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Sobre Fotografia - Susan Sontag

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Sobre Fotografia - Susan Sontag

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Para Nicole Stphane

  • Tudo comeou com um ensaio sobre alguns dos problemas, estticos e morais, propostos pela onipresena dasimagens fotogrficas; mas, quanto mais eu pensava sobre o que so as fotos, mais complexas e sugestivas elasse tornavam. Assim, um ensaio engendrava outro, e este (para meu espanto), ainda um outro, e assimsucessivamente uma sequncia de ensaios a respeito do significado e da evoluo das fotos at eu ter idoto longe que o argumento esboado no primeiro ensaio, e documentado e explorado por meio de digresses nosensaios seguintes, pde ser retomado e ampliado de um modo mais terico; e pde parar.Os ensaios foram publicados, pela primeira vez (de um modo um pouco diferente), na New York Review of Bookse talvez jamais tivessem sido escritos sem o estmulo dos editores, meus amigos Robert Silvers e Barbara Epstein, minha obsesso pela fotografia. Sou grata a eles e ao meu amigo Don Eric Levine pelos conselhos pacientes epela ajuda irrestrita.

    S. S.Maio, 1977

  • Sumrio Na caverna de PlatoEstados Unidos, visto em fotos, de um ngulo sombrioObjetos de melancoliaO herosmo da visoEvangelhos fotogrficosO mundo-imagemBreve antologia de citaes

  • NA CAVERNA DE PLATO

  • A humanidade permanece, de forma impenitente, na caverna de Plato, ainda seregozijando, segundo seu costume ancestral, com meras imagens da verdade. Mas ser educadopor fotos no o mesmo que ser educado por imagens mais antigas, mais artesanais. Emprimeiro lugar, existem nossa volta muito mais imagens que solicitam nossa ateno. Oinventrio teve incio em 1839, e, desde ento, praticamente tudo foi fotografado, ou pelomenos assim parece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condies doconfinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo cdigo visual, as fotosmodificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos odireito de observar. Constituem uma gramtica e, mais importante ainda, uma tica do ver. Porfim, o resultado mais extraordinrio da atividade fotogrfica nos dar a sensao de quepodemos reter o mundo inteiro em nossa cabea como uma antologia de imagens.

    Colecionar fotos colecionar o mundo. Filmes e programas de televiso iluminam paredes,reluzem e se apagam; mas, com fotos, a imagem tambm um objeto, leve, de produobarata, fcil de transportar, de acumular, de armazenar. No filme Les carabiniers (1963), deGodard, dois lmpen-camponeses preguiosos so induzidos a ingressar no Exrcito do reimediante a promessa de que podero saquear, estuprar, matar ou fazer o que bem entenderemcom os inimigos, e ficar ricos. Mas a mala com o butim que Michel-Ange e Ulysse trazem, emtriunfo, para casa, anos depois, para suas esposas, contm apenas centenas de cartes-postaisde monumentos, de lojas de departamentos, de mamferos, de maravilhas da natureza, demeios de transporte, de obras de arte e de outros tesouros catalogados de todo o mundo. Ochiste de Godard parodia, nitidamente, a magia equvoca da imagem fotogrfica. As fotos so,talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que compem e adensam o ambiente queidentificamos como moderno. As fotos so, de fato, experincia capturada, e a cmera obrao ideal da conscincia, em sua disposio aquisitiva.

    Fotografar apropriar-se da coisa fotografada. Significa pr a si mesmo em determinadarelao com o mundo, semelhante ao conhecimento e, portanto, ao poder. Supe-se que umaqueda primordial e malvista, hoje em dia na alienao, a saber, acostumar as pessoas aresumir o mundo na forma de palavras impressas, tenha engendrado aquele excedente deenergia fustica e de dano psquico necessrio para construir as modernas sociedadesinorgnicas. Mas a imprensa parece uma forma menos traioeira de dissolver o mundo, detransform-lo em um objeto mental, do que as imagens fotogrficas, que fornecem a maiorparte do conhecimento que se possui acerca do aspecto do passado e do alcance do presente.O que est escrito sobre uma pessoa ou um fato , declaradamente, uma interpretao, domesmo modo que as manifestaes visuais feitas mo, como pinturas e desenhos. Imagensfotografadas no parecem manifestaes a respeito do mundo, mas sim pedaos dele,miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir.

    As fotos, que brincam com a escala do mundo, so tambm reduzidas, ampliadas,recortadas, retocadas, adaptadas, adulteradas. Elas envelhecem, afetadas pelas mazelas

  • habituais dos objetos de papel; desaparecem; tornam-se valiosas e so vendidas e compradas;so reproduzidas. Fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos tambm.So afixadas em lbuns, emolduradas e expostas em mesas, pregadas em paredes, projetadascomo diapositivos. Jornais e revistas as publicam; a polcia as dispe em ordem alfabtica; osmuseus as expem; os editores as compilam.

    Durante muitas dcadas, o livro foi o mais influente meio de organizar (e, em geral,miniaturizar) fotos, assegurando desse modo sua longevidade, se no sua imortalidade fotos so objetos frgeis, fceis de rasgar e de extraviar , e um pblico mais amplo. A fotoem um livro , obviamente, a imagem de uma imagem. Mas como , antes de tudo, um objetoimpresso, plano, uma foto, quando reproduzida em um livro, perde muito menos de suacaracterstica essencial do que ocorre com uma pintura. Contudo, o livro no um instrumentoplenamente satisfatrio para pr grupos de fotos em ampla circulao. A sequncia em que asfotos devem ser vistas est sugerida pela ordem das pginas, mas nada constrange o leitor aseguir a ordem recomendada, nem indica o tempo a ser gasto em cada foto. O filme Si javaisquatre dromadaires (1966), de Chris Maker, uma reflexo argutamente orquestrada sobrefotos de todos os tipos e temas, sugere um modo mais sutil e mais rigoroso de enfeixar (eampliar) fotos. Tanto a ordem como o tempo exato para olhar cada foto so impostos; e h umganho em termos de legibilidade visual e impacto emocional. Mas fotos transcritas em umfilme deixam de ser objetos colecionveis, como ainda so quando oferecidas em livros.

    * * *

    Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parececomprovado quando nos mostram uma foto. Numa das verses da sua utilidade, o registro dacmera incrimina. Depois de inaugurado seu uso pela polcia parisiense, no cerco aoscommunards, em junho de 1871, as fotos tornaram-se uma til ferramenta dos Estadosmodernos na vigilncia e no controle de suas populaes cada vez mais mveis. Numa outraverso de sua utilidade, o registro da cmera justifica. Uma foto equivale a uma provaincontestvel de que determinada coisa aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe opressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que est na imagem. Quaisquerque sejam as limitaes (por amadorismo) ou as pretenses (por talento artstico) do fotgrafoindividual, uma foto qualquer foto parece ter uma relao mais inocente, e portanto maisacurada, com a realidade visvel do que outros objetos mimticos. Os virtuoses da imagemnobre, como Alfred Stieglitz e Paul Strand, que compuseram fotos de grande fora, einesquecveis durante dcadas, ainda tencionavam, antes de tudo, mostrar algo que existe,assim como o dono de uma Polaroid, para quem as fotos so uma forma prtica e rpida detomar notas, ou o fotgrafo compulsivo com sua Brownie que tira instantneos como suveniresda vida cotidiana.

    Enquanto uma pintura ou uma descrio em prosa jamais podem ser outra coisa que no umainterpretao estritamente seletiva, pode-se tratar uma foto como uma transparnciaestritamente seletiva. Porm, apesar da presuno de veracidade que confere autoridade,interesse e seduo a todas as fotos, a obra que os fotgrafos produzem no constitui umaexceo genrica ao comrcio usualmente nebuloso entre arte e verdade. Mesmo quando osfotgrafos esto muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda so assediados porimperativos de gosto e de conscincia. Os componentes imensamente talentosos do projeto

  • fotogrfico do final da dcada de 1930 chamado Contribuio para a Segurana no Trabalhonas Fazendas (entre os quais estavam Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, Russel Lee)tiravam inmeras fotos frontais de um de seus meeiros at se convencerem de que haviamcaptado no filme a feio exata a expresso precisa do rosto da figura fotografada, capazde amparar suas prprias ideias sobre pobreza, luz, dignidade, textura, explorao egeometria. Ao decidir que aspecto deveria ter uma imagem, ao preferir uma exposio a outra,os fotgrafos sempre impem padres a seus temas. Embora em certo sentido a cmera de fatocapture a realidade, e no apenas a interprete, as fotos so uma interpretao do mundo tantoquanto as pinturas e os desenhos. Aquelas ocasies em que tirar fotos relativamenteimparcial, indiscriminado e desinteressado no reduzem o didatismo da atividade em seutodo. Essa mesma passividade e ubiquidade do registro fotogrfico constitui amensagem da fotografia, sua agresso.

    Imagens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias de moda e de animais) noso menos agressivas do que obras que fazem da banalidade uma virtude (como fotos deturmas escolares, naturezas-mortas do tipo mais rido e retratos de frente e de perfil de umcriminoso). Existe uma agresso implcita em qualquer emprego da cmera. Isso est toevidente nas duas primeiras dcadas gloriosas da fotografia, 1840 e 1850, quanto em todas asdcadas seguintes, durante as quais a tecnologia permitiu uma difuso sempre crescente damentalidade que encara o mundo como uma coleo de fotos potenciais. Mesmo para mestresto pioneiros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron, que usavam a cmeracomo um meio de obter imagens maneira de um pintor, o intuito de tirar fotos situava-se auma grande distncia dos propsitos dos pintores. Desde o seu incio, a fotografia implicava acaptura do maior nmero possvel de temas. A pintura jamais teve um objetivo to imperioso.A subsequente industrializao da tecnologia da cmera apenas cumpriu uma promessainerente fotografia, desde o seu incio: democratizar todas as experincias ao traduzi-las emimagens.

    Aquela poca em que tirar fotos demandava um aparato caro e complicado o passatempodos hbeis, dos ricos e dos obsessivos parece, de fato, distante da era das cmodascmeras de bolso que convidam qualquer um a tirar fotos. As primeiras cmeras, feitas naFrana e na Inglaterra no incio da dcada de 1840, s contavam com os inventores e osaficionados para oper-las. Uma vez que, na poca, no existiam fotgrafos profissionais, nopoderia tampouco haver amadores, e tirar fotos no tinha nenhuma utilidade social clara;tratava-se de uma atividade gratuita, ou seja, artstica, embora com poucas pretenses a seruma arte. Foi apenas com a industrializao que a fotografia adquiriu a merecida reputao dearte. Assim como a industrializao propiciou os usos sociais para as atividades do fotgrafo,a reao contra esses usos reforou a conscincia da fotografia como arte.

    Em poca recente, a fotografia tornou-se um passatempo quase to difundido quanto o sexoe a dana o que significa que, como toda forma de arte de massa, a fotografia no praticada pela maioria das pessoas como uma arte. sobretudo um rito social, uma proteocontra a ansiedade e um instrumento de poder.

