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SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

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Ensaio "Na Caverna de Platão" em Sobre Fotografia, de Susan Sontag.

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Page 1: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

A humanidade permanece de forma impenitente na caverna

de Platao ainda se regozijando segundo seu costume ancestral

com meras imagens da verdade Mas ser educado por fotos nao e 0

mesmo que ser educado por imagens mais antigas mais artesanais

Em primeiro lugar existem anossa volta muito mais imagens que

solicitam nossa atencento 0 inventario teve inicio em 1839 e desde

entao praticamenteuro tudo foi fotografado ou pelo menos assim

parece Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condishy

yoes do confinamento na caverna 0 nosso mundo Ao nos ensinar

urn novo c6digo visual as fotosmodificam e ampliam nossas ideias

sobre 0 que vale a pena olhar e sobre 0 que temos 0 direito de obsershy

var Constituem uma gramatica e mais importante ainda uma

etica do ver Por fim 0 resultado mais extraordinario da atividade

fotografica e nos dar a sensasao de que podemos reter 0 mundo

inteiro em nossa cabesa - como uma antologia de imagens

Colecionar fotos e colecionar 0 mundo Filmes e programas

de televisao iluminam paredes reluzem e se apagam mas com

J 13

Ricardo
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SONTAG Susan Sobre fotografia trad 13Rubens Figueiredo Satildeo Paulo Cia das13Letras 2004224p
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~ ij

~ fotos a imagem e tambem urn objeto leve de produyao barata

facil de transportar de acumular de armazenar No fume Les carashybiniers (1963) de Godard dois himpen-camponeses preguiyosos sao induzidos a ingressar no Exercito do rei mediante a promessa

de que poderao saquear estuprar matar ou fazer 0 que bern entenshyderem com os inimigos e ficar ricos Mas a mala com 0 butim que Michel-Ange e Ulysse trazem em triunfo para casa anos depois

para suas esposas contem apenas centenas de cartoes-postais de monumentos de lojas de departamentos de mamiferos de marashyvilhas da natureza de meios de transporte de obras de arte e de outros tesouros catalogados de todo 0 mundo 0 chiste de Godard parodia nitidamente a magia equivoca da imagem fotografica As

fotos sao talvez os mais misteriosos de todos os objetos que comshypoem e adensam 0 ambiente que identificamos como modernoAs fotos sao de fato experiencia capturada e a camera eo brayo ideal

da consciencia em sua disposiCao aquisitiva Fotografareapropriar-se da coisa fotografada Significapor a

si mesmo em determinada relaCao com 0 mundo semelhante ao conhecimento e portanto ao poder Supoe-se que urna queda primordial-e malvista hoje emdia-na alienacao a saber acosshytumar as pessoas a resumir 0 mundo na forma de palavras impresshy

sas tenha engendrado aquele excedente de energia faustica e de dano psiquico necessario para construir as modernas sociedades inorganicas Mas a imprensa parece uma forma menos traicoeira

de dissolver 0 mundo de transforma-Io em urn objeto mental do

que as imagens fotograficas que fornecem a maior parte do conheshycimento que se possui acerca do aspecto do passado e do alcance do presente 0 que esta escrito sobre uma pessoa ou urn fato e

dedaradamente uma interpretayaO do mesmo modo que as manifestacoes visuais feitas a mao como pinturas e desenhos

Imagens fotografadas nao parecem manifestayoes a respeito do

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mundo mas sim pedayos dele miniaturas da realidade que qualshyquer urn pode fazer ou adquirir

As fotos que brincam com a escala do mundo sao tambem reduzidas ampliadas recortadas retocadas adaptadas adclterashy

das Elas envelhecem afetadas pelas mazelas habituais dos objetos de papel desaparecem tornam-se valiosas e saovendidas e compradas

sao reproduzidas Fotos que enfeixam 0 mundo parecem solicitar que as enfeixemos tambem Sao afixadas em albuns emolduradas e expostas em mesas pregadas em paredes projetadas como diaposishytivos Jornais e revistas as publicam a policia as dispoe em ordem alfabetica os museus as expoem os editores as compilam

Durante muitas decaaas 0 livro foi 0 mais influente meio de organizar (e em geral miniaturizar) fotos assegurando desse modo sua longevidade se nao sua imortalidade - fotos sao objeshytos frageis faceis de rasgar e de extraviar - e urn publico mais

amplo A foto em urn livro e obviamente a imagem de uma imashygem Mas como e antes de tudo urn objeto impresso plano uma foto quando reproduzida em urn livro perde muito menos de sua caracteristica essencial do que ocorre com uma pintura Contudo

o Hvro nao e urn instrumento plenamente satisfatorio para por grupos de fotos em ampla circclay3o A sequencia em que as fotos devem ser vistas esta sugerida pela ordem das paginas mas nada

constrange 0 leitor a seguir a ordem recomendada nem indica 0

tempo a ser gasto em cada foto 0 filme Si javais quatre dromadaishy

res (1966) de Chris Maker uma reflexao argutamente orquestrada

sobre fotos de todos os tipos e temas sugere urn modo mais sutil e mais rigoroso de enfeixar (e ampliar) fotos Tanto a ordem como 0

tempo exato para olhar cada foto sao impostos e ha urn ganho em termos de legibilidade visual e impacto emocional Mas fotos

transcritas em urn filme deixam de ser objetos coleciomiveis como ainda sao quando oferecidas em livros

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Fotos fornecem urn testemunho Algo de que ouvimos falar

mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram

uma foto Numa das versoes da sua utilidade 0 registro da camera

incrimina Depois de inaugurado seu uso pela policia parisiense

no cerco aos communards em junho de 1871 as fotos tornaram-se

uma util ferramenta dos Estados modernos na vigilancia e no conshy

trole de suas populaToes cada vez mais moveis Numa outraversao

de sua utilidade 0 registro da camera justifica Vma foto equivale

a uma prova incontestavel de que determinada coisa aconteceu A - foto pode distorcer mas sempre existe 0 pressuposto de que algo

existe ou existiu e era semelhante ao que esta na imagem Quaisshy

quer que sejam as limitaToes (por amadorismo) ou as pretensoes

(por talento artistico) do fotografo individual uma foto - qualshy

quer foto - parece ter uma relaTao mais inocente e portanto mais

acurada com a realidade visivel do que outros objetos mimeticos

Os virtuoses da imagem nobre como Alfred Stieglitz e Paul

Strand que compuseram fotos de grande forTa e inesquedveis

durante decadas ainda tencionavam antes de tudo mostrar algo

que existe assim como 0 dono de uma Polaroid para quem as

fotos sao uma forma pratica e raplda de tomar notas ou 0 fotoshy

grafo compulsivo com sua Brownie que tira instantaneos como

suvenires da vida cotidiana

Enquanto uma pintura ou uma descriTao em prosa jamais a podem ser outra coisa que nao uma interpretaTao estritamente

seletiva pode-se tratar uma foto como uma transparencia estritashy

mente seletiva Porem apesar da presunTao deveracidade que conshy Ifere autoridade interesse e seduTao a todas as fotos a obra que os hfotografos produzem nao constitui uma exceTao genericaao

comercio usualmente nebuloso entre arte e verdade Mesmo Ii

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quando os fotografos estao muito mais preocupados em espelhar a

realidade ainda sao assediados por imperativos de gosto e de consshy

ciencia Os componentes imensamente talentosos do projeto fotoshy

grafico do final da decada de 1930 chamado ContribuiTao para a

SeguranTa no Trabalho nas Fazendas (entre os quais estavam Walshy

ker Evans Dorothea Lange Ben Shahn Russel Lee) tiravarn inumeshy

ras fotos frontais de urn de seus meeiros ate se convencerem de que

haviam captado no filme a feiTao exata - a expressao precisa do

rosto da figura fotografada capaz de amparar suas proprias ideias

sobre pobreza luz dignidade textura exploraTao e geometria Ao

decidir que aspecto deveria ter uma imagem ao preferir uma exposhy

siTao a outra os fotografos sempre impoem padroes a seus temas

Emboraem certo sentido a camera de fato capture a realidade e nao

apenas a interprete as fotos sao uma interpretaTao do mundo tanto

quanta as pinturas e os desenhos Aquelas ocasioes em que tirar

fotos e relativamente imparcial indiscriminado e desinteressado

nao reduzem 0 didatismo da atividade em seu todo Essa mesma

passividade - e ubiqiiidade - do registro fotografico constitui a

mensagem da fotografia sua agressao

1magens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias

de moda e de animais) nao sao menos agressivas do que obras que

fazem da banalidade uma virtude (como fotos de turmas escolashy

res naturezas-mortas do tipo mais arido e retratos de frente e de

perfil de urn criminoso) Existe uma agressao implicita em qualshy

quer emprego da camera 1sso esta tao evidente nas duas primeiras

decadas gloriosas da fotografia 1840 e 1850quanta em todas as deshy

cadas seguintes durante as quais a tecnologia permitiu uma difushy

sao sempre crescente da mentalidade que encara 0 mundo como

uma coleTao de fotos potenciais Mesmo para mestres tao pioneishy

ros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron que usashy

yam a camera como urn meio de obter imagens amaneira de urn

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pintoro intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distanda

dos propositos dos pintores Desde 0 seu inicio a fotografia implishycava a captura do maior numero possivel de temas A pintura jamais teve urn objetivo tao imperioso A subseqtiente industrialishyzayao da tecnologia da camera apenas cumpriu uma promessa

inerente afotografia desde 0 seu inicio democratizar todas as experiencias ao traduzi-Ias em imagens

Aquela epoca em que tirar fotos demandava urn aparato caro e complicado 0 passatempo dos habeis dos ricos e dos obsessishy

vos - parece de fato distante da era das comodas cameras de bolshyso que convidam qualquer urn a tirar fotosAs primeiras cameras feitasnaFramae-nrlngiaterrano iniciodadecadade 1840so conshy

tavam com os inventores e os aficionados para opera-las Uma vez que na epoca nao existiam fotografos profissionais nao podeda

tampouco haver amadores e tirar fotos nao tinha nenhuma utilishydade social clara tratava-se de uma atividade gratuita ou seja

artistica embora com poucas pretensoes a ser uma arte Foi apenas com a industrializayao que a fotografia adquiriu a merecida repushytayao de arte Assim como a industrializayao propiciou os usos

sociais para as atividades do fotografo a reayao contra esses usos reshyforyou a consciencia da fotografia como arte

Em epoca recente a fotografia tornou-se urn passatempo quase tao difundido quanto 0 sexo e a danya - 0 que significa que

como toda forma de arte de massa a fotografia nao e praticadapela maioria das pessoas como uma arte E sobretudo urn rito s()dal uma proteyao contra a ansiedade e urn instrumento de poder

Comemorar as conquistas de individuos tidos como memshy

bros da familia (e tambem de outros grupos) e 0 uso popular mais antigo da fotografia Durante pelo menos urn seculo a foto de casa-

I mento foi umapartedacerimonia tanto quanto as formulas verbais prescritasAs cameras acompanham a vida da familia Segundo urn

estudo sociologico feito na Franya a maioria das casas tern uma camera mas as casas em que ha crianyas tern uma probabilidade

~ duas vezes maior de ter pelo menos uma camera em comparayao

in

I com as casas sem crianyas Nao tirar fotos dos filhos sobretudo quando pequenos esinal de indiferenya paterna assim como nao

comparecer afoto de formatura e urn gesto de rebeldia juvenil

I Por meio de fotoscada familia constroi urna cronica visual de

si mesma - urn conjunto portatil de imagens que da testemunho~ da sua coesao Pouco importam as atividades fotografadas conshytanto que as fotos sejam tiradas e estimadas A fotografia se torna urn rito da vida em familia exatamente quando nos paises em industrializayao na Europa e na America a propria instituiyao da

familia comeya a sofrer uma reformulayao radical Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofobica a familia nuclear era

talhada de urn bloco familiar muito maior a fotografia se desenvolshyvia para celebrar e reafirmar simbolicamente a continuidade ameayadae a decrescente amplitude davidafamiliar Esses vestigios

espectrais as fotos equivalem apresenya simbolica dos pais que debandaram Urn alburIide fotos de familia e em geral urn album sobre a familia ampliada - e muitas vezes tudo 0 que dela resta

Assim como as fotos dao as pessoas a posse imaginaria de urn passado irreal tambem as ajudam a tomar posse de urn espayo em que se acham inseguras Assim a fotografia desenvolve-se na

esteira de uma das atividades modernas mais tipicas 0 turismo

Pela primeira vez na histoda pessoas viajam regularmente em grande numero para fora de seu ambiente habitual durante breshy

ves periodos Parece deddidamente anormalviajar por prazer sem levar urna camern As fotos oferecerao provas incontestaveis de que a viagem se realizou de que a programayao foi cumprida de

