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SUSIffl X-? 1 "^ensaios sobre a r otogratia Tradução de Joaquim Paiva ^\ / ^ t * § r*^^X "*^ "" Y B í r,.s L í O ! E ;v H: í u25i líSCUS -^ iE T 3TADUAL CAMPINA» editora aroor Ibck

Susan Sontag O cap de Sobre a Fotografia

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Joaquim Paiva

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SUMÁRIO:

Na Caverna de Platão 3

Os Estados Unidos, Através da Fotografia,em uma Visão Sombria 27

Objetos Melancólicos 51

O Heroísmo da Visão 83

Evangelhos Fotográficos 111

O Mundo-lmagem 4^.147,

Breve Antologia de Citações 175

Para N/cole Stéphane

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O Mundo-lmagem

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A realidade sempre foi interpretada através de regis-tro fornecido pelas imagens; e os filósofos, desde Platão,têm procurado aliviar nossa dependência das imagens in-vocando um modelo de forma de apreensão do r^al emque a imagem não esteja presente. Masquando, em mea-dos do século XIX, o modelo parecia finalmente concre-tizável, a retirada de velhas ilusões religiosas e políticasdiante do avanço do pensamento humam'stico e científi-co não provocou como se previa — fugas em massa emdireção ao real. Ao contrário, a nova idade da descrençafortaleceu a fidelidade à imagem. O crédito que já não sepodia mais dar â realidade compreendida na forma deimagens dava-se agora à realidade entendida como ima-gens, ilusões. No prefácio à segunda edição (1843) deThe Essence of Christianity, Feuerbach observa, com re-lação "à nossa era", que essa "prefere a imagem à coisa,a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser" - ao mesmo tempo em que tem consciênciade estar fazendo apenas isso. E a queixa premonitóriade Feuerbach transformou-se, no século XX, numdiagnóstico amplamente aceito: uma sociedade tor-na-se "moderna" quando uma de suas principais ativida-des passa a ser a produção e o consumo de imagens,quando as imagens, que possuem poderes extraordiná-rios para determinar nossas exigências com respeito à re-alidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da expe-riência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde

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da economia, à estabilidade política e à busca da fetici148 dade individual.

As palavras de Feuerbach — escreveu alguns anos depois da invenção da câmara — parecem, mais especificamente, um pressentimento do impacto que viria a ter afotografia. E isso porque as imagens que possuem umpeso praticamente ilimitado na sociedade moderna sãoprincipalmente as imagens fotográficas; e a razão de talautoridade advém das qualidades peculiares às imagensque obtemos através da câmara.

Essas imagens são verdadeiramente capazes de usurpara realidade porque, antes de mais nada, uma fotografia énão só uma imagem (como o é a pintura), uma interpretacão do real — mas também um vestígio, diretamentecalcado sobre o real, como uma pegada ou uma máscarafúnebre. Enquanto um quadro, mesmo aquele que estáconforme os padrões fotográficos da verossimilhança,nunca é mais que uma forma de interpretação, a fotogra-fia nunca é menos que o registro de uma emanação (on-das de luz refletídas por objetos) — vestígio material dotema fotografado, a tal ponto que quadro algum.se lhepode comparar. Entre duas alternativas imaginárias, a deque Holbein, o Jovem, tivesse vivido tempo bastante pa-ra poder pintar Shakespeare ou a de que um protótipoda câmara tivesse sido inventado a tempo de fotografaro grande dramaturgo inglês, a maioria dos admiradoresde Shakespeare teria escolhido a fotografia. E isso nãoapenas porque presumivelmente veríamos como eraShakespeare, pois mesmo que a fotografia hipotética de-le estivesse desgastada pelo tempo, dificilmente legível,com sombras amarronzadas, ainda a preferiríamos pro-vavelmente a qualquer outro glorioso Holbein. Possuirum retrato de Shakeepeare seria como possuir um dospregos da Verdadeira Cruz.

Grande parte das manifestações contemporâneas depreocupação de que o mundo das imagens esteja substituindo o mundo real continua a refletir, como emFeuerbach, o desprezo platónico pela imagem: verdadei-ra na medida em que se assemelha ao real, postiça pornão ser mais do que mera semelhança. Esse realismo vul-nerável e ingénuo, entretanto, está um tanto deslocado

na era das imagens fotogiáf iças, pois ccontréste bruscoentre a imagem ("cópia') e a coisa pintada ("o origi-nal") — que Platão repeticamente ilustra com ) exemploda pintura — não se aplica assim de modo tão simples àfotografia. E nem esse mesmo contraste comribui paraque compreendamos o p"ocesso de elaboracío da ima-gem desde suas origens, quando era urna atividade práti-ca e mágica, um meio de nos apoderarmos de algumacoisa ou exercermos cortrole sobre ela. Quanto maisatrás buscamos na história, como observou E, H. Gom-brich, menos evidente é adistinção entre irnagím e reali-dade; nas sociedades primitivas, o objeto e sia imagemconstituíam simplesmente duas manifestações diferen-tes, isto é, fisicamente distintas, da mesma energia de es-pírito. Daí, a suposta eficácia da imagem em propiciar eexercer o controle sobre presenças vigorosas. Tais pode-res, tais presenças estavam presentes nela.

Para os defensores do real, de Platão a Feuerbach,comparar a imagem com a mera aparência — eu seja, su-por que a imagem é absolutamente distinta do objetorepresentado — faz parte daquele processo dedessacrali-zação que nos separa indefectivelmente do mundo dostempos e lugares sagrados, no qual se obtinha uma ima1

gem com o objetivo de que essa participasse da realidadedo objeto representado. O que define a originalidade dafotografia é, rio momento mesmo em que o secularismotriunfa completamente na longa e cada vez mais secularhistória da pintura, sua capacidade de reviver — em ter-mos inteiramente seculares — algo parecido com ostatus primitivo das imagens. Nossa sensação irreprimí-vel de que o processo fotográfico é algo mágico assenta-se em bases verdadeiras. Ninguém considera de modo al-gum que uma pintura de cavalete se consubstancie nomotivo pintado; ela apenas o representa, ou a ele se refe-re. Ainda assim, a fotografia não retrata apenas determi-nado tema, é também uma homenagem a ele. É parte doterna e um prolongamento dele; como também um meiopotente de possuí-lo e controlá-lo.

A fotografia é, sob vários aspectos, sinónimo de aqui-sição. Em sua forma mais simples, temos numa fotogra-fia a posse vicária de uma pessoa ou objeto queridos,

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posse essa que confere à fotografia algo da qualidade dos150 objetos únicos. Através da fotografia, encontramo-nos

também numa posição de consumidores de acontecimentos, seja os acontecimentos que formam parte denossa experiência, seja os que não - distinção entre tipôs de experiência que esse consumismo dependentetorna vaga. Uma terceira forma de aquisição é a que,através das máquinas de elaboração e duplicação de imagens, nos possibilita adquirir algo comoa informação (depreferência à experiência). Com efeito, a importância daimagem fotográfica como o meio através do qual um nú-mero cada vez maior de eventos penetra nossa experiên-cia é, finalmente, apenas um produto paralelo da sua ca-pacidade de propiciar-nos conhecimentos dissociados daexperiência e independentes dela.

Essa é a forma mais inclusiva da aquisição fotográfica.Ao ser fotografada, determinada coisa torna-se parte deum sistema de informações amoldado a esquemas declassificação e armazenamento que vão desde as sequên-cias de instantâneos colados, em ordem, nos álbuns defamília, até a acumulação pertinaz e o arquivamento me-ticuloso necessários para a utilização da fotografia nasprevisões do tempo, na astronomia, na microbiologia, nageologia, nas atividades policiais, no treinamento e diag-nóstico dos médicos, no reconhecimento militar e nahistória da arte. A fotografia faz mais do que redefinir oconteúdo da experiência cotidiana (pessoas, coisas, even-tos, o que quer que vejamos — ainda que diferentementee muitas vezes com desatenção - com a visão natural) eacrescenta vastas quantidades de material que jamaischegamos a ver. A realidade como tal é redefinida — como objeto para exposições, registro de escrutínios, alvode inspeção. A exploração e duplicação fotográfica domundo fragmenta a continuidade e alimenta as peças deum interminável dossiê, possibilitando assim um contro-le com o qual nem se poderia sonhar sob o sistema ante-rior de registro da informação: a escrita.