    Comemorar as conquistas de indivduos tidos como membros da famlia (e tambm deoutros grupos) o uso popular mais antigo da fotografia. Durante pelo menos um sculo a fotode casamento foi uma parte da cerimnia tanto quanto as frmulas verbais prescritas. As

  • cmeras acompanham a vida da famlia. Segundo um estudo sociolgico feito na Frana, amaioria das casas tem uma cmera, mas as casas em que h crianas tm uma probabilidadeduas vezes maior de ter pelo menos uma cmera, em comparao com as casas sem crianas.No tirar fotos dos filhos, sobretudo quando pequenos, sinal de indiferena paterna, assimcomo no comparecer foto de formatura um gesto de rebeldia juvenil.

    Por meio de fotos, cada famlia constri uma crnica visual de si mesma um conjuntoporttil de imagens que d testemunho da sua coeso. Pouco importam as atividadesfotografadas, contanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia se torna um rito davida em famlia exatamente quando, nos pases em industrializao na Europa e na Amrica, aprpria instituio da famlia comea a sofrer uma reformulao radical. Ao mesmo tempoque essa unidade claustrofbica, a famlia nuclear, era talhada de um bloco familiar muitomaior, a fotografia se desenvolvia para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidadeameaada e a decrescente amplitude da vida familiar. Esses vestgios espectrais, as fotos,equivalem presena simblica dos pais que debandaram. Um lbum de fotos de famlia , emgeral, um lbum sobre a famlia ampliada e, muitas vezes, tudo o que dela resta.

    Assim como as fotos do s pessoas a posse imaginria de um passado irreal, tambm asajudam a tomar posse de um espao em que se acham inseguras. Assim, a fotografiadesenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas mais tpicas: o turismo. Pelaprimeira vez na histria, pessoas viajam regularmente, em grande nmero, para fora de seuambiente habitual, durante breves perodos. Parece decididamente anormal viajar por prazersem levar uma cmera. As fotos oferecero provas incontestveis de que a viagem se realizou,de que a programao foi cumprida, de que houve diverso. As fotos documentam sequnciasde consumo realizadas longe dos olhos da famlia, dos amigos, dos vizinhos. Mas adependncia da cmera, como o equipamento que torna real aquilo que a pessoa vivencia, nose enfraquece quando as pessoas viajam mais. Para os sofisticados que acumulam fotos-trofus de sua viagem de navio rio acima pelo Nilo, at o lago Alberto, ou de seus catorzedias na China, tirar fotos preenche a mesma necessidade dos veranistas de classe mdia baixaque fotografam a torre Eiffel ou as cataratas do Nigara.

    Um modo de atestar a experincia, tirar fotos tambm uma forma de recus-la aolimitar a experincia a uma busca do fotognico, ao converter a experincia em uma imagem,um suvenir. Viajar se torna uma estratgia de acumular fotos. A prpria atividade de tirar fotos tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientao que podem ser exacerbados pelaviagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pr a cmera entre si mesmos etudo de notvel que encontram. Inseguros sobre suas reaes, tiram uma foto. Isso d forma experincia: pare, tire uma foto e v em frente. O mtodo atrai especialmente pessoassubmetidas a uma tica cruel de trabalho alemes, japoneses e americanos. Usar umacmera atenua a angstia que pessoas submetidas ao imperativo do trabalho sentem por notrabalhar enquanto esto de frias, ocasio em que deveriam divertir-se. Elas tm algo a fazerque uma imitao amigvel do trabalho: podem tirar fotos.

    Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos mais fervorosos tiradores defotos, em seu pas e no exterior. Todos que vivem numa sociedade industrializada sogradualmente obrigados a desistir do passado, mas em certos pases, como Estados Unidos eJapo, a ruptura com o passado foi especialmente traumtica. No incio da dcada de 1970, alenda do turista americano atrevido, dos anos 50 e 60, cheio de dlares e de vulgaridade, foi

  • substituda pelo mistrio do turista japons, que se locomove em grupos, recentemente libertode sua ilha-priso graas ao milagre do iene sobrevalorizado, em geral munido de duascmeras, uma em cada lado do corpo.

    A fotografia tornou-se um dos principais expedientes para experimentar alguma coisa, paradar uma aparncia de participao. Um anncio de pgina inteira mostra um pequeno grupo depessoas de p, apertadas umas contra as outras, olhando para fora da foto, e todas, exceto uma,parecem espantadas, empolgadas, aflitas. O nico que tem uma expresso diferente segura umacmera junto ao olho; ele parece seguro de si, quase sorrindo. Enquanto os demais soespectadores passivos, nitidamente alarmados, ter uma cmera transformou uma pessoa emalgo ativo, um voyeur: s ele dominou a situao. O que veem essas pessoas? No sabemos. Eno importa. um Evento: algo digno de se ver e portanto digno de se fotografar. O textodo anncio, letras brancas ao longo da faixa escura que corresponde ao tero inferior da foto,como notcias que chegam por uma mquina de teletipo, consiste em apenas seis palavras: ...Praga... Woodstock... Vietn... Sapporo... Londonderry... leica. Esperanas esmagadas, farrasde jovens, guerras coloniais e esportes de inverno so semelhantes igualados pela cmera.Tirar fotos estabeleceu uma relao voyeurstica crnica com o mundo, que nivela osignificado de todos os acontecimentos.

    Uma foto no apenas o resultado de um encontro entre um evento e um fotgrafo; tirarfotos um evento em si mesmo, e dotado dos direitos mais categricos interferir, invadirou ignorar, no importa o que estiver acontecendo. Nosso prprio senso de situao articula-se, agora, pelas intervenes da cmera. A onipresena de cmeras sugere, de formapersuasiva, que o tempo consiste em eventos interessantes, eventos dignos de ser fotografados.Isso, em troca, torna fcil sentir que qualquer evento, uma vez em curso, e qualquer que sejaseu carter moral, deve ter caminho livre para prosseguir at se completar de modo queoutra coisa possa vir ao mundo: a foto. Aps o fim do evento, a foto ainda existir, conferindoao evento uma espcie de imortalidade (e de importncia) que de outro modo ele jamaisdesfrutaria. Enquanto pessoas reais esto no mundo real matando a si mesmas ou matandooutras pessoas reais, o fotgrafo se pe atrs de sua cmera, criando um pequeno elemento deoutro mundo: o mundo-imagem, que promete sobreviver a todos ns.

    Fotografar , em essncia, um ato de no interveno. Parte do horror de lances memorveisdo fotojornalismo contemporneo, como a foto do monge vietnamita que segura uma lata degasolina, a de um guerrilheiro bengali no instante em que golpeia com a baioneta um traidoramarrado, decorre da conscincia de que se tornou aceitvel, em situaes em que o fotgrafotem de escolher entre uma foto e uma vida, opta pela foto. A pessoa que interfere no poderegistrar; a pessoa que registra no pode interferir. O famoso filme de Dziga Virtov, Umhomem com uma cmera (1929), oferece a imagem ideal do fotgrafo como algum emperptuo movimento, algum que se desloca em um panorama de eventos dspares comtamanha agilidade e rapidez que qualquer interveno est fora de questo. Janela indiscreta(1954), de Hitchcock, oferece a imagem complementar: o fotgrafo representado por JamesStewart tem uma relao intensificada com determinado evento, por meio da sua cmera,justamente porque est com a perna quebrada e confinado a uma cadeira de rodas; estartemporariamente imobilizado o impede de agir sobre aquilo que v e torna ainda maisimportante tirar fotos. Mesmo que incompatvel com a interveno, num sentido fsico, usaruma cmera ainda uma forma de participao. Embora a cmera seja um posto de

  • observao, o ato de fotografar mais do que uma observao passiva. A exemplo dovoyeurismo sexual, um modo de, pelo menos tacitamente, e no raro explicitamente,estimular o que estiver acontecendo a continuar a acontecer. Tirar uma foto ter um interessepelas coisas como elas so, pela permanncia do status quo (pelo menos enquanto fornecessrio para tirar uma boa foto), estar em cumplicidade com o que quer que torne umtema interessante e digno de se fotografar at mesmo, quando for esse o foco de interesse,com a dor e a desgraa de outra pessoa.

    Sempre pensei em fotografia como uma maldade e esse era um de seus pontosprediletos, para mim, escreveu Diane Arbus, e quando fotografei pela primeira vez, me sentimuito perversa. Ser um fotgrafo profissional pode ser encarado como algo maldoso, parausar o termo de Darbus, se o fotgrafo procura temas considerados indecorosos, tabus,marginais. Mas temas maldosos so mais difceis de encontrar hoje em dia. E o que vem a ser,exatamente, o aspecto perverso de tirar fotos? Se os fotgrafos profissionais tm, muitasvezes, fantasias sexuais quando esto atrs da cmera, talvez a perverso resida no fato de queessas fantasias sejam, ao mesmo tempo, plausveis e muito imprprias. Em Blow up (Depoisdaquele beijo)(1966), Antonioni leva um fotgrafo de moda a rondar convulsivamente emtorno do corpo de Veruchca, com a cmera a clicar. Maldade, de fato! Com efeito, usar umacmera no um modo muito bom de aproximar-se sexualmente de algum. Entre o fotgrafo eseu tema, tem de haver distncia. A cmera no estupra, nem mesmo possui, embora possaatrever-se, intrometer-se, atravessar, distorcer, explorar e, no extremo da metfora, assassinar todas essas atividades que, diferentemente do sexo propriamente dito, podem ser levadas aefeito distncia e com certa indiferena.

    Existe uma fantasia sexual muito mais forte no extraordinrio filme de Michael Powellintitulado A tortura do medo (1960), que no trata de um voyeur, como o ttulo sugere, mas deum psicopata que mata mulheres com uma arma oculta em sua cmera, enquanto as fotografa.Ele no encosta nem uma vez em seus temas. No deseja seus corpos; quer a presena delas naforma de imagens em filme as imagens que as mostram experimentando a prpria morte ,que ele projeta numa tela, em casa, para seu prazer solitrio. O filme supe uma ligao entreimpotncia e agresso, entre o olhar profissionalizado e a crueldade, que aponta para afantasia central, ligada cmera. A cmera como falo , no mximo, uma dbil variante dametfora inevitvel que todos empregam de modo desinibido. Por mais que seja nebulosanossa conscincia dessa fantasia, ela mencionada sem sutileza toda vez que falamos emcarregar e mirar a cmera, em disparar a foto.

    A cmera de modelo antigo era mais difcil e mais complicada de recarregar do que ummosquete Bess. A cmera moderna tenta ser uma arma de raios. Diz um anncio:

    A Yashica Electro-35 gt a cmera da era espacial que sua famlia vai adorar. Tira fotos lindas, de dia ou de noite.Automaticamente. Sem nenhuma complicao. s mirar, focalizar e disparar. O crebro eletrnico da gt e seuobturador eletrnico faro o resto.

    Tal qual um carro, uma cmera vendida como arma predatria o mais automatizadapossvel, pronta para disparar. O gosto popular espera uma tecnologia fcil e invisvel. Osfabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos no requer nenhuma habilidade ou

  • conhecimento especializado, que a mquina j sabe tudo e obedece mais leve presso davontade. to simples como virar a chave de ignio ou puxar o gatilho.