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que houve diversao As fotos documentam sequencias de consumo

realizadas longe dos olhos da familia dos amigos dos vizinhos

Mas adependencia da camera como 0 equipamento que torna real

aquilo que a pessoa vivencia nao se enfraquece ltJuando as pessoas

viajam mais Para os sofisticados que acumulam fotos-trofeus de

sua viagem de navio rio acima pelo Nilo ate 0 lago Alberto ou de

seus catorze dias na China tirar fotos preenche a mesma necessishy

dade dos veranistas de classe media baixa que fotografam a torre

Eifid ou as cataratas do Niagara

Urn modo de atestar a experiencia tirar fotos e tambem uma

forma de recusa-Ia- ao limitar a experiencia a umabuscado fotoshy

genico ao converter a experiencia em uma imagem urn suvenir

Viajar se torna uma estrategia de acumular fotos A pr6pria ativishy

dade de tirar fotos e tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de

desorientacao que podem ser exacerbados pela viagem Os turisshy

tas em sua maioria sentem-se compelidos a par a camera entre si

mesmos e tudo de notavel que encontram Inseguros sobre suas

reac6es tiram uma foto Isso da forma aexperiencia pare tire uma

foto e va em frente 0 metodo atrai especialmente pessoas submeshy

tidas a uma etica cruel de trabalho- alemaesjaponeses e amerishy

canos Usar uma camera atenua a angustia que pessoas submetidas

ao imperativo do trabalho sentem por nao trabalhar enquanto

estao de ferias ocasiao em que deveriam divertir-se Elas tern algo a

fazer que e uma imitacao amigavel do trabalho podem tirar fotos

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos

mais fervorosos tiradores de fotos em seu pais e no exterior Todos

que vivem numa sociedade industrializada sao gradualmente

obrigados a desistir do passado mas em certos paises como Estashy

dos Unidos e Japao a ruptura com 0 passado foi especialmente

traumatica No inicio da decada de 1970 a lenda do turista amerishy

cano atrevido dos anos 50 e 60 cheio de d6lares e de vulgaridade

~ ~ i ti

1~ ~ j

sect ~

foi substituida pelo misterio do turista japones que se locomove

em grupos recentemente liberto de sua ilha-prisao gracas ao milashy

gre do iene sobrevalorizado em geral munido de duas cameras

uma em cada lado do corpo

A fotografia tornou-se urn dos principais expedientes para

experimentar alguma coisa para dar uma aparencia de participashy

cao Urn anuncio de pagina inteira mostra urn pequeno grupo de

pessoas de pe apertadas umas contra as outras olhando para fora

da foto e todas exceto uma parecem espantadas empolgadas aflishy

tas 0 unico que tern uma expressao diferente segura uma camera

junto ao olho ele parece seguro de si quase sorrindo Enquanto os

-demais sao espectadores passivos nitidamente alarmados ter uma

camera transformou uma pessoa em algo ativo urn voyeur s6 ele

dominou a situacao 0 que veem essas pessoas Nao sabemos E nao

importa E urn Evento algo digno de se ver - e portanto digno de

se fotografar 0 texto do anuncio letras brancas ao longo da faixa

escura que corresponde ao terco inferior da foto como noticias que

chegam por uma maquina de teletipo consiste em apenas seis palashy

vras Praga Woodstock Vietna Sapporo Londonderry

LEICA Esperancas esmagadas farras de jovens guerras coloniais e

esportes de inverno sao semelhantes - igualados pela camera

Tirar fotos estabeleceu uma relacao voyeurlstica cranica com 0

mundo que nivela 0 significado de todos os acontecimentos

Uma foto nao e apenas 0 resultado de urn encontro entre urn

evento e urn fot6grafo tirar fotos e urn evento em si mesmo e

dotado dos direitos mais categ6ricos - interferir invadir ou ignoshy

rar nao importa 0 que estiver acontecendo Nosso pr6prio senso

de situacao articula-se agora pelas intervenC6es da camera A onishy

presenca de cameras sugere de forma persuasiva que 0 tempo

consiste em eventos interessantes eventos dignos de ser fotografashy

dos Isso em troca torna facil sentir que qualquer evento uma vez

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em cursQ e qualquer que seja seu caniter mQral deve ter caminhQ livre para prQsseguir ate se cQmpletar de mQdQ que Qutra CQisa PQssavir aQ mundQ a fQtQAp6s 0 fim dO eventQa fQtQ ainda exisshytini cQnferindQ aQ eventQ uma especie de imQrtalidade (e de impQrtancia) que de QutrQ mQdQ ele jamais desfrutaria EnquantQ peSSQas reais eshiQ nO mundQ real matandQ a si mesmas QU matandQ Qutras pessQas reais 0 fQt6grafQ se poe atras de sua camera criandQ urn pequenO elementQ de QutrQ mundQ 0 munshy

dQ-imagem que prQmete sQbreviver a tQdQS n6s FQtQgrafar e em essencia urn atQ de naQ-intervencaQ Parte

dO hQrrQr de lances memQraveis dO fQtQjQrnalismQ CQntempQrashyneQ CQmQ a fQtQ dO mQnge vietnamita que segura uma lata de gasQlina a de urn guerrilheirQ bengali nO instante em que gQlpeia CQm a baiQneta urn traidQr amarradQ decQrre da cQnsciencia de que se tQrnQU aceitavel em situacoes em que 0 fQt6grafQ tern de escQlher entre uma fQtQ e uma vida Qpta pela fQtQ A pessQa que interfere naQ PQde registrar a pessQa que registra naQ PQde intershyferir 0 famQsQ filme de Dziga ViertQv Um homem com uma cdshymera (1929) Qferece a imagem ideal dO fQt6grafQ CQmQ alguem em perpetuQ mQvimentQ alguem que se deslQca em urn panQrama de eventos dispares CQm tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervencaQ esta fQra de questaQ Janela indiscreta (1954) de HitchcQck Qferece a imagem cQmplementar 0 fQt6grafQ represhysentadQ PQr James Stewart tern uma relacaQ intensificada CQm determinadQ eventQ PQr meiQ da sua camera justamente PQrque esta CQm a perna quebrada e cQnfinadQ a uma cadeira de rodas estar tempQrariamente imQbilizadQ 0 impede de agir sQbre aquilQ que ve e tQrna ainda mais impQrtante tirar fQtQs MesmQ que incQmpativel CQm a intervencaQ num sentidQ fisicO usar uma camera e ainda uma fQrma de participacaQ EmbQra a camera seja urn PQstQ de QbservacaQ 0 atQ de fQtQgrafar e mais dO que uma QbservacaQ passiva A exemplQ dQvQyeurismQ sexual e um mQdQ

de pelQ menQS tacitamente e naQ raro explicitamente estimular 0

que estiver aCQntecendQ a cQntinuar a aCQntecer Tirar uma fQtQ e ter urn interesse pelas cQisas CQmQ elas saO pela permanencia dO status quo (pdQ menQS enquantQ fQr necessariQ para tirar uma bQafQtQ) e estar em curnplicidade CQm 0 que quer que tQrne urn tema interessante e dignQ de se fQtQgrafar - ate mesmQ quandO fQr esse 0 fQCQ de interesse CQm a dQr e a desgraca de Qutra peSSQa

Sempre pensei em fQtQgrafia CQmQ uma maldade - e esse era urn de seus PQntQs prediletQs para mim escreveu Diane Arbuse quandO fQtQgrafei pela primeira V~JIl~senti muitQ pershyversa Ser urn fQt6grafQ prQfissiQnal PQde ser encaradQ CQmQ algQ maldQsQ para usar 0 termQ de Darbus se 0 fQt6grafQ prQcura temas cQnsideradQs indecQrQsQs tabus marginais Mas temas maldQsQs saO mais dificeis de enCQntrar hQje em dia E 0 que vern a ser exatamente 0 aspectQ perverSQ de tirar fQtQs Se QS fQt6grashy

I fQS prQfissiQnais tern muitas vezes fantasias sexuais quandO estaQ atras da camera talvez a perversaQ resida nO fatQ de que essas fanshytasias sejam aQ mesmQtempQ plausiveis e muitQ impr6prias Em

I Blow up (Depois daquele beijo) (1966) AntQniQni leva urn fQt6shygrafQ de mQda a rQndar cQnvulsivamente em tQrnQ dO CQrpQ de Veruchca CQm a camera a cliear Maldade de fatQ CQm efeitQ usar uma camera naQ e urn mQdo muitQ bQm de aprQximar-se sexualshymente de alguem Entre 0 fQt6grafQ e seu tema ternde haverdistanshycia A camera naQ estupra nem mesmQ PQssui embQra PQssa atreshy

ver-se intrQmeter-s~ atrave~r distQrcer ~~lQrar e nO ~emQ da metafQra assassmar - Qdas essas attvldades que dlferenshytemente dO seXQ prQpriame te ditQ PQdem ser levadas a efeitQ a distancia e com certa indiferenc~

Existe uma fantasia sexual muitQ mais fQrte nO extraQrdinashyriO fume de Michael PQwell intituladQ A tortura do medo (1960)

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que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

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vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

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puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

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mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

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I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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Page 2: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

~ ij

~ fotos a imagem e tambem urn objeto leve de produyao barata

facil de transportar de acumular de armazenar No fume Les carashybiniers (1963) de Godard dois himpen-camponeses preguiyosos sao induzidos a ingressar no Exercito do rei mediante a promessa

de que poderao saquear estuprar matar ou fazer 0 que bern entenshyderem com os inimigos e ficar ricos Mas a mala com 0 butim que Michel-Ange e Ulysse trazem em triunfo para casa anos depois

para suas esposas contem apenas centenas de cartoes-postais de monumentos de lojas de departamentos de mamiferos de marashyvilhas da natureza de meios de transporte de obras de arte e de outros tesouros catalogados de todo 0 mundo 0 chiste de Godard parodia nitidamente a magia equivoca da imagem fotografica As

fotos sao talvez os mais misteriosos de todos os objetos que comshypoem e adensam 0 ambiente que identificamos como modernoAs fotos sao de fato experiencia capturada e a camera eo brayo ideal

da consciencia em sua disposiCao aquisitiva Fotografareapropriar-se da coisa fotografada Significapor a

si mesmo em determinada relaCao com 0 mundo semelhante ao conhecimento e portanto ao poder Supoe-se que urna queda primordial-e malvista hoje emdia-na alienacao a saber acosshytumar as pessoas a resumir 0 mundo na forma de palavras impresshy

sas tenha engendrado aquele excedente de energia faustica e de dano psiquico necessario para construir as modernas sociedades inorganicas Mas a imprensa parece uma forma menos traicoeira

de dissolver 0 mundo de transforma-Io em urn objeto mental do

que as imagens fotograficas que fornecem a maior parte do conheshycimento que se possui acerca do aspecto do passado e do alcance do presente 0 que esta escrito sobre uma pessoa ou urn fato e

dedaradamente uma interpretayaO do mesmo modo que as manifestacoes visuais feitas a mao como pinturas e desenhos

Imagens fotografadas nao parecem manifestayoes a respeito do

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mundo mas sim pedayos dele miniaturas da realidade que qualshyquer urn pode fazer ou adquirir

As fotos que brincam com a escala do mundo sao tambem reduzidas ampliadas recortadas retocadas adaptadas adclterashy

das Elas envelhecem afetadas pelas mazelas habituais dos objetos de papel desaparecem tornam-se valiosas e saovendidas e compradas

sao reproduzidas Fotos que enfeixam 0 mundo parecem solicitar que as enfeixemos tambem Sao afixadas em albuns emolduradas e expostas em mesas pregadas em paredes projetadas como diaposishytivos Jornais e revistas as publicam a policia as dispoe em ordem alfabetica os museus as expoem os editores as compilam

Durante muitas decaaas 0 livro foi 0 mais influente meio de organizar (e em geral miniaturizar) fotos assegurando desse modo sua longevidade se nao sua imortalidade - fotos sao objeshytos frageis faceis de rasgar e de extraviar - e urn publico mais

amplo A foto em urn livro e obviamente a imagem de uma imashygem Mas como e antes de tudo urn objeto impresso plano uma foto quando reproduzida em urn livro perde muito menos de sua caracteristica essencial do que ocorre com uma pintura Contudo

o Hvro nao e urn instrumento plenamente satisfatorio para por grupos de fotos em ampla circclay3o A sequencia em que as fotos devem ser vistas esta sugerida pela ordem das paginas mas nada

constrange 0 leitor a seguir a ordem recomendada nem indica 0

tempo a ser gasto em cada foto 0 filme Si javais quatre dromadaishy

res (1966) de Chris Maker uma reflexao argutamente orquestrada

sobre fotos de todos os tipos e temas sugere urn modo mais sutil e mais rigoroso de enfeixar (e ampliar) fotos Tanto a ordem como 0

tempo exato para olhar cada foto sao impostos e ha urn ganho em termos de legibilidade visual e impacto emocional Mas fotos

transcritas em urn filme deixam de ser objetos coleciomiveis como ainda sao quando oferecidas em livros