O fato de que o registro fotográfico é sempre, potencialmente, uma forma de controle já havia sido reconhe-cido quando tais poderes estavam em sua infância. Em1850, Delacroix anotou em seu diário o êxito de algu

mas "experiências na fotocrafia" que estavamsendo fei-tas em Cambridge, onde os astrônomosvinham fotogra-fando o Sol e a Lua e haviím logrado obter uma impres-são da estrela Vega do tamínho de uma cabecade alfine-te. Ele acrescentou a seguinte observação "curiosa":

Como a luz da estrela que toi daguerreotipada levou 20 anospara atravessar o espaço quea separa da Terra, o raio que ficoufixado na chapa havia, por conseguinte, deixado a esfera celes-te muito tempo antes de Daguerre ter descoberto o processopor meio do qual acabamos cê adquirir o controle dessa luz.

Deixando para trás noções de controle tão débeis comoas de Delacroix, o progresso da fotografia tornou aindamais literal o significado do controle que a fotografia exercê sobre a coisa fotografada. A tecnologia que já minimi-zou o grau em que a distância que separa o fotógrafo domotivo fotográfico afeta a precisão e a magnitude daimagem; que possibilitou formas de fotografar coisasque são inimaginavelmente pequenas e também que, co-mo as estrelas, estão inimaginavelmente distantes; quetornou o ato de fotografar independente da própria luz(fotografia infravermelha) e libertou o objeto-retrato deseu confinamento a duas dimensões (holografia); que en-curtou o intervalo entre o instante em que se vê o objetoa fotografar e aquele em que já se tem a fotografia nasmãos (desde a primeira Kodak, quando um rolo de fil-mes revelado levava semanas para ser devolvido ao fotó-grafo amador, até a Polaroid, que exibe a imagem empoucos segundos); que não apenas conseguiu imagensque se movessem (cinema) como também logrou a cap-tação e transmissão simultânea (vídeo) — essa mesmatecnologia fez da fotografia um instrumento incompará-vel para a decifração do comportamento, para a sua pre-visão e para que nele se possa interferir.

A fotografia tem poderes que nenhum outro sistemade imagens jamais possuiu, pois, ao contrário dos anteri-ores, ela não depende do fotógrafo. Por mais cuidadosoque seja o fotógrafo ao intervir na organização e orienta-ção do processo fotográfico, o processo em si mesmopermanecerá sempre óptico-mecânico (ou eletrônico),

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com funcionamento automático, com uma maquinar 1.1152 que será indubitavelmente adaptada para fornecer ma pus

da realidade cada vez mais detalhados e, em conseqúência, mais úteis. A génese mecânica de tais imagens e aexatidão da força que conferem configuram nova relacão entre imagem e realidade. E se é possível dizer que ufotografia restaura o relacionamento mais primitivo — aidentidade parcial da imagem e do cbjeto —, a força duimagem é sentida hoje em dia de modo muito diferente.A noção primitiva acerca da eficácia da imagem pressupõe que essa possua a qualidade das coisas verdadeiras,mas nossa tendência é atribuir às coisas reais as qualida-des de uma imagem.

Como todos sabem, as pessoas primitivas têm medode que a câmara lhes roube parte de seu ser. Nas memórias que publicou em 1900, ao final de sua longa vida. Nadar declara que Balzac também tinha um "vagopavor" de ser fotografado. A explicação de Balzac, se-gundo Nadar, era que

todo corpo em seu estado natural foi composto de uma série

de imagens fantasmagóricas superimpostas em camadas^a não

ter mais fim, acondicionadas em infinttésimos filmes í. . .1.Não tendo sido o homem jamais capaz de criar, isto é, tornar

realidade o que era uma aparição impalpável, ou fazer do nada

um objeto — cada operação daguerriana ia por conseguinte to-

mando para si, separando e usando, até acabar-se, uma das ca-

madas do corpo sobre a qual se focalizava.

Para Balzac, essa marca específica da trepidação pareceter sido conveniente — "Era o temor de Balzac com res-peito ao daguerreótipo verdadeiro ou falso?" — perguntaNadar. "Era verdadeiro. . ." já que o processo fotográfi-co é a concretização, digamos assim, de tudo que é maisoriginal na sua técnica como novetista. A operação bal-zaquiana consistia em ampliar detalhes insignificantes,como numa ampliação fotográfica, em justapor traçosou coisas incongruentes, como numa mostra fotográfica:tornada expressiva desse modo, qualquer coisa pode servinculada a todas as outras. Para Balzac, o espírito de to-do um ambiente poderia ser revelado através de um úni-

co detalhe material, por mais mesquinho GJ arbitrárioque pudesse parecer. Toda uma vida pode sr resumidanuma aparência momentânea*. E umamudaiça nas apa-rências é uma mudança na pessoa, pôs ele s recusou acolocar qualquer pessoa "de verdade' escodida atrásdaquela aparência. A teoria imaginosa de Bazac, a qualdeu a conhecer a Nadar, de que um corpo i compostode uma série infinita de "imagens assombrtsas", podeser sinistramente comparada à teoria supost;mente rea-lista que expressa em suas novelas, segundo i qual umapessoa é um agregado de aparências que po<em produ-zir, através de um foco adequado, camadas nfinitas designificação. Ver a realidade como umconjurto intermi-nável de situações que se espelham unas àsDUtras, ex-trair analogias das coisas mais díspares, é o nesmo queantecipar a forma de percepção típicaquea magem fo-tográfica estimula. A própria realidade correçou a serentendida como uma espécie de escrita, que :em de serdecodificada — mesmo que as imagens fotogáficas fos-sem comparadas originalmente à escrita. (O nome queNièpce deu ao processo através do qual a imajem apare-ce na chapa foi heliografia, ou seja, a escrité por meioda luz solar; Fox Talbot chamou à câmara 'o lápis danatureza".)

O problema do contraste do "original" coma "cópia"de Feuerbach reside nas definições estáticas de ambosquanto ao que sejam realidade e imagem. EU parte doprincípio de que o que é real persiste, imutáxel e intac-to, quando somente as imagens se tranformaram: escora-das pelas mais leves pretensões à credibilidace, as ima-

Í53

' Estou me referindo ao realismo de Balzac na Mimesis de Eri;h Auerbach.A passagem que Auerbach descreve no início de Lê Père Goiiot (1834) —Balzac está descrevendo a sala de jantar da pensão Vauquer is 7h da ma-nha e a entrada de Madame Vauquer — não poderia ser rnaisexplícita (ouproto-proustianal. "A personalidade dela", Balzac escreve, "explica a pen-são, como a pensão está implícita na pessoa dela. . . a corpulência desali-nhada daquela mulher de estatura baixa é produto dj vida que se leva aqui,tal como a tifóide é consequência das exalações de um hospital. A anáguade lã tricotada que usa, mais comprida do que a saia (feita ds uma roupavelha), e cujo forro sai pelos buracos do tecido que se está rasgando, resu-me a sala de visitas, a sala de jantar, o pequeno jardim, anuncia a cozinha edá uma ideia vaga de como são os hóspedes. Quando ela está lá, o espetá-culo é completo."

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com funcionamento automático, com uma maquinaria152 que será indubitavelmente adaptada para fornecer mapas

da realidade cada vez mais detalhados e, em conseqúência, mais úteis. A génese mecânica de tais imagens e aexatidão da força que conferem configuram nova relacão entre imagem e realidade. E se é possível dizer que afotografia restaura o relacionamento mais primitivo — aidentidade parcial da imagem e do objeto —, a força daimagem é sentida hoje em dia de modo muito diferente.A noção primitiva acerca da eficácia da imagem pressupõe que essa possua a qualidade das coisas verdadeiras,mas nossa tendência é atribuir ás coisas reais as qualida-des de uma imagem.