    Como armas e carros, as cmeras so mquinas de fantasia cujo uso viciante. Porm,apesar das extravagncias da linguagem comum e da publicidade, no so letais. Na hiprboleque vende carros como se fossem armas, existe pelo menos esta parcela de verdade: excetoem tempo de guerra, os carros matam mais pessoas do que as armas. A cmera/arma no mata,portanto a metfora agourenta parece no passar de um blefe como a fantasia masculina deter uma arma, uma faca ou uma ferramenta entre as pernas. Ainda assim, existe algo predatriono ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas viol-las, ao v-las como elas nunca se veem,ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos quepodem ser simbolicamente possudos. Assim como a cmera uma sublimao da arma,fotografar algum um assassinato sublimado um assassinato brando, adequado a umapoca triste e assustada.

    No fim, as pessoas talvez aprendam a encenar suas agresses mais com cmeras do quecom armas, porm o preo disso ser um mundo ainda mais afogado em imagens. Um caso emque as pessoas esto mudando de balas para filmes o safri fotogrfico, que est tomando olugar do safri na frica oriental. Os caadores levam Hasselblads em vez de Winchesters;em vez de olhar por uma mira telescpica a fim de apontar um rifle, olham atravs de um visorpara enquadrar uma foto. Na Londres do final do sculo xix, Samuel Butler se queixava de quehavia um fotgrafo em cada arbusto, rondando como um leo feroz, em busca de algum quepossa devorar. O fotgrafo, agora, ataca feras reais, sitiadas e raras demais para seremmortas. As armas se metamorfosearam em cmeras nessa comdia sria, o safri ecolgico,porque a natureza deixou de ser o que sempre fora algo de que as pessoas precisavam seproteger. Agora, a natureza domesticada, ameaada, mortal precisa ser protegida daspessoas. Quando temos medo, atiramos, mas quando ficamos nostlgicos, tiramos fotos.

    A poca atual de nostalgia, e os fotgrafos fomentam, ativamente, a nostalgia. A fotografia uma arte elegaca, uma arte crepuscular. A maioria dos temas fotografados tem, justamenteem virtude de serem fotografados, um toque de pthos. Um tema feio ou grotesco pode sercomovente porque foi honrado pela ateno do fotgrafo. Um tema belo pode ser objeto desentimentos pesarosos porque envelheceu ou decaiu ou no existe mais. Todas as fotos somemento mori. Tirar uma foto participar da mortalidade, da vulnerabilidade e damutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento econgel-la, toda foto testemunha a dissoluo implacvel do tempo.

    As cmeras comearam a duplicar o mundo no momento em que a paisagem humana passoua experimentar um ritmo vertiginoso de transformao: enquanto uma quantidade incalculvelde formas de vida biolgicas e sociais destruda em um curto espao de tempo, um aparelhose torna acessvel para registrar aquilo que est desaparecendo. A melanclica Paris, detextura intricada, de Atget e Brassai, desapareceu em sua maior parte. A exemplo dos parentese amigos mortos, preservados no lbum de famlia, cuja presena em fotos exorciza uma parteda angstia e do remorso inspirados por seu desaparecimento, as fotos dos arrabaldes agoradevastados, das regies rurais desfiguradas e arrasadas, suprem nossa relao porttil com opassado.

    Uma foto tanto uma pseudopresena quanto uma prova de ausncia. Como o fogo dalareira num quarto, as fotos sobretudo as de pessoas, de paisagens distantes e de cidades

  • remotas, do passado desaparecido so estmulos para o sonho. O sentido do inatingvel quepode ser evocado por fotos alimenta, de forma direta, sentimentos erticos nas pessoas paraquem a desejabilidade intensificada pela distncia. A foto do amante escondida na carteirade uma mulher casada, o cartaz de um astro do rock pregado acima da cama de umadolescente, o broche de campanha, com o rosto de um poltico, pregado ao palet de umeleitor, as fotos dos filhos de um motorista de txi coladas no painel do carro todos essesusos talismnicos das fotos exprimem uma emoo sentimental e um sentimento implicitamentemgico: so tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade.

    As fotos podem incitar o desejo da maneira mais direta e utilitria como quando umapessoa coleciona fotos de exemplos annimos do desejvel com o fim de ajudar amasturbao. O assunto mais complexo quando as fotos so usadas para estimular o impulsomoral. O desejo no tem histria pelo menos ele experimentado, em cada momento, comoalgo totalmente em primeiro plano, imediato. suscitado por meio de arqutipos e , nessesentido, abstrato. Mas os sentimentos morais esto embutidos na histria, cujos personagensso concretos, cujas situaes so sempre especficas. Assim, regras quase opostas sovlidas quando se trata do emprego das fotos para despertar o desejo e para despertar aconscincia. As imagens que mobilizam a conscincia esto sempre ligadas a determinadasituao histrica. Quanto mais genricas forem, menor a probabilidade de serem eficazes.

    Uma foto que traz notcias de uma insuspeitada regio de misria no pode deixar marca naopinio pblica, a menos que exista um contexto apropriado de sentimento e de atitude. Asfotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha nodiminuram em nada o entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil. As fotos deprisioneiros esquelticos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opinio pblica dosnortistas contra o Sul. (O efeito das fotos de Andersonville talvez se deva, em parte, prpria novidade que era, na poca, ver fotos.) A compreenso poltica a que muitosamericanos haviam chegado na dcada de 1960 lhes permitiu, ao olhar para as fotos, tiradaspor Dorothea Lange, de descendentes de japoneses sendo transportados para campos deprisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942, reconhecer qual era de fato o temadas fotos um crime cometido pelo governo contra um grupo numeroso de cidadosamericanos. Poucas pessoas que viram essas fotos na dcada de 1940 poderiam ter umareao to inequvoca; o espao para tal julgamento estava ocupado pelo consenso a favor daguerra. Fotos no podem criar uma posio moral, mas podem refor-la e podem ajudar adesenvolver uma posio moral ainda embrionria.

    Fotos podem ser mais memorveis do que imagens em movimento porque so uma ntidafatia do tempo, e no um fluxo. A televiso um fluxo de imagens pouco selecionadas, em quecada imagem cancela a precedente. Cada foto um momento privilegiado, convertido em umobjeto diminuto que as pessoas podem guardar e olhar outras vezes. Fotos como a que estevena primeira pgina de muitos jornais do mundo em 1972 uma criana sul-vietnamita nua,que acabara de ser atingida por napalm americano, correndo por uma estrada na direo dacmera, de braos abertos, gritando de dor provavelmente contriburam mais para aumentaro repdio pblico contra a guerra do que cem horas de barbaridades exibidas pela televiso.

    Seria bom imaginar que o pblico americano no teria se mostrado to unnime em seuapoio Guerra da Coreia se tivesse deparado com provas fotogrficas da devastao da

  • Coreia, um ecocdio e um genocdio, em certos aspectos, ainda mais completo do que oinfligido ao Vietn uma dcada depois. Mas a suposio irrelevante. O pblico no viu taisfotos porque no havia, ideologicamente, espao para elas. Ningum trouxe para sua terranatal fotos da vida cotidiana em Pionguiang, para mostrar que o inimigo tinha um rostohumano, a exemplo das fotos que Felix Greene e Marc Riboud trouxeram de Hani. Osamericanos tiveram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham defontes militares e foram tiradas com intuitos bem diferentes) porque os jornalistas sentiam-serespaldados em seus esforos para obter tais fotos, visto que o evento fora definido por umnmero significativo de pessoas como uma feroz guerra colonialista. A Guerra da Coreia foientendida de outra forma como parte da justa luta do Mundo Livre contra a Unio Soviticae a China , e, admitida essa caracterizao, as fotos da crueldade do ilimitado poder defogo americano no seriam pertinentes.

    Embora um evento tenha passado a significar, exatamente, algo digno de se fotografar, ainda a ideologia (no sentido mais amplo) que determina o que constitui um evento. No podeexistir nenhuma prova, fotogrfica ou de outro tipo, de um evento antes que o prprio eventotenha sido designado e caracterizado como tal. E jamais a prova fotogrfica que podeconstruir mais exatamente, identificar os eventos; a contribuio da fotografia semprevem aps a designao de um evento. O que determina a possibilidade de ser moralmenteafetado por fotos a existncia de uma conscincia poltica apropriada. Sem uma visopoltica, as fotos do matadouro da histria sero, muito provavelmente, experimentadasapenas como irreais ou como um choque emocional desorientador.

    A natureza do sentimento, at de ofensa moral, que as pessoas podem manifestar em reaoa fotos dos oprimidos, dos explorados, dos famintos e dos massacrados depende tambm dograu de familiaridade que tenham com essas imagens. As fotos de Don McCullin dosbiafrenses magrrimos no incio da dcada de 1970 produziram menos impacto, para alguns,do que as fotos de Werner Bischof das vtimas indianas da fome no incio da dcada de 1950,porque estas imagens tornaram-se banais, e as fotos das famlias de tuaregues que morriam defome na frica subsaariana, publicadas em revistas de todo o mundo em 1973, devem terparecido, a muitos, uma reprise insuportvel de uma exibio de atrocidades agora j familiar.

    Fotos chocam na proporo em que mostram algo novo. Infelizmente, o custo disso no parade subir em parte, por conta da mera proliferao dessas imagens de horror. O primeirocontato de uma pessoa com o inventrio fotogrfico do horror supremo uma espcie derevelao, a revelao prototipicamente moderna: uma epifania negativa. Para mim, foram asfotos de Bergen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monicaem julho de 1945. Nada que tinha visto em fotos ou na vida real me ferira de forma tocontundente, to profunda, to instantnea. De fato, parece-me plausvel dividir minha vida emduas partes, antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos) e depois, embora isso tenhaocorrido muitos anos antes de eu compreender plenamente do que elas tratavam. Que bem mefez ver essas fotos? Eram apenas fotos de um evento do qual eu pouco ouvira falar e noqual eu no podia interferir, fotos de um sofrimento que eu mal conseguia imaginar e que euno podia aliviar de maneira alguma. Quando olhei para essas fotos, algo se partiu. Algumlimite foi atingido, e no s o do horror; senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas umaparte de meus sentimentos comeou a se retesar; algo morreu; algo ainda est chorando.

    Sofrer uma coisa; outra coisa viver com imagens fotogrficas do sofrimento, o que no

  • refora necessariamente a conscincia e a capacidade de ser compassivo. Tambm podecorromp-las. Depois de ver tais imagens, a pessoa tem aberto a sua frente o caminho para vermais e cada vez mais. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Um evento conhecidopor meio de fotos certamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse vistoas fotos pensem na Guerra do Vietn. (Para um contraexemplo, pensem no arquiplago deGulag, do qual no temos nenhuma foto.) Mas, aps uma repetida exposio a imagens, oevento tambm se torna menos real.