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Fotos fornecem urn testemunho Algo de que ouvimos falar

mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram

uma foto Numa das versoes da sua utilidade 0 registro da camera

incrimina Depois de inaugurado seu uso pela policia parisiense

no cerco aos communards em junho de 1871 as fotos tornaram-se

uma util ferramenta dos Estados modernos na vigilancia e no conshy

trole de suas populaToes cada vez mais moveis Numa outraversao

de sua utilidade 0 registro da camera justifica Vma foto equivale

a uma prova incontestavel de que determinada coisa aconteceu A - foto pode distorcer mas sempre existe 0 pressuposto de que algo

existe ou existiu e era semelhante ao que esta na imagem Quaisshy

quer que sejam as limitaToes (por amadorismo) ou as pretensoes

(por talento artistico) do fotografo individual uma foto - qualshy

quer foto - parece ter uma relaTao mais inocente e portanto mais

acurada com a realidade visivel do que outros objetos mimeticos

Os virtuoses da imagem nobre como Alfred Stieglitz e Paul

Strand que compuseram fotos de grande forTa e inesquedveis

durante decadas ainda tencionavam antes de tudo mostrar algo

que existe assim como 0 dono de uma Polaroid para quem as

fotos sao uma forma pratica e raplda de tomar notas ou 0 fotoshy

grafo compulsivo com sua Brownie que tira instantaneos como

suvenires da vida cotidiana

Enquanto uma pintura ou uma descriTao em prosa jamais a podem ser outra coisa que nao uma interpretaTao estritamente

seletiva pode-se tratar uma foto como uma transparencia estritashy

mente seletiva Porem apesar da presunTao deveracidade que conshy Ifere autoridade interesse e seduTao a todas as fotos a obra que os hfotografos produzem nao constitui uma exceTao genericaao

comercio usualmente nebuloso entre arte e verdade Mesmo Ii

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quando os fotografos estao muito mais preocupados em espelhar a

realidade ainda sao assediados por imperativos de gosto e de consshy

ciencia Os componentes imensamente talentosos do projeto fotoshy

grafico do final da decada de 1930 chamado ContribuiTao para a

SeguranTa no Trabalho nas Fazendas (entre os quais estavam Walshy

ker Evans Dorothea Lange Ben Shahn Russel Lee) tiravarn inumeshy

ras fotos frontais de urn de seus meeiros ate se convencerem de que

haviam captado no filme a feiTao exata - a expressao precisa do

rosto da figura fotografada capaz de amparar suas proprias ideias

sobre pobreza luz dignidade textura exploraTao e geometria Ao

decidir que aspecto deveria ter uma imagem ao preferir uma exposhy

siTao a outra os fotografos sempre impoem padroes a seus temas

Emboraem certo sentido a camera de fato capture a realidade e nao

apenas a interprete as fotos sao uma interpretaTao do mundo tanto

quanta as pinturas e os desenhos Aquelas ocasioes em que tirar

fotos e relativamente imparcial indiscriminado e desinteressado

nao reduzem 0 didatismo da atividade em seu todo Essa mesma

passividade - e ubiqiiidade - do registro fotografico constitui a

mensagem da fotografia sua agressao

1magens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias

de moda e de animais) nao sao menos agressivas do que obras que

fazem da banalidade uma virtude (como fotos de turmas escolashy

res naturezas-mortas do tipo mais arido e retratos de frente e de

perfil de urn criminoso) Existe uma agressao implicita em qualshy

quer emprego da camera 1sso esta tao evidente nas duas primeiras

decadas gloriosas da fotografia 1840 e 1850quanta em todas as deshy

cadas seguintes durante as quais a tecnologia permitiu uma difushy

sao sempre crescente da mentalidade que encara 0 mundo como

uma coleTao de fotos potenciais Mesmo para mestres tao pioneishy

ros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron que usashy

yam a camera como urn meio de obter imagens amaneira de urn

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pintoro intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distanda

dos propositos dos pintores Desde 0 seu inicio a fotografia implishycava a captura do maior numero possivel de temas A pintura jamais teve urn objetivo tao imperioso A subseqtiente industrialishyzayao da tecnologia da camera apenas cumpriu uma promessa

inerente afotografia desde 0 seu inicio democratizar todas as experiencias ao traduzi-Ias em imagens

Aquela epoca em que tirar fotos demandava urn aparato caro e complicado 0 passatempo dos habeis dos ricos e dos obsessishy

vos - parece de fato distante da era das comodas cameras de bolshyso que convidam qualquer urn a tirar fotosAs primeiras cameras feitasnaFramae-nrlngiaterrano iniciodadecadade 1840so conshy

tavam com os inventores e os aficionados para opera-las Uma vez que na epoca nao existiam fotografos profissionais nao podeda

tampouco haver amadores e tirar fotos nao tinha nenhuma utilishydade social clara tratava-se de uma atividade gratuita ou seja

artistica embora com poucas pretensoes a ser uma arte Foi apenas com a industrializayao que a fotografia adquiriu a merecida repushytayao de arte Assim como a industrializayao propiciou os usos

sociais para as atividades do fotografo a reayao contra esses usos reshyforyou a consciencia da fotografia como arte

Em epoca recente a fotografia tornou-se urn passatempo quase tao difundido quanto 0 sexo e a danya - 0 que significa que

como toda forma de arte de massa a fotografia nao e praticadapela maioria das pessoas como uma arte E sobretudo urn rito s()dal uma proteyao contra a ansiedade e urn instrumento de poder

Comemorar as conquistas de individuos tidos como memshy

bros da familia (e tambem de outros grupos) e 0 uso popular mais antigo da fotografia Durante pelo menos urn seculo a foto de casa-

I mento foi umapartedacerimonia tanto quanto as formulas verbais prescritasAs cameras acompanham a vida da familia Segundo urn

estudo sociologico feito na Franya a maioria das casas tern uma camera mas as casas em que ha crianyas tern uma probabilidade

~ duas vezes maior de ter pelo menos uma camera em comparayao

in

I com as casas sem crianyas Nao tirar fotos dos filhos sobretudo quando pequenos esinal de indiferenya paterna assim como nao

comparecer afoto de formatura e urn gesto de rebeldia juvenil

I Por meio de fotoscada familia constroi urna cronica visual de

si mesma - urn conjunto portatil de imagens que da testemunho~ da sua coesao Pouco importam as atividades fotografadas conshytanto que as fotos sejam tiradas e estimadas A fotografia se torna urn rito da vida em familia exatamente quando nos paises em industrializayao na Europa e na America a propria instituiyao da

familia comeya a sofrer uma reformulayao radical Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofobica a familia nuclear era

talhada de urn bloco familiar muito maior a fotografia se desenvolshyvia para celebrar e reafirmar simbolicamente a continuidade ameayadae a decrescente amplitude davidafamiliar Esses vestigios

espectrais as fotos equivalem apresenya simbolica dos pais que debandaram Urn alburIide fotos de familia e em geral urn album sobre a familia ampliada - e muitas vezes tudo 0 que dela resta

Assim como as fotos dao as pessoas a posse imaginaria de urn passado irreal tambem as ajudam a tomar posse de urn espayo em que se acham inseguras Assim a fotografia desenvolve-se na

esteira de uma das atividades modernas mais tipicas 0 turismo

Pela primeira vez na histoda pessoas viajam regularmente em grande numero para fora de seu ambiente habitual durante breshy

ves periodos Parece deddidamente anormalviajar por prazer sem levar urna camern As fotos oferecerao provas incontestaveis de que a viagem se realizou de que a programayao foi cumprida de

18 19

que houve diversao As fotos documentam sequencias de consumo

realizadas longe dos olhos da familia dos amigos dos vizinhos

Mas adependencia da camera como 0 equipamento que torna real

aquilo que a pessoa vivencia nao se enfraquece ltJuando as pessoas

viajam mais Para os sofisticados que acumulam fotos-trofeus de

sua viagem de navio rio acima pelo Nilo ate 0 lago Alberto ou de

seus catorze dias na China tirar fotos preenche a mesma necessishy

dade dos veranistas de classe media baixa que fotografam a torre

Eifid ou as cataratas do Niagara

Urn modo de atestar a experiencia tirar fotos e tambem uma

forma de recusa-Ia- ao limitar a experiencia a umabuscado fotoshy

genico ao converter a experiencia em uma imagem urn suvenir

Viajar se torna uma estrategia de acumular fotos A pr6pria ativishy

dade de tirar fotos e tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de

desorientacao que podem ser exacerbados pela viagem Os turisshy

tas em sua maioria sentem-se compelidos a par a camera entre si

mesmos e tudo de notavel que encontram Inseguros sobre suas

reac6es tiram uma foto Isso da forma aexperiencia pare tire uma

foto e va em frente 0 metodo atrai especialmente pessoas submeshy

tidas a uma etica cruel de trabalho- alemaesjaponeses e amerishy

canos Usar uma camera atenua a angustia que pessoas submetidas

ao imperativo do trabalho sentem por nao trabalhar enquanto

estao de ferias ocasiao em que deveriam divertir-se Elas tern algo a

fazer que e uma imitacao amigavel do trabalho podem tirar fotos

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos

mais fervorosos tiradores de fotos em seu pais e no exterior Todos

que vivem numa sociedade industrializada sao gradualmente

obrigados a desistir do passado mas em certos paises como Estashy

dos Unidos e Japao a ruptura com 0 passado foi especialmente

traumatica No inicio da decada de 1970 a lenda do turista amerishy

cano atrevido dos anos 50 e 60 cheio de d6lares e de vulgaridade

~ ~ i ti

1~ ~ j

sect ~

foi substituida pelo misterio do turista japones que se locomove

em grupos recentemente liberto de sua ilha-prisao gracas ao milashy

gre do iene sobrevalorizado em geral munido de duas cameras

uma em cada lado do corpo

A fotografia tornou-se urn dos principais expedientes para

experimentar alguma coisa para dar uma aparencia de participashy

cao Urn anuncio de pagina inteira mostra urn pequeno grupo de

pessoas de pe apertadas umas contra as outras olhando para fora

da foto e todas exceto uma parecem espantadas empolgadas aflishy

tas 0 unico que tern uma expressao diferente segura uma camera

junto ao olho ele parece seguro de si quase sorrindo Enquanto os

-demais sao espectadores passivos nitidamente alarmados ter uma

camera transformou uma pessoa em algo ativo urn voyeur s6 ele

dominou a situacao 0 que veem essas pessoas Nao sabemos E nao

importa E urn Evento algo digno de se ver - e portanto digno de

se fotografar 0 texto do anuncio letras brancas ao longo da faixa

escura que corresponde ao terco inferior da foto como noticias que

chegam por uma maquina de teletipo consiste em apenas seis palashy

vras Praga Woodstock Vietna Sapporo Londonderry

LEICA Esperancas esmagadas farras de jovens guerras coloniais e

esportes de inverno sao semelhantes - igualados pela camera

Tirar fotos estabeleceu uma relacao voyeurlstica cranica com 0

mundo que nivela 0 significado de todos os acontecimentos

Uma foto nao e apenas 0 resultado de urn encontro entre urn

evento e urn fot6grafo tirar fotos e urn evento em si mesmo e

dotado dos direitos mais categ6ricos - interferir invadir ou ignoshy

rar nao importa 0 que estiver acontecendo Nosso pr6prio senso

de situacao articula-se agora pelas intervenC6es da camera A onishy

presenca de cameras sugere de forma persuasiva que 0 tempo

consiste em eventos interessantes eventos dignos de ser fotografashy

dos Isso em troca torna facil sentir que qualquer evento uma vez

20 21

em cursQ e qualquer que seja seu caniter mQral deve ter caminhQ livre para prQsseguir ate se cQmpletar de mQdQ que Qutra CQisa PQssavir aQ mundQ a fQtQAp6s 0 fim dO eventQa fQtQ ainda exisshytini cQnferindQ aQ eventQ uma especie de imQrtalidade (e de impQrtancia) que de QutrQ mQdQ ele jamais desfrutaria EnquantQ peSSQas reais eshiQ nO mundQ real matandQ a si mesmas QU matandQ Qutras pessQas reais 0 fQt6grafQ se poe atras de sua camera criandQ urn pequenO elementQ de QutrQ mundQ 0 munshy

dQ-imagem que prQmete sQbreviver a tQdQS n6s FQtQgrafar e em essencia urn atQ de naQ-intervencaQ Parte

dO hQrrQr de lances memQraveis dO fQtQjQrnalismQ CQntempQrashyneQ CQmQ a fQtQ dO mQnge vietnamita que segura uma lata de gasQlina a de urn guerrilheirQ bengali nO instante em que gQlpeia CQm a baiQneta urn traidQr amarradQ decQrre da cQnsciencia de que se tQrnQU aceitavel em situacoes em que 0 fQt6grafQ tern de escQlher entre uma fQtQ e uma vida Qpta pela fQtQ A pessQa que interfere naQ PQde registrar a pessQa que registra naQ PQde intershyferir 0 famQsQ filme de Dziga ViertQv Um homem com uma cdshymera (1929) Qferece a imagem ideal dO fQt6grafQ CQmQ alguem em perpetuQ mQvimentQ alguem que se deslQca em urn panQrama de eventos dispares CQm tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervencaQ esta fQra de questaQ Janela indiscreta (1954) de HitchcQck Qferece a imagem cQmplementar 0 fQt6grafQ represhysentadQ PQr James Stewart tern uma relacaQ intensificada CQm determinadQ eventQ PQr meiQ da sua camera justamente PQrque esta CQm a perna quebrada e cQnfinadQ a uma cadeira de rodas estar tempQrariamente imQbilizadQ 0 impede de agir sQbre aquilQ que ve e tQrna ainda mais impQrtante tirar fQtQs MesmQ que incQmpativel CQm a intervencaQ num sentidQ fisicO usar uma camera e ainda uma fQrma de participacaQ EmbQra a camera seja urn PQstQ de QbservacaQ 0 atQ de fQtQgrafar e mais dO que uma QbservacaQ passiva A exemplQ dQvQyeurismQ sexual e um mQdQ

de pelQ menQS tacitamente e naQ raro explicitamente estimular 0

que estiver aCQntecendQ a cQntinuar a aCQntecer Tirar uma fQtQ e ter urn interesse pelas cQisas CQmQ elas saO pela permanencia dO status quo (pdQ menQS enquantQ fQr necessariQ para tirar uma bQafQtQ) e estar em curnplicidade CQm 0 que quer que tQrne urn tema interessante e dignQ de se fQtQgrafar - ate mesmQ quandO fQr esse 0 fQCQ de interesse CQm a dQr e a desgraca de Qutra peSSQa