Como todos sabem, as pessoas primitivas têm medode que a câmara lhes roube parte de seu ser. Nas me-mórias que publicou em 1900, ao final de sua longa vi-da, Nadar declara que Balzac também tinha um "vagopavor" de ser fotografado. A explicação de Balzac, se-gundo Nadar, era que

todo corpo em seu estado natural foi composto de uma série

de imagens fantasmagóricas superimpostas em camadas^ a não

ter mais fim, acondicionadas em infinitésimos filmes [. . .].Não tendo sido o homem jamais capaz de criar, isto é, tornar

realidade o que era uma aparição impalpável, ou fazer do nada

um objeto — cada operação daguerriana ia por conseguinte to-

mando para si, separando e usando, até acabar-se, uma das ca-

madas do corpo sobre a qual se focalizava.

Para Balzac, essa marca específica da trepidação pareceter sido conveniente — "Era o temor de Balzac com res-peito ao daguerreótipo verdadeiro ou falso?" — perguntaNadar. "Era verdadeiro. . ." já que o processo fotográfi-co é a concretização, digamos assim, de tudo que é maisoriginal na sua técnica como novelista. A operação bal-zaquiana consistia em ampliar detalhes insignificantes,como numa ampliação fotográfica, em justapor traçosou coisas incongruentes, como numa mostra fotográfica:tornada expressiva desse modo, qualquer coisa pode servinculada a todas as outras. Para Balzac, o espírito de to-do um ambiente poderia ser revelado através de um úni-

co detalhe material, por mais mesquiiho a arbitrárioque pudesse parecer. Toda uma vida pode ar resumidanuma aparência momentânea*. E umanudaica nas apa-rências é uma mudança na pessoa, pois ele 9 recusou acolocar qualquer pessoa "de verdade' escondida atrásdaquela aparência. A teora imaginosa de Bazac, a qualdeu a conhecer a Nadar, de que um corpo i compostode uma série infinita de 'imagens assombrcsas", podeser sinistramente comparada á teoria sjpost;mente rea-lista que expressa em suas novelas, segundo i qual umapessoa é um agregado de aparências que pocem produ-zir, através de um foco adequado, camadas nfinitas designificação. Ver a realidade como um conjurto intermi-nável de situações que se espelham urnas às outras, ex-trair analogias das coisas mais díspares, é o nesmo queantecipar a forma de percepção típica que a magem fo-tográfica estimula. A própria realidade começou a serentendida como uma espécie de escrita, que tem de serdecodificada — mesmo que as imagens fotográficas fos-sem comparadas originalmente à escrita.'{O nome queNièpce deu ao processo através do qual a imagem apare-ce na chapa foi heliografia, ou seja, a escrita por meioda luz solar; Fox Talbot chamou à câmara "o lápis danatureza".)

O problema do contraste do "original" com a "cópia"de Feuerbach reside nas definições estáticas de ambosquanto ao que sejam realidade e imagem. Ele parte doprincípio de que o que é real persiste, imutável e intac-to, quando somente as imagens se tranformaram: escora-das pelas mais leves pretensões à credibilidade, as ima-

Í53

* Estou me referindo ao realismo de Balzac na Mimesis de Erich Auerbach.A passagem que Auerbach descreve no im'cio de Lê Père Goriot (1834) —Balzac está descrevendo a sala de jantar da pensão Vauquer ás 7h da ma-nhã e a entrada de Madame Vauquer — não poderia ser mais ^explícita (ouproto-proustiana). "A personalidade dela", Balzac escreve, "e.xplica a pen-são, como a pensão está implícita na pessoa dela. . . a corpulléncia desali-nhada daquela mulher de estatura baixa é produto da vida que se leva aqui,tal como a tifóide é consequência das exalações de um hospital. A anáguade lã tricotada que usa, mais comprida do que a saia (feita de uma roupavelha), e cujo forro sai pelos buracos do tecido que se está rasgando, resu-me a sala de visitas, a sala de jantar, o pequeno jardim, anuncia a cozinha edá uma ideia vaga de como são os hóspedes. Quando ela está lá, o espetá-culoé completo."

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gens se tornaram, de alguma forma, ma is sedutoras. Mas154 as noções de imagem e realidade são complementares.

Quando a noção de realidade se tranforma, também setransforma a noção de imagem, e vice-versa. "Nossa era"não prefere as imagens aos objetos reais pela perversidade em si, mas sim, em parte, como uma reação às formaspelas quais a noção de realidade tem sido progressiva-mente complicada e enfraquecida, sendo uma das pri-meiras dessas formas a crítica da realidade como merafachada, a qual surgiu entre os integrantes da classe mé-dia esclarecida no século passado. (Esse foi naturalmenteo contrário mesmo do efeito desejado.} A redução àpura fantasia, de amplas partes do que até então vemsendo considerado real, como o fez Feuerbach ao cha-mar de religião "o sonho da mente humana" e negar queideias teológicas pudessem ser projeções psicológicas; ouo intumescimento de detalhes casuais e triviais da vidacotidíana até se transformarem em cifras das forças his-tóricas e psicológicas ocultas, como o fez Balzac na suaenciclopédia da realidade social em forma de novela —constituem em si modos de perceber a realidade comoum conjunto de aparências, como uma imagem.

Poucas pessoas em nossa sociedade compartilham dopavor primitivo que inspiravam as máquinas fotográficase que advém do fato de pensarmos na fotografia comoparte material dessas máquinas. Alguns vestígios do má-gico permanecem, entretanto: por exemplo, ao relutar-mos em rasgar ou jogar fora a fotografia de um ente que-rido, especialmente de alguém que já morreu ou estálonge. Proceder desse modo seria um gesto de rejeiçãoimpiedoso. Em Jude the Ohscure, a descoberta por Ju-das de que Arabelta vendeu a moldura feita de bordo ena qual está inserido um retrato dele, com o quat ele apresenteara no dia em que se casaram, significa para Ju-das "a morte total de todo sentimento em sua vida" econstitui o "golpe leve, mas final, que faz vir abaixoqualquer sentimento existente nele". O verdadeiro pri-mitivismo moderno, entretanto, não é considerar a ima-gem como um objeto real; as imagens fotográficas difi-cilmente serão tão reais assim. Ao contrário, a realidadese parece cada vez mais com o que a câmara nos mostra.

Hoje em dia, é comum que as pessoas insistam em lem-brar-se do acidente violento do qual forarn vitimas — umdesastre de avião, um tiroteio, uma bomba terrorista — eque "parecia um filme". Assim nos expressamos, sendoaparentemente desnecessárias quaisquer outras descri-ções, quando queremos explicar como tudoera tão real.Se nos países não-industrializados multas pessoas aindase sentem apreensivas ao serem fotografadas, antevendono ato de fotografar alguma espécie de violação, desres-peito, pilhagem sublimada da personalidadeou da cultu-ra, nos países industrializados as pessoas fazem questãode ser fotografadas — e sentem que são corno imagens eque se tornam realidade através da fotografia,

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O sentido cada vez mais complexo do real cria seuspróprios fervores e simplificações compensatórios entreos quais o ato de fotografar é o que acarreta a maior de-pendência. É como se o fotógrafo, reagindo a um senti-do da realidade cada vez mais vazio, estivesse procuran-do uma transfusão — partindo para novas experiências erefrescando as anteriores. Suas atividades onipresentesconstituem a versão mais radical e segura da mobilidade.A necessidade de conhecer novas experiências traduz-sena necessidade de tirar fotografias: a experiência queprocura uma fórmula à prova de crises.

Como o ato de tirar fotografias parece quase obrigató-rio para quem viaja muito, colecioná-las apaixonadamen-te exerce especial atracao para os que estão obrigados —seja por opção, incapacidade ou coerção - a permane-cer dentro de espaços fechados. Uma coleção de fotogra-fias pode ser utilizada como um mundo substitutivo,provido de imagens que enaltecem, consolam ou ator-mentam. Uma fotografia pode ser o ponto de partidapara um romance (o Judas de Hardyjá se enamorara dafotografia de Sue Bridehead antes mesmo de a conhe-cer), mas é mais comum que a relação erótica seja nãosomente criada pela fotografia como também compreen-dida como ato limitado à fotografia. Na obra de CocteauLês Enfants Terribles, o irmão e a irmã narcisistas com-partilham o quarto de dormir, seu "quarto- secreto",

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com imagens de boxeadores, astros cinematográficos e156 assassinos. Isolando-se em sua toca para poder viver sua

lenda íntima, os dois adolescentes exibem aquelas foto-grafias como um panteão privado. Numa das paredes dacela n9 426 da Prisão de Fresnes, no início dos anos 40,Jean Genet colou fotografias de 20 criminosos que elerecortara de jornais, 20 rostos nos quais discernia "o sig-no sagrado dos monstros", e em homenagem a eles es-creveu Notre Dame dês Fleurs; para Genet eram musas,modelos, talismãs eróticos. "Eles vigiam meus pequenosafazeres cotidianos", escreve Genet — sonhos, masturba-ção e literatura que se fundem entre si — e "são toda afamília que tenho e meus únicos amigos". Para os que sevêem confinados às suas casas, os prisioneiros, os que seaprisionam por vontade própria, conviver com fotogra-fias de pessoas desconhecidas, mas glamourosas, é umareacão sentimental ao isolamento e um insolente desafioao mesmo.

