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SOU MULHER, MAS SOU MACHISTA
Clarice Braatz Schmidt Neukirchen (UNIOESTE)
Resumo: Objetiva-se analisar como a imagem preconceituosa da mulher, delineada no/pelo
discurso da própria mulher, foi estruturada e como a desigualdade, preconceito e opressão
contra a mulher alinhavam-se no discurso cotidiano feminino, tendo como objeto de análise
textos veiculados em postagens de redes sociais. Dessa forma, contemplando esse contexto
como condição de produção sócio histórica, pretende-se refletir sobre a identidade feminina a
partir do discurso, já que é a partir dele que nos configuramos como sujeitos, sendo mediante
o discurso que a ideologia se corporifica. Parte-se da hipótese de que o discurso machista ainda
perpassa de forma muito tenaz o discurso feminino, principalmente no que diz respeito aos
valores atribuídos às mulheres, seja explicitamente ou de forma velada, o que ocorre em função
de uma dominação muito forte e ainda presente na vida da mulher, arraigada não apenas no
discurso misógino, mas também alicerçada no discurso religioso. A própria mulher, mesmo de
forma inconsciente, reproduz esses enunciados, resquícios da ideologia patriarcal que ainda
domina as práticas sociais, assujeitando a mulher e contribuindo para a manutenção da
desigualdade entre os gêneros.
Palavras-chave: discurso feminino; mídias sociais; misoginia.
Abstract: We aim to analyze how the prejudiced image of women, which is outlined in/by the
discourse of the woman herself, was structured and how inequality, prejudice and oppression
against women were aligned in the everyday feminine discourse. The object of analysis are
texts conveyed in social media posts. Therefore, contemplating this context as a condition of
socio-historical production, we intend to reflect on the feminine identity from the discourse,
since we configure ourselves as subjects from the discourse. The ideology is embodied through
the discourse. The analysis is based on the hypothesis that the sexist discourse still pervades
very tenaciously the feminine discourse, especially with regard to the values attributed to
women, either explicitly or veiled, which is due to a very strong domination that is still present
in the life of women. Domination is rooted not only in misogynistic discourse, but it is also
grounded in religious discourse. Women themselves, even unconsciously, reproduce these
statements, remnants of patriarchal ideology that still dominates social practices. They
subjugate women and contribute to the maintenance of inequality between genders.
Key words: feminine discourse; social media; misogyny.
Mãe, santa, anjo, megera, prostituta, bruxa. “Evas” e “Liliths”. Aquela que leva o
homem à ruina, aquela que é sua redenção. Vários são os estereótipos femininos que se
cristalizaram ao longo dos tempos. Mas possuem em comum a capacidade de polarizar e
reduzir aquilo que diz respeito ao feminino. A literatura, o cinema, a música, a mídia em geral,
o discurso cotidiano, as redes sociais, demonstram-se impregnados dessas imagens, que se
difundem e se perpetuam ao longo dos séculos, parecendo estar longe o dia em que deixarão
de existir. O discurso preconceituoso, por mais que seja combatido, ressoa altissonante nos dias
atuais.
Antigamente, mulher de verdade era a “Amélia”, esposa dedicada e mãe zelosa que
cumpria diligentemente as tarefas domésticas. Hoje, além das “Amélias”, a sociedade depara-
se com as odiosas “Feminazzis”, dispostas a demolir os antigos conceitos construídos em torno
da imagem da mulher. Mas como a própria mulher enxerga-se nesse contexto de embate? Como
a mulher olha para a outra, sua igual? Qual o grau de tolerância existente entre “Amélias” e
“Feminazzis”?
Michel de Foucault, ao teorizar a respeito da “sabedoria do casamento”, em sua obra
História da sexualidade, cita um célebre aforismo de Demóstenes: “As cortesãs, nós a temos
para o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas, para ter uma
descendência legítima e uma fiel guardiã do lar” (1998, p. 129). Ora, essa alusão aos distintos
estereótipos de mulher evidencia uma visão que perdura até o presente momento, sendo que as
mulheres continuam rotuladas como descentes/indecentes, honradas/desonradas, para
casar/para diversão.