    A mesma lei vigora para o mal e para a fotografia. O choque das atrocidades fotografadasse desgasta com a exposio repetida, assim como a surpresa e o desnorteamento sentidos naprimeira vez em que se v um filme pornogrfico se desgastam depois que a pessoa v maisalguns. O sentimento de tabu que nos deixa indignados e pesarosos no muito mais vigorosodo que o sentimento de tabu que rege a definio do que obsceno. E ambos tm sidoexperimentados de forma dolorosa em anos recentes. O vasto catlogo fotogrfico da desgraae da injustia em todo o mundo deu a todos certa familiaridade com a atrocidade, levando ohorrvel a parecer mais comum levando-o a parecer familiar, distante ( s uma foto),inevitvel. Na poca das primeiras fotos dos campos nazistas, nada havia de banal nessasimagens. Aps trinta anos, talvez tenhamos chegado a um ponto de saturao. Nas ltimasdcadas, a fotografia consciente fez, no mnimo, tanto para amortecer a conscincia quantofez para despert-la.

    O contedo tico das fotos frgil. Com a possvel exceo das fotos daqueles horrores,como os campos nazistas, que adquiriram a condio de pontos de referncia ticos, a maioriadas fotos no conserva sua carga emocional. Uma foto de 1900 que, na poca, produziu umgrande efeito por causa de seu tema, hoje, provavelmente, nos comoveria por ser uma fototirada em 1900. Os atributos e os intuitos especficos das fotos tendem a ser engolidos pelopthos generalizado do tempo pretrito. A distncia esttica parece inserir-se na prpriaexperincia de olhar fotos, quando no de forma imediata, certamente com o correr do tempo.No fim, o tempo termina por situar a maioria das fotos, mesmo as mais amadoras, no nvel daarte.

    A industrializao da fotografia permitiu sua rpida absoro pelos meios racionais ouseja, burocrticos de gerir a sociedade. As fotos, no mais imagens de brinquedo,tornaram-se parte do mobilirio geral do ambiente pedras de toque e confirmaes daredutora abordagem da realidade que tida por realista. As fotos foram arroladas a servio deimportantes instituies de controle, em especial a famlia e a polcia, como objetossimblicos e como fontes de informao. Assim, na catalogao burocrtica do mundo, muitosdocumentos importantes no so vlidos a menos que tenham, colada a eles, uma fotocomprobatria do rosto do cidado.

    A viso realista do mundo compatvel com a burocracia redefine o conhecimento como tcnica e informao. As fotos so apreciadas porque do informaes. Dizem o queexiste; fazem um inventrio. Para os espies, os meteorologistas, os mdicos-legistas, osarquelogos e outros profissionais da informao, seu valor inestimvel. Mas, nas situaesem que a maioria das pessoas usa as fotos, seu valor como informao da mesma ordem queo da fico. A informao que as fotos podem dar comea a parecer muito importante naquelemomento da histria cultural em que todos se supem com direito a algo chamado notcia. As

  • fotos foram vistas como um modo de dar informaes a pessoas que no tm facilidade paraler. O Daily News ainda se denomina Jornal de Imagens de Nova York, sua maneira dealcanar uma identidade populista. No extremo oposto do espectro, Le Monde, um jornaldestinado a leitores preparados e bem informados, no publica foto nenhuma. A suposio que, para tais leitores, uma foto poderia apenas ilustrar a anlise contida em uma matria.

    Um novo significado da ideia de informao construiu-se em torno da imagem fotogrfica.A foto uma fina fatia de espao bem como de tempo. Num mundo regido por imagensfotogrficas, todas as margens (enquadramento) parecem arbitrrias. Tudo pode serseparado, pode ser desconexo, de qualquer coisa: basta enquadrar o tema de um mododiverso. (Inversamente, tudo pode ser adjacente a qualquer coisa.) A fotografia refora umaviso nominalista da realidade social como constituda de unidades pequenas, em nmeroaparentemente infinito assim como o nmero de fotos que podem ser tiradas de qualquercoisa ilimitado. Por meio de fotos, o mundo se torna uma srie de partculas independentes,avulsas; e a histria, passada e presente, se torna um conjunto de anedotas e de faits divers. Acmera torna a realidade atmica, manipulvel e opaca. uma viso do mundo que nega ainter-relao, a continuidade, mas confere a cada momento o carter de mistrio. Toda fototem mltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto enfrentar um objetopotencial de fascnio. A sabedoria suprema da imagem fotogrfica dizer: A est asuperfcie. Agora, imagine ou, antes, sinta, intua o que est alm, o que deve ser arealidade, se ela tem este aspecto. Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, soconvites inesgotveis deduo, especulao e fantasia.

    A fotografia d a entender que conhecemos o mundo se o aceitamos tal como a cmera oregistra. Mas isso o contrrio de compreender, que parte de no aceitar o mundo tal comoele aparenta ser. Toda possibilidade de compreenso est enraizada na capacidade de dizerno. Estritamente falando, nunca se compreende nada a partir de uma foto. claro, as fotospreenchem lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado: por exemplo, asimagens de Jacobs Riis da misria de Nova York na dcada de 1880 so extremamenteinstrutivas para quem no sabe que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fim do sculo xixera de fato dickensiana. Contudo, a representao da realidade pela cmera deve sempreocultar mais do que revela. Como assinala Brecht, uma foto da fbrica Krupp no revela quasenada a respeito dessa organizao. Em contraste com a relao amorosa, que se baseia naaparncia, a compreenso se baseia no funcionamento. E o funcionamento se d no tempo edeve ser explicado no tempo. S o que narra pode levar-nos a compreender.

    O limite do conhecimento fotogrfico do mundo que, conquanto possa incitar aconscincia, jamais conseguir ser um conhecimento tico ou poltico. O conhecimentoadquirido por meio de fotos ser sempre um tipo de sentimentalismo, seja ele cnico ouhumanista. H de ser um conhecimento barateado uma aparncia de conhecimento, umaaparncia de sabedoria; assim como o ato de tirar fotos uma aparncia de apropriao, umaaparncia de estupro. A prpria mudez do que seria, hipoteticamente, compreensvel nas fotos o que constitui seu carter atraente e provocador. A onipresena das fotos produz um efeitoincalculvel em nossa sensibilidade tica. Ao munir este mundo, j abarrotado, de umaduplicata do mundo feita de imagens, a fotografia nos faz sentir que o mundo mais acessveldo que na realidade.

    A necessidade de confirmar a realidade e de realar a experincia por meio de fotos um

  • consumismo esttico em que todos, hoje, esto viciados. As sociedades industriaistransformam seus cidados em dependentes de imagens; a mais irresistvel forma depoluio mental. Um pungente anseio de beleza, de um propsito para sondar abaixo dasuperfcie, de uma redeno e celebrao do corpo do mundo todos esses elementos dosentimento ertico so afirmados no prazer que temos com as fotos. Mas outros sentimentos,menos liberadores, tambm se expressam. No seria errado falar de pessoas que tm umacompulso de fotografar: transformar a experincia em si num modo de ver. Por fim, ter umaexperincia se torna idntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento pblico tende,cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada. Mallarm, o mais lgicodos estetas do sculo xix, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudoexiste para terminar numa foto.

  • ESTADOS UNIDOS,VISTO EM FOTOS, DE UM

    NGULO SOMBRIO

  • Quando Walt Whitman contemplava o panorama democrtico da cultura, tentava enxergaralm da diferena entre beleza e feiura, importncia e trivialidade. Parecia-lhe servil ouesnobe fazer qualquer discriminao de valor, exceto as mais generosas. O nosso mais audaz edelirante profeta da revoluo cultural estabeleceu srias exigncias de honestidade. Ningumse incomodaria com a beleza e com a feiura, sugeriu ele, se aceitasse um abraosuficientemente amplo do real, da inclusividade e da vitalidade da verdadeira experinciaamericana. Todos os fatos, mesmo os mesquinhos, so incandescentes nos Estados Unidos deWhitman esse espao ideal, tornado real por fora da histria, onde os fatos, ao emitirema si mesmos, so regados com luz.

    A Grande Revoluo Cultural Americana anunciada no prefcio da primeira edio deFolhas das folhas de relva (1855) no se cumpriu, o que frustrou muitos mas no surpreendeuningum. Um grande poeta no pode, sozinho, mudar o clima moral; mesmo quando o poetatem milhes de Guardas Vermelhos a seu dispor, isso ainda no fcil. Como qualquer profetade uma revoluo cultural, Whitman pensava discernir que a arte j fora superada, edesmistificada, pela realidade. Os prprios Estados Unidos so, em essncia, o maiorpoema. Mas quando nenhuma revoluo cultural ocorria e o maior dos poemas parecia menorem tempos de Imprio do que parecera sob a Repblica, s outros artistas levaram a srio oprograma de Whitman de transcendncia populista, de uma reavaliao democrtica da belezae da feiura, da importncia e da trivialidade. Longe de terem sido desmistificadas pelarealidade, as artes americanas em especial, a fotografia aspiravam, agora, a levar aefeito a desmistificao.

    Nas primeiras dcadas da fotografia, esperava-se que as fotos fossem imagens idealizadas.Ainda esse o objetivo da maioria dos fotgrafos amadores, para quem uma bela foto umafoto de algo belo, como uma mulher, um pr do sol. Em 1915, Edward Steichen fotografouuma garrafa de leite na sada de emergncia de um prdio, um exemplo remoto de um conceitototalmente distinto do que uma foto bela. E desde a dcada de 1920, profissionaisambiciosos, aqueles cuja obra alcana os museus, afastaram-se resolutamente dos temaslricos, explorando de forma conscienciosa um material comum, vulgar ou mesmo inspido.Em dcadas recentes, a fotografia conseguiu, em certa medida, promover uma reviso, paratodos, das definies do que belo e do que feio na linha proposta por Whitman. Se (naspalavras de Whitman) todo objeto ou condio ou combinao ou processo exibe umabeleza, torna-se superficial privilegiar certas coisas como belas e outras no. Se tudo o queuma pessoa faz ou pensa relevante, torna-se arbitrrio tratar alguns momentos da vida comoimportantes e a maioria como triviais.

    Fotografar atribuir importncia. Provavelmente no existe tema que no possa serembelezado; alm disso, no h como suprimir a tendncia, inerente a todas as fotos, de

  • conferir valor a seus temas. O significado do prprio valor pode ser alterado como temocorrido na cultura contempornea da imagem fotogrfica, que uma pardia do evangelho deWhitman. Nos palacetes da cultura pr-democrtica, uma pessoa fotografada umacelebridade. Nos campos abertos da experincia americana, como Whitman a catalogou comentusiasmo, e como Warhol a avaliou com pouco-caso, todo mundo uma celebridade.Nenhum momento mais importante do que outro, ningum mais interessante do quequalquer outra pessoa.

    A epgrafe de um livro de fotos de Walker Evans, publicado pelo Museu de Arte Moderna, um trecho de Whitman que parece o tema da mais prestigiosa aspirao da fotografiaamericana:

    No tenho dvida de que a majestade e a beleza do mundo esto latentes em qualquer migalha do mundo [...]. No tenhodvida de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anes, em ervas,no refugo e na escria do que eu supunha.

    Whitman no pensava estar abolindo a beleza, mas generalizando-a. Assim fez, durante vriasgeraes, a maioria dos fotgrafos americanos em sua polmica busca do trivial e do vulgar.Mas, entre os fotgrafos americanos que amadureceram a partir da Segunda Guerra Mundial, oditame whitmaniano de registrar, em sua integridade, a extravagante franqueza da verdadeiraexperincia americana gorou. Ao fotografar anes, no se obtm majestade e beleza. Obtm-seanes.