A novela Crash (1973) de J. G. Ballard focaliza umacolecão de fotografias ainda mais especializada a serviçoda obsessão sexual: fotografias de acidentes automobilís-ticos que Vaughan, amigo do narrador, coleciona en-quanto ensaia para levar ao palco sua própria morte numacidente automobilístico. A representação de sua visãoerótica da morte no carro é prognosticada e a própriafantasia posteriormente erotizada pelo exame cuidadosoe reiterado dessas fotografias. Numa das extremidadesdo espectro, pode-se dizer que toda fotografia é um da-do objetivo; na outra, é produto da ficção-científica decunho psicológico. E assim como, mesmo na realidademais horrenda ou aparentemente neutra, podem-se en-contrar imperativos sexuais, da mesma forma o do-cumento-fotografia mais banal pode transformar-se numemblema do desejo. Uma fotografia instantânea é umapista para o detetive, um fetiche erótico para o ladrão.Para Hofrat Behrens.em The Magic Mountain,os raios Xpulmonares de seus pacientes são instrumentos de diag-nóstico. Para Hans Castrop, cumprindo uma sentençaindefinidamente no sanatório para tuberculosos deBehrens, e morrendo de amor por Claudia Chaucat, enig-mática e inalcançável, "o retrato em raios X de Claudia,

que mostra não o seu rosto, mas a estrutura 'ssea delica-da da parte superior de seu corpo, e osórgãc da cavida-de torácica, cercados por um invólucrofeitcde sua pró-pria carne, pálida e fantasmagórica", constiui o trofeumais precioso. O "retrato transparente" é im vestígiomuito mais íntimo de sua bem-amada do qie o retratoque Hofrat pintou de Claudia, aquele "retrat» exterior",que Hans uma vez admirou com tanto desejo

A fotografia é uma forma de aprisionar i realidade,considerada recalcitrante e intratável; de fizê-la ficarquieta. Ou ainda de ampliar uma realidade qie sentimoscomo retraída, esvaziada, perecível e remota,Não se po-de possuir a realidade, mas é possívej!pbssui (e ser pos-suído por) imagens — corno, de acordo con Proust, oprisioneiro mais ambicioso dentre todos, nío se podepossuir o presente, mas o passado. Poucas ati/idades po-derão ser mais opostas ao trabalho de auto-sacrif ício deum artista como Proust do que o ato de fotografar, oqual não exige esforço, e deve ser um dos poucos queoriginam obras de arte reconhecidas, em que jm simplesmovimento, um apertar dos dedos, produz uma**obracompleta. Enquanto a obra de Proust pressupõe que arealidade esteja distante, a fotografia implica acesso ins-tantâneo à realidade. Mas os resultados dessa prática deacesso instantâneo constituem outra forma de criar dis-tanciamento. Possuir o mundo em forma de imagens é,precisamente, reexperimentar o quão irreal e remota é arealidade.

A estratégia do realismo proustiano pressupõe um dis-tanciamento daquilo que normalmente sentimos comoreal, o presente, com vistas a reanimar aquilo que habi-tualmente se encontra disponível apenas de maneira re-mota e sombria, o passado — que é onde o presente setorna, para Proust, real, ou seja, algo que podemos pos-suir. Para tal esforço, a fotografia em nada pode contri-buir. Toda vez que Proust faz menção à fotografia, o fazde forma depreciativa: como sinónimo de urma relaçãomeramente voluntária, superficial, muito excluisivamentevisual, com o passado, cuja produção é insignificantequando comparada com as descobertas profundas quepoderemos fazer se reagirmos às insinuações que provêm

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de todos os nossos sentidos — na técnica que ele derio158 minou "memória involuntária". Não podemos imaginar

que a Abertura de Du Cote de chez Swann terminequando o narrador depara com uma fotografia da igrejiiparoquial de Combray e saboreia aquela migalha visual,em vez da simples made/eine embebida no chá, o quefaz com que toda uma parte de sua vida lhe aflua à memória. Isso, porém, não se deve a que a fotografia nãopossa evocar lembranças (pode sim, dependendo do graude educação do espectador mais do queda própria fotografia), mas àquilo que Proust esclarece a respeito desuas próprias exigências com relação à recuperação daimaginação, isto é, de que essa não seja apenas extensivae exata, mas que revele a textura e a essência das coisas.E ao considerar a fotografia na medida somente em quea pudesse utilizar, como instrumento da memória, Proustde alguma forma interpreta mal o que é a fotografia:nem tanto um instrumento da memória, muito maisuma invenção ou substituto dela.

Não é a realidade que a fotografia torna imedíatamente acessível, mas as imagens. Por exemplo, nem todos osadultos sabem exatamente como eles próprios, seus paise avós eram quando crianças — um conhecimento a queas pessoas jamais poderiam ter acesso antes da invençãoda máquina fotográfica, nem mesmo para aquela reduzi-díssima minoria entre a qual era costume encomendarpinturas de seus filhos. A maioria daqueles retratos eramenos informativa do que qualquer fotografia instantâ-nea. E até mesmo as pessoas muito ricas possuíam emgeral apenas um retrato de si próprias ou de seus ante-passados quando crianças, ou seja, uma imagem de ummomento da infância, ao passo que é comum termosmuitas fotografias de nós mesmos, oferecendo-nos a câ-mara a possibilidade de possuirmos um registro comple-to, em todas as idades. O objetivo dos retratos padroni-zados das famílias burguesas dos séculos XVIII e XIXera reafirmar a condição ideal do retratado (que lhe pro-clamasse a posição social e lhe embelezasse a aparênciapessoal); realizado esse propósito, é fácil entender porque as pessoas retratadas não sentiam necessidade depossuir mais de um retrato. O que o registro fotográfico

confirma é, de modo mais modesto, que a pess>a retra-tada simplesmente existe; por isso, nunca pod«mos termuitos registros.

O temor de que a singularidade de uma pessoa pudes-se ser reforçada pela fotografia jamais foi expresso comtanta frequência como na década de 1850, quardo o re-trato fotográfico forneceu o primeiro exemplo de comoa câmara podia criar modas passageiras e indústras dura-douras. Em Pierre, de Melville, publicado no início dadécada, o herói, outro campeão fervoroso do isoamentovoluntário.

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considerava como, então, corr infinita rapidez, o ret"ato maisfiel de uma pessoa podia ser trado pelo daguerreótii», ao pas-so que, em tempos passados, um retrato fiel só estaria ao alcan-ce dos endinheirados ou dos aristocratas mentais do mundo.Muito natural, portanto, parecia a conclusão de que, em vez deimortalizar génios, como antigamente, o retrato naquela épocavisasse a apenas trazer à luz ignorantes. Além disso, cuando sepublicam retratos de tantas pessoas, a verdadeira distinção con-siste em não termos o nosso publicado.

Contudo, se a fotografia se rebaixa, a pintura distorce demodo oposto: fazendo-se de grandiosa. A intuição deMelville é de que toda forma de retrato na civilizaçãodos grandes negócios é um compromisso; pelo menos as-sim parece a Pierre, modelo da sensibilidade alienada.Assim como uma fotografia significa tão pouco numasociedade de massa, uma pintura significa demasiado. Anatureza da pintura, Pierre observa, torna-a

mais afeita à reverência do que o homem o é; porquanto nãopodemos conceber um quadro que possua algo de depreciativo,ao passo que podemos imaginar muitas coisas inevitavelmentedepreciativas capazes de emocionar o homem.