É inegável que, nas últimas décadas, a mulher avançou consideravelmente em direção
à igualdade de gênero. Conforme observa Vera Lúcia Pires, em Discurso e relações de gênero:
sob o signo da contradição, o rompimento com o senso comum e a instauração do sentido-
outro,
Desde 1975, quando a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher e a
década da mulher, proliferou um campo de estudos políticos e sociológicos
visando a obtenção de fundamentos e dados sobre a situação da mulher nas
mais variadas culturas. Ao final da década, comprovou-se, oficialmente e com
o referendo da ONU, o que as feministas já sabiam há quarenta anos: a
invisibilidade feminina, sua opressão, discriminação social e a desigualdade
no mercado de trabalho em todas as partes do mundo. Em consequência dessa
situação, foram implementadas políticas de reformulação das estruturas
sociais e jurídicas, visando ao comprometimento dos governos na busca da
igualdade e no combate à discriminação das mulheres. Quase quinze anos
depois, conforme estatísticas da mesma ONU, a força produtiva feminina
formal e informal já alcançou 64%1 em todo o mundo, fazendo do “sexo
frágil” a maioria no mercado econômico. (PIRES, 1999, p. 5)
Nota-se que a década de 70 foi marcada pelos movimentos reivindicatórios que
ampliaram o acesso das mulheres à educação, ao desempenho de diversas atividades e à
emancipação sexual. No entanto, apesar do evidente avanço enquanto “mão-de-obra”, a mulher
continua em situação de desprestígio. Remuneração inferior, violência doméstica, violência
simbólica são alguns dos imperativos que a mantém em uma posição de inferioridade. De
acordo com Pires,
A contradição é flagrante. E não são só os números que a comprovam, ainda
que muitos pensadores afirmem que a luta das mulheres em busca de
mudanças na sua posição social, em todo o mundo, tenha provocado a mais
significativa revolução cultural deste século. A contradição entre a posição
alcançada pela mulher na sociedade contemporânea e a representação que
dela se faz está presente em quase todas as áreas sociais como um reflexo das
relações de gênero, relações de desigualdade entre os seres humanos,
constituídas socialmente e determinadas histórica e culturalmente. (PIRES,
1999, p. 5)
E, dentre as formas de violência, a simbólica perpetua-se de forma inconteste, graças
aos padrões éticos e morais da sociedade patriarcal, que dissemina o preconceito em seu
discurso cotidiano. E, nessa esfera, a própria mulher assume o discurso do opressor,
reproduzindo em sua relação com outras mulheres, a opressão e preconceito. O chamado
discurso de gênero não se registra somente no discurso masculino, mas de forma muito ativa
na fala das próprias mulheres.
Tanto o silêncio físico, a ausência de textos sobre as mulheres, quanto o que
chamamos discurso de gênero, que também é uma forma de silenciamento,
pois ao dizer determinadas coisas emudece outras, são registros da
contradição entre certas práticas discursivas e a posição participativa da
mulher na sociedade atual. A linguagem é um processo de interação social
entre os indivíduos. Sua natureza social torna-a um espaço de conflitos em
que, como enfatizou Bakhtin, a palavra é o fenômeno ideológico por
excelência. (Bakhtin, 1929: 36). Reflexo das contradições existentes no meio
social, a linguagem é sensível a qualquer alteração que nele se efetue,
inscrevendo essas mudanças e engendrando novas representações
discursivas. (PIRES, 1999, p. 6)
De acordo com Lúcia Osana Zolin (2005), há um modo de pensar, falar e agir
culturalmente ensinado como “próprio da natureza feminina”, modo este difundido e
perpetuado não só pelos homens, mas também pelas mulheres. Zolin observa que “toda
manifestação de poder exige o consentimento por parte do oprimido. No caso da mulher, tal
consentimento é obtido através de instituições de socialização, como a família e a igreja, ou
através de leis que punem o aborto ou a violência à esposa, afirmando, às avessas, o poder
masculino” (2005, p. 189).
