noque se refere aos primeiros mestres, como David Octavius Hill e Julia MargaretCameron, que utilizaram a câmara como um meio para obterem imagens pictóricas, omotivo que os levava a fotografar era já bem diferente do objectivo dos pintores. Afotografia desde o seu início, dedicou-se ao tratamento do maior número possível deassuntos. A pintura nunca teve tão grandes ambições. A posterior industrialização datecnologia da câmara limitou-se a concretizar uma expectativa inerente à própriafotografia desde os seus primórdios: democratizar todas as experiências traduzindo-aspara imagens.

A época em que fotografar requeria uma maquineta cara e incómoda — o brinquedodos inteligentes, dos ricos e dos obcecados — parece na verdade muito distante daera das atraentes e convidativas câmaras de bolso. As primeiras câmaras, construídasem França e Inglaterra no início da década de 1840, apenas eram manuseadas pelosseus inventores e por grupo de entusiastas. Como não havia fotógrafos profissionaistambém não podiam existir amadores, e fotografar não tinha uma utilidade socialevidente; era uma actividade gratuita, ou seja, artística, com poucas pretensões de setransformar em arte. Só com a sua industrialização é que a fotografia se assumiu comoarte. A industrialização, ao estabelecer utilidades sociais para as actividades dofotógrafo, provocou reacções que reforçaram a autocons-ciência da fotografia comoarte.

A fotografia, mais recentemente, transformou-se num divertimento quase tãopraticado como o sexo e a dança, o que significa que, como todas as formas de arte demassas, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como arte. É sobretudoum rito social, uma defesa contra a ansiedade e um instrumento de poder.

O primeiro uso popular da fotografia estava relacionada com a comemoração derealizações de indivíduos enquanto membros de uma família (bem como de outrosgrupos). Durante, pelo menos, um século, a fotografia de casamento fez parte dacerimónia quase ao mesmo título que as fórmulas verbais. As câmaras acompanham avida familiar. De acordo com um estudo sociológico feito em França, a maioria dosagregados familiares possuem uma câmara, mas a probabilidade de uma família comcrianças ter, pelo menos, uma câmara é duas vezes maior. Não fotografar crianças,particularmente quando são pequenas, é um sinal de indiferença dos pais, do mesmomodo que não posar para uma fotografia de fim de curso é um gesto de rebeldiaadolescente.

Cada família constrói, através da fotografia, uma crónica de si mesma, uma sérieportátil de imagens que testemunha a sua coesão. Sejam quais forem as actividadesfotografadas o que importa é que as fotografias sejam tiradas e conservadas comcarinho. A fotografia torna-se um rito familiar precisamente no momento em que, nospaíses industrializados da Europa e da América, a própria instituição familiar começa asofrer uma transformação radical. À medida que o núcleo familiar, unidade

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claustrofóbica, se afastava de um agregado familiar, muito mais vasto, a fotografiasurgia para recordar e restabelecer simbolicamente a precária continuidade e oprogressivo desaparecimento da vida familiar. As fotografias são marcas fantasmáticasque permitem a presença simbólica dos parentes dispersos. Um álbum de famíliarefere-se geralmente à família no seu sentido mais amplo e, com frequência, é tudo oque dela resta.

Assim como as fotografias proporcionam a posse imaginária de um passado irreal,também ajudam a dominar o espaço em que as pessoas se sentem inseguras. Assim,a fotografia desenvolve-se em consonância com uma das actividades maiscaracterísticas da actualidade: o turismo. Pela primeira vez na história, um largo sectorda população sai regularmente do seu meio habitual por curtos períodos de tempo.

E parece pouco natural passear sem levar uma câmara fotográfica. A fotografia seráa prova indiscutível de que a viagem foi feita, de que o programa se cumpriu e de queas pessoas se divertiram. As fotografias documentam sequências de actividadesrealizadas longe da família, dos amigos ou dos vizinhos. Por mais que se viaje, adependência da câmara, enquanto instrumento que torna real a experiência vivida, nãodiminui. Tirar fotografias preenche as mesmas necessidades tanto para oscosmopolitas que acumulam troféus fotográficos das suas viagens de barco pelo NiloAlberto ou dos catorze dias que passaram na China, como para os turistas da baixaclasse média que tiraram instantâneos da Torre Eiffel ou das cataratas do Niagara.