Mesmo se tais ironias podem ser consideradas como ten-do sido dissolvidas pela totalidade do triunfo da fotogra-fia, a principal,diferença entre pintura e fotografia, noque concerne ao retrato, permanece válida. A pintura re-sume invariavelmente; a fotografia, geralmente, não. Asimagens fotográficas são parte do testemu nho numa bio-

Page 12: Susan Sontag O cap de Sobre a Fotografia

grafia ou história que fluem. E uma fotografia, ao con160 trário da pintura, traz em si a promessa de que outras

mais virão."Sempre ~- o Documento Humano destinado a man

ter o presente e o futuro em contato com o passado",disse Lewis Hine. Mas o que a fotografia fornece não éapenas um registro do passado, senão urn novo modo delidar com o presente, como comprovam os efeitos dosbilhões de documentos fotográficos contemporâneos.Enquanto velhas fotografias preenchem a imagem men-tal que temos do passado, as fotografias que tiramosagora transformam o presente em imagem mental, comoo passado. A câmara estabelece uma relação conclusivacom o presente (a realidade se conhece por seus vestí-gios) e fornece uma visão da experiência instantanea-mente retroativa. A fotografia oferece formas de possemarcadas pelo escárnio: do passado, do presente, até dofuturo. Em Invitation to a Beheading (1938), o prisio-neiro Cincinnatus vê o "foto-horóscopo" de uma crian-ça tirado pelo sinistro M'sieur Pierre: um álbum de "fo-tografias da pequena Emmie quando menina, na épocauma criança pequena, logo depois pré-adolescente, comoela é agora, depois — ao retocar e utilizar fotografias desua mãe — de Emmie adolescente, noiva, moca de 30anos, concluindo com uma fotografia na idade de 40anos, Emmie no leito de morte. Uma "paródia do traba-lho do tempo", é como Nabokov denomina esse artefatoexemplar; é também uma paródia da obra que é a foto-grafia.

A fotografia, que pode ser utilizada de tantos modosnarcisísticos, é também instrumento poderoso no senti-do de despersonalizar a relação que mantemos com omundo; e essas utilizações são complementares. Comoum par de binóculos sem lado direito, a câmara faz comque coisas exóticas e íntimas pareçam próximas; e coisasfamiliares pareçam pequenas, abstraías, estranhas, muitomais distantes. Ela oferece, numa atividade fácil e quenos leva ao hábito, participação e alienação a uma sóvez, em nossas próprias vidas e na dos outros — permi-tindo-nos participar, ao mesmo tempo em que reafirma

a alienação. Guerra e fotografia parecem hoje nsepará-veis; e desastres de avião eoutros acidentes rcrrorosossempre atraem pessoas que astão com câmaras, Uma so-ciedade que faz da aspiração a jamais experimentar pri-vações, insucessos, miséria, dores, doenças terríveis umanorma, e na qual a própria norte é vista não como natu-ral e inevitável, mas como um desastre criei e imerecido,cria uma curiosidade enorme em torno de taisaconteci-mentos — curiosidade que é satisfeita em parte atravésdo ato de fotografar. A sensação de estar isento da cala-midade estimula nosso interesse em ver fotografias dolo-rosas e o fato de vê-las sugere e fortalece a sensação deque estamos isentos. Em parte porque estamos "aqui", enão "lá", e em parte por causa do caráter de inevitabili-dade que todo acontecimento adquire ao ser transforma-do em imagem. No mundo real, algo está ocorrendo eninguém sabe o que vai acontecer. No mundo das ima-gens, aquilo já aconteceu, e acontecerá sempre da mes-ma forma.

O conhecimento abrangente do que existe no mundo(a arte, a catástrofe, as belezas da natureza) através dasimagens fotográficas desaponta frequentemente as pes-soas, surpreende-as e paralisa-as quando vêem a coisaverdadeira. Pois a imagem tende a subtrair sentimentosdaquelas coisas que experimentamos em primeira mão,e os sentimentos que nos desperta não são, em grandeparte, aqueles que realmente experimentamos na vidareal. Muitas vezes uma coisa nos perturba mais na formade fotografia do que quando efetivamente a conhece-mos. Num hospital de Xangai, em 1973, ao observar re-tirarem de um trabalhador de fábrica, que tinha uma úl-cera em estado adiantado, nove décimos do estômago,com anestesia por acupuntura, procurei acompanhar aoperação, que durou três horas (foi a primeira operaçãoque jamais presenciei, sem perturbar-me, nunca sentin-do, mesmo que por um só momento, a necessidade dedesviar o olhar. Num cinema em Paris, um ano mais tar-de, a operação menos sangrenta que aparece no do-cumentário Chung Kuo. de Antonioni, sobre a China,fez-rne recuar ao primeiro corte do bisturi e desviar oolhar várias vezes durante a sequência. Somos muito

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mais vulneráveis aos acontecimentos que nos inquiut.nn162 sob a forma de imagens fotográficas do que sob a foi m.i

de fatos reais. Essa vulnerabilidade é parte da passividdde característica de alguém que é espectador mats deuma vez, espectador de acontecimentos já configurados,primeiro pelos participantes e depois pelo fotógrafo oucineasta. Para a operação verdadeira, tive de esterilizar asmãos vesti uma bata de operação e depois permaneci depé ao lado dos médicos e enfermeiras atarefados, e euos papéis que devia desempenhar: de adulto desinibido,de visitante bem-educado, de testemunha digna de réspeito. A operação no filme impede não somente essamodesta participação, mas toda capacidade de reação doespectador. Na sala de operações, sou eu quem controlao foco, toma os c/ose-ups e faz as tomadas. No cinema,Antonioni já selecionou quais as partes da operação queposso olhar; a câmara me procura — e me obriga a olhar,deixando-me como única opção não olhar. Além disso, ofilme condensa em poucos minutos algo que leva horas,deixando apenas partes interessantes que são apresenta-das de maneira interessante, ou seja, com a intenção deprovocar ou de chocar. O dramático é dramatizado, peladidática do cenário e da montagem. Viramos a página deuma revista de fotografias, uma nova sequência tem iní-cio num filme, produzindo um contraste qut- é mais agu-do do que o contraste existente entre acontecimentossucessivos no tempo real.

Nada para nós poderia ser mais instrutivo com respei-to ao significado da fotografia — como, entre outras coi-sas, método de promover o real — do que os ataques aofilme de Antonioni que foram publicados pela imprensachinesa no í n feio de 1974. Tais ataques conformam umcatálogo negativo de todos os inventos da fotografia mo-derna, seja a própria fotografia ou o filme". Se para nósa fotografia está intimamente ligada a maneiras de verdesprovidas de continuidade (trata-se precisamente dever o todo através das partes — um detalhe que nos cap-ta a atenção, ou uma forma muito diferente de cortar afotografia), na China ela está vinculada unicamente àcontinuidade. Não somente há temas apropriados para acâmara, temas positivos, inspiradores (atividades exem-

plares, gente sorridente, tenpo bom} e organizados, co-mo também há modos adequados de fotografar que pró- 163vêm de noções sobre a ordem moral do espaço, as quaisimpedem a própria ideia d3 visão fotográfica, Assim éque Antonioni foi criticado por fotografar coisas velhasou fora de moda — "procurou e fotografou paredes ejornais murais abandonados há muito tempo";não pres-tando "atenção alguma aostratores grandes epequenosque trabalhavam nos campos, [ele] escolheu apenas umburro que puxava um cilindro de pedra" - e por mos-trar momentos indecorosos— "com desgosto,filmou aspessoas assoando o nariz e indo ao vaso sanitário" — emovimentos indisciplinados — "em vez de filmar estu-dantes nas salas de aula das escolas primárias de nossasfábricas, filmou as crianças saindo às carreiras das salasao término das aulas". E acusaram-no de denegrir as pes-soas e coisas certas pelo modo como as fotografou: porter utilizado "cores sombrias e lúgubres" e esconder aspessoas em "sombras escuras"; por ter focalizado asmesmas pessoas e coisas em muitas tomadas — "há às ve-zes tomadas longas, às vezes c/ose-ups, algumas vezes defrente, outras por detrás" —, isto é, por não ter mostra-do as coisas sob o ponto de vista de um único observa-dor, colocado em posição ideal; utilizado ângulos altos ebaixos - "A câmara era focalizada intencionalmentenaquela ponte magnífica e moderna desde ângulos mui-to ruins, a fim de fazê-la parecer arqueada e cambalean-te"; e por não ter um número suficiente de boas toma-