Sempre pensei em fQtQgrafia CQmQ uma maldade - e esse era urn de seus PQntQs prediletQs para mim escreveu Diane Arbuse quandO fQtQgrafei pela primeira V~JIl~senti muitQ pershyversa Ser urn fQt6grafQ prQfissiQnal PQde ser encaradQ CQmQ algQ maldQsQ para usar 0 termQ de Darbus se 0 fQt6grafQ prQcura temas cQnsideradQs indecQrQsQs tabus marginais Mas temas maldQsQs saO mais dificeis de enCQntrar hQje em dia E 0 que vern a ser exatamente 0 aspectQ perverSQ de tirar fQtQs Se QS fQt6grashy

I fQS prQfissiQnais tern muitas vezes fantasias sexuais quandO estaQ atras da camera talvez a perversaQ resida nO fatQ de que essas fanshytasias sejam aQ mesmQtempQ plausiveis e muitQ impr6prias Em

I Blow up (Depois daquele beijo) (1966) AntQniQni leva urn fQt6shygrafQ de mQda a rQndar cQnvulsivamente em tQrnQ dO CQrpQ de Veruchca CQm a camera a cliear Maldade de fatQ CQm efeitQ usar uma camera naQ e urn mQdo muitQ bQm de aprQximar-se sexualshymente de alguem Entre 0 fQt6grafQ e seu tema ternde haverdistanshycia A camera naQ estupra nem mesmQ PQssui embQra PQssa atreshy

ver-se intrQmeter-s~ atrave~r distQrcer ~~lQrar e nO ~emQ da metafQra assassmar - Qdas essas attvldades que dlferenshytemente dO seXQ prQpriame te ditQ PQdem ser levadas a efeitQ a distancia e com certa indiferenc~

Existe uma fantasia sexual muitQ mais fQrte nO extraQrdinashyriO fume de Michael PQwell intituladQ A tortura do medo (1960)

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que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

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vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

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puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

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mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

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I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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Page 3: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

Fotos fornecem urn testemunho Algo de que ouvimos falar

mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram

uma foto Numa das versoes da sua utilidade 0 registro da camera

incrimina Depois de inaugurado seu uso pela policia parisiense

no cerco aos communards em junho de 1871 as fotos tornaram-se

uma util ferramenta dos Estados modernos na vigilancia e no conshy

trole de suas populaToes cada vez mais moveis Numa outraversao

de sua utilidade 0 registro da camera justifica Vma foto equivale

a uma prova incontestavel de que determinada coisa aconteceu A - foto pode distorcer mas sempre existe 0 pressuposto de que algo

existe ou existiu e era semelhante ao que esta na imagem Quaisshy

quer que sejam as limitaToes (por amadorismo) ou as pretensoes

(por talento artistico) do fotografo individual uma foto - qualshy

quer foto - parece ter uma relaTao mais inocente e portanto mais

acurada com a realidade visivel do que outros objetos mimeticos

Os virtuoses da imagem nobre como Alfred Stieglitz e Paul

Strand que compuseram fotos de grande forTa e inesquedveis

durante decadas ainda tencionavam antes de tudo mostrar algo

que existe assim como 0 dono de uma Polaroid para quem as

fotos sao uma forma pratica e raplda de tomar notas ou 0 fotoshy

grafo compulsivo com sua Brownie que tira instantaneos como

suvenires da vida cotidiana

Enquanto uma pintura ou uma descriTao em prosa jamais a podem ser outra coisa que nao uma interpretaTao estritamente

seletiva pode-se tratar uma foto como uma transparencia estritashy

mente seletiva Porem apesar da presunTao deveracidade que conshy Ifere autoridade interesse e seduTao a todas as fotos a obra que os hfotografos produzem nao constitui uma exceTao genericaao

comercio usualmente nebuloso entre arte e verdade Mesmo Ii

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quando os fotografos estao muito mais preocupados em espelhar a

realidade ainda sao assediados por imperativos de gosto e de consshy

ciencia Os componentes imensamente talentosos do projeto fotoshy

grafico do final da decada de 1930 chamado ContribuiTao para a

SeguranTa no Trabalho nas Fazendas (entre os quais estavam Walshy

ker Evans Dorothea Lange Ben Shahn Russel Lee) tiravarn inumeshy

ras fotos frontais de urn de seus meeiros ate se convencerem de que

haviam captado no filme a feiTao exata - a expressao precisa do

rosto da figura fotografada capaz de amparar suas proprias ideias

sobre pobreza luz dignidade textura exploraTao e geometria Ao

decidir que aspecto deveria ter uma imagem ao preferir uma exposhy

siTao a outra os fotografos sempre impoem padroes a seus temas

Emboraem certo sentido a camera de fato capture a realidade e nao

apenas a interprete as fotos sao uma interpretaTao do mundo tanto

quanta as pinturas e os desenhos Aquelas ocasioes em que tirar

fotos e relativamente imparcial indiscriminado e desinteressado

nao reduzem 0 didatismo da atividade em seu todo Essa mesma

passividade - e ubiqiiidade - do registro fotografico constitui a

mensagem da fotografia sua agressao

1magens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias

de moda e de animais) nao sao menos agressivas do que obras que

fazem da banalidade uma virtude (como fotos de turmas escolashy

res naturezas-mortas do tipo mais arido e retratos de frente e de

perfil de urn criminoso) Existe uma agressao implicita em qualshy

quer emprego da camera 1sso esta tao evidente nas duas primeiras

decadas gloriosas da fotografia 1840 e 1850quanta em todas as deshy

cadas seguintes durante as quais a tecnologia permitiu uma difushy

sao sempre crescente da mentalidade que encara 0 mundo como

uma coleTao de fotos potenciais Mesmo para mestres tao pioneishy

ros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron que usashy

yam a camera como urn meio de obter imagens amaneira de urn

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pintoro intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distanda

dos propositos dos pintores Desde 0 seu inicio a fotografia implishycava a captura do maior numero possivel de temas A pintura jamais teve urn objetivo tao imperioso A subseqtiente industrialishyzayao da tecnologia da camera apenas cumpriu uma promessa

inerente afotografia desde 0 seu inicio democratizar todas as experiencias ao traduzi-Ias em imagens

Aquela epoca em que tirar fotos demandava urn aparato caro e complicado 0 passatempo dos habeis dos ricos e dos obsessishy

vos - parece de fato distante da era das comodas cameras de bolshyso que convidam qualquer urn a tirar fotosAs primeiras cameras feitasnaFramae-nrlngiaterrano iniciodadecadade 1840so conshy

tavam com os inventores e os aficionados para opera-las Uma vez que na epoca nao existiam fotografos profissionais nao podeda

tampouco haver amadores e tirar fotos nao tinha nenhuma utilishydade social clara tratava-se de uma atividade gratuita ou seja

artistica embora com poucas pretensoes a ser uma arte Foi apenas com a industrializayao que a fotografia adquiriu a merecida repushytayao de arte Assim como a industrializayao propiciou os usos

sociais para as atividades do fotografo a reayao contra esses usos reshyforyou a consciencia da fotografia como arte

Em epoca recente a fotografia tornou-se urn passatempo quase tao difundido quanto 0 sexo e a danya - 0 que significa que

como toda forma de arte de massa a fotografia nao e praticadapela maioria das pessoas como uma arte E sobretudo urn rito s()dal uma proteyao contra a ansiedade e urn instrumento de poder

Comemorar as conquistas de individuos tidos como memshy

bros da familia (e tambem de outros grupos) e 0 uso popular mais antigo da fotografia Durante pelo menos urn seculo a foto de casa-

I mento foi umapartedacerimonia tanto quanto as formulas verbais prescritasAs cameras acompanham a vida da familia Segundo urn

estudo sociologico feito na Franya a maioria das casas tern uma camera mas as casas em que ha crianyas tern uma probabilidade

~ duas vezes maior de ter pelo menos uma camera em comparayao

in

I com as casas sem crianyas Nao tirar fotos dos filhos sobretudo quando pequenos esinal de indiferenya paterna assim como nao

comparecer afoto de formatura e urn gesto de rebeldia juvenil

I Por meio de fotoscada familia constroi urna cronica visual de

si mesma - urn conjunto portatil de imagens que da testemunho~ da sua coesao Pouco importam as atividades fotografadas conshytanto que as fotos sejam tiradas e estimadas A fotografia se torna urn rito da vida em familia exatamente quando nos paises em industrializayao na Europa e na America a propria instituiyao da

familia comeya a sofrer uma reformulayao radical Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofobica a familia nuclear era

talhada de urn bloco familiar muito maior a fotografia se desenvolshyvia para celebrar e reafirmar simbolicamente a continuidade ameayadae a decrescente amplitude davidafamiliar Esses vestigios

espectrais as fotos equivalem apresenya simbolica dos pais que debandaram Urn alburIide fotos de familia e em geral urn album sobre a familia ampliada - e muitas vezes tudo 0 que dela resta

Assim como as fotos dao as pessoas a posse imaginaria de urn passado irreal tambem as ajudam a tomar posse de urn espayo em que se acham inseguras Assim a fotografia desenvolve-se na

esteira de uma das atividades modernas mais tipicas 0 turismo

Pela primeira vez na histoda pessoas viajam regularmente em grande numero para fora de seu ambiente habitual durante breshy

ves periodos Parece deddidamente anormalviajar por prazer sem levar urna camern As fotos oferecerao provas incontestaveis de que a viagem se realizou de que a programayao foi cumprida de

18 19

que houve diversao As fotos documentam sequencias de consumo

realizadas longe dos olhos da familia dos amigos dos vizinhos

Mas adependencia da camera como 0 equipamento que torna real

aquilo que a pessoa vivencia nao se enfraquece ltJuando as pessoas

viajam mais Para os sofisticados que acumulam fotos-trofeus de

sua viagem de navio rio acima pelo Nilo ate 0 lago Alberto ou de

seus catorze dias na China tirar fotos preenche a mesma necessishy

dade dos veranistas de classe media baixa que fotografam a torre

Eifid ou as cataratas do Niagara

Urn modo de atestar a experiencia tirar fotos e tambem uma

forma de recusa-Ia- ao limitar a experiencia a umabuscado fotoshy

genico ao converter a experiencia em uma imagem urn suvenir

Viajar se torna uma estrategia de acumular fotos A pr6pria ativishy

dade de tirar fotos e tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de

desorientacao que podem ser exacerbados pela viagem Os turisshy

tas em sua maioria sentem-se compelidos a par a camera entre si

mesmos e tudo de notavel que encontram Inseguros sobre suas

reac6es tiram uma foto Isso da forma aexperiencia pare tire uma

foto e va em frente 0 metodo atrai especialmente pessoas submeshy

tidas a uma etica cruel de trabalho- alemaesjaponeses e amerishy

canos Usar uma camera atenua a angustia que pessoas submetidas

ao imperativo do trabalho sentem por nao trabalhar enquanto

estao de ferias ocasiao em que deveriam divertir-se Elas tern algo a

fazer que e uma imitacao amigavel do trabalho podem tirar fotos

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos

mais fervorosos tiradores de fotos em seu pais e no exterior Todos

que vivem numa sociedade industrializada sao gradualmente

obrigados a desistir do passado mas em certos paises como Estashy

dos Unidos e Japao a ruptura com 0 passado foi especialmente

traumatica No inicio da decada de 1970 a lenda do turista amerishy

cano atrevido dos anos 50 e 60 cheio de d6lares e de vulgaridade

~ ~ i ti

1~ ~ j

sect ~

foi substituida pelo misterio do turista japones que se locomove

em grupos recentemente liberto de sua ilha-prisao gracas ao milashy

gre do iene sobrevalorizado em geral munido de duas cameras

uma em cada lado do corpo

A fotografia tornou-se urn dos principais expedientes para

experimentar alguma coisa para dar uma aparencia de participashy

cao Urn anuncio de pagina inteira mostra urn pequeno grupo de

pessoas de pe apertadas umas contra as outras olhando para fora

da foto e todas exceto uma parecem espantadas empolgadas aflishy

tas 0 unico que tern uma expressao diferente segura uma camera

junto ao olho ele parece seguro de si quase sorrindo Enquanto os

-demais sao espectadores passivos nitidamente alarmados ter uma

camera transformou uma pessoa em algo ativo urn voyeur s6 ele

dominou a situacao 0 que veem essas pessoas Nao sabemos E nao

importa E urn Evento algo digno de se ver - e portanto digno de

se fotografar 0 texto do anuncio letras brancas ao longo da faixa

escura que corresponde ao terco inferior da foto como noticias que

chegam por uma maquina de teletipo consiste em apenas seis palashy

vras Praga Woodstock Vietna Sapporo Londonderry

LEICA Esperancas esmagadas farras de jovens guerras coloniais e

esportes de inverno sao semelhantes - igualados pela camera

Tirar fotos estabeleceu uma relacao voyeurlstica cranica com 0

mundo que nivela 0 significado de todos os acontecimentos

Uma foto nao e apenas 0 resultado de urn encontro entre urn

evento e urn fot6grafo tirar fotos e urn evento em si mesmo e

dotado dos direitos mais categ6ricos - interferir invadir ou ignoshy

rar nao importa 0 que estiver acontecendo Nosso pr6prio senso

de situacao articula-se agora pelas intervenC6es da camera A onishy

presenca de cameras sugere de forma persuasiva que 0 tempo

consiste em eventos interessantes eventos dignos de ser fotografashy

dos Isso em troca torna facil sentir que qualquer evento uma vez

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em cursQ e qualquer que seja seu caniter mQral deve ter caminhQ livre para prQsseguir ate se cQmpletar de mQdQ que Qutra CQisa PQssavir aQ mundQ a fQtQAp6s 0 fim dO eventQa fQtQ ainda exisshytini cQnferindQ aQ eventQ uma especie de imQrtalidade (e de impQrtancia) que de QutrQ mQdQ ele jamais desfrutaria EnquantQ peSSQas reais eshiQ nO mundQ real matandQ a si mesmas QU matandQ Qutras pessQas reais 0 fQt6grafQ se poe atras de sua camera criandQ urn pequenO elementQ de QutrQ mundQ 0 munshy

