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SOU MULHER, MAS SOU MACHISTA Clarice Braatz Schmidt Neukirchen (UNIOESTE) [email protected] Resumo: Objetiva-se analisar como a imagem preconceituosa da mulher, delineada no/pelo discurso da própria mulher, foi estruturada e como a desigualdade, preconceito e opressão contra a mulher alinhavam-se no discurso cotidiano feminino, tendo como objeto de análise textos veiculados em postagens de redes sociais. Dessa forma, contemplando esse contexto como condição de produção sócio histórica, pretende-se refletir sobre a identidade feminina a partir do discurso, já que é a partir dele que nos configuramos como sujeitos, sendo mediante o discurso que a ideologia se corporifica. Parte-se da hipótese de que o discurso machista ainda perpassa de forma muito tenaz o discurso feminino, principalmente no que diz respeito aos valores atribuídos às mulheres, seja explicitamente ou de forma velada, o que ocorre em função de uma dominação muito forte e ainda presente na vida da mulher, arraigada não apenas no discurso misógino, mas também alicerçada no discurso religioso. A própria mulher, mesmo de forma inconsciente, reproduz esses enunciados, resquícios da ideologia patriarcal que ainda domina as práticas sociais, assujeitando a mulher e contribuindo para a manutenção da desigualdade entre os gêneros. Palavras-chave: discurso feminino; mídias sociais; misoginia. Abstract: We aim to analyze how the prejudiced image of women, which is outlined in/by the discourse of the woman herself, was structured and how inequality, prejudice and oppression against women were aligned in the everyday feminine discourse. The object of analysis are texts conveyed in social media posts. Therefore, contemplating this context as a condition of socio-historical production, we intend to reflect on the feminine identity from the discourse, since we configure ourselves as subjects from the discourse. The ideology is embodied through the discourse. The analysis is based on the hypothesis that the sexist discourse still pervades very tenaciously the feminine discourse, especially with regard to the values attributed to women, either explicitly or veiled, which is due to a very strong domination that is still present in the life of women. Domination is rooted not only in misogynistic discourse, but it is also grounded in religious discourse. Women themselves, even unconsciously, reproduce these statements, remnants of patriarchal ideology that still dominates social practices. They subjugate women and contribute to the maintenance of inequality between genders. Key words: feminine discourse; social media; misogyny. Mãe, santa, anjo, megera, prostituta, bruxa. “Evas” e “Liliths”. Aquela que leva o homem à ruina, aquela que é sua redenção. Vários são os estereótipos femininos que se cristalizaram ao longo dos tempos. Mas possuem em comum a capacidade de polarizar e reduzir aquilo que diz respeito ao feminino. A literatura, o cinema, a música, a mídia em geral, o discurso cotidiano, as redes sociais, demonstram-se impregnados dessas imagens, que se difundem e se perpetuam ao longo dos séculos, parecendo estar longe o dia em que deixarão

SOU MULHER, MAS SOU MACHISTA Resumo · mulher mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da própria escravização. (ZOLIN, 2005, p. 188) ... Já Marilena

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SOU MULHER, MAS SOU MACHISTA

Clarice Braatz Schmidt Neukirchen (UNIOESTE)

[email protected]

Resumo: Objetiva-se analisar como a imagem preconceituosa da mulher, delineada no/pelo

discurso da própria mulher, foi estruturada e como a desigualdade, preconceito e opressão

contra a mulher alinhavam-se no