A fotografia, sendo uma forma de comprovar a experiência, é também um meio de anegar, ao limitá-la a uma procura do fotogénico, ao convertê-la numa imagem, numarecordação. A viagem torna-se uma estratégia para acumular fotografias. O próprioacto de fotografar é tranquilizante e atenua a sensação de desorientação que asviagens provavelmente exacerbam. A maioria dos turistas sente-se constrangida ainterpor a câmara entre si e tudo o que de assinalável se lhes depara. Indecisos sobreoutras possíveis reacções, fotografam. E assim moldam a experiência: parar, tirar umafotografia e continuar. O método é especialmente atraente para os povos submetidos auma impiedosa ética do trabalho: alemães, japoneses e americanos. Uma câmaraapazigua a ansiedade que os obcecados pelo trabalho sentem por não trabalharemquando estão em férias e se sentirem compelidos a divertirem-se. Têm assim qualquercoisa para fazer e que se assemelha a uma reconfortante imitação do trabalho: tirarfotografias.

Os povos desapossados do seu passado parecem ser os que mais ferverosamentese dedicam à fotografia, tanto nos seus países como no estrangeiro. Todos os quevivem numa sociedade industrializada são a pouco e pouco obrigados a renunciar aopassado mas, em alguns países, como os Estados Unidos e no Japão, esta ruptura foiparticularmente traumática. No início da década de 70, a fábula do impertinente turistaamericano dos anos 50 e 60, cheio de dólares e impregnado pelos valores da classe

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média , foi substituída pelo mistério do turista japonês, sempre em grupo, recém1)

liberto da sua prisão insular graças ao milagre da sobrevalorização do iene, egeralmente munido de duas câmaras, uma em cada ombro.

A fotografia tornou-se um dos principais meios de acesso à experiência, a umailusão de participação. Um anúncio de página inteira apresenta um pequeno grupo depessoas apertadas umas contra as outras, como que emergindo da fotografia; todas, àexcepção de uma parecem aturdidas, excitadas e perturbadas. Essa, que revela umaexpressão diferente, tem uma câmara à altura dos olhos; parece segura de si, esboçaum sorriso. Enquanto as outras são espectadoras passivas e visivelmente alarmadas,a que tem uma câmara está transformada numa pessoa activa, num voyeur: só elaconseguiu dominar a situação. O que é que essas pessoas vêem? Não sabemos. Nemisso interessa. Trata-se de um acontecimento: algo que vale a pena ver e, portanto,fotografar. No terço interior da fotografia, o texto do anúncio, letras brancas contra ofundo negro, semelhante a notícias que aparecem em teletipo consiste apenas em seispalavras: «... Praga... Woodstock... Vietname... Sapporo... Londonderry... LEICA.»Esperanças frustradas, excentricidades da juventude, guerras coloniais e desportos deinverno, tudo é semelhante, uniformizado pela câmara. Tirar fotografias provoca umarelação « voyuerística» crónica com o mundo, que nivela o significado de todos osacontecimentos.

Uma fotografia não é apenas o resultado de um encontro entre o fotógrafo e umacontecimento; fotografar é em si mesmo um acontecimento, cada vez com maisdireitos: o de interferir, ocupar ou ignorar tudo o que se passa à sua volta. A própriamaneira como sentimos uma situação é agora articulada com a intervenção da câmara.A omnipresença das câmaras sugere persuasivamente que o tempo só compreendeacontecimentos interessantes, acontecimentos que vale a pena fotografar. O que, porsua vez, nos leva facilmente a sentir que qualquer acontecimento, uma vez precipitadoe seja qual for o seu carácter moral, deveria ir até ao fim, para que assim possa surgirmais alguma coisa: a fotografia. Quando o acontecimento tiver acabado, a fotografiaainda existirá, o que confere ao acontecimento uma espécie de imortalidade (eimportância) que de outro modo nunca teria. Enquanto pessoas concretas se suicidame se matam umas às outras, o fotógrafo fica atrás da sua câmara, criando umminúsculo elemento de um outro mundo: o mundo de imagens que se propõesobreviver a todos nós.