dQ-imagem que prQmete sQbreviver a tQdQS n6s FQtQgrafar e em essencia urn atQ de naQ-intervencaQ Parte

dO hQrrQr de lances memQraveis dO fQtQjQrnalismQ CQntempQrashyneQ CQmQ a fQtQ dO mQnge vietnamita que segura uma lata de gasQlina a de urn guerrilheirQ bengali nO instante em que gQlpeia CQm a baiQneta urn traidQr amarradQ decQrre da cQnsciencia de que se tQrnQU aceitavel em situacoes em que 0 fQt6grafQ tern de escQlher entre uma fQtQ e uma vida Qpta pela fQtQ A pessQa que interfere naQ PQde registrar a pessQa que registra naQ PQde intershyferir 0 famQsQ filme de Dziga ViertQv Um homem com uma cdshymera (1929) Qferece a imagem ideal dO fQt6grafQ CQmQ alguem em perpetuQ mQvimentQ alguem que se deslQca em urn panQrama de eventos dispares CQm tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervencaQ esta fQra de questaQ Janela indiscreta (1954) de HitchcQck Qferece a imagem cQmplementar 0 fQt6grafQ represhysentadQ PQr James Stewart tern uma relacaQ intensificada CQm determinadQ eventQ PQr meiQ da sua camera justamente PQrque esta CQm a perna quebrada e cQnfinadQ a uma cadeira de rodas estar tempQrariamente imQbilizadQ 0 impede de agir sQbre aquilQ que ve e tQrna ainda mais impQrtante tirar fQtQs MesmQ que incQmpativel CQm a intervencaQ num sentidQ fisicO usar uma camera e ainda uma fQrma de participacaQ EmbQra a camera seja urn PQstQ de QbservacaQ 0 atQ de fQtQgrafar e mais dO que uma QbservacaQ passiva A exemplQ dQvQyeurismQ sexual e um mQdQ

de pelQ menQS tacitamente e naQ raro explicitamente estimular 0

que estiver aCQntecendQ a cQntinuar a aCQntecer Tirar uma fQtQ e ter urn interesse pelas cQisas CQmQ elas saO pela permanencia dO status quo (pdQ menQS enquantQ fQr necessariQ para tirar uma bQafQtQ) e estar em curnplicidade CQm 0 que quer que tQrne urn tema interessante e dignQ de se fQtQgrafar - ate mesmQ quandO fQr esse 0 fQCQ de interesse CQm a dQr e a desgraca de Qutra peSSQa

Sempre pensei em fQtQgrafia CQmQ uma maldade - e esse era urn de seus PQntQs prediletQs para mim escreveu Diane Arbuse quandO fQtQgrafei pela primeira V~JIl~senti muitQ pershyversa Ser urn fQt6grafQ prQfissiQnal PQde ser encaradQ CQmQ algQ maldQsQ para usar 0 termQ de Darbus se 0 fQt6grafQ prQcura temas cQnsideradQs indecQrQsQs tabus marginais Mas temas maldQsQs saO mais dificeis de enCQntrar hQje em dia E 0 que vern a ser exatamente 0 aspectQ perverSQ de tirar fQtQs Se QS fQt6grashy

I fQS prQfissiQnais tern muitas vezes fantasias sexuais quandO estaQ atras da camera talvez a perversaQ resida nO fatQ de que essas fanshytasias sejam aQ mesmQtempQ plausiveis e muitQ impr6prias Em

I Blow up (Depois daquele beijo) (1966) AntQniQni leva urn fQt6shygrafQ de mQda a rQndar cQnvulsivamente em tQrnQ dO CQrpQ de Veruchca CQm a camera a cliear Maldade de fatQ CQm efeitQ usar uma camera naQ e urn mQdo muitQ bQm de aprQximar-se sexualshymente de alguem Entre 0 fQt6grafQ e seu tema ternde haverdistanshycia A camera naQ estupra nem mesmQ PQssui embQra PQssa atreshy

ver-se intrQmeter-s~ atrave~r distQrcer ~~lQrar e nO ~emQ da metafQra assassmar - Qdas essas attvldades que dlferenshytemente dO seXQ prQpriame te ditQ PQdem ser levadas a efeitQ a distancia e com certa indiferenc~

Existe uma fantasia sexual muitQ mais fQrte nO extraQrdinashyriO fume de Michael PQwell intituladQ A tortura do medo (1960)

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que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

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vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

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puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

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mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

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I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

35

Page 4: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

pintoro intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distanda

dos propositos dos pintores Desde 0 seu inicio a fotografia implishycava a captura do maior numero possivel de temas A pintura jamais teve urn objetivo tao imperioso A subseqtiente industrialishyzayao da tecnologia da camera apenas cumpriu uma promessa

inerente afotografia desde 0 seu inicio democratizar todas as experiencias ao traduzi-Ias em imagens

Aquela epoca em que tirar fotos demandava urn aparato caro e complicado 0 passatempo dos habeis dos ricos e dos obsessishy

vos - parece de fato distante da era das comodas cameras de bolshyso que convidam qualquer urn a tirar fotosAs primeiras cameras feitasnaFramae-nrlngiaterrano iniciodadecadade 1840so conshy

tavam com os inventores e os aficionados para opera-las Uma vez que na epoca nao existiam fotografos profissionais nao podeda

tampouco haver amadores e tirar fotos nao tinha nenhuma utilishydade social clara tratava-se de uma atividade gratuita ou seja

artistica embora com poucas pretensoes a ser uma arte Foi apenas com a industrializayao que a fotografia adquiriu a merecida repushytayao de arte Assim como a industrializayao propiciou os usos

sociais para as atividades do fotografo a reayao contra esses usos reshyforyou a consciencia da fotografia como arte

Em epoca recente a fotografia tornou-se urn passatempo quase tao difundido quanto 0 sexo e a danya - 0 que significa que

como toda forma de arte de massa a fotografia nao e praticadapela maioria das pessoas como uma arte E sobretudo urn rito s()dal uma proteyao contra a ansiedade e urn instrumento de poder

Comemorar as conquistas de individuos tidos como memshy

bros da familia (e tambem de outros grupos) e 0 uso popular mais antigo da fotografia Durante pelo menos urn seculo a foto de casa-

I mento foi umapartedacerimonia tanto quanto as formulas verbais prescritasAs cameras acompanham a vida da familia Segundo urn

estudo sociologico feito na Franya a maioria das casas tern uma camera mas as casas em que ha crianyas tern uma probabilidade

~ duas vezes maior de ter pelo menos uma camera em comparayao

in

I com as casas sem crianyas Nao tirar fotos dos filhos sobretudo quando pequenos esinal de indiferenya paterna assim como nao

comparecer afoto de formatura e urn gesto de rebeldia juvenil

I Por meio de fotoscada familia constroi urna cronica visual de

si mesma - urn conjunto portatil de imagens que da testemunho~ da sua coesao Pouco importam as atividades fotografadas conshytanto que as fotos sejam tiradas e estimadas A fotografia se torna urn rito da vida em familia exatamente quando nos paises em industrializayao na Europa e na America a propria instituiyao da

familia comeya a sofrer uma reformulayao radical Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofobica a familia nuclear era

talhada de urn bloco familiar muito maior a fotografia se desenvolshyvia para celebrar e reafirmar simbolicamente a continuidade ameayadae a decrescente amplitude davidafamiliar Esses vestigios

espectrais as fotos equivalem apresenya simbolica dos pais que debandaram Urn alburIide fotos de familia e em geral urn album sobre a familia ampliada - e muitas vezes tudo 0 que dela resta

Assim como as fotos dao as pessoas a posse imaginaria de urn passado irreal tambem as ajudam a tomar posse de urn espayo em que se acham inseguras Assim a fotografia desenvolve-se na

esteira de uma das atividades modernas mais tipicas 0 turismo

Pela primeira vez na histoda pessoas viajam regularmente em grande numero para fora de seu ambiente habitual durante breshy

ves periodos Parece deddidamente anormalviajar por prazer sem levar urna camern As fotos oferecerao provas incontestaveis de que a viagem se realizou de que a programayao foi cumprida de

18 19

que houve diversao As fotos documentam sequencias de consumo

realizadas longe dos olhos da familia dos amigos dos vizinhos

Mas adependencia da camera como 0 equipamento que torna real

aquilo que a pessoa vivencia nao se enfraquece ltJuando as pessoas

viajam mais Para os sofisticados que acumulam fotos-trofeus de

sua viagem de navio rio acima pelo Nilo ate 0 lago Alberto ou de

seus catorze dias na China tirar fotos preenche a mesma necessishy

dade dos veranistas de classe media baixa que fotografam a torre

Eifid ou as cataratas do Niagara

Urn modo de atestar a experiencia tirar fotos e tambem uma

forma de recusa-Ia- ao limitar a experiencia a umabuscado fotoshy

genico ao converter a experiencia em uma imagem urn suvenir

Viajar se torna uma estrategia de acumular fotos A pr6pria ativishy

dade de tirar fotos e tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de

desorientacao que podem ser exacerbados pela viagem Os turisshy

tas em sua maioria sentem-se compelidos a par a camera entre si

mesmos e tudo de notavel que encontram Inseguros sobre suas

reac6es tiram uma foto Isso da forma aexperiencia pare tire uma

foto e va em frente 0 metodo atrai especialmente pessoas submeshy

tidas a uma etica cruel de trabalho- alemaesjaponeses e amerishy

canos Usar uma camera atenua a angustia que pessoas submetidas

ao imperativo do trabalho sentem por nao trabalhar enquanto

estao de ferias ocasiao em que deveriam divertir-se Elas tern algo a

fazer que e uma imitacao amigavel do trabalho podem tirar fotos

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos

mais fervorosos tiradores de fotos em seu pais e no exterior Todos

que vivem numa sociedade industrializada sao gradualmente

obrigados a desistir do passado mas em certos paises como Estashy

dos Unidos e Japao a ruptura com 0 passado foi especialmente

traumatica No inicio da decada de 1970 a lenda do turista amerishy

cano atrevido dos anos 50 e 60 cheio de d6lares e de vulgaridade

~ ~ i ti

1~ ~ j

sect ~

foi substituida pelo misterio do turista japones que se locomove

em grupos recentemente liberto de sua ilha-prisao gracas ao milashy

gre do iene sobrevalorizado em geral munido de duas cameras

uma em cada lado do corpo

A fotografia tornou-se urn dos principais expedientes para

experimentar alguma coisa para dar uma aparencia de participashy

cao Urn anuncio de pagina inteira mostra urn pequeno grupo de

pessoas de pe apertadas umas contra as outras olhando para fora

da foto e todas exceto uma parecem espantadas empolgadas aflishy

tas 0 unico que tern uma expressao diferente segura uma camera

junto ao olho ele parece seguro de si quase sorrindo Enquanto os

-demais sao espectadores passivos nitidamente alarmados ter uma

camera transformou uma pessoa em algo ativo urn voyeur s6 ele

dominou a situacao 0 que veem essas pessoas Nao sabemos E nao

importa E urn Evento algo digno de se ver - e portanto digno de

se fotografar 0 texto do anuncio letras brancas ao longo da faixa

escura que corresponde ao terco inferior da foto como noticias que

chegam por uma maquina de teletipo consiste em apenas seis palashy

vras Praga Woodstock Vietna Sapporo Londonderry

LEICA Esperancas esmagadas farras de jovens guerras coloniais e

esportes de inverno sao semelhantes - igualados pela camera

Tirar fotos estabeleceu uma relacao voyeurlstica cranica com 0

mundo que nivela 0 significado de todos os acontecimentos

Uma foto nao e apenas 0 resultado de urn encontro entre urn

evento e urn fot6grafo tirar fotos e urn evento em si mesmo e

dotado dos direitos mais categ6ricos - interferir invadir ou ignoshy

rar nao importa 0 que estiver acontecendo Nosso pr6prio senso

de situacao articula-se agora pelas intervenC6es da camera A onishy

presenca de cameras sugere de forma persuasiva que 0 tempo

consiste em eventos interessantes eventos dignos de ser fotografashy

dos Isso em troca torna facil sentir que qualquer evento uma vez

20 21

em cursQ e qualquer que seja seu caniter mQral deve ter caminhQ livre para prQsseguir ate se cQmpletar de mQdQ que Qutra CQisa PQssavir aQ mundQ a fQtQAp6s 0 fim dO eventQa fQtQ ainda exisshytini cQnferindQ aQ eventQ uma especie de imQrtalidade (e de impQrtancia) que de QutrQ mQdQ ele jamais desfrutaria EnquantQ peSSQas reais eshiQ nO mundQ real matandQ a si mesmas QU matandQ Qutras pessQas reais 0 fQt6grafQ se poe atras de sua camera criandQ urn pequenO elementQ de QutrQ mundQ 0 munshy