'Ver A Vicious Motive, Despicable Tricks — A Criticism of AntonionfsAnti-Chma Film "China" (Pequim: Foreign Languages Press, 1974), panfle-to de 18 paginas (sem assinatura} que reproduz um artigo publicado no jor-nal Renmmh Ribao em 30 de janeiro de 1974; e " Repudiai i ng Antonioni'sAnti-China Film", Peking Revtew, n° 8 (22 de fevereiro de 1974), que for-nece veisões condensadas de três outros artigos publicados naquele mês. Oob|etivo de tais artigos não é, obviamente, expressar uma visão sobre a fo-tografia — o interesse deles a esse respeito passa despercebido —, mas cons-truir um inimigo ideológico modelo, como em outras campanhas de educa-ção de massa levadas a cabo durante aquele período. Considerando tal pro-pósito, não se faz necessário que dezenas de milhões de pessoas mobilizadasem grandes encontros que se realizavam em escolas, fábricas, unidades doExército e comunas em Todo o país para "Criticar o Filme Antichinés deAntonioni" tivessem realmente visto Chung Kuo, nem que os participan-tes da ríimpanha "Critique Lin Pião e Confúcio" de 1976 tivessem lido umtexto sequer de Confúcio.

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das — "Ele martelou o cérebro para conseguii i.164 c/ose-ups num esforço de distorcer a imagem do povo r

deformar-lhe a perspectiva espiritual".Além da iconografia fotográfica de l íderes adorados,

do kitsch revolucionário, de tesouros culturais, produ/idos em massa, frequentemente vemos na China fotografías de caráter privado. Muitas pessoas possuem retratosdos entes queridos pregados à parede ou postos por debaixo do vidro da penteadeira ou da mesa de escritório.Muitas dessas fotografias são do tipo de retratos instantâneos que no Ocidente tiramos em reuniões familiarese em viagens; nenhuma delas, porém, é uma fotografiacândida, nem mesmo a do tipo que o amador que usa acâmara mais simples, em nossa sociedade, considera normal — um bebé engatinhando no chão, uma pessoa esboçando um gesto. Fotografias de esportes mostram o timeem grupo, ou apenas os instantes mais estilizados do jogo como bale: em geral, o que as pessoas fazem quandovêem a câmara é reunir-se e formar uma ou duas filas.Não há interesse algum em captar ninguém em movi-mento. E isso se explica em parte, supõe se, por certasvelhas convenções de decoro na conduta e na imagística.E é o critério visual característico daquelas pessoas quese encontram no primeiro estágio da cultura da câmara,quando a imagem é definida como algo que pode serroubado de seu possuidor; por isso, Antonioni foi críticado por "ter forçado a situação e feito tomadas contraa vontade das pessoas", como "um ladrão". A posse deuma câmara não justifica a intromissão, como ocorre emnossa sociedade, queiram ou não as pessoas. (As boasmaneiras da cultura da câmara aconselham que devemosfingir não estar vendo que um estranho nos está fotogra-fando num local público, contanto que o fotógrafo per-maneça a uma discreta distância — ou seja, não devemosnem proibir a tomada da fotografia e nem posar.) Aocontrário do que acontece nos Estados Unidos, onde po-samos onde podemos e paramos quando nos parece necessário, na China o ato de fotografar é sempre um ritual— o qual implica sempre a pose e, necessariamente, oconsentimento. Uma pessoa que "seguiu deliberadamente outras que não sabiam de sua intenção de filma Ias"

estava privando essas mesmat pessoas e coisas do direitoque lhes cabe de posar para iparecer damelhomaneirapossível.

Antonioni dedicou quase toda a sequência de ChungKuo sobre a Praça Tien An ii/len, em Pequim -a maiorrneta da peregrinação política no país - aos pregrinosque esperavam ser fotografados. O interesse de Antónioni em mostrar os chineses enquanto executavam aquelerito elementar, e documentar sua viagem com acamara,é evidente: a fotografia e o aro de ser fotografado são ostemas contemporâneos preferidos pela câmara. Para oscríticos, o desejo das pessoas que visitam a Praça TienAn Men de ter uma fotografia sua de souvenir

é um reflexo de seus profundos sentimentos revolucionários.Entretanto, com más intenções, Antonioni, em ve2 de móstrar essa realidade, apenas filmou as roupas das pessoas, seusmovimentos e expressões: ora, os cabelos desordenados deuma pessoa, ora outra espreitando com o olhar ofuscado pelosol; numa tomadas, as mangas da camisa de um homem; emoutra, suas calças. . .

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Os chineses resistem ao desmembramento fotográfico darealidade. Não se fazem c/ose-ups. Nem os cartões pos-tais de antiguidades e obras de arte vendidas em museusrevelam parte de alguma coisa; o objeto é sempre foto-grafado diretamente, centralizado, uniformemente ilu-minado, em sua totalidade.

Achamos os chineses inocentes por não perceberem^beleza que pode haver numa porta que estala ou se des-casca, o pitoresco que existe na desordem, a força do ân-gulo incomum e o detalhe significativo, a poesia da pes-soa fotografada de costas. Temos uma noção modernade embelezamento — a beleza não é inerente a coisa al-guma; ela deverá ser encontrada através de outro modode ver — e de uma noção mais ampla do significado, queas muitas modalidades da fotografia ilustra..! e reforçampoderosamente. Quanto mais numerosas as variações deuma coisa, mais ricas suas possibilidades de significado:por isso é possível dizer muito mais com fotografias doOeste americano do que da China atual. Independente

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mente do que quer que seja verdadeiro com" relaç.To .u>166 Chung Kuo como item de mercadoria ideológica (e os

chineses não estão errados quandoidizem<que o filme écondescendente), as imagens de Antonioni simplesmente significam mais do que qualqueroutra imagem que oschineses publiquem de si mesmos. Os chineses não querem fotografias que signifiquem muito ou que sejammuito interessantes. Não desejam ver o mundo sob umângulo inusitado, descobrir novos temas. A fotografiasupostamente deve mostrar aquilo que já foi descrito.A fotografia para nós é uma faca de dois gumes que próduz clichés (termo francês que significa não só expressãocomum como também negativo fotográfico) e fornecevistas "límpidas". Para as autoridades chinesas, só exis-tem clichés — que elas consideram não serem clichés,mas visões "corretas".

Na China de hoje, apenas duas realidades são reconhe-cidas. Vemos a realidade como desesperançada e interes-santemente pluralística. Lá o tema que se estabelece co-mo apropriado para debates é aquele sobre o qual haja"duas linhas", uma certa e outra errada. Nossa sociedadepropõe um espectro de opções e percepções descontí-nuas. O deles é construído em torno de um observadorúnico e ideal; e a fotografia dá sua parte de contribuiçãoao Grande Monólogo. Para nós, há "pontos de vista" dis-persos e intercambiáveis; a fotografia é um polílogo. Apresente ideologia chinesa define a realidade como umprocesso histórico estruturado em dualismos frequentes,de significado claramente demarcado e moralmente co-lorido; o passado, em grande parte, é simplesmente jul-gado ruim. Para nós, há processos históricos com signifi-cados espantosamente complexos e às vezes contraditó-rios; e artes que vão buscar muito do seu valor no fundoda consciência que temos do tempo como história, talcomo a fotografia. (Por isso é que o passar do tempocontribui para o valor estético da fotografia, e as cicatri-zes do tempo tornam os objetos maís e não menos se-dutores para o fotógrafo.) Com a noção da história; cer-tificamo-nos de nosso interesse em conhecer o maior nú-mero possível de coisas. O único uso que os chineses po-dem fazer de sua história é o didático: o interesse deles

pela história é reduzido, moraista, deformante edespro-vido de curiosidade. Por conseguinte, a fotografii tal co-mo a entendemos não tem vez na sociedade chin sã.