Fotografar é essencialmente um acto de não intervenção. Parte do horror provocadopor esses memoráveis feitos do foto- jornalismo contemporâneo, como as imagens dobonzo vietnamita procurando alcançar a lata da gasolina ou do guerrilheiro bengali nomomento em que trespassa à baioneta um colaboracionista amarrado, deriva de se ter

No original «Babbittry» alusão ao romance de Sinclair Lemis, Babbitt, obra que «forneceu à Europa1)

uma definição do americano médio», segundo John Brown, em Panorama da Literatura Americana doSéculo XX, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1973. (N do T.)

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compreendido até que ponto se tornou plausível, em situações em que o fotógrafopode optar entre uma fotografia e uma vida, decidir-se pela fotografia. Quem intervémnão pode registar; quem regista não pode intervir. O grande filme de Dziga VertovTchelovek s Kinoaparatom (1929) (0 Homem da Câmara), transmite-nos a imagemideal do fotógrafo como alguém em perpétuo movimento, que se desloca através deuma sequência de acontecimentos díspares com uma tal agilidade e rapidez quequalquer intervenção se torna impossível. Rear Window (1954) (Janela Indiscreta) deHitchcock, dá-nos a imagem complementar: o fotógrafo interpretado por JamesStewart, precisamente porque tem uma perna partida e se encontra preso a umacadeira de rodas tem, através da sua câmara, uma intensa relação com umdeterminado acontecimento; o facto de estar temporariamente imobilizado impede-o deagir sobre o que vê e torna ainda mais importante fotografar. Usar uma câmara é umaforma de participar, embora incompatível com a intervenção num sentido físico. Apesarde a câmara ser um posto de observação, o acto de fotografar é mais do que meraobservação passiva. Tal como o «voyeurismo» sexual, é uma forma de fazer perdurar,pelo menos tacitamente, e por vezes explicitamente, o que está a acontecer.Fotografar é ter interesse pelas coisas tal como estão, pela manutenção do status quo(pelo menos tempo necessário para que se consiga uma «boa» imagem), é sercúmplice daquilo que torna um assunto interessante, digno de ser fotografado,incluindo, se for caso disso, a dor ou o infortúnio alheios.

«Sempre considerei que fotografar era uma travessura o que, aliás foi uma dascoisas que mais me atraiu», escreveu Diane Arbus, «e quando fotografei pela primeiravez senti-me muito perversa». A actividade do fotógrafo profissional pode serconsiderada como uma travessura para usar o termo popular de Ar- bus, quando estavai à procura de temas duvidosos, tabus ou marginais. Mas esses temas já não sãohoje em dia fáceis de encontrar. E qual é exactamente esse lado perverso dafotografia? Se os fotógrafos profissionais têm muitas vezes fantasias sexuais quandose encontram por detrás da câmara, talvez a perversão resida no facto de essasfantasias serem simultaneamente plausíveis e deslocadas. Em Blowup (1966),Antonioni faz o fotógrafo da moda debruçar-se convulsivamente sobre o corpo deVeruska enquanto se ouve o ruído da sua câmara. E de facto uma travessura. Naverdade, a câmara não é a melhor maneira de nos aproximarmos sexualmente dealguém. Entre o fotógrafo e o modelo tem de haver distância. A câmara não viola nempossui, embora possa ser atrevida, intrometer-se, invadir, deformar, explorar e, nomáximo alcance da metáfora, assassinar — tudo actividades que, ao contrário doimpulso sexual, podem ser conduzidas à distância e com alguma indiferença.

No extraordinário filme de Michael Powell, Peeping Tom (1960), pode encontrar-seuma fantasia sexual muito mais forte, não sobre um «mirone», mas sobre um psicopataque assassina mulheres, enquanto as filma, com uma arma escondida na sua câmara.Nunca toca nas suas vítimas. Não deseja os seus corpos; quer a sua presença sob aforma de imagens filmadas — imagens que as mostram no momento em que sentem asua própria morte — e que projecta em casa para seu solitário prazer. O filme assume

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relações entre a impotência e a agressão, entre o olhar profissional e a crueldade, queremetem para a fantasia central ligada à câmara. A câmara como falo é, quando muito,uma variante inconsistente da inevitável metáfora que todos utilizamosinconscientemente. Por mais esbatida que seja a nossa consciência dessa fantasia,ela é mencionada sem subtilezas sempre que falamos em «carregar» e «apontar» umacâmara ou em «disparar».