    A partir das imagens reproduzidas e consagradas na luxuosa revista Camera Work, queAlfred Stieglitz publicou entre 1903 e 1917, e expostas na galeria por ele dirigida, em NovaYork, entre 1905 e 1917, no nmero 291 da Quinta Avenida (primeiro chamada de LittleGallery of the Photo-Secession e depois, apenas de 291) revista e galeria queconstituram o frum mais ambicioso dos juzos whitmanianos , a fotografia americanapassou da afirmao para a eroso e, por fim, para uma pardia do programa de Whitman.Nessa histria, a figura mais edificante Walker Evans. Foi o ltimo grande fotgrafo atrabalhar de forma sria e confiante num estado de nimo derivado do humanismo eufrico deWhitman, recapitulando o que ocorrera antes (por exemplo, as espantosas fotos de imigrantese de trabalhadores tiradas por Lewis Hine), antecipando boa parte da fotografia mais fria,mais rude, mais seca, feita a partir da como na prenunciadora srie de fotos secretas depassageiros annimos do metr de Nova York, tiradas por Evans com uma cmera oculta entre1939 e 1941. Mas Evans rompeu com o estilo heroico em que a viso whitmaniana foradivulgada por Stieglitz e seus discpulos, que desdenhavam Hine. Evans julgava rebuscado otrabalho de Stieglitz.

    Como Whitman, Stieglitz no via contradio entre fazer da arte um instrumento deidentificao com a comunidade e engrandecer o artista como um ego heroico, romntico eautoexpressivo. Em seu rebuscado e esplndido livro de ensaios Port of New York (1924),Paul Rosenfeld aclamou Stieglitz como um dos grandes afirmadores da vida. No existe, emtodo o mundo, nenhum tema to tosco, banal e humilde que esse homem da caixa preta e dobanho qumico no consiga utilizar para expressar-se por inteiro. Fotografar, e porconseguinte redimir o tosco, o banal e o humilde, tambm um modo engenhoso de expressoindividual. O fotgrafo, escreve Rosenfeld a respeito de Stieglitz, lanou a rede do artistasobre o mundo material com mais largueza do que qualquer outro homem, antes ou junto dele.

  • A fotografia um tipo de hiprbole, uma cpula heroica com o mundo material. A exemplo deHine, Evans buscava um tipo mais impessoal de afirmao, uma reticncia nobre, um lcidosubentendido. Nem nas impessoais naturezas-mortas arquitetnicas das fachadas americanas enos inventrios de cmodos que ele adorava fazer, nem nos retratos rigorosos de meeirossulistas que ele tirou no final na dcada de 1930 (publicados no livro feito com James Agee,Let us now praise famous men [Agora vamos louvar homens famosos]) Evans tentavaexpressar a si mesmo.

    Mesmo sem a inflexo heroica, o projeto de Evans ainda descende do de Whitman: onivelamento das discriminaes entre o belo e o feio, entre o importante e o trivial. Cadacoisa ou pessoa fotografada se torna uma foto; e se torna, portanto, moralmente equivalentea qualquer outra de suas fotos. A c- mera de Evans ressaltava, no exterior das casasvitorianas de Boston no incio da dcada de 1930, a mesma beleza formal que ressaltava nosarmazns das ruas centrais de cidades do Alabama, em 1936. Mas esse era um nivelamentopor cima, e no por baixo. Evans queria que suas fotos fossem cultas, abalizadas,transcendentes. Como o universo moral da dcada de 1930 no mais o nosso, tais adjetivosso, hoje, muito pouco confiveis. Ningum exige que a fotografia seja culta. Ningumconsegue imaginar como ela poderia ser abalizada. Ningum compreende como qualquercoisa, muito menos uma foto, poderia ser transcendente.

    Whitman preconizava a empatia, a concrdia na discrdia, a unidade na diversidade. Ointercurso psquico com tudo e com todos e mais a unio sensual (quando ele a conseguia) a grande viagem explicitamente proposta, vezes sem conta, nos prefcios e nos poemas.Essa nsia de seduzir o mundo inteiro tambm determinou o tom e a forma de sua poesia. Ospoemas de Whitman so uma tecnologia psquica para encantar o leitor e lev-lo a um novomodo de ser (um microcosmo da nova ordem conjeturada para a sociedade); eles sofuncionais, como mantras maneiras de transmitir cargas de energia. A repetio, a cadnciabombstica, os versos encadeados e a dico atrevida constituem um mpeto de inspiraosecular, destinado a erguer fisicamente os leitores no ar, impeli-los para aquela altura ondeso capazes de se identificar com o passado e com a comunidade do desejo americano. Masessa mensagem de identificao com outros americanos , hoje, estranha ao nossotemperamento.

    O ltimo suspiro do abrao ertico whitmaniano nao, mas universalizado e despido detodas as exigncias, foi ouvido em The Family of Man [A famlia do homem], exposioorganizada em 1955 por Edward Steichen, contemporneo de Stieglitz e cofundador da galeriaPhoto-Secession. Quinhentas e trs fotos de 273 fotgrafos de 68 pases deveriam convergir a fim de provar que a humanidade una e que os seres humanos, a despeito de todas assuas falhas e vilanias, so criaturas atraentes. As pessoas nas fotos eram de todas as raas,idades, classes, tipos fsicos. Muitas tinham corpos excepcionalmente belos; algumas tinhamrostos belos. Assim como Whitman exortava os leitores de seus poemas a identificar-se comele e com os Estados Unidos, Steichen organizou a exposio de modo a permitir que cadaespectador se identificasse com muitos dos povos retratados e, potencialmente, com o tema detodas as fotos: cidados da Fotografia Mundial, todos.

    A fotografia s voltou a atrair ao Museu de Arte Moderna multides semelhantes quelasdezessete anos depois, para a retrospectiva da obra de Diane Arbus, em 1972. Na exposio

  • de Arbus, 112 fotos tiradas por uma s pessoa, e todas semelhantes ou seja, todas aspessoas nas fotos tm (de certo modo) a mesma aparncia , impunham um sentimentoexatamente oposto ao afeto tranquilizador do material apresentado por Steichen. Em vez depessoas cuja aparncia agradava, gente representativa a cumprir seus honrados afazereshumanos, a exposio de Arbus perfilava monstros seletos e casos extremos na maioria,feios; com roupas grotescas ou degradantes; em ambientes desoladores ou ridos que sehaviam detido para posar e, muitas vezes, para olhar com franqueza, com segurana, para oespectador. A obra de Arbus no solicita aos espectadores que se identifiquem com os priase pessoas de aspecto miservel que ela fotografou. A humanidade no una.

    As fotos de Arbus transmitem a mensagem anti-humanista cujo impacto perturbador aspessoas de boa vontade, na dcada de 1970, queriam avidamente sentir, do mesmo modocomo, na dcada de 1950, desejavam ser consoladas e distradas por um humanismosentimental. No h entre essas mensagens tanta diferena como se poderia imaginar. Aexposio de Steichen voltou-se para cima, e a de Arbus para baixo, mas as duas experinciasservem igualmente para impedir a compreenso histrica da realidade.

    A seleo de fotos de Steichen supe uma condio humana, ou uma natureza humana,partilhada por todos. Ao proclamar a inteno de mostrar que os indivduos, em toda parte,nascem, trabalham, riem e morrem do mesmo modo, The Family of Man nega o pesodeterminante da histria das diferenas, das injustias e dos conflitos genunos,historicamente enraizados. As fotos de Arbus solapam a poltica de um modo igualmentedecisivo, ao sugerir um mundo em que todos so forasteiros, inapelavelmente isolados,imobilizados em identidades e relacionamentos mecnicos e estropiados. A elevao piedosada antologia fotogrfica de Steichen e o frio abatimento da retrospectiva de Arbus tornamirrelevantes a histria e a poltica. Um o faz ao universalizar a condio humana, na alegria; ooutro, ao atomiz-la, no horror.

    O aspecto mais impressionante da obra de Arbus que ela parece ter se engajado em umadas mais vigorosas empreitadas da arte fotogrfica concentrar-se nas vtimas, nosdesgraados , mas sem servir ao propsito compassivo que se espera de tal projeto. Suaobra mostra pessoas patticas, lamentveis, bem como repulsivas, mas no desperta nenhumsentimento de compaixo. Mediante o que se poderia definir mais corretamente como seuponto de vista dissociado, as fotos foram elogiadas por sua franqueza e por uma empatia nosentimental com seus temas. Aquilo que constitui de fato sua agressividade contra o pblicofoi tratado como uma proeza moral: as fotos no permitem que o espectador se mantenhadistante do tema. De modo mais plausvel, as fotos de Arbus com sua aceitao do horrvel sugerem uma ingenuidade que , ao mesmo tempo, tmida e sinistra, pois se baseia nadistncia, no privilgio, num sentimento de que aquilo que o espectador solicitado a ver defato outro. Buuel, quando indagado, certa feita, sobre o motivo por que fazia filmes,respondeu que era para mostrar que este no o melhor dos mundos possveis. Arbus tiroufotos para mostrar algo mais simples que existe outro mundo.

    O outro mundo deve ser encontrado, como de costume, dentro deste. Confessadamenteinteressada em fotografar apenas gente que parecia estranha, Arbus encontrou um vastomaterial perto de casa. Nova York, com seus bailes de travestis e seus hotis mantidos pelaprevidncia social, abundava de tipos bizarros. Houve tambm um carnaval em Maryland,onde Arbus encontrou um porco-espinho humano, um hermafrodita com um co, um homem

  • tatuado e um albino engolidor de espadas; campos de nudismo em Nova Jersey e naPensilvnia; a Disneylndia e um cenrio de Hollywood, em razo de suas paisagens mortasou simuladas, sem gente; e o hospital de doentes mentais no identificado onde ela tiroualgumas de suas ltimas e mais perturbadoras fotos. E havia sempre a vida cotidiana, com seuinterminvel suprimento de aberraes se a pessoa tiver um bom olho para v-las. Acmera tem o poder de captar as chamadas pessoas normais de tal modo que pareamanormais. A fotgrafa escolhe a estranheza, a persegue, a enquadra, a revela, a intitula.

    Voc v uma pessoa na rua, escreveu Arbus, e, essencialmente, o que percebe nelas odefeito. A persistente mesmice da obra de Arbus, por mais distante que a fotgrafa secoloque em relao a seus temas prototpicos, mostra que a sensibilidade dela, armada de umacmera, era capaz de insinuar angstia, perverso e doena mental em qualquer tema. Duasfotos so de bebs que choram; os bebs parecem perturbados, loucos. Parecer ou ter algo emcomum com outra pessoa uma fonte recorrente do assustador, segundo as normascaractersticas do modo dissociado de ver de Arbus. Podem ser as duas meninas (no irms)que vestem capas de chuva idnticas, a quem Arbus fotografou juntas no Central Park; ou osgmeos ou trigmeos que aparecem em vrias fotos. Muitas fotos apontam, com um espantoopressivo, para o fato de que duas pessoas formam um casal; e todo casal um casal estranho:homossexual ou no, negro ou branco, num lar de idosos ou num colgio de adolescentes. Aspessoas pareciam excntricas porque no vestiam roupas, como os nudistas; ou porquevestiam, como a garonete no campo de nudismo que usava um avental. Todos que Arbusfotografava eram bizarros um menino espera da hora de marchar num desfile em favor daguerra, com seu chapeuzinho de palha e seu broche que diz Bombardeiem Hani; o rei e arainha de um baile de idosos aposentados; um casal suburbano, na casa dos trinta anos,refestelado em suas cadeiras sobre o gramado; uma viva sentada sozinha em seu quarto emdesordem. Em Gigante judeu em casa com os pais no Bronx, Nova York, 1970, os paisparecem anes, de estatura to anmala quanto o enorme filho arqueado acima deles, sob oteto baixo da sala de estar.