Os limites impostos à fotografia na China apnas re-fletem o caráter de sua sociedade, unificada pr umaideologia de conflitos rígidos e incessantes. O uo ilimi-tado que fazemos da imagem fotográfica não omenteespelha como também dá forrra a nossa sociedad;, unifi-cada pela rejeição aos conflitos. A noção mesmaque te-mos do mundo — o "mundo único" capitalista dt séculoXX - é uma visão fotográfica geral. O mundo é 'Um só"não porque esteja unido, e sirr porque uma vista folhosem seus diversos conteúdos não nos revela conflitos, massomente uma diversidade ainda mais aterradora. Tal uni-dade espúria do mundo vê-se afetada quando lhe tradu-zimos o conteúdo em imagens. As imagens são semprecompatíveis, ou podem ser compatíveis, ainda quandoas realidades que pintem não o sejam.

A fotografia não reproduz simplesmente o real, reci-cla-o — um processo-chave na sociedade moderna. Naforma de imagens fotográficas, novos usos são atribuí-dos às coisas e eventos, novos significados lhes são da-dos, os quais vão além da distinção entre belo e feio,verdadeiro e falso, útil e inútil, bom gosto e mau gos-to. A fotografia é um dos principais instrumentos paraa obtenção daquela qualidade, que apaga tais diferenças,adscrita às coisas e situações: "o interessante". O quetorna uma coisa interessante é o fato de poder ser vistacomo igual ou semelhante a outra. Há uma arte e modano ver as coisas que as torna mais interessantes; e paraalimentar essa arte e moda, uma reciclagem constantedos artefatos e gostos do passado se processa. Os cli-chés, reciclados, tornam-se metaclichês. A reciclagemfotográfica faz surgirem clichés a partir de objetos úni-cos, e artefatos inconfundíveis e vívidos a partir de cli-chés. Imagens das coisas reais são interpostas a imagensdas imagens. Os chineses circunscrevem as modallídadesde utilização da fotografia de maneira que não h;aja ca-madas ou estratos de imagens, e todas as imagens; refor-

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çam-se e reiteram-se entre si'. Fazemos da fotografia um168 instrumento através do qual, precisamente, podemos di-

zer qualquer coisa e servir a qualquer propósito. Àquiloque na realidade é discrição, as imagens se associam. Naforma de fotografia, a explosão de uma bomba atómicapode ser utilizada para fazer anúncio de um cofre.

Para nós, a diferença entre o fotógrafo possuidor deuma visão individual e o fotógrafo documentador objeti-vo parece fundamental, sendo essa diferença muitas ve-zes encarada, erradamente, como o marco que separa afotografia como arte da fotografia como documento.Ambas, são, entretanto, extensões lógicas do significadoda fotografia: um apontamento potencial de tudo o queexiste no mundo, sob todos os ângulos possíveis. O mes-mo Nadar que tirou retratos das celebridades mais famo-sas da época e as primeiras foto-entrevistas foi também oprimeiro fotógrafo que tirou fotografias aéreas; e quan-do executou a "operação daguerríana" em Paris, desdeum balão, em 1855, compreendeu imediatamente a uti-lidade futura, para os estrategistas, da fotografia.

Duas atitudes marcaram a suposição de que qualquercoisa no mundo é motivo para a fotografia. Descobrimosque há beleza ou pelo menos interesse em tudo, se ob-servarmos com olhos realmente abertos. (E o próprio es-tetícismo da realidade, que põe todas as coisas, quaisquer que sejam, ao alcance da câmara, é que permite

"A preocupação dos chineses com a função reiterativa das imagens (e daspalavras) inspira a distribuição de imagens adicionais, fotografias que pin-tam cenas em que, obviamente, fotógrafo algum poderia ter estado presen-te; e o uso contínuo de tais fotografias dá-nos uma ideia de como é pobre oentendimento que a maioria das pessoas tem do que significam as imagensfotográficas e o ato de fotografar. Em seu livro Chinese Shadows, SimonLeys dá um exemplo do "Movimento para Emular a Lei Feng", campanhade massa levada a cabo em meados da década de 1960 com o objetivo deinculcar nas pessoas os ideais da cidadania maoísta, construídos em tornoda apoteose de um Cidadão Desconhecido, um recruta chamado Lei Fengque morreu aos 20 anos num acidente banal. A exposição dedicada a LeiFeng e organizada nas grandes cidades incluía "documentos fotográficos,tais como 'Lei Feng auxiliando uma senhora idosa a atravessar a rua', 'LeiFeng secretamente Is/cl lavando a roupa de seu companheiro', 'Lei Fengdando seu almoço para o companheiro que se esquecera de levara marmi-ta', e assim por diante", e aparentemente ninguém questionou a "presençaprovidencial de um fotógrafo durante os vários incidentes na vida daquelesoldado humilde, è até então desconhecido". Na China, o que torna verda-deira uma imagem é o fato de as pessoas gostarem de vê-la.

também que se opte, no ;aso de qualqjer fotografia,mesmo as de tipo nitidamente prático, p^rserela arte.)A outra atitude trata todasas coisas como objetos de al-gum uso, presente ou futuo, como matéria para estima-tivas, decisões e predições. De acordo cor uma daquelasatitudes, nada existe que não deva ser VÍKO; conforme aoutra, nada há que não deva ser registrdo. A câmaraconcretiza uma visão estética da realídadena medida emque é uma máquina de brinquedo que cobca ao alcancede qualquer um a possibilidade de ernitr julgamentosdesinteressados sobre a importância, o interesse e a bele-za. ("Aquilo ali daria uma boa fotografia.") A câmaraconcretiza a visão instrumental da realidade na medidaem que reúne informações que nos habilitam a reagir demodo muito mais exato e rápido aos acontecimentos. Areacão pode, naturalmente, ser tanto repressiva quantobenevolente: fotografias de reconhecimemo militar con-tribuem para a extinção de vidas, e os raios X, para salvá-las.

Embora essas duas atitudes, a estética e a instrumen-tal, pareçam produzir sentimentos contraditórios e atémesmo incompatíveis com respeito a pessoas e situa-ções, é essa a contradição nitidamente característica daatitude que membros de uma sociedade cue divorcia opúblico do privado devem compartilhar e com a qual de-vem conviver. E talvez não haja atividade alguma quenos prepare tão bem para conviver com tais atitudescontraditórias quanto a fotografia, que se conforma tãobrilhantemente a ambas. De um lado, a câmara coloca avisão a serviço do poder - do Estado, da indústria, da ci-ência. De outro, a câmara torna expressiva a visão den-tro do espaço mítico conhecido como vida privada. NaChina, onde política e moralismo não deixam espaço al-gum para as expressões da sensibilidade estética, somen-te algumas coisas podem ser fotografadas, e apenas den-tro de certos limites. Para nós, à medida que nos torna-mos cada vez mais desligados da política, tanto mais de-simpedido será o espaço que poderemos preencher comos exercícios de sensibilidade que se podem realizar coma câmara. Um dos efeitos da tecnologia fotográfica maisrecente (vídeo, filmes instantâneos) tem sido o de orien

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168çam-se e reiteram-se entre si * . Fazemos da fotografia uminstrumento através do qual, precisamente, podemos di-zer qualquer coisa e servir a qualquer propósito. Àquiloque na realidade é discrição, as imagens se associam. Naforma de fotografia, a explosão de uma bomba atómicapode ser utilizada para fazer anúncio de um cofre.

Para nós, a diferença entre o fotógrafo possuidor deuma visão individual e o fotógrafo documentador objeti-vo parece fundamental, sendo essa diferença muitas ve-zes encarada, erradamente, como o marco que separa afotografia como arte da fotografia como documento.Ambas, são, entretanto, extensões lógicas do significadoda fotografia: um apontamento potencial de tudo o queexiste no mundo, sob todos os ângulos possíveis. O mes-mo Nadar que tirou retratos das celebridades mais famo-sas da época e as primeiras foto-entrevistas foi também oprimeiro fotógrafo que tirou fotografias aéreas; e quan-do executou a "operação daguerriana" em Paris, desdeum balão, em 1855, compreendeu imediatamente a uti-lidade futura, para os estrategístas, da fotografia.