No campo sutil do cotidiano, é importante observar que a palavra difunde
constantemente as ideologias arraigadas no seio da sociedade. E, nesse âmbito, os posts
veiculados nas redes sociais, bem como os comentários observados nessas postagens,
oferecem-se como fértil campo de análise das representações simbólicas e ideologias que
regulam o imaginário. Mesmo veiculados em determinados momentos em tom de
“brincadeira”, revelam o vasto campo simbólico da desigualdade e do preconceito quando o
assunto em pauta é a mulher. Nesse contexto, importante salientar que:
Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da
palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação
à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre
o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor. (BAKHTIN, 1986, p. 115)
Eni Orlandi, por sua vez, assevera que “as palavras simples do nosso cotidiano já
chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no
entanto, significam em nós e para nós” (2003, p. 20). Ora, o eu se funda nessa relação marcada
pela alteridade. Como preconiza Bakhtin, “não posso ser o autor de meu próprio valor assim
como não posso pegar-me pelos cabelos e içar-me” (1997, p.73). O discurso feminino segue
esse mesmo viés, em que a relação eu/outro, masculino/feminino, homem/mulher forjam os
elementos simbólicos que envolvem a construção da imagem feminina, difundida desde os
ambientes mais requintados, até os mais esdrúxulos. Locutores e interlocutores travam um
embate cotidiano, em que as ideologias se revelam e em que se busca construir uma imagem
de si pautada na interação com o outro. E é nesse contexto que muitas mulheres reproduzem
o discurso marcadamente machista e patriarcal, a fim de distinguirem-se como sujeitos de
valor, afinal, todo ato enunciativo origina a construção de uma imagem de si e do outro.
Determinadas perspectivas foram validadas e autenticadas ao longo do tempo, permanecendo
como um instrumento de opressão, inclusive, da mulher pela mulher, transformando discursos
preconceituosos em absolutamente naturais. Assevera Kate Millet que “a situação das mulheres
no quadro do sistema patriarcal é tal que delas se espera justamente que sejam passivas, que
sofram, que sejam objetos sexuais; é indubitável que a sua socialização as incita, com mais ou
menos sucesso, a desempenhar este papel” (MILLETT, 1969,p. 198).
Como bem observa Zolin,
à mulher é vedada a possibilidade de ação. Além de estar aí, sua opressão está
também, e principalmente, na crença de que o destino da mulher é ser passiva,
uma vez que a passividade integra, irremediavelmente, sua natureza. [...] a
mulher mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da
própria escravização. (ZOLIN, 2005, p. 188)
Ou seja, ainda na atualidade a mulher assume o espaço da passividade que lhe é
reservado no universo masculino, defendendo e propagando as crenças e ideais nitidamente
patriarcais, convertendo-se em cúmplice nos atos de discriminação, desigualdade e manutenção
da opressão. “Os seres humanos são livres, mas podem enganar-se fingindo não sê-lo” (2005,
188), afirma Zolin ao justificar o porquê da passividade de grande parte das mulheres ainda
nos dias de hoje. Já Marilena Chauí observa que
a liberdade não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo
do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os
vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como
abertura de novas direções e de novos sentidos a partir do que está dado.