    A autoridade das fotos de Arbus deriva do contraste entre o material de seu temadilacerante e sua ateno serena e trivial. Essa faculdade de ateno a ateno prestadapela fotgrafa, a ateno prestada pelo tema ao ato de ser fotografado cria o teatro moraldos retratos contemplativos e isentos de Arbus. Longe de espionar tipos bizarros e prias, eapanh-los desprevenidos, a fotgrafa teve de conhec-los, tranquiliz-los de modo queposassem para ela de forma to serena e imvel quanto qualquer figuro vitoriano num retratode estdio de Julia Margaret Cameron. Grande parte do mistrio das fotos de Arbus repousanaquilo que elas sugerem sobre como seus temas se sentiam aps aceitar ser fotografados.Ser que se viam desse jeito, pergunta-se o espectador. Ser que sabiam como eramgrotescos? Parece que no.

    O tema das fotos de Arbus , para tomar emprestado o rtulo hegeliano, a conscinciainfeliz. Mas a maioria dos personagens do grand-guignol de Arbus parece ignorar que feia.Arbus fotografa pessoas em vrios graus de relao inconsciente ou desatenta com a prpriador, com a prpria feiura. Isso limita forosamente o tipo de horror que Arbus era impelida afotografar: exclui sofredores que, supostamente, sabem estar sofrendo, como as vtimas deacidentes, de guerras, de fome e de perseguio poltica. Arbus jamais tiraria fotos deacidentes, eventos que interrompem bruscamente a vida; ela se especializou em desastres

  • privados em cmera lenta, que, na maioria dos casos, j vinham ocorrendo desde o nascimentodo personagem da foto.

    Embora a maior parte dos espectadores esteja pronta a imaginar que essas pessoas, oscidados do submundo sexual, bem como as anomalias genticas, so infelizes, poucas fotosmostram, de fato, qualquer infortnio emocional. As fotos de tipos desviantes e de autnticasanomalias no enfatizam sua dor, mas, antes, seu alheamento e sua autonomia. Os travestis emseus camarins, o ano mexicano em seu quarto de hotel em Manhattan, os baixotinhos russosnuma sala de estar na 100th Street e seus semelhantes so apresentados, na maioria dos casos,como alegres, conformados, triviais. A dor mais perceptvel em retratos de pessoas normais:o casal de idosos que discute num banco de parque, uma senhora que trabalha de garonete emNova Orleans fotografada em sua casa com um cozinho de suvenir, o menino no Central Parkque segura entre os dedos sua granada de brinquedo.

    Brassa denunciou os fotgrafos que tentam capturar seus temas desprevenidos, na crenaequivocada de que, assim, algo especial a respeito deles seria revelado.* No mundocolonizado por Arbus, os temas esto sempre revelando a si mesmos. No h nenhum momentodecisivo. A ideia de Arbus de que a autorrevelao um processo contnuo, distribudo comuniformidade, constitui outro modo de preservar o imperativo whitmaniano: trate todos osmomentos como se tivessem a mesma importncia. A exemplo de Brassa, Arbus queria queseus temas estivessem o mais conscientes possvel, cnscios do ato de que participavam. Emvez de tentar persuadir seus temas a se pr numa atitude natural ou tpica, ela os incentivava aficar constrangidos ou seja, a posar. (Portanto, a revelao da personalidade identifica-secom o que estranho, excntrico, disforme.) Ficar de p ou rigidamente sentado faz com queeles paream imagens de si mesmos.

    A maioria das fotos de Arbus tem temas que olham de frente para a cmera. Isso, no raro,os faz parecer mais estranhos ainda, quase enlouquecidos. Compare a foto de 1912, tirada porLartigue, de uma mulher de chapu de plumas e vu (Corrida de cavalos em Nice) com a fotode Arbus intitulada Mulher com vu na Quinta Avenida, Nova York, 1968. Alm dacaracterstica feiura do tema de Arbus (o tema de Lartigue belo, de forma igualmentecaracterstica), o que torna estranha a mulher na foto de Arbus a atrevida desinibio de suapose. Se a mulher de Lartigue olhasse para trs, talvez parecesse quase igualmente estranha.

    Na retrica normal do retrato fotogrfico, encarar a cmera significa solenidade, franqueza,o descerramento da essncia do tema. por isso que a frontalidade parece correta no caso defotos de cerimnias (como casamentos, formaturas), mas menos adequada para fotos usadaspara divulgar candidatos polticos. (Para os polticos, o olhar num vis de trs-quartos maiscomum: um olhar que plana em vez de confrontar, sugerindo ao espectador, em lugar darelao com o presente, uma relao mais abstrata e enobrecedora com o futuro.) O que tornato impressionante o emprego da pose frontal em Arbus que seus temas so, no raro,pessoas que no esperaramos que se oferecessem to gentilmente e to ingenuamente para acmera. Assim, nas fotos de Arbus, a frontalidade tambm subentende, da forma mais ntida, acooperao do tema. A fim de levar essas pessoas a posar, a fotgrafa teve de ganhar-lhes aconfiana, teve de tornar-se amiga deles.

    Talvez a cena mais aterradora no filme Freaks [Anomalias] (1932), de Tod Browning, sejao banquete de casamento, quando retardados, mulheres barbadas, gmeos siameses e homens-tronco danam e cantam sua aceitao da Clepatra repulsivamente normal, que acabou de

  • casar-se com o ingnuo heri ano. Um de ns! Um de ns! Um de ns!, entoam elesenquanto uma grande taa passa de boca em boca ao longo da mesa, para ser enfim oferecida noiva, enojada, por um ano exuberante. Arbus tinha, talvez, uma viso demasiado simples doencanto, da hipocrisia e do desconforto de confraternizar com as anomalias. Em seguida aoentusiasmo da descoberta, havia a emoo de ter ganhado a confiana deles, de no sentirmedo deles, de haver dominado a prpria averso. Fotografar anomalias produzia em mimuma euforia tremenda, explicou Arbus. Eu simplesmente os adorava.

    As fotos de Diane Arbus j eram famosas entre as pessoas que acompanhavam a fotografiaquando ela se matou, em 1971; mas, a exemplo de Sylvia Plath, a ateno que sua obra atraiudesde sua morte de outra ordem uma espcie de apoteose. O fato de ela ter se suicidadoparece assegurar que sua obra sincera, e no voyeurstica, que compassiva, e no fria. Seusuicdio tambm parece tornar as fotos mais devastadoras, como se provasse que as fotosrepresentavam um perigo para ela.

    A prpria Arbus sugeriu essa possibilidade. Tudo to esplndido e comovedor. Euavano rastejando pelo cho, como nos filmes de guerra. Embora a fotografia, normalmente,seja uma viso onipotente e distncia, existe uma situao em que as pessoas so mortas, deverdade, por tirar fotos: quando fotografam pessoas matando-se mutuamente. S a fotografiade guerra combina voyeurismo e perigo. Fotgrafos de combate no podem deixar departicipar da atividade letal que registram; at vestem uni-formes militares, ainda que seminsgnias de patente. Descobrir (mediante o ato de fotografar) que a vida um verdadeiromelodrama, entender a cmera como uma arma de ataque, implica que haver baixas. Tenhocerteza de que existem limites, escreveu ela. Deus sabe como, na hora em que as tropascomeam a avanar contra ns, nos aproximamos daquela sensao de ser alvejado, ocasioem que se pode perfeitamente ser morto. As palavras de Arbus descrevem, em retrospecto,uma espcie de morte em combate: por haver ultrapassado certos limites, ela se sente numaemboscada psquica, vtima de sua prpria iseno e curiosidade.

    Na antiga viso romntica do artista, qualquer pessoa que tenha a audcia de passar umatemporada no inferno se arrisca a no sair viva ou a voltar com leses psicolgicas. Ovanguardismo heroico da literatura francesa, no fim do sculo xix e no incio do xx, forneceum panteo memorvel de artistas que no conseguiram sobreviver a suas viagens ao inferno.Contudo, existe uma grande diferena entre a atividade de um fotgrafo, que sempredesejvel, e a de um escritor, que pode no o ser. Uma pessoa tem o direito de dar voz prpria dor, pode sentir-se compelida a isso pois a dor, de todo modo, sua propriedade.Mas, no outro caso, busca-se voluntariamente a dor dos outros.

    Assim, o que h de mais perturbador nas fotos de Arbus no , de maneira alguma, seutema, mas a impresso cumulativa da conscincia do fotgrafo: o sentimento de que aquilo que apresentado constitui precisamente uma viso particular, algo voluntrio. Arbus no era umapoeta que desceu s profundezas de suas entranhas para relatar a prpria dor, mas umafotgrafa que enveredou pelo mundo a fim de colher imagens dolorosas. E, para a dorprocurada, em vez da dor apenas sentida, pode haver uma explicao nem um pouco bvia.Segundo Reich, o gosto masoquista da dor no emana de um amor dor, mas da esperana deobter, por meio da dor, uma sensao forte; as pessoas afetadas por uma analgesia emocionalou sensorial preferem a dor apenas alternativa de no sentir nada. Mas existe outra

  • explicao do motivo por que as pessoas procuram a dor, uma explicao diametralmenteoposta de Reich e que tambm parece pertinente: que as pessoas a procuram no para sentirmais, e sim para sentir menos.

    Por mais que olhar para as fotos de Arbus seja, incontestavelmente, uma provao, elas sotpicas da espcie de arte popular entre pessoas sofisticadas no meio urbano atual: uma arteque representa um teste voluntrio de resistncia. Suas fotos oferecem uma ocasio parademonstrar que o horror da vida pode ser olhado de frente, sem melindres. A fotgrafa, antes,teve de dizer para si mesma: muito bem, consigo suportar isso; o espectador convidado adeclarar o mesmo.

    A obra de Arbus um bom exemplo de uma tendncia dominante na arte elevada nos pasescapitalistas: suprimir, ou pelo menos reduzir, o mal-estar moral e sensorial. Grande parcela daarte moderna dedica-se a diminuir a estatura do aterrorizante. Por nos acostumar ao que, antes,no suportvamos olhar ou ouvir, porque era demasiado chocante, doloroso ou constrangedor,a arte modifica a moral esse corpo de usos e de sanes pblicas que estabelece uma vagafronteira entre o que emocional e espontaneamente tolervel e o que no . A supressogradual do mal-estar, de fato, nos aproxima de uma verdade bastante formal aarbitrariedade dos tabus construdos pela arte e pela moral. Mas nossa capacidade de digeriresse grotesco crescente nas imagens (paradas ou em movimento) e nos textos impressos temum custo elevado. A longo prazo, age no como uma liberao da personalidade, mas comouma subtrao da personalidade: uma pseudofamiliaridade com o horrvel refora a alienao,tornando a pessoa menos apta a reagir na vida real. O que ocorre com os sentimentos daspessoas na primeira exposio ao filme pornogrfico em cartaz no cinema do bairro ou atrocidade transmitida no telejornal noturno no to diferente do que se verifica quando elasveem pela primeira vez as fotos de Arbus.