dQ-imagem que prQmete sQbreviver a tQdQS n6s FQtQgrafar e em essencia urn atQ de naQ-intervencaQ Parte

dO hQrrQr de lances memQraveis dO fQtQjQrnalismQ CQntempQrashyneQ CQmQ a fQtQ dO mQnge vietnamita que segura uma lata de gasQlina a de urn guerrilheirQ bengali nO instante em que gQlpeia CQm a baiQneta urn traidQr amarradQ decQrre da cQnsciencia de que se tQrnQU aceitavel em situacoes em que 0 fQt6grafQ tern de escQlher entre uma fQtQ e uma vida Qpta pela fQtQ A pessQa que interfere naQ PQde registrar a pessQa que registra naQ PQde intershyferir 0 famQsQ filme de Dziga ViertQv Um homem com uma cdshymera (1929) Qferece a imagem ideal dO fQt6grafQ CQmQ alguem em perpetuQ mQvimentQ alguem que se deslQca em urn panQrama de eventos dispares CQm tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervencaQ esta fQra de questaQ Janela indiscreta (1954) de HitchcQck Qferece a imagem cQmplementar 0 fQt6grafQ represhysentadQ PQr James Stewart tern uma relacaQ intensificada CQm determinadQ eventQ PQr meiQ da sua camera justamente PQrque esta CQm a perna quebrada e cQnfinadQ a uma cadeira de rodas estar tempQrariamente imQbilizadQ 0 impede de agir sQbre aquilQ que ve e tQrna ainda mais impQrtante tirar fQtQs MesmQ que incQmpativel CQm a intervencaQ num sentidQ fisicO usar uma camera e ainda uma fQrma de participacaQ EmbQra a camera seja urn PQstQ de QbservacaQ 0 atQ de fQtQgrafar e mais dO que uma QbservacaQ passiva A exemplQ dQvQyeurismQ sexual e um mQdQ

de pelQ menQS tacitamente e naQ raro explicitamente estimular 0

que estiver aCQntecendQ a cQntinuar a aCQntecer Tirar uma fQtQ e ter urn interesse pelas cQisas CQmQ elas saO pela permanencia dO status quo (pdQ menQS enquantQ fQr necessariQ para tirar uma bQafQtQ) e estar em curnplicidade CQm 0 que quer que tQrne urn tema interessante e dignQ de se fQtQgrafar - ate mesmQ quandO fQr esse 0 fQCQ de interesse CQm a dQr e a desgraca de Qutra peSSQa

Sempre pensei em fQtQgrafia CQmQ uma maldade - e esse era urn de seus PQntQs prediletQs para mim escreveu Diane Arbuse quandO fQtQgrafei pela primeira V~JIl~senti muitQ pershyversa Ser urn fQt6grafQ prQfissiQnal PQde ser encaradQ CQmQ algQ maldQsQ para usar 0 termQ de Darbus se 0 fQt6grafQ prQcura temas cQnsideradQs indecQrQsQs tabus marginais Mas temas maldQsQs saO mais dificeis de enCQntrar hQje em dia E 0 que vern a ser exatamente 0 aspectQ perverSQ de tirar fQtQs Se QS fQt6grashy

I fQS prQfissiQnais tern muitas vezes fantasias sexuais quandO estaQ atras da camera talvez a perversaQ resida nO fatQ de que essas fanshytasias sejam aQ mesmQtempQ plausiveis e muitQ impr6prias Em

I Blow up (Depois daquele beijo) (1966) AntQniQni leva urn fQt6shygrafQ de mQda a rQndar cQnvulsivamente em tQrnQ dO CQrpQ de Veruchca CQm a camera a cliear Maldade de fatQ CQm efeitQ usar uma camera naQ e urn mQdo muitQ bQm de aprQximar-se sexualshymente de alguem Entre 0 fQt6grafQ e seu tema ternde haverdistanshycia A camera naQ estupra nem mesmQ PQssui embQra PQssa atreshy

ver-se intrQmeter-s~ atrave~r distQrcer ~~lQrar e nO ~emQ da metafQra assassmar - Qdas essas attvldades que dlferenshytemente dO seXQ prQpriame te ditQ PQdem ser levadas a efeitQ a distancia e com certa indiferenc~

Existe uma fantasia sexual muitQ mais fQrte nO extraQrdinashyriO fume de Michael PQwell intituladQ A tortura do medo (1960)

22 23

que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

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vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

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puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

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mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

31

I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

33

que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

34

transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

35

Page 5: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

que houve diversao As fotos documentam sequencias de consumo

realizadas longe dos olhos da familia dos amigos dos vizinhos

Mas adependencia da camera como 0 equipamento que torna real

aquilo que a pessoa vivencia nao se enfraquece ltJuando as pessoas

viajam mais Para os sofisticados que acumulam fotos-trofeus de

sua viagem de navio rio acima pelo Nilo ate 0 lago Alberto ou de

seus catorze dias na China tirar fotos preenche a mesma necessishy

dade dos veranistas de classe media baixa que fotografam a torre

Eifid ou as cataratas do Niagara

Urn modo de atestar a experiencia tirar fotos e tambem uma

forma de recusa-Ia- ao limitar a experiencia a umabuscado fotoshy

genico ao converter a experiencia em uma imagem urn suvenir

Viajar se torna uma estrategia de acumular fotos A pr6pria ativishy

dade de tirar fotos e tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de

desorientacao que podem ser exacerbados pela viagem Os turisshy

tas em sua maioria sentem-se compelidos a par a camera entre si

mesmos e tudo de notavel que encontram Inseguros sobre suas

reac6es tiram uma foto Isso da forma aexperiencia pare tire uma

foto e va em frente 0 metodo atrai especialmente pessoas submeshy

tidas a uma etica cruel de trabalho- alemaesjaponeses e amerishy

canos Usar uma camera atenua a angustia que pessoas submetidas

ao imperativo do trabalho sentem por nao trabalhar enquanto

estao de ferias ocasiao em que deveriam divertir-se Elas tern algo a

fazer que e uma imitacao amigavel do trabalho podem tirar fotos

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos

mais fervorosos tiradores de fotos em seu pais e no exterior Todos

que vivem numa sociedade industrializada sao gradualmente

obrigados a desistir do passado mas em certos paises como Estashy

dos Unidos e Japao a ruptura com 0 passado foi especialmente

traumatica No inicio da decada de 1970 a lenda do turista amerishy

cano atrevido dos anos 50 e 60 cheio de d6lares e de vulgaridade

~ ~ i ti

1~ ~ j

sect ~

foi substituida pelo misterio do turista japones que se locomove

em grupos recentemente liberto de sua ilha-prisao gracas ao milashy

gre do iene sobrevalorizado em geral munido de duas cameras

uma em cada lado do corpo

A fotografia tornou-se urn dos principais expedientes para

experimentar alguma coisa para dar uma aparencia de participashy

cao Urn anuncio de pagina inteira mostra urn pequeno grupo de

pessoas de pe apertadas umas contra as outras olhando para fora

da foto e todas exceto uma parecem espantadas empolgadas aflishy

tas 0 unico que tern uma expressao diferente segura uma camera

junto ao olho ele parece seguro de si quase sorrindo Enquanto os

-demais sao espectadores passivos nitidamente alarmados ter uma

camera transformou uma pessoa em algo ativo urn voyeur s6 ele

dominou a situacao 0 que veem essas pessoas Nao sabemos E nao

importa E urn Evento algo digno de se ver - e portanto digno de

se fotografar 0 texto do anuncio letras brancas ao longo da faixa

escura que corresponde ao terco inferior da foto como noticias que

chegam por uma maquina de teletipo consiste em apenas seis palashy

vras Praga Woodstock Vietna Sapporo Londonderry

LEICA Esperancas esmagadas farras de jovens guerras coloniais e

esportes de inverno sao semelhantes - igualados pela camera

Tirar fotos estabeleceu uma relacao voyeurlstica cranica com 0

mundo que nivela 0 significado de todos os acontecimentos

Uma foto nao e apenas 0 resultado de urn encontro entre urn

evento e urn fot6grafo tirar fotos e urn evento em si mesmo e

dotado dos direitos mais categ6ricos - interferir invadir ou ignoshy

rar nao importa 0 que estiver acontecendo Nosso pr6prio senso

de situacao articula-se agora pelas intervenC6es da camera A onishy

presenca de cameras sugere de forma persuasiva que 0 tempo

consiste em eventos interessantes eventos dignos de ser fotografashy

dos Isso em troca torna facil sentir que qualquer evento uma vez

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em cursQ e qualquer que seja seu caniter mQral deve ter caminhQ livre para prQsseguir ate se cQmpletar de mQdQ que Qutra CQisa PQssavir aQ mundQ a fQtQAp6s 0 fim dO eventQa fQtQ ainda exisshytini cQnferindQ aQ eventQ uma especie de imQrtalidade (e de impQrtancia) que de QutrQ mQdQ ele jamais desfrutaria EnquantQ peSSQas reais eshiQ nO mundQ real matandQ a si mesmas QU matandQ Qutras pessQas reais 0 fQt6grafQ se poe atras de sua camera criandQ urn pequenO elementQ de QutrQ mundQ 0 munshy

dQ-imagem que prQmete sQbreviver a tQdQS n6s FQtQgrafar e em essencia urn atQ de naQ-intervencaQ Parte

dO hQrrQr de lances memQraveis dO fQtQjQrnalismQ CQntempQrashyneQ CQmQ a fQtQ dO mQnge vietnamita que segura uma lata de gasQlina a de urn guerrilheirQ bengali nO instante em que gQlpeia CQm a baiQneta urn traidQr amarradQ decQrre da cQnsciencia de que se tQrnQU aceitavel em situacoes em que 0 fQt6grafQ tern de escQlher entre uma fQtQ e uma vida Qpta pela fQtQ A pessQa que interfere naQ PQde registrar a pessQa que registra naQ PQde intershyferir 0 famQsQ filme de Dziga ViertQv Um homem com uma cdshymera (1929) Qferece a imagem ideal dO fQt6grafQ CQmQ alguem em perpetuQ mQvimentQ alguem que se deslQca em urn panQrama de eventos dispares CQm tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervencaQ esta fQra de questaQ Janela indiscreta (1954) de HitchcQck Qferece a imagem cQmplementar 0 fQt6grafQ represhysentadQ PQr James Stewart tern uma relacaQ intensificada CQm determinadQ eventQ PQr meiQ da sua camera justamente PQrque esta CQm a perna quebrada e cQnfinadQ a uma cadeira de rodas estar tempQrariamente imQbilizadQ 0 impede de agir sQbre aquilQ que ve e tQrna ainda mais impQrtante tirar fQtQs MesmQ que incQmpativel CQm a intervencaQ num sentidQ fisicO usar uma camera e ainda uma fQrma de participacaQ EmbQra a camera seja urn PQstQ de QbservacaQ 0 atQ de fQtQgrafar e mais dO que uma QbservacaQ passiva A exemplQ dQvQyeurismQ sexual e um mQdQ

de pelQ menQS tacitamente e naQ raro explicitamente estimular 0

que estiver aCQntecendQ a cQntinuar a aCQntecer Tirar uma fQtQ e ter urn interesse pelas cQisas CQmQ elas saO pela permanencia dO status quo (pdQ menQS enquantQ fQr necessariQ para tirar uma bQafQtQ) e estar em curnplicidade CQm 0 que quer que tQrne urn tema interessante e dignQ de se fQtQgrafar - ate mesmQ quandO fQr esse 0 fQCQ de interesse CQm a dQr e a desgraca de Qutra peSSQa