(CHAUI, 1997, p. 362)
Pires, por sua vez, assevera que
Toda a carga histórica de valores e comportamentos diferenciados e
discriminatórios entre homens e mulheres fundaram o que se convencionou
chamar relações de gênero, constituídas e perpetuadas social e
economicamente e determinadas pela cultura e pela história. [...] As relações
de gênero têm sido relações de dominação, hierarquicamente controladas pelo
sexo masculino. [...] a relação social hierárquica entre os sexos é uma
estratégia de poder que, articulada a partir do discurso, tenta encobrir as
desigualdades, naturalizando-as. Assim, elas nem sempre tornam-se visíveis,
não podendo ser questionadas. Produz-se um consenso e o que foi construído
culturalmente é atribuído à natureza. (PIRES, 1999, p. 110)
E essa aparente “naturalização” permite que o oprimido se aproprie do discurso do
opressor, propagando de forma por vezes até mais eficaz as ideologias, preconceitos e
desigualdade que por ele são mantidos. Se pensarmos na quantidade de mães que perpetuam
na educação de seus filhos os conceitos machistas e discriminatórias já se abre diante de nós
um repositório de conteúdos a serem refutados pela crítica feminista. Vera Lúcia Pires, ao
discutir os entremeios do discurso e relações de gêneros, também observa que
O ser humano é contraditório: algumas vezes assujeitado, pode, entretanto,
por sua própria experiência chegar à superação de sua sujeição. O primeiro
passo é o reconhecimento da sujeição. O segundo é a resistência. Resistência
que, dialeticamente, acontece em dois sentidos: pela reivindicação das
diferenças e pela afirmação da igualdade de oportunidades. Em qualquer um
dos casos, o fundamental para a construção do sujeito é o processo de
interação de sua experiência com a sociedade. Por tudo isso, afirmamos a
existência de um indivíduo consciente que intervém para transformar. Nem
meramente objeto nem somente sujeito, mas ambos. Em uma palavra: plural
(PIRES, 1999, p. 02).
Atualmente, há duas vertentes predominantes dos estudos da crítica feminista, quais
sejam, a crítica feminista anglo-americana e a crítica feminista francesa. A primeira, preocupa-
se com a análise dos estereótipos femininos, o sexismo que lhes é subjacente e a pouca
representatividade da mulher na história. Tal perspectiva privilegia os estudos literários,
focalizando a mulher enquanto leitura/escritora. Já a crítica feminista francesa evidencia as
oposições duais e hierarquizadas, solidárias ao falocentrismo, que estabelecem as oposições
homem/mulher, superior/inferior. O discurso feminino é reconhecido como marcadamente
subversivo por essa corrente, sendo que tal discurso pode ser produzido tanto por mulheres
quanto por homens, ultrapassando a dicotomia de gênero. Essa tendência cria o conceito de
“sujeito em processo”, delimitando as modalidades do simbólico (marcadamente masculino) e
semiótico (marcadamente feminino) na produção linguística. O espaço semiótico é
reconhecido como o lugar do imaginário em que há uma significação alternativa do simbólico,
que manifesta livremente a “linguagem sequestrada da mulher” (2005, p. 196), menosprezada
pelo polo masculino da cultura, por colidir com a posição assumida como socialmente
aceitável. Movimentos feministas, como os demarcados pela crítica francesa e anglo-saxônica,
buscam desconstruir o senso comum e muitos valores socioculturais, desejando propiciar o
rompimento com os padrões não igualitários e opressores. Há um desejo crescente de se
reestruturar os significados e dar forma às experiências vividas pelas mulheres.
Assim, pensar a história da mulher e os discursos que lhe perpassam é pensar,
necessariamente, as distinções que marcam homens e mulheres no panorama sócio-histórico-
cultural. A história das mulheres, como observa Mary Del Priore, “não é só delas, é também
aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da
sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores
e dos seus sentimentos” (2000, p. 7). Ao longo da história sempre houveram mulheres que se
recusaram a assumir o estrito espaço que lhes era reservado nas sociedades marcadamente
patriarcais. Da mesma forma que o discurso cotidiano parece acenar para a possibilidade de
que sempre haverá mulheres que contribuem para a perpetuação do machismo.