Duas atitudes marcaram a suposição de que qualquercoisa no mundo é motivo para a fotografia. Descobrimosque há beleza ou pelo menos interesse em tudo, se ob-servarmos com olhos realmente abertos. (E o próprio es-teticismo da realidade, que põe todas as coisas, quais-quer que sejam, ao alcance da câmara, é que permite

*A preocupação dos chineses com a função reiterativa das imagens (e daspalavras) inspira a distribuição de imagens adicionais, fotografias que pín- .tam cenas em que, obviamente, fotógrafo algum poderia ter estado presen-te; e o uso contínuo de tais fotografias dá-nos uma ideia de como é pobre oentendimento que a maioria das pessoas tem do que significam as imagensfotográficas e o ato de fotografar. Em seu livro Chinese Shadows, SimonLevs dá um exemplo do "Movimento para Emular a Lei Feng", campanhade massa levada a cabo em meados da década de 1960 com o objelivo deinculcar nas pessoas os ideais da cidadania maoísta, construídos em tornoda apoteose de um Cidadão Desconhecido, um recruta chamado Lei Fengque morreu aos 20 anos num acidente banal. A exposição dedicada a LeiFeng e organizada nas grandes cidades incluía "documentos fotográficos,tais como 'Lei Feng auxiliando uma senhora idosa a atravessar a rua', 'LeiFeng secretamente Is/c] lavando a roupa de seu companheiro', 'Lei Fengdando seu almoço para o companheiro que se esquecera de levar a marmi-ta', e assim por diante", e aparentemente ninguém questionou a "presençaprovidencial de um fotógrafo durante os vários incidentes na vida daquelesoldado humilde, e até então desconhecido". Na China, o que torna verda-deira uma imagem é o fato de as pessoas gostarem de vê-la.

também que se opte, no caso de qualquer fotograf ia^r Piíi íiríp í

mesmo as de tipo nitidamente pratico, por ? «'" *> «•'A outra atitude trata todas as coisas cono o'Je

gum uso, presente ou futuro, como matéria 'atívas, decisões e predições. De acordo com uiia daclatitudes, nada existe que ião deva ser rito;-0™0™outra, nada há que não ceva ser registrado *concretiza uma visão estética da realidade nam

que é uma máquina de brinquedo que coloc. a°de qualquer um a possibilidade de emitir ligamentos

* . *CP P f\p P-desinteressados sobre a importância, o rntere>bt= e ""za. ("Aquilo ali daria uma boa fotografia/' A c [ara

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benevolente: fotografias de reconhecimento™1

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tar para utilizações narcisísticas uma parte maior das ati-170 vidades que executamos privadamente com a câmara —

ou seja, para a autovigilância. Mas modalidades de rege-neração da imagem, tão populares em nossos dias, comoas que se desenrolam no quarto de dormir, na sessão deterapia e no seminário de fim de semana parecem muitomenos significativas que o potencial do vídeo como ins-trumento de vigilância em lugares públicos. É de presu-mir que os chineses acabarão utilizando a fotografia dosmesmos modos instrumentais como a utilizamos nós,com a exceçao, talvez, desse último. A tendência a con-siderar o caráter equivalente ao comportamento tornamais aceitável a imposição pública e ampla do olhar me-canizado que a câmara possibilita e o qual se origina forade nós mesmos. Os modelos de ordem na China, de lon-ge muito mais repressivos, exigem não apenas uma ob-servação cuidadosa do comportamento, mas tambémuma mudança de atitude; naquele país, a vigilância é in-ternalizada num grau sem precedentes, o que sugere umfuturo limitado para a câmara como instrumento de vigi-lância na sociedade chinesa.

A China é o modelo de determinado tipo de ditaduracuja ideia básica é "o bom", no qual se impõem os maisrigorosos limites possíveis em todas as formas de expres-são, inclusive nas imagens. O futuro poderá revelar outrotipo de ditadura, cuja ideia diretriz seja "o interessante",no qual imagens de toda espécie, estereotipadas e excên-tricas, proliferem. Algo parecido sugere Invitation to aBeheading, de Nabokov. O retrato ali construído de umEstado totalitário modelo contém apenas uma arte, oni-presente: a fotografia — e o fotógrafo amigo que rondaa cela de morte do herói vem a ser, no final da novela, ocarrasco. E aparentemente não há como (a menos queocorra uma vasta amnésia histórica, como na China} li-mitar a proliferação da imagem fotográfica. O único pro-blema é saber se a função do mundo das imagens criadopela câmara poderia ser diferente. A presente função ésuficientemente clara, se considerarmos em que contex-tos vemos as imagens fotográficas, que dependênciasacarretam, que antagonismos pacificam — isto é, que ins-tituições sustentam, a que necessidades efetívamente ser-vem.

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Uma sociedade capitalista exige uma cultura baseadaem imagens. Necessita fornecer quantidades muito gran-des de divertimentos a fim de estimular o consumo eanestesiar os danos causados pelo fato de pertencermosa determinada classe, raça 01 sexo. E necessita igualmen-te reunir quantidades ilimitédas de informação, e>ploraros recursos naturais de modo eficiente, aumentara pro-dutividade, manter a ordem, fazer a guerra eoroporcio-nar empregos aos burocratas. A dupla capacidade da câ-mara de tornar subjetiva e objetiva a realidade satisfazessas necessidades de forma ideal, e reforça-as A câmaradefine a realidade de dois modos indispensáveis ao funci-onamento de uma sociedade industrial avançada: comoseus óculos (para as massas) e como objeto de vigilância(para os dirigentes). A produção de imagens fornecetambém uma ideologia dominante. A transformação so-cial é substituída por uma transformação das imagens. Aliberdade de consumir uma pluralidade de imagens ebens equivale à própria liberdade. A contração da liber-dade de opção política em liberdade de consumo econó-mico exige a produção ilimitada e o consumo de ima-gens.

A razão final que justifica a necessidade de fotografartodas as coisas encontra-se na própria lógica do consu-mo. Consumir é sinónimo de queimar, gastar — e, por-tanto, da necessidade de reabastecer-se. À proporçãoque fabricamos imagens e as consumimos, passamos anecessitar de mais imagens ainda, e assim por diante. Asimagens, porém, nâb constituem um tesouro em buscado qual o mundo deva ser esquadrinhado; são precisa-mente o que está à mão onde quer que o olho bata. Aposse da câmara pode inspirar em nós algo parecido coma luxúria. E, como toda expressão da luxúria digna decrédito, essa também não pode ser satisfeita: em primei-ro lugar porque as possibilidades da fotografia são infini-tas; e em segundo porque tal projeto é, afinal de contas,autodestrutível. As tentativas empreendidas por fotógra-fos no sentido de apoiar certa percepção da realidade jáexaurida contribuem para essa mesma exaustão. A sensa-

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Page 19: Susan Sontag O cap de Sobre a Fotografia

cão sufocante que experimentamos quanto à transitorie172 dade de todas as coisas torna-se mais intensa desde o

momento em que a câmara nos permitiu "fixar" o ins-tante fugaz. Consumimos imagens a um ritmo cada vezmais acelerado, e assím como Balzac suspeitava que acâmara consumia partes do corpo, as imagens consomema realidade. A câmara é o antídoto e a doença, um meiode apoderar-se da realidade e de torná-la obsoleta.

Os poderes da fotografia, na verdade, desplatonizaramnossa percepção da realidade, tornando cada vez menosaceitável seu reflexo sobre nossa experiência nos termosda distinção entre imagens e coisas, cópias e originais.Comparar imagens com sombras convinha perfeitamenteà atitude depreciativa de Platão com respeito às imagens— transitórias, quase totalmente desprovidas de conteú-do informativo, imateriais, co presenças impotentes dascoisas reais que as projetam. Mas a força da imagem fo-tográfica origina-se no fato de serem elas realidades ma-teriais por direito próprio, depósitos ricos em informa-ção deixados no rastro da coisa que as emitiu, meio vigo-roso de virar o feitiço contra o feiticeiro, no caso a reali-dade — de transformá-la em sombras. As imagens sãomuito mais reais do que se poderia supor. E exatamenteporque significam um recurso ilimitado, que não podeser esgotado pelo desperdício consumista, há muito maisrazão para aplicar-se a elas o recurso conservacionista. Seo mundo real quiser dispor de um meio mais adequadode incluir o das imagens, necessitará de uma ecologianão somente das coisas reais, mas das imagens também.

Breve Antologiade Citações

(Emhomenagem a W.B.)

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