Sempre pensei em fQtQgrafia CQmQ uma maldade - e esse era urn de seus PQntQs prediletQs para mim escreveu Diane Arbuse quandO fQtQgrafei pela primeira V~JIl~senti muitQ pershyversa Ser urn fQt6grafQ prQfissiQnal PQde ser encaradQ CQmQ algQ maldQsQ para usar 0 termQ de Darbus se 0 fQt6grafQ prQcura temas cQnsideradQs indecQrQsQs tabus marginais Mas temas maldQsQs saO mais dificeis de enCQntrar hQje em dia E 0 que vern a ser exatamente 0 aspectQ perverSQ de tirar fQtQs Se QS fQt6grashy

I fQS prQfissiQnais tern muitas vezes fantasias sexuais quandO estaQ atras da camera talvez a perversaQ resida nO fatQ de que essas fanshytasias sejam aQ mesmQtempQ plausiveis e muitQ impr6prias Em

I Blow up (Depois daquele beijo) (1966) AntQniQni leva urn fQt6shygrafQ de mQda a rQndar cQnvulsivamente em tQrnQ dO CQrpQ de Veruchca CQm a camera a cliear Maldade de fatQ CQm efeitQ usar uma camera naQ e urn mQdo muitQ bQm de aprQximar-se sexualshymente de alguem Entre 0 fQt6grafQ e seu tema ternde haverdistanshycia A camera naQ estupra nem mesmQ PQssui embQra PQssa atreshy

ver-se intrQmeter-s~ atrave~r distQrcer ~~lQrar e nO ~emQ da metafQra assassmar - Qdas essas attvldades que dlferenshytemente dO seXQ prQpriame te ditQ PQdem ser levadas a efeitQ a distancia e com certa indiferenc~

Existe uma fantasia sexual muitQ mais fQrte nO extraQrdinashyriO fume de Michael PQwell intituladQ A tortura do medo (1960)

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que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

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vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

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puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

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mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

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I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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Page 6: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

em cursQ e qualquer que seja seu caniter mQral deve ter caminhQ livre para prQsseguir ate se cQmpletar de mQdQ que Qutra CQisa PQssavir aQ mundQ a fQtQAp6s 0 fim dO eventQa fQtQ ainda exisshytini cQnferindQ aQ eventQ uma especie de imQrtalidade (e de impQrtancia) que de QutrQ mQdQ ele jamais desfrutaria EnquantQ peSSQas reais eshiQ nO mundQ real matandQ a si mesmas QU matandQ Qutras pessQas reais 0 fQt6grafQ se poe atras de sua camera criandQ urn pequenO elementQ de QutrQ mundQ 0 munshy

dQ-imagem que prQmete sQbreviver a tQdQS n6s FQtQgrafar e em essencia urn atQ de naQ-intervencaQ Parte

dO hQrrQr de lances memQraveis dO fQtQjQrnalismQ CQntempQrashyneQ CQmQ a fQtQ dO mQnge vietnamita que segura uma lata de gasQlina a de urn guerrilheirQ bengali nO instante em que gQlpeia CQm a baiQneta urn traidQr amarradQ decQrre da cQnsciencia de que se tQrnQU aceitavel em situacoes em que 0 fQt6grafQ tern de escQlher entre uma fQtQ e uma vida Qpta pela fQtQ A pessQa que interfere naQ PQde registrar a pessQa que registra naQ PQde intershyferir 0 famQsQ filme de Dziga ViertQv Um homem com uma cdshymera (1929) Qferece a imagem ideal dO fQt6grafQ CQmQ alguem em perpetuQ mQvimentQ alguem que se deslQca em urn panQrama de eventos dispares CQm tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervencaQ esta fQra de questaQ Janela indiscreta (1954) de HitchcQck Qferece a imagem cQmplementar 0 fQt6grafQ represhysentadQ PQr James Stewart tern uma relacaQ intensificada CQm determinadQ eventQ PQr meiQ da sua camera justamente PQrque esta CQm a perna quebrada e cQnfinadQ a uma cadeira de rodas estar tempQrariamente imQbilizadQ 0 impede de agir sQbre aquilQ que ve e tQrna ainda mais impQrtante tirar fQtQs MesmQ que incQmpativel CQm a intervencaQ num sentidQ fisicO usar uma camera e ainda uma fQrma de participacaQ EmbQra a camera seja urn PQstQ de QbservacaQ 0 atQ de fQtQgrafar e mais dO que uma QbservacaQ passiva A exemplQ dQvQyeurismQ sexual e um mQdQ

de pelQ menQS tacitamente e naQ raro explicitamente estimular 0

que estiver aCQntecendQ a cQntinuar a aCQntecer Tirar uma fQtQ e ter urn interesse pelas cQisas CQmQ elas saO pela permanencia dO status quo (pdQ menQS enquantQ fQr necessariQ para tirar uma bQafQtQ) e estar em curnplicidade CQm 0 que quer que tQrne urn tema interessante e dignQ de se fQtQgrafar - ate mesmQ quandO fQr esse 0 fQCQ de interesse CQm a dQr e a desgraca de Qutra peSSQa

Sempre pensei em fQtQgrafia CQmQ uma maldade - e esse era urn de seus PQntQs prediletQs para mim escreveu Diane Arbuse quandO fQtQgrafei pela primeira V~JIl~senti muitQ pershyversa Ser urn fQt6grafQ prQfissiQnal PQde ser encaradQ CQmQ algQ maldQsQ para usar 0 termQ de Darbus se 0 fQt6grafQ prQcura temas cQnsideradQs indecQrQsQs tabus marginais Mas temas maldQsQs saO mais dificeis de enCQntrar hQje em dia E 0 que vern a ser exatamente 0 aspectQ perverSQ de tirar fQtQs Se QS fQt6grashy

I fQS prQfissiQnais tern muitas vezes fantasias sexuais quandO estaQ atras da camera talvez a perversaQ resida nO fatQ de que essas fanshytasias sejam aQ mesmQtempQ plausiveis e muitQ impr6prias Em

I Blow up (Depois daquele beijo) (1966) AntQniQni leva urn fQt6shygrafQ de mQda a rQndar cQnvulsivamente em tQrnQ dO CQrpQ de Veruchca CQm a camera a cliear Maldade de fatQ CQm efeitQ usar uma camera naQ e urn mQdo muitQ bQm de aprQximar-se sexualshymente de alguem Entre 0 fQt6grafQ e seu tema ternde haverdistanshycia A camera naQ estupra nem mesmQ PQssui embQra PQssa atreshy

ver-se intrQmeter-s~ atrave~r distQrcer ~~lQrar e nO ~emQ da metafQra assassmar - Qdas essas attvldades que dlferenshytemente dO seXQ prQpriame te ditQ PQdem ser levadas a efeitQ a distancia e com certa indiferenc~

Existe uma fantasia sexual muitQ mais fQrte nO extraQrdinashyriO fume de Michael PQwell intituladQ A tortura do medo (1960)

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que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

24

vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

25

puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

26

mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

27

nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

28

migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

29

familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

30

visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

31

I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

32

Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

33

que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

34

transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

35

Page 7: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

que nao trata de urn voyeur como 0 titulo sugere mas de urn psishycopata que mata mulheres com urna arma oCulta em sua camera enquanto as fotografa Ele nao encosta nem uma vez em seus temas Nao deseja seus corpos quer a presema delas na forma de imagens em fIlme - as imagens que as mostram experimentando a propria morte - que ele projeta numa tela em casa para seu prazer solitario 0 fIlme supoe uma ligayao entre impotencia e agressao entre 0 olhar profissionalizado e a crueldade que aponta para a fantasia central ligada acamera A camera como falo e no maximo uma debil variante da metafora inevitavel que todos

i empregam de modo desinibido Por mais que seja nebulosa nossa

I ~ __ltonsciencia dessa fantasia ela e mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregare (mirar a camera emdisparara foto

Acamerade modelo antigo era mais dificil e mais complicada de recarregar do que urn mosquete Bess A camera moderna tenta ser urna arma de raios Diz urn amincio

I A Yashica Electro-35 GT ea camera da era espacialque sua familia vai I i I adorar Tira fotos lindas de dia ou de noite Automaticamente Sem

nenhuma complica~ao Es6 mirar focalizar e disparar 0 cerebro

eletr6nico da GT e seu obturador eletr6nico farao 0 resto

Tal qual um carro uma camera e vendida como arma predatoria - 0 mais automatizada possivel pronta para disparar 0 gosto popular espera uma tecnologia facil e invisivel Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habishylidade ou conhecimento especializado que a maquina jasabe tudo e obedece amais leve pressao da vontade Etao simples como virar a chave de igniyao ou puxar 0 gatilho

Como armas e carros as cameras sao maquinas de fantasia cujo uso e viciante Porem apesar das extravagancias da linguashygem comum e da publicidade nao sao letais Na hiperbole que

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vende carros como se fossem armas existe pelo menos esta parcela de verdade exceto em tempo de guerra os carros matam mais pesshy

soas do que as armas A cameraarma nao mata portanto a metashyfora agourenta parece nao passar de um blefe - como a fantasia

masculina de ter uma arma uma faca ou uma ferramenta entre as

pernas Ainda assim existe algo predatorio no ato de tirar uma foto Fotografar pessoas e viola-las ao ve-Ias como elas nunea se

veem ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente

possuidos Assim como a camera e uma sublimayao da arma fotoshygrafar alguem e um assassinato sublimado - urn assassinato brando adequado a uma epoca triste e assustada

No fim as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes mais com cameras do que comarmas porem 0 preyo disso sera urn

mundo ainda mais afogado em imagens Urn easo em que as pesshy

soas estao mudando de balas para filmes e 0 safari fotografico que

esta tomando 0 lugar do safari na Africa orientaL Os cayadores

levam Hasselblads em vez de Winchesters em vez de olhar por

uma mira telescopica a fim de apontar um rifle olham atraves de

urn visor para enquadrar uma foto Na Londres do final do seculo

XIX Samuel Butler se queixava de que haviaum fotografo em cada

arbusto rondando como urn leao feroz em busca de alguem que

possadevorarO fotografo agora ataca feras reais sitiadas e raras

demais para serem mortas As armas se metamorfosearam em

cameras nessa comedia seria 0 safari ecologico porque a natureza

deixou de ser 0 que sempre fora - algo de que as pessoas precisashy

yam se proteger Agora a natureza - domesticada ameayada

mortal- precisa ser protegida das pessoas Quando temos medo

atiramos mas quando ficamos nostrugicos tiramos fotos

A epoea atual e de nostalgia e os fotografos fomentam ativashymente a nostalgia A fotografia e uma arte elegiaca uma arte creshy

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puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

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mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

30

visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

31

I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

32

Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

33

que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

34

transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

35

Page 8: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

puscular A maioria dos temas fotografados tern justamente em virtude de serem fotografados urn toque de pathos Urn tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenltao do fotografo Urn temabela pode ser objeto de sentimentos pesaroshysos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais Todas as fotos sao memento mori Tirar uma foto e participar da mortalidade da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) Jusshytamente por cortar uma fatia desse momento e congela-la toda

foto testemunha a dissolultao implacavel do tempo As cameras comeltaram a duplicar 0 mundo no momento em

que a paisagem humana passou a experimentar urn ritmo vertigishy

noso de transformaltao enquantolTmaquantidade incalculavel de formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espalto de tempo urn aparelho se torna acessivel para registrar aquilo que esta desaparecendo A melancolica Paris de textura intricada de Atget e Brassai desapareceu em sua maior parte A exemplo dos parentes e amigos mortos preservados no album de familia cuja presenlta em fotos exorciza uma parte da angtistia e do remorso inspirados p()r seu desaparecimento as fotos dos arrabaldes agora devastados das regioes rurais desfiguradas e arrasadas suprem

nossa relaltao portatil com 0 passado Uma foto e tanto uma pseudopresenlta quanta uma prova de

ausencia Como 0 fogo da lareira num quarto as fotos - sobreshytudo as de pessoas de paisagens distantes e de cidades remotas do passado desaparecido- sao estimulos para 0 sonho 0 sentido do inatingivel que pode ser evocado por fotos alimenta de forma dishy

reta sentimentos erotieos nas pess()as para quem a desejabilidade e intensificada pela distancia A foto do amante escondida na carshyteira de uma mulher casadao cartaz de urn astro do rock pregado acima da cama de urn adolescente 0 broche de campanha com 0

rosto de urn politico pregado ao paleto de urn eleitor as fotos dos

26

mhos de urn motorista de taxi coladas no painel do carro - todos esses usos talismanieos das fotos exprimem uma emoltao sentishymental e urn sentimento implicitamente magico sao tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade

As fotos podem incitar 0 desejo da maneira mais direta e utishylitaria - como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos an6nimos do desejavel com 0 fim de ajudar a masturbaltao 0 assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para estimushylar 0 impulso moral 0 desejo nao tern historia - pelo menos ele e experimentado em cada momento como algo totalmente em primeiro plano imediato E suscitado por meio de arquetipos e e nesse sentido abstrato Mas os sentimentos morais estao embutishydos na historia cujos personagens sao concretos cujas situaltoes sao sempre especificas Assim regras quase opostas sao validas quando se trata do emprego das fotos para despertar 0 desejo e para despertar a consciencia As imagens que mobilizam a consshyciencia estao sempre ligadas a determinada situaltao historica Quanto mais generieas forem menor a probabilidade de serem eficazes

Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de miseria nao pode deixar marca na opinHio publica a menos que exista urn contexto apropdado de sentimento e de atitude As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nao diminuiram em nada 0 entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil As fotos de prisioneiros esqueleshytieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao publica dos nortistas - contra 0 Sul (0 efeito das fotos deAndershy

sonville talvez se deva empartelJRropria novidade que era na epoca ver fotos) A compreensao politica a que muitos americashy

27

nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

28

migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

29

familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

30

visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

31

I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

33

que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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Page 9: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu ao olhar

para as fotos tiradas por Dorothea Lange de descendentes de

japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942 reconhecer qual era de

fato 0 tema das fotos urn crime cometido pelo governo contra urn grupo numeroso de cidadaos americanos Poucas pessoas que

viram essas fotos na decada de 1940 poderiam ter uma reacento tao inequivoca 0 espaso para tal julgamento estavaocupado pelo conshy

senso a favor da guerra Fotos nao podem criarurna posisao moral mas podem reforsa-Ia - e podem ajudar a desenvolver urna posishy

cento moral ainda embrionaria Fotos podem ser mais memoraveis do que imagens em movishy

mento porque sao urna nitida fatia do tempo e nao urn fluxo A televisao e urn fluxo de imagens pouco selecionadas em que cada

imagem cancela a precedente Cada foto e urn momento privileshygiado convertido erp urn objeto diminuto que as pessoas podem

guardar e olhar outras vezes Fotos como a que esteve na primeira pagina de muitos jornais do mundo em 1972 - uma criansa sulshyvietnamita nua que acabara de ser atingida por napalm amerishycano correndo por uma estrada na diresao da camera de brasos

abertos gritando de dor - provavelmente contribuiram mais para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern

horas de barbaridades exibidas pela televisao Seria born imaginar que 0 publico americano nao teria se

mostrado tao unanime em seu apoio aGuerra da Coreia se tivesse

deparado com provas fotognificas da devastasao da Con~ia urn

ecoddio e urn genoddio em certos aspectos ainda mais completo do que 0 infligido ao Vietna urna decada depois Mas a suposisao e irrelevante 0 publico nao viu tais fotos porque nao havia ideoloshy

gicamente espaso para elas Ninguem trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang para mostrar que 0 inishy

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migo tinha urn rosto humano a exemplo das fotos que Felix

Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi Os americanos tiveshyram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bern difeshy

rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforyos para obter tais fotos visto que 0 evento fora definido por

urn nlimero significativo de pessoas como uma feroz guerra coloshynialista A Guerra da Coreia foi entendidade outra forma- como

parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a China- e admitida essa caracterizasao as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes

poundmboratll1TeVentcrtenha passado a significar exatamente algo digno de se fotografar ainda e a ideologia (no sentido mais amplo) quedetermina0 queconstituiurnevento Nao podeexistir nenhuma prova fotografica oude outro tipo de urn evento antes que 0 proprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal E jamais e a provafotografica que podeconstruir-mais exatamente identificar

-oseventos a contribuisao da fotografia sempre vern apos a desigshy

nacento de urn evento 0 que determina a possibilidade de ser moralshymente afetado por fotos e a existencia de uma consciencia politica

apropriada Sem umavisao politica as fotos do matadouro da histoshyriaseraomuito provavelrnente experirnentadas apenas como irreais ou como urn choque emocional desorientador

A natureza do sentimentoate de ofensa moral que as pessoas podem manifestar em reasao a fotos dos oprimidos dos exploshyrados dos famintos e dos massacrados depende tambern do

grau de familiaridade que tenham com essas imagens As fotos de Don McCullin dos biafrenses magerrimos no inicio da decada

de 1970 produziram menos impacto para alguns do que as fotos de Werner Bischof das vitirnas indianas da fome no inicio da decada

de 1950 porque estas irnagens tornaram-se banais e as fotos das

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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

31

I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

32

Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

33

que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

34

transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

35

Page 10: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana

publicadas em revistas de todo 0 muildo em 1973 devem ter pareshycido a muitos uma reprise insuportavel de uma exibiltao de atroshy

cidades agora ja familiar Fotos chocam na proporltao em que mostram algo novo

Infelizmenteo custo disso nao para de subir - em parte por conta da mera prolifera~o dessas imagens de horror 0 primeiro contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror supremo e uma especie de revela~o a revelaltao prototipicamente moderna uma epifania negativa Para mim foram as fotos de Bershygen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945 Nada que tinha visto - em fotos ou na vida real- me ferira de forma tao contundente tao proshyfunda tao instantanea De fato parece-me plauslvel dividir minha vidaem duas partes antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)

e depois embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu comshypreender plenamente do que elas tratavam Que bern me fez ver

essas fotos Eram apenas fotos - de urn evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu nao podia interferir fotos de urn sofrishymento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar

__~de maneira alguma Quando olhei para essas fotos algo se partiu Algum limite foi atingido e nao so 0 do horror senti-me irremeshy

diavelmente aflita ferida mas uma parte de meus sentimentos

comeltou a se retesar algo morreu algo ainda esta chorando Sofrer e uma coisa outra coisa e viver com imagens fotograshy

ficas do sofrimento 0 que nao reforlta necessariamente a conscienshyciae a capacidade de ser compassivp Tambem pode corrompe-Ias Depois de ver tais imagens a pessoa tem aberto a suafrente 0 camishynho para ver mais e cada vez mais As imagens paralisam As imagens anestesiamVm evento conhecido por meio de fotos cershytamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse

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visto as fotos pensem na Guerra do Vietna (Para urn contrashy

exemplo pensem no arquipelago de Gulag do qual nao temos

nenhuma foto) Mas apos uma repetida exposiltao a imagens 0

evento tambem se torna menos real

A mesma lei vigora para 0 mal e para a fotografia 0 choque

das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposiltao repetida

assim como a surpresa e 0 desnorteamento sentidos na primeira

vez em que se ve urn fUme pornognifico se desgastam depois que a

pessoa ve mais alguns 0 sentimento de tabu que nos deixa indigshy

nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0 sentimento

de tabu que rege a definiltao do que e obsceno E ambos tern sido

experimentados de forma dolorosa em anos recentes 0 vasto cata--shy

logo fotografico da desgralta e da injustilta em todo 0 mundo deu a

todos certa familiaridade com a atrocidade levando 0 horrivel a

parecer mais comum -levando-o a parecer familiar distante Ce so uma foto) inevimveL Na epoca das primeiras fotos dos camshy

pos nazistas nada havia de banal nessas imagensApos trinta anos

talvez tenhamos chegado a urn ponto de saturaltao Nas ultimas

decadas a fotografia laquoconsciente fez no minimo tanto para

amortecer a consciencia quanto fez para desperm-Ia

o conteudo etico das fotos e fnigil Com a possivel exceltao das

fotos daqueles horrores como os campos nazistas que adquiriram

a condiltao de pontos de referencia eticos a maioria das fotos nao

conserva sua carga emocionaL Vma foto de 1900 que na epoca

produziu urn grande efeito por causa de seu tema hoje provavelshy

mente nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900 Os atribushy

tos e os intuitos especificos das fotos tendem a ser engolidos pelo

pdthosgeneralizado do tempo preUrito A distancia estetica parece

inserir-se na propria experiencia de olhar fotos quando nao de

forma imediata certamente com 0 COrrer do tempo No fim 0

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I IIII II I II

II

III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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Page 11: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

I IIII II I II

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III Ii if

tempo termina por situar a maioria das fotos mesmo as mais amashy

doras no nive1 da arte

A industrializa~ao da fotografia permitiu sua nipida absor~o pelos meios racionais - ou seja burocniticos - de gerir a socieshydade As fotos nao mais imagens de brinquedo tornaram-se parte do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirma~oes da redutora abordagem da realidade que e tida por realista As fotos foram arroladas a servi~o de importantes institui~oes de controle em especial a familia e a policia como objetos simbolicos e como f)ntes-deinfonna~oAssimnacataloga~aoburocratica do mundo

muitos documentos importantes nao sao validos a menos que tenham colada a eles uma foto comprobatoria do rosto do ~idadao

A visao realista do mundo compativel com a burocracia

redefine 0 conhecimento - como tecnica e informa~ao As fotos sao apreciadas porque dao informa~oesDizem 0 que existe fazem urn inventario Para os espioes os meteorologistas os medicosshylegistas os arqueologos e outros profissionais da informa~ao seu valor e inestimavel Mas nas situa~oes em que a maioria das pesshysoas usa as fotos seu valor como informa~ao e da mesma ordem que 0 da fic~ao A informa~ao que as fotos podem dar co~a __ parecer muito importante naquele momento da historia cultural em que todos se supoem com direito a algo chamado noticia As

fotos foram vistas como urn modo de dar informa~oes a pessoas que nao tern facilidade para ler 0 Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York sua maneira de a1can~ar uma identidade populista No extremo oposto do espectro Le Monde

urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados nao publica foto nenhuma A suposi~ao e que para tais leitores uma foto poderia apenasilustrar a analise contida em uma materia

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Urn novo significado da ideia de informa~ao construiu-se em torno da imagem fotografica A foto e uma fina fatia de espa~o bern

como de tempo Num mundo regido por imagens fotograficas todas as margens (enquadramento) parecem arbitrarias Tudo pode ser separado pode ser desconexo de qualquer coisa basta enquadrar 0 tema de urn modo diverso (Inversamente tudo pode ser adjacente a qualquer coisa) A fotografia refor~a uma visao nominalista da realidade social como constituida de unidades pequenas em ntimero aparentementeinfinito - assim como 0

ntimero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimishytado Por meio de fotos 0 mundo se torna uma serie de particulas independentes avulsas e a historia passada e presente se torna urn conjunto de anedotas e de faits divers A camera torna a realishydade atomica manipulavel e opaca Euma visao do mundo que nega a inter-rela~o a continuidade mas confere a cada momento

o carater de misterio Toda foto tern mtiltiplos significados de fato ver algo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de fasdnio A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer Ai esta a superficie Agora imagine - ou antes sinta intua - 0 que esta alem 0 que deve ser a realidade se ela tern este aspecto Fotos

que em si mesmas-nada podem explicar sao convites inesgotaveis adedu~ao aespecula~ao e afantasia

A fotografia da a entender que conhecemos 0 mundo se 0

aceitamos tal como a camera 0 registra Mas isso e 0 contrario de compreender que parte de nao aceitar 0 mundo tal como ele apashyrenta ser Toda possibilidade de compreensao esta enraizada na capacidade de dizer nao Estritamente falando nunca se comshy

preende nada a partir de uma foto E claro as fotos preenchern lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado por exemplo as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova York na decadaael880 sao extremamente instrutivas para quem nao sabe

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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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Page 12: SONTAG, Susan. Na Caverna de Platão in Sobre Fotografia

que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fIm do seculo XIX era

de fato dickensiana Contudo a representacao da realidade pela camera deve sempre ocultar mais do que revela Como assinala Brecht urna foto da fabrica Krupp nao revela quase nada a respeito dessa organizasao Em cont~aste com a relasao amorosa que se baseia na aparenciaa compreensao se baseia no funcionamento E o funcionamento se da no tempo e deve serexplicado no tempo S6 o que narra pode levar-nos a compreender

o limite do conhecimento fotografIco do mundo e que conshyquanto possa incitar a consciencia jamais conseguira ser urn conheshycimento etico ou politico 0 conhecimento adquirido por meio de fotos sera sempre urn tipo de sentimentalismo sejarle cinko ou humanista Ha de ser urn conhecimento barateado - uma aparenshyciade conhecimento uma aparencia desabedoria assim como 0 ato de tirar fotos e uma aparencia de apropriasao uma aparencia de estuproA pr6priamudezdo que seria hipoteticamente compreenshysivel nas fotos e 0 que constitui seu carater atraente e provocador A onipresenca das fotos produz urn efeito incalculavel em nossa senshyJ sibilidade etica Ao munir este mundo ja abarrotado de urna duplishy

cata do mundo feita de imagens a fotografia nos faz sentir que 0

mundo e mais acessivel do que e na realidade A necessidade de confIrmar a realidade e de realcar a expeshy

rienciapor meio de fotos e urn consumismo estetico em que todos hoje estao viciados As sociedades industriais transformam seus cidadaos em dependentes de imagens e a mais irresistivel forma de

poluisao mental Urn pungente anseio de beleza de urn prop6sito

para sondar abaixo da superficie de uma redensao e celebrasao do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento er6tico

sao afIrmados no prazer que temos com as fotos Mas outros senshytimentos menos liberadores tambem se expressam Nao seria errado falar de pessoas que tern uma compulsao de fotografar

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transformar a experienciaemsi num modo dever Por fim ter uma experiencia se torna identico a tirar dela uma foto e participar de urn evento publico tende cada vez mais a equivaler a olhar para ele em forma fotografada Mallarme 0 mais 16gico dos estetas do seculo XIX disse que tudo no mundo existe para terminar num livro Hoje tudo existe para terminar numa foto

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