Mas o que permanece e o que se dilui no discurso que tange à imagem feminina ao
longo das décadas? O que provocou rupturas no discurso contemporâneo sobre a mulher e o
que se manteve inerte? Via de regra, falar em gênero importa em discutir o comportamento e
as relações entre mulher/homem na sociedade. Mas, e as relações existentes entre
mulher/mulher? Como se constituem discursivamente? As transformações sociais incorreram
em alterações dos papéis de homens e mulheres na sociedade, mas a tão sonhada “igualdade”
é realmente objeto de desejo de todas as mulheres?
Esses e outros questionamentos movem as reflexões aqui pretendidas. Desse modo,
objetiva-se analisar como a imagem preconceituosa da mulher, delineada no/pelo discurso da
própria mulher, foi estruturada e como a desigualdade, preconceito e opressão contra a mulher
alinhavam-se no discurso cotidiano, produzido por pessoas não só do gênero masculino, mas
também do gênero feminino, tendo como objeto de análise um texto veiculados em postagens
de redes sociais, mais especificamente via Facebook. Dessa forma, contemplando esse contexto
como condição de produção sócio histórica, pretende-se refletir sobre a identidade feminina a
partir do discurso, já que é a partir dele que nos configuramos como sujeito, se considerarmos
que é mediante o discurso que a ideologia se corporifica, sendo essa uma “condição para a
constituição do sujeito e dos sentidos” (ORLANDI, 2003, p. 46), vez que “o trabalho simbólico
do discurso está na base da produção humana” (ORLANDI, 2003, p. 15).
Parte-se da hipótese de que o discurso machista ainda perpassa de forma muito tenaz o
discurso feminino, principalmente no que diz respeito aos valores atribuídos às mulheres, seja
explicitamente ou de forma velada, o que ocorre em função de uma dominação muito forte e
ainda presente na vida da mulher, arraigada não apenas no discurso machista, mas também
alicerçada no discurso religioso, que estabelece o matrimônio e a maternidade como obrigações
essenciais da mulher.
Iniciaremos a análise com uma postagem veiculada no Facebook em 12 de março de
2017. O texto foi veiculado pela página “Moça, não sou obrigada a ser feminista”, que possui
35.829 seguidores e é moderada por uma mulher de 33 anos, formada em Tradução e
Consultora da área de Linguística1. A página autodenomina-se como uma “Organização
Política” e já a imagem de perfil, – contendo um desenho representando uma mulher e um
aparelho de barbear, aludindo à depilação das axilas, – e a foto de capa, que apresenta a frase
“feminism is cancer”, – revelam as ideologias que defende. A postagem foi comentada por
1 Informações retiradas do site: http://br.avoiceformen.com/feminismo-2/feminismo-e-odio/estou-sendo-
processada-por-ser-editora-da-maior-pagina-antifeminista-do-mundo/
vários usuários, a maioria mulheres, algumas poucas discordando do referido discurso e a
maioria asseverando a legitimidade dos conceitos machistas que apresenta:
É possível observar no discurso acima uma espécie de “demonização” do feminismo.
Primeiramente, salta aos olhos a afirmação: “As únicas pessoas que me dizem que eu preciso
provar que sou igualmente capaz, igualmente valiosa, igualmente respeitadas são as feministas.
Os homens nunca me fizeram sentir depreciada ou subestimada; muito pelo contrário”. Ora,
nitidamente a autora atribui às mulheres “feministas” a responsabilidade por tornar a vida das
mulheres não feministas mais difícil, de gerarem desconforto naquelas que não são feministas.
Na sequência, a autora do texto apropria-se do discurso falacioso de que o feminismo condena
o casamento, a maternidade, a confiança e parceria com o cônjuge, e os afazeres domésticos.