    As fotos fazem com que uma reao compassiva parea irrelevante. A questo no ficartranstornado, ser capaz de olhar de frente o horrvel de modo imperturbvel. Mas esse olharque no (principalmente) compassivo uma construo tica moderna especial: no insensvel, nem cnico, sem dvida, mas simplesmente (ou falsamente) ingnuo. realidadedolorosa e horripilante, Arbus aplicou adjetivos como tremendo, interessante, incrvel,fantstico, sensacional o deslumbramento infantil da mentalidade pop. A cmera segundo a imagem calculadamente ingnua, de Arbus, do desgnio do fotgrafo uminstrumento que captura tudo, que induz os temas a revelar seus segredos, que amplia aexperincia. Fotografar pessoas, segundo Arbus, necessariamente cruel, vil. Oimportante no piscar.

    A fotografia era uma autorizao para eu ir aonde quisesse e fazer o que desejasse,escreveu Arbus. A cmera uma espcie de passaporte que aniquila as fronteiras morais e asinibies sociais, desonerando o fotgrafo de toda responsabilidade com relao s pessoasfotografadas. Toda a questo de fotografar pessoas consiste em que no se est intervindo navida delas, apenas visitando-as. O fotgrafo um superturista, uma extenso do antroplogo,que visita os nativos e traz de volta consigo informaes sobre o comportamento extico e osacessrios estranhos deles. O fotgrafo sempre tenta colonizar experincias novas oudescobrir maneiras novas de olhar para temas conhecidos lutar contra o tdio. Pois o tdio exatamente o reverso do fascnio: ambos dependem de se estar fora, e no dentro, de umasituao, e um conduz ao outro. Os chineses tm uma teoria de que a gente passa do tdio

  • para o fascnio, comentou Arbus. Ao fotografar um submundo aterrador (e um mundo exteriordeserto e plstico), ela no tinha a menor inteno de penetrar no horror experimentado peloshabitantes desses mundos. Eles devem permanecer exticos, e portanto tremendos. A visode Arbus sempre externa.

    Sinto-me muito pouco atrada a fotografar pessoas conhecidas ou mesmo temasconhecidos, escreveu Arbus. Eles me fascinam quando nunca ouvi falar a seu respeito. Pormais que ela se sentisse atrada pelo estropiado e pelo feio, jamais teria ocorrido a Arbusfotografar bebs de talidomida ou vtimas de napalm horrores pblicos, deformidades comassociaes sentimentais ou ticas. Arbus no estava interessada em jornalismo tico.Escolhia os temas que ela pudesse acreditar terem sido encontrados por acaso, em seucaminho, sem nenhum valor associado a eles. Trata-se necessariamente de temas aistricos,uma patologia antes privada do que pblica, vidas antes secretas do que expostas.

    Para Arbus, a cmera fotografa o desconhecido. Mas desconhecido para quem?Desconhecido para algum protegido, que aprendeu a manifestar reaes moralistas eprudentes. Como Nathanael West, outro artista fascinado pelos deformados e mutilados, Arbusproveio de uma famlia judia de grande desenvoltura verbal, obsessiva com a sade, propensa indignao e rica, para quem os gostos sexuais minoritrios situavam-se muito abaixo dolimite da percepo e para quem correr riscos era desprezado como mais uma insanidade dosgis. Uma das coisas que me fizeram sofrer na infncia, escreveu Arbus, foi que nuncaexperimentei a adversidade. Vivia confinada numa sensao de irrealidade. [...] E a sensaode estar imune era, por absurdo que parea, dolorosa. Experimentando um mal-estar bemparecido, West, em 1927, empregou-se como recepcionista noturno num hotel srdido emManhattan. O modo de Arbus procurar experincias e, portanto, de obter uma sensao derealidade era a cmera. Por experincia, entendia, se no a adversidade material, pelo menosa adversidade psicolgica o choque da imerso em experincias que no podem ser belas,o encontro com o que tabu, cruel, mau.

    O interesse de Arbus por anomalias exprime um desejo de violar sua prpria inocncia, desolapar sua sensao de gozar um privilgio, dar vazo sua frustrao por estar a salvo.Alm de West, a dcada de 1930 oferece poucos exemplos desse tipo de angstia. De modomais tpico, ela faz parte da sensibilidade de uma pessoa educada, de classe mdia, que setorna adulta entre 1945 e 1955 uma sensibilidade que viria a florescer justamente nadcada de 1960.

    A dcada do trabalho srio de Arbus coincide com os anos 60 e deve muito a eles, a dcadaem que as anomalias vieram a pblico e se tornaram temas de arte aprovados e seguros.Aquilo que na dcada de 1930 era tratado com angstia como nos romances SenhoritaCoraes Solitrios e O dia do gafanhoto passaria a ser tratado, na dcada de 1960, comtotal desfaatez, ou com franca satisfao (nos filmes de Fellini, Arrabal, Jodorowsky, emquadrinhos marginais, em espetculos de rock). No comeo dos anos 60, a prspera Feira deAberraes em Coney Island foi proibida; fez-se presso para pr abaixo a zona deprostituio e de travestis do Times Square a fim de cobri-la com arranha-cus. proporoque os habitantes dos submundos discrepantes so expulsos de seus territrios restritos banidos como indecorosos, uma inconvenincia pblica, obscenos ou apenas no lucrativos, eles passam cada vez mais a infiltrar-se conscientemente como um tema artstico,

  • adquirindo certa legitimidade difusa e uma proximidade metafrica que produz mais distnciaainda.

    Quem poderia ter apreciado melhor a verdade das anomalias do que algum como Arbus,que era, por profisso, uma fotgrafa de moda uma fabricante da mentira cosmtica quemascara as intratveis desigualdades de nascimento, de classe e de aparncia fsica? Mas, aocontrrio de Warhol, que foi durante muitos anos um artista comercial, Arbus no criou suaobra sria promovendo e ironizando a esttica do glamour, na qual fez seu aprendizado, massim lhe dando as costas inteiramente. A obra de Arbus reativa reativa contra orefinamento, contra aquilo que aprovado. Era o seu jeito de dizer dane-se a Vogue, dane-se amoda, dane-se o que bonito. Essa contestao toma duas formas no plenamentecompatveis. Uma uma revolta contra a sensibilidade moral excessivamente desenvolvidados judeus. A outra revolta, ela mesma intensamente moralista, se dirige contra o mundo dosucesso. A subverso moralista prope a vida fracassada como um antdoto para a vida bem-sucedida. A subverso do esteta, que a dcada de 60 havia de tornar uma peculiaridade sua,prope a vida como espetculo de horror, como antdoto para a vida tediosa.

    A maior parte da obra de Arbus situa-se no mbito da esttica de Warhol, ou seja, define-seem relao aos polos gmeos do tdio e da anomalia; mas no tem o estilo de Warhol. Arbusno tinha o narcisismo de Warhol e seu gnio publicitrio, nem a sutileza autoprotetora comque ele se isolava das anomalias, nem seu sentimentalismo. improvvel que Warhol, queprovm de uma famlia de classe trabalhadora, jamais tenha sentido, com respeito ao sucesso,a ambivalncia que afetava os filhos de judeus de classe mdia alta na dcada de 1960. Paraalgum de formao catlica, como Warhol (e quase todos da sua turma), um fascnio pelo malsurge de modo muito mais autntico do que no caso de uma pessoa de origem judaica.Comparada com Warhol, Arbus parece extremamente vulnervel, inocente e seguramentemais pessimista. Sua viso dantesca da cidade (e dos subrbios) no tem nenhuma reserva deironia. Embora boa parte do material de Arbus seja o mesmo retratado em, digamos, ChelseaGirls (1966), de Warhol, suas fotos nunca brincam com o horror, explorando-o a fim deproduzir risos; no do nenhuma passagem para a zombaria e nenhuma possibilidade de seconsiderar as anomalias estimveis, como ocorre nos filmes de Warhol e de Paul Morrissey.Para Arbus, os seres anmalos e os Estados Unidos medianos eram igualmente exticos: ummenino que marcha numa passeata em favor da guerra e uma dona de casa em Levittown eramto estranhos como um ano ou um travesti; subrbios de classe mdia baixa eram to remotoscomo o Times Square, asilos de loucos e bares de gays. A obra de Arbus expressava suatendncia contra o que era pblico (tal como ela o experimentava), convencional, seguro,tranquilizador e entediante e em favor do que era privado, oculto, feio, perigoso efascinante. Esses contrastes parecem, agora, quase antiquados. O que seguro j nomonopoliza o imaginrio do pblico. As anomalias no so mais uma rea reservada, dedifcil acesso. Pessoas bizarras, em condio sexual vergonhosa, emocionalmente vazias, sovistas todos os dias nas bancas de jornal, na televiso, nos metrs. O homem hobbesiano vagapelas ruas, perfeitamente visvel, com gel no cabelo.

    Sofisticada conhecida maneira modernista preferindo a estranheza, a ingenuidade e asinceridade esperteza e artificialidade da arte elevada e do comrcio elevado , Arbusdizia que o fotgrafo de quem mais se sentia prxima era Weegee, cujas fotos brutais de

  • crimes e de vtimas de acidentes eram artigos de primeira necessidade para os jornaispopulares na dcada de 1940. As fotos de Weegee so, de fato, perturbadoras, suasensibilidade urbana, mas a solidariedade entre seu trabalho e o de Arbus termina a. Pormais vida que ela estivesse para repudiar os componentes tpicos da sofisticao fotogrfica,como a composio, Arbus no carecia de sofisticao. E nada h de jornalstico em seusmotivos para tirar fotos. O que pode parecer jornalstico, e at sensacionalista, nas fotos deArbus situa-as, na verdade, na tradio central da arte surrealista seu gosto pelo grotesco,sua declarada inocncia com relao aos temas, sua tese de que todos os temas so apenasobjets trouvs.