As câmaras antigas eram mais toscas e difíceis de carregar do que um mosqueteBess. As câmaras modernas procuram aproximar-se da pistola de raios. Há umanúncio que diz:

A Yashica Electro-35 GT é a câmara da era espacial que a sua família vaiadorar. Tire boas fotografias de dia ou de noite. Automaticamente. Semproblemas. Basta apontar, focar e disparar. O seu ordenador GT e obturadorelectrónico farão o resto.

Tal como um carro, uma câmara é vendida como uma arma predatória, uma armatão automatizada quanto possível, pronta a disparar. O gosto popular prefere umatecnologia simples e invisível. Os fabricantes garantem aos seus clientes quefotografar não exige qualquer habilidade ou conhecimentos profundos, que a máquinafunciona sozinha e reage à mais pequena manifesta- cão da vontade. Tão simplescomo pôr o carro a trabalhar ou carregar no gatilho.

As câmaras, como as armas e os carros, são máquinas-fantasia cujo uso é viciante.No entanto, apesar das peculiaridades da linguagem vulgar e da publicidade, não sãoletais. Na hipérbole que leva a comercializar os carros como se fossem armas, há, pelomenos, uma grande verdade: à excepção dos períodos de guerra, os carros matammais pessoas do que as armas. A câmara-arma não' mata, e assim a agressivametáfora parece ser completamente enganadora, tal como a fantasia masculina depossuir uma arma, uma faca ou uma ferrramenta entre as pernas. Apesar disso existequalquer coisa de predatório no acto de registar uma imagem. Fotografar pessoas éviolá-las, vendo-as como elas nunca se vêem, conhecendo-as como elas nunca sepoderão conhecer; é transformá-las em objectos que podem ser possuídassimbolicamente. Assim como a câmara é uma sublimação da arma, fotografar alguém éum assassínio sublimado, um assassínio suave, digno de uma época triste eassustada. Talvez as pessoas venham a aprender a descarregar as suas agressõesmais por intermédio da câmara e menos com as armas, com a contrapartida de ummundo cada vez mais asfixiado por imagens. Um exemplo de que as pessoas podemtrocar as balas por filme são os safaris fotográficos que tendem a substituir os safarisna África Oriental. Os caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vezde olharem através de uma mira telescópica para apontar a carabina, olham atravésde um visor para enquadrar uma imagem. Na Londres de fim de século, Samuel Butterqueixava-se de que «havia um fotógrafo em cada arbusto, comportando-se como um

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leão esfomeado à procura de uma vítima». O fotógrafo ataca agora feras verdadeiras,sitiadas e demasiado raras para poderem ser mortas. Nesta comédia séria que é osafari ecológico, as armas metamorfosearam-se em câmaras, porque a naturezadeixou de ser o que sempre foi: aquilo de que o homem tinha de se proteger. Agora anatureza — subjugada, ameaçada, em perigo de extinção — necessita de serprotegida das pessoas. Quando sentimos medo, disparamos. Mas quando nossentimos nostálgicos, tirarmos fotografias.

Vivemos um período nostálgico, e a fotografia promove intensamente a nostalgia. Afotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temasfotografados, são, pelo simples facto de serem fotografados, afectados pelo pathos.Um tema feio ou grotesco pode ser comovente por ter sido dignificado pela atenção dofotógrafo. Um tema belo pode provocar sentimentos de compaixão por ter envelhecido,perdido importância ou já não existir. Todas as fotografias são momento mori.Fotografar é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma outrapessoa ou objecto. Cada fotografia testemunha a inexorável dissolução do tempo,precisamente por seleccionar e fixar um determinado momento.

As câmaras começaram a duplicar o mundo na altura em que a paisagem humanapassou a estar submetida a um vertiginoso ritmo de transformação: enquanto umaimensidão de formas de vida social e biológica são destruídas num brevíssimo espaçode tempo, surge uma invenção que permite o registo do que vai desaparecendo. AParis melancólica de Atget e Brassaï, com a sua intrincada estrutura, já praticamentenão existe. Tal como os amigos e parentes já mortos preservados no álbum de famíliaem fotografias que exorcizam parte da ansiedade e remorsos provocados pelo seudesaparecimento, também as fotografias dos bairros agora demolidos, das zonasrurais desfiguradas e deslocadas compensam a nossa precária relação com opassado.

Uma fotografia é simultaneamente uma pseudopresença e um signo de ausência.As fotografias, especialmente de pessoas, de paisagens distantes e cidadeslongínquas, de um passado irrecuperável, assim como uma lareira numa sala, sãoincitamentos ao devaneio. A sensação do inatingível que as fotografias conseguemevocar alimenta os sentimentos eróticos daqueles para quem o desejo é estimuladopela distância. A fotografia do amante escondida na carteira de uma mulher casada, oposter de uma estrela rock por cima da cama de um adolescente, a imagem de umpolítico na lapela de um eleitor, o instantâneo dos filhos de um motorista no seu táxi —todos esses usos talismânicos da fotografia exprimem uma sensibilidade emotiva eimplicitamente mágica: são tentativas de alcançar ou possuir outra realidade.

As fotografias podem instigar o desejo do modo mais directo e utilitário, comoquando se coleccionam fotografias de exemplos anónimos do desejável como estímulopara a masturbação. A questão torna-se mais complexa quando a fotografia é utilizadapara estimular impulsos morais. O desejo não tem história — pelo menos éexperimentado em cada momento como incontornável e imediato. É suscitado

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arquétipos e, nesse sentido, é abstracto. Mas os sentimentos morais estão embebidosna história, cujos personagens são concretos e cujas situações são sempreespecíficas. Assim, há regras quase opostas que são válidas na utilização dafotografia, quer para despertar o desejo, quer para despertar a consciência. Asimagens que mobilizam a consciência estão sempre relacionadas com uma situaçãohistórica determinada. Quanto mais gerais forem, menos hipóteses têm de sereficazes.

Uma fotografia que nos informa sobre situações insuspeitas de miséria, não podeter impacto na opinião pública se não encontrar um contexto de sentimento e atitudespropício. As fotografias que Mathew Brdy e seus colegas tiraram dos horrores dasbatalhas não levaram a que diminuísse o entusiasmo pela Guerra Civil. As fotografiasdos prisioneiros maltrapilhos e esqueléticos detidos em Andersonville inflamaram aopinião pública do Norte contra o Sul. (A repercussão das fotografias de Andersonvilleter-se-á devido, em grande parte, ao facto de ser uma novidade nessa altura verfotografias.) A consciência política que muitos americanos atingiram na década de 60ter-lhes-ia permitido reconhecer a verdadeira dimensão das fotografias que DorotheaLange tirou na Costa Ocidental aos nisai quando, em 1942, foram transportados para2)

campos de internamento: um crime cometido pelo governo contra um vasto grupo decidadãos americanos. Poucas das pessoas que viram estas fotografias nos anos 40podiam ter tido uma reacção tão inequívoca; os fundamentos de um juízo como esseestavam ocultos pelo consenso a favor da guerra. As fotografias não podem gerarposições morais, mas podem reforçá-las e contribuir para consolidar as que se iniciam.

As fotografias podem ser mais facilmente memorizadas do que as imagens emmovimento, pois não são um fluxo, mas fracções precisas de tempo. A televisão é umacorrente de imagens indiscriminadas, em que cada uma anula a precedente. Cadafotografia é um momento privilegiado convertido num pequeno objecto que se podeconservar e olhar repetidamente. Fotografias cimo a que apareceu na primeira páginada maioria dos jornais do mundo em 1972 — uma criança sul-vietnamita, despida, queacabava de ser atingida pelo napalm americano, correndo pela estrada em direcção àcâmara de braços abertos, gritando de dor — talvez contribuam mais para aumentar orepúdio do público pela guerra do que cem horas de atrocidades televisionadas.

Gostaríamos de imaginar que o público americano não teria sido tão unânime nasua concordância com a guerra da Coreia se tivesse sido confrontado com as provasfotográficas da devastação desse país, um ecocídio e genocídio nalguns aspectosainda mais intensos do que os infligidos no Vietname dez anos depois. Mas asuposição é irrelevante. O público não viu essas fotografias porque ideologicamentenão havia espaço para elas. Ninguém trouxe fotografias da vida quotidiana emPyongyang, mostrando a face humana do inimigo, como as que Felix Green e MarcRiboud trouxeram de Hanói. Os americanos tiveram acesso a fotografias do sofrimento

Designação americana para os filhos de emigrantes japoneses. (N do T)2)

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dos vietnamitas (muitas das quais eram provenientes de fontes militares e tinham sidotiradas com propósitos bem diversos) porque os jornalistas se sentiram apoiados nosseus esforços para obterem essas fotografias, já que o acontecimento tinha sidodefinido por uma parte significativa da população como uma selvagem guerracolonialista. A guerra da Coreia foi encarada de maneira diferente — como parte dajusta luta do Mundo Livre contra a União Soviética e a China — e, em função dessacaracterização as fotografias das atrocidades causadas pelo ilimitado poder bélicoamericano teriam sido irrelevantes.

Embora o termo acontecimento tenha chegado a significar, precisamente, algo quemerece ser fotografado, é ainda a ideologia (no seu sentido lato que determina o queconstitui um acontecimento).

Um acontecimento só pode ser comprovado, fotograficamente ou doutro modo, seele próprio assim tiver sido designado e caracterizado. E não é nunca a provafotográfica que pode construir, ou mais correctamente, identificar, acontecimentos; acontribuição da fotografia segue-se sempre à identificação do acontecimento. É aexistência de uma forte consciência política que determina a possibilidade de sermosmoralmente afectados por fotografias. É provável que, sem o contexto político, asfotografias das carnificinas da história fossem apenas sentidas como irreais ouprovocassem um impacto emocional e desmoralizante.

O tipo de sentimentos, e mesmo a ofensa moral a que as fotografias dos oprimidos,dos explorados, dos esfomeados e dos massacrados podem fazer apelo, dependetambém do grau de familiaridade de estas imagens. As fotografias que Don McCullintirou aos esqueléticos biafrenses no início dos anos 70 tiveram muito menos impactodo que as fotografias de Werner Bischof das vítimas da fome na Índia no início dadécada de 50, porque essas imagens se tinham tornado banais; e as fotografias defamílias Tuaregue morrendo de fome na região do Subsara, que apareceram nasrevistas do mundo inteiro em 1973, devem ter parecido a muitos uma insuportávelrepetição de uma já familiar exibição de atrocidades.

É por revelarem qualquer coisa de original que as fotografias podem causarimpacto. Lastimavelmente, a parada é cada vez mais alta o que em parte se deve àprópria proliferação dessas imagens de horror. O primeiro contacto com o inventáriofotográfico do horror absoluto é uma espécie de revelação, o protótipo da revelaçãomoderna: uma epifania negativa. No meu caso, foram as fotografias de Bergen-Belsene Dachau que descobri por acaso numa livraria de Santa Mónica em Julho de 1945.Nunca vi nada, quer em fotografias, quer na vida real, que me atingisse de um modotão claro, profundo e instantâneo. Na verdade, é possível dividir a minha vida em duaspartes: antes e depois de (com doze anos) ter visto essas fotografias, embora isso sepassasse vários anos antes de ter entendido completamente o seu significado. De queme serviu tê-las visto? Eram apenas fotografias, de um acontecimento de que maltinha ouvido falar, de um sofrimento dificilmente imaginável e sem remédio. Quandoolhei para elas algo quebrou. Tinha atingido um qualquer limite, que não era apenas o

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do horror; senti-me irrevogavelmente magoada, ferida, mas uma parte dos meussentimentos começou a endurecer; algo morreu, algo ainda chora.