Além disso, reitera o discurso igualmente falacioso de que a mulher feminista não pode fazer
uso de cosméticos, maquiagem, tratamentos capilares, etc. Tal discurso, marcadamente
machista, revela uma oposição tenaz entre as mulheres que optam por uma vida “doméstica” e
aquelas que não desejam esse tipo de vida. No entanto, a base do feminismo não reside em
“regras” de como a mulher deve se vestir, maquiar-se, portar-se. Contrariamente, o feminismo
pretende assegurar a todas as mulheres o direito de escolha, mesmo que sua “escolha” seja “não
fazer escolhas”. Há a presença, no texto, de resquícios do discurso religioso, que prevê que a
“mulher honrada” seja moderada, que seja uma boa esposa que “sirva e aprecie” seu
companheiro, ou seja, reitera a ideia bíblica de que a mulher se submeta a seu esposo.
Igualmente, a menção à função materna também aparece no texto. Conforme observa Mary
Del Priore, “na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da
mulher. Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher que pariu virgem
o salvador do mundo” (ARAÚJO. In: DEL PRIORE, 2000, p. 52).
Os comentários de outras mulheres demonstram que a moderada da página partilha de
uma opinião defendida também por outras mulheres:
Nota-se acima que a usuária “Adriana”2 reitera a opinião de que o feminismo “odeia os
valores femininos”. Novamente surge o conceito de que o feminismo deseja a degradação
moral da mulher. A questão dos “valores morais” aparece duas vezes no comentário. Não
ocorre apenas uma oposição entre mulher feminista x mulher não feminista. Antes, demarca-
se uma contraposição entre “mulheres não feministas com valores” e “mulheres feministas sem
valores”. Esse discurso é inerente ao discurso masculino que separa as mulheres entre “para
casar e constituir família” – ou seja, aquelas que tem “valores morais sólidos” e tem a
finalidade de gerar filhos e ser uma boa mãe e esposa submissa”, e as “para diversão” – ou seja,
aquelas que não possuem “valores morais sólidos” e, por isso, podem satisfazer à lascívia
masculina. De acordo com Pires,
2 Os sobrenomes e fotos dos usuários foram apagados com a finalidade de assegurar seu anonimato.
Em todas as sociedades, as relações de dominação têm um caráter cultural e
ideológico, particularizando relações de poder assimétricas e duráveis que
conduzem a desigualdades, como aquelas baseadas em divisões de classe,
raça, etnia e gênero. Essas relações assimétricas estruturam instituições
sociais e espaços de interação entre os indivíduos (interações discursivas, por
exemplo) e, conforme Thompson (1990), são estimuladas, estabelecidas e
mantidas pelas formas representativas que circulam no meio social,
principalmente difundidas pelos meios de comunicação de massas, sendo a
expressão do senso comum. (PIRES, 1999, p. 126)
Tal consideração pode ser vinculada aos discursos aqui observados, vez que
demonstram essas relações de dominação demarcadas por um caráter ideológico, que procura
demarcar e normatizar os espaços sociais, estimulando, assim, a desigualdade de gênero, e
estabelecendo “regras” sociais implícitas para o “bom comportamento” das mulheres e a
punição e castigo social para aquelas que não se enquadram no modelo. Nesse contexto, o
Facebook tem se mostrado como facilitador da propagação de discursos falaciosos, que
promovem o preconceito e a desigualdade, dentre outros efeitos danosos que podemos citar.
Por mais que os textos que circulam neste meio sejam profundamente marcados pelo senso
comum, ainda assim estimulam conclusões equivocadas e promovem a disseminação de
ideologias discriminatórias e opressoras.
A resposta da usuária “Marina” no comentário de “Adriana” reitera a ideia de que as
feministas desejam que as mulheres sejam infelizes, acrescentando a opinião de que contribuem
para que as mulheres se tornem depressivas. Percebe-se, implicitamente, uma relação entre
mulher feminista/doente e mulher não feminista/saudável, o que sugere uma patologia daquelas
mulheres ditas feministas. Nota-se que o discurso revela uma visão de anormalidade daquelas
que são feministas.