    Eu jamais escolheria um tema por aquilo que ele significasse para mim quando eupensasse nele, escreveu Arbus, um expoente pertinaz do blefe surrealista. Supostamente, nose espera que os espectadores julguem as pessoas que ela fotografa. Julgamos, claro. E oprprio conjunto dos temas de Arbus constitui, em si mesmo, um julgamento. Brassa, quefotografou pessoas semelhantes s que interessavam a Arbus ver a sua La Mme Bijou, de1932 , tambm oferecia paisagens urbanas, retratos de artistas famosos. Hospital dedoentes mentais, Nova Jersey, 1924, de Lewis Hine, poderia ser uma foto da ltima fase deArbus (exceto pelo fato de as duas crianas mongoloides que posam no gramado terem sidofotografadas de perfil, e no de frente); os retratos de rua em Chicago tirados por WalkerEvans em 1946 so um material digno de Arbus, bem como diversas fotos de Robert Frank. Adiferena reside na srie de outros temas e de outras emoes que Hine, Brassa, Evans eFrank fotografaram. Arbus auteur no sentido mais restritivo, um caso to especfico nahistria da fotografia quanto foi, na histria da pintura europeia moderna, Giorgio Morandi,que passou meio sculo produzindo naturezas-mortas e garrafas. Arbus no diversifica seuassunto, como fazem os fotgrafos mais ambiciosos por pouco que seja. Ao contrrio,todos os seus temas so equivalentes. E estabelecer equivalncias entre anomalias, loucos,casais do subrbio e nudistas constitui um julgamento muito forte, em cumplicidade com umareconhecvel atitude poltica partilhada por muitos americanos instrudos e liberais deesquerda. Os temas das fotos de Arbus so todos membros da mesma famlia, habitantes deuma nica aldeia. Acontece apenas que a aldeia so os Estados Unidos. Em vez de mostraruma identidade entre coisas diferentes (o panorama democrtico de Whitman), todos somostrados de modo que paream iguais.

    Em seguida s esperanas mais risonhas para os Estados Unidos, veio um abrao amargo etriste da experincia. Existe uma melancolia peculiar no projeto fotogrfico americano. Mas amelancolia j estava latente no auge da afirmao whitmaniana, tal como representada porStieglitz e seu crculo da Photo-Secession. Stieglitz, empenhado em redimir o mundo com suacmera, ainda estava chocado pelos elementos da civilizao moderna. Fotografou Nova Yorkna dcada de 1910, num esprito quase quixotesco cmera/lana contra arranha-cu/moinhode vento. Paul Rosenfeld descreveu os esforos de Stieglitz como uma afirmao perptua.Os apetites whitmanianos tornaram-se devotos: o fotgrafo, agora, patrocina a realidade.Precisa-se da cmera para revelar padres nessa inspida e maravilhosa opacidade chamadaEstados Unidos.

    Obviamente, uma misso to envenenada por dvidas acerca dos Estados Unidos mesmono mximo de seu otimismo estava destinada a, bem cedo, se esvaziar, medida que osEstados Unidos, no perodo aps a Primeira Guerra Mundial, se entregavam com mais arrojo

  • aos grandes negcios e ao consumismo. Os fotgrafos com menos ego e magnetismo do queStieglitz gradualmente desertaram da luta. Podiam continuar a praticar a estenografia visualatomista inspirada em Whitman. Mas, sem o delirante poder de sntese de Whitman, aquilo queeles documentaram era descontinuidade, detrito, solido, ganncia, esterilidade. Stieglitz, aousar a fotografia para contestar a civilizao materialista, foi, nas palavras de Rosenfeld, ohomem que acreditava existir, em alguma parte, um Estados Unidos espiritual, e esses EstadosUnidos no eram o tmulo do Ocidente. O intuito implcito de Frank e Arbus, e de muitosentre seus contemporneos e fotgrafos posteriores, mostrar que os Estados Unidos so otmulo do Ocidente.

    Desde que a fotografia se desvencilhou da afirmao whitmaniana desde que ela deixoude compreender como as fotos podiam ter em mira ser cultas, abalizadas, transcendentes , omelhor da fotografia americana (e muitas outras coisas na cultura americana) entregou-se sconsolaes do surrealismo, e os Estados Unidos foram descobertos como o pas surrealista,por excelncia. Obviamente, fcil demais dizer que os Estados Unidos so apenas uma feirade aberraes, uma terra devastada o pessimismo barato tpico da reduo do real aosurreal. Mas a propenso americana para os mitos da redeno e da danao persiste como umdos aspectos mais revigorantes, mais sedutores, de nossa cultura nacional. O queabandonamos do desacreditado sonho de Whitman de uma revoluo cultural so fantasmas depapel e um espirituoso e perspicaz programa de desespero.

    * Na verdade, no um equvoco. No rosto das pessoas, quando ignoram que esto sendo observadas, existe algo que nuncaaparece quando elas sabem disso. Se no soubssemos como Walker Evans tirou suas fotos no metr (viajando centenas dehoras, no metr, de p, com a lente da cmera espreita entre dois botes do seu sobretudo), ficaria bvio pelas prprias fotosque os passageiros sentados, embora fotografados de perto e de frente, no sabiam que estavam sendo fotografados; suasexpresses so confidenciais, no so aquelas que as pessoas mostram para uma cmera.

  • OBJETOS DE MELANCOLIA

  • A fotografia tem a reputao pouco atraente de ser a mais realista e, portanto, a mais fcildas artes mimticas. De fato, a arte que conseguiu levar a cabo as ameaas bombsticas,datadas de um sculo, de um domnio surrealista sobre a sensibilidade moderna, ao passo quea maioria dos concorrentes dotados de pedigree abandonou a corrida.

    A pintura estava em desvantagem desde o incio por ser uma bela-arte, em que cada objeto nico, um original feito mo. Um risco adicional era o extraordinrio virtuosismo tcnicodos pintores habitualmente includos no cnone surrealista, que raramente concebiam a telacomo algo no figurativo. Suas pinturas pareciam astutamente calculadas, pedantemente bem-feitas, no dialticas. Mantinham uma distncia larga e prudente da litigiosa noo surrealistade apagar as fronteiras entre a arte e a chamada vida, entre objetos e eventos, entre ovoluntrio e o involuntrio, entre profissionais e amadores, entre o nobre e o de mau gosto,entre a competncia e os disparates afortunados. O resultado foi que o surrealismo na pinturaredundou em pouco mais do que o sumrio de um mundo de sonhos mal sortido: umas poucasfantasias espirituosas e sobretudo sonhos erticos e pesadelos agorafbicos. (S quando suaretrica libertria ajudou a incitar Jackson Pollock e outros no rumo de uma nova espcie deabstrao irreverente, o ditame surrealista dirigido aos pintores parece ter, por fim, alcanadoum sentido criativo amplo.) A poesia, a outra arte qual os primeiros surrealistas sededicavam de modo especial, produziu resultados quase igualmente frustrantes. As artes emque o surrealismo obteve a merecida fama foram a fico (no contedo, sobretudo, mas muitomais abundante e mais complexo, em termos temticos, do que se arrogou a pintura), o teatro,a arte da assemblage e de forma mais triunfante a fotografia.

    A circunstncia de ser a fotografia a nica arte nativamente surreal no significa, todavia,que ela partilha o destino do movimento surrealista oficial. Ao contrrio. Os fotgrafos(muitos deles ex-pintores) conscientemente influenciados pelo surrealismo contam, hoje,quase to pouco quanto os fotgrafos pictricos do sculo xix, que copiavam o aspectoexterior da pintura de belas-artes. Mesmo as mais adorveis trouvailles da dcada de 1920 as fotos propositalmente veladas por exposio excessiva e as radiografias de Man Ray, osfotogramas de Lszl Moholy-Nagy, os estudos de mltipla exposio de Bragaglia, asfotomontagens de John Heartfield e Alexander Rodchenko so vistas como proezasmarginais na histria da fotografia. Os fotgrafos que se concentraram em interferir norealismo supostamente superficial da foto foram os que transmitiram, de modo mais exato, aspropriedades surrealistas da fotografia. O legado surrealista para a fotografia veio a parecertrivial quando o repertrio surrealista de fantasias e de adereos foi rapidamente absorvidopela alta-costura na dcada de 1930, e a fotografia surrealista oferecia, sobretudo, um estiloamaneirado de retratismo, identificvel por seu emprego das mesmas convenes decorativasintroduzidas pelo surrealismo nas demais artes, em especial na pintura, no teatro e napublicidade. A vertente dominante da atividade fotogrfica mostrou que uma manipulao ouuma teatralizao surrealista do real desnecessria, se no efetivamente redundante. O

  • surrealismo se situa no corao da atividade fotogrfica: na prpria criao de um mundo emduplicata, de uma realidade de segundo grau, mais rigorosa e mais dramtica do que aquelapercebida pela viso natural. Quanto menos douta, quanto menos obviamente capacitada,quanto mais ingnua mais confivel havia de ser a foto.

    O surrealismo sempre cortejou acidentes, deu boas-vindas ao que no convidado,lisonjeou presenas turbulentas. O que poderia ser mais surreal do que um objeto quepraticamente produz a si mesmo, e com um mnimo de esforo? Um objeto cuja beleza, cujasrevelaes fantsticas, cujo peso emocional sero, provavelmente, realados por qualqueracidente que possa sobrevir? Foi a fotografia que melhor mostrou como justapor a mquina decostura ao guarda-chuva, cujo encontro fortuito foi saudado por um clebre poeta surrealistacomo uma sntese do belo.

    diferena dos objetos das belas-artes das eras pr-democrticas, as fotos no parecemprofundamente submetidas s intenes de um artista. Devem, antes, sua existncia a uma vagacooperao (quase mgica, quase acidental) entre o fotgrafo e o tema mediada por umamquina cada vez mais simples e mais automtica, que infatigvel e que, mesmo quando semostra caprichosa, pode produzir um resultado interessante e nunca inteiramente errado. (Ochamariz comercial da primeira Kodak, em 1888, era: Voc aperta o boto, ns fazemos oresto. O comprador tinha a garantia de que a foto sairia sem nenhum erro.) No conto defadas da fotografia, a caixa mgica assegura a veracidade e bane o erro, compensa ainexperincia e recompensa a inocncia.

    O mito suavemente parodiado num filme mudo de 1928, The cameraman, que mostra uminapto e sonhador Buster Keaton pelejando em vo com seu equipamento deteriorado,derrubando portas e janelas toda vez que monta seu trip, sem jamais conseguir uma imagemdecente, embora no fim consiga um excelente flagrante jornalstico (um furo fotogrfico deuma guerra de quadrilhas no bairro de Chinatown em Nova York) por descuido. Foi omacaquinho de estimao do cmera que ps o filme na cmera e a operou durante uma partedo tempo.

    O erro dos militantes surrealistas foi imaginar que o surreal fosse algo universal, ou seja,uma questo de psicologia, ao passo que ele se revelou extremamente localizado, tnico,datado e restrito a uma classe. Assim, as primeiras fotos surreais provm da dcada de 1850,quando os fotgrafos pela primeira vez saram a vagar pelas ruas de Londres, Paris e NovaYork, em busca da sua fatia de vida sem pose. Essas fotos, concretas, particulares, anedticas(a no ser que a anedota tivesse sido apagada) momentos de tempo perdido, de costumesdesaparecidos , parecem muito mais surreais para ns, agora, do que qualquer foto tornadaabstrata e potica por efeito de superposio, de uma cpia esmaecida, de uma exposioexcessiva e coisas do tipo. Acreditando que as imagens buscadas por eles provinham doinconsciente, cujo contedo, como freudianos fiis, supunham ser intemporal e universal, ossurrealistas entenderam mal o que havia de mais brutalmente comovedor, irracional,inassimilvel, misterioso o prprio tempo. O que torna uma foto surreal o seu pthosirrefutvel como mensagem do passado e a concretude de suas sugestes a respeito da classesocial.

    O surrealismo um descontentamento burgu