Uma coisa é sofrer, outra é viver com as imagens fotográficas do sofrimento, quenão reforçam necessariamente a consciência e a capacidade de compaixão. Tambémpodem corrompê-las. Depois de termos visto imagens como essas, iniciamos umpercurso irreversível. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Umacontecimento conhecido através de fotografias torna-se certamente muito mais realdo que se não tivessem sido visto dessa forma, por exemplo, a Guerra do Vietname.(Como exemplo inverso, pense-se no Arquipélago de Goulague, de que não temosfotografias.) Mas também se pode tornar menos real após uma repetida exposição àsimagens.

O mesmo princípio é tão válido para o mal como para a pornografia. O impactoprovocado pelas fotografias de atrocidades vai diminuindo com sucessivasobservações, tal como a surpresa e a estupefacção sentidas ao ver pela primeira vezum filme pornográfico vão desaparecendo depois de termos visto mais alguns. Osentido do tabu que provoca a nossa indignação e tristeza, não é mais forte do que oque regula a definição do que é obsceno. Em anos recentes, ambos têm sidointensamente postos à prova. O vasto catálogo fotográfico de miséria e injustificaçãono mundo familiarizou-nos de certo modo com a atrocidade, fazendo com que ohorrível pareça vulgar, familiar, remoto («é só uma fotografia»), irremediável. Na épocadas primeiras fotografias dos campos nazis essas imagens não eram nada banais.Trinta anos depois, parece ter-se atingido um ponto de saturação. Nestas últimasdécadas, a fotografia «comprometida» contribuiu tanto para insensibilizar a nossaconsciência como para a despertar.

O conteúdo ético das fotografias é frágil. Com a possível excepção das fotografiasdesses horrores, como as dos campos nazis, que alcançaram o estatuto de pontos dereferência éticos, a maioria das fotografias não mantém a sua carga emocional. Éprovável que uma fotografia de 1900, cujo tema a tornava então comovedora, hoje nosafecte mais por ter sido tirada em 1900. As qualidades e intenções específicas dasfotografias, tendem a ser absorvidas pelo pathos generalizado do passado. Odistanciamento estético parece fazer parte da própria experiência de ver fotografias,senão de imediato, seguramente com o passar do tempo. O tempo acaba por elevarquase todas as fotografias, mesmo as mais amadorísticas, ao nível da arte.

A industrialização da fotografia permitiu a sua rápida absorção pelos modosracionais ou seja, burocráticos, de funcionamento da sociedade. Acabaram-se asimagens de brinquedo, as fotografias tornam-se parte do conjunto de objectos que nosrodeiam, pedra de toque e confirmação da abordagem redutiva da realidade, aquelaque é considerada realista. As fotografias foram chamadas a prestar serviço, comoobjectos simbólicos e como elementos de informação, em importantes instituições decontrole, nomeadamente a família e a política. Por isso, na catalogação burocrática domundo, muitos documentos importantes só se tornam válidos se tiverem aposta uma

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fotografia da cara do cidadão.

A visão «realista» do mundo compatível com a burocracia redefine o conhecimentocomo técnica e como informação. As fotografias são valiosas porque forneceminformação. Dizem-nos o que existe; fazem um inventário. Para espiões,metereologistas, médicos-legistas, arqueólogos e outros profissionais da informação, oseu valor é inestimável. Mas nas situações em que a maior parte das pessoas usa asfotografias, o seu valor informativo é da ordem da ficção. A informação que asfotografias podem dar começou a ser valorizada no momento da história da cultura emque todos julgam ter direito àquilo a que chamamos notícias. As fotografias eram vistascomo um modo de dar informação a pessoas que não tinham o hábito da leitura. ODaily News ainda se autodenomina New York's Picture Newspaper , apelando a uma3)

identificação populista. No extremo oposto da escala, o Le Monde, um jornal destinadoa leitores preparados, bem informados, não utiliza quaisquer fotografias, poispressupõe-se que, para os seus leitores, a fotografia só serviria de ilustração para aanálise contida num artigo.

Em torno da imagem fotográfica tem vindo a elaborar-se um novo sentido da noçãode informação. A fotografia é uma pequena fracção tanto do espaço como do tempo.Num mundo dominado pelas imagens fotográficas, qualquer limite («enquadramento»)parece arbitrário. fiado pode tornar-se descontínuo tudo pode separar-se de tudo:basta enquadrar o assunto de modo diferente. (Reciprocamente, tudo se pode tornaradjacente de tudo.) A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade socialcomo integrando pequenas unidades em número aparentemente infinito, já que onúmero de fotografias que se pode tirar de qualquer coisa é ilimitado. Através dasfotografias, o mundo transforma-se num conjunto de partículas desconexas eindependentes; e a história, passada e presente, num conjunto de anedotas e faitsdivers. A câmara atomiza a realidade, torna-a manuseável e opaca. E uma visão domundo que nega a inter- -relação, a continuidade, e que confere a cada momento ascaracterísticas de um mistério. Qualquer fotografia tem uma multiplicidade de sentidos;com efeito, ver algo sob a forma de fotografia é deparar com um potencial objecto defascinação. O extremo ensinamento da imagem fotográfica é poder dizer: «Aqui está asuperfície. Agora pensem, ou antes, sintam, intuam o que está por detrás, como deveser a realidade se esta é a sua aparência.» As fotografias, que por si só nada podemexplicar, são inesgotáveis convites à dedução, especulação e fantasia.

A fotografia implica que conhecemos o mundo se o aceitarmos como a câmara oregista. Mas isto é o oposto da compreensão, que se inicia justamente por não seaceitar o mundo como parece ser. Toda a possibilidade de compreensão estáenraizada na capacidade de dizer não. Em rigor, nunca se pode compreender nada apartir de uma fotografia. É claro que as fotografias preenchem vazios nas nossasimagens mentais do presente e do passado, por exemplo, as imagens de Jacob Riis da

Jornal ilustrado de Nova Iorque. (N. do T)3)

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miséria e sordidez de Nova Iorque na década de 80 do século passado sãoparticularmente instrutivas para os que desconhecem como era «dickensiana» apobreza urbana na América do final do século XIX. No entanto, a maneira como nacâmara apresenta a realidade esconde mais do que revela. Como Brecht observou,uma fotografia das fábricas Krupp não revela praticamente nada sobre essaorganização. Em contraste com a relação amorosa, que é baseada na aparência, acompreensão é baseada no modo como as coisas funcionam. E esse funcionamentoocorre no tempo e nele necessita de ser explicado. Só o narrativo nos pode permitircompreender.

O limite do conhecimento fotográfico do mundo consiste em que, embora possadespertar consciências, nunca pode ser um conhecimento ético ou politico. Oconhecimento que as fotografias permitem adquirir é sempre uma espécie desentimentalismo, cínico ou humanista. É um conhecimento de saldo: um simulacro deconhecimento, um simulacro de sabedoria; tal como o acto de fotografar é umsimulacro de apropriação, um simulacro de violação. É o próprio mutismo do que,hipoteticamente, é compreensível em fotografia, que constitui a sua atracção eprovocação. A omnipresença da fotografia tem um incalculável efeito na nossasensibilidade ética. Ao dotar este mundo, já tão congestionado, com um duplicado deimagens, a fotografia faz-nos sentir que o mundo é mais acessível do que na verdadeé.

A necessidade de comprovar a realidade e de engrandecer a experiência atravésdas fotografias é uma forma de consumismo estético a que todos nos entregamos. Associedades industriais transformam os seus cidadãos em viciados de imagens; trata-seda mais irresistível forma de poluição mental. Um vivo desejo de beleza, de acabarcom a investigação do que se encontra por baixo da superfície, da redenção ecelebração do corpo do mundo — todos estes elementos da sensação erótica seafirmam com o prazer que as fotografias nos dão. Mas outros sentimentos menoslibertadores também aí encontram expressão. Não seria errado falar de pessoas comuma compulsão para fotografar, transformando a própria experiência numa forma devisão. Em última análise, ter uma experiência é o mesmo que fotografá-la, e participarnum acontecimento público é cada vez mais, equivalente a vê-lo fotografado.Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo o que existe nomundo existe para vir a acabar num livro. Hoje em dia, tudo o que existe, existe paravir a acabar numa fotografia.

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