Na mesma esteira apresenta-se o comentário da usuária “Giselle”, na imagem abaixo:
“Giselle” assevera que “as feministas são um câncer na sociedade”. Novamente ocorre
a associação entre feminismo e doença, patologia, algo que degenera. A anormalidade também
subjaz a esse discurso.
A usuária “Paula”, por sua vez, além de concordar com a opinião de “Adriana”,
acrescenta que é irônico o fato de no passado as mulheres terem lutado pelo direito de
ingressarem no mercado de trabalho e, na atualidade, a mulher ser “obrigada” a seguir uma
carreira profissional. Há uma acusação implícita de que o feminismo suprime a liberdade das
mulheres de se dedicarem exclusivamente aos cuidados da família, como se hoje todas as
mulheres desejassem permanecer em casa, cuidando de maridos e filhos, ao invés de
trabalharem fora. Ora, novamente há a presença de um discurso amplamente falacioso. Hoje,
assim como no passado, há muitas mulheres que desejam plena independência financeira, bem
como aquelas que não desejam a maternidade e o casamento. Percebe-se em todos esses
discursos que a imagem da mulher/mãe/esposa/do lar é valorizada, sendo colocada em um polo
positivo, enquanto a imagem da mulher que não deseja o casamento/filhos/afazeres domésticos
é associada ao feminismo, logo localizada em um polo negativo.
Não há espaço, nos discursos, para a mulher que decide ser mãe, casa ou não, mas que
ainda assim valoriza a independência que uma carreira profissional proporciona. Subdivide a
mulher em dois grupos, “de valores” versus “as que não possuem valores”, sendo o segundo
grupo novamente associado ao feminismo.
De acordo com Orlandi,
Na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições.
E isto se faz de tal modo que o que funciona no discurso não é o operário visto
empiricamente mas o operário enquanto posição discursiva produzida pelas
formações imaginárias. Daí que, na análise, podemos encontrar, por exemplo,
o operário falando do lugar do patrão [...]. É assim que as condições de
produção estão presentes nos processos de identificação dos sujeitos
trabalhados nos discursos. E as identidades resultam desses processos de
identificação, em que o imaginário tem sua eficácia. [...] Isto indica a direção
(política e ideológica) dessa formulação. (ORLANDI, 2003, p. 40-41)
Por analogia, o que Orlandi afirma sobre o discurso do operário que fala do lugar do
patrão também pode ser observado no discurso da mulher que fala do lugar do homem
machista, conforme é possível perceber nos discursos analisados. As formações ideológicas
das mulheres cujos discursos foram aqui abordados revelam suas nuances, apontando para uma
perspectiva antifeminista, moralista, fortemente arraigada na moral patriarcal e em preceitos
religiosos solidificados em nossa sociedade.
Assim, constata-se que, apesar de na atualidade ter crescido consideravelmente o
número de mulheres que não vivenciam uma situação real de submissão em relação ao homem,
os discursos machistas sobre essas práticas ainda influenciam fortemente o discurso feminino.
A própria mulher, mesmo de forma inconsciente, reproduz enunciados machistas, resquícios
de uma ideologia patriarcal que ainda domina as práticas sociais, assujeitando a mulher e
contribuindo para a manutenção da desigualdade entre os gêneros.
Referências
AZEVEDO, T. Estou sendo processada por ser editora da maior página antifeminista do
mundo. In: A voice for men - Brasil. 2016. Disponível em:
http://br.avoiceformen.com/feminismo-2/feminismo-e-odio/estou-sendo-processada-por-ser-
editora-da-maior-pagina-antifeminista-do-mundo/. Acesso em: 12/11/2017.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BEAUVOIR, S. de. (1949). O segundo sexo. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 2
volumes
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Vol. II – O uso dos prazeres. 8. ed. Rio de Janeiro:
Graal: 1998.
MILLETT, K. Política sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969.
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PINTO, C. R. J. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política. V. 18, Nº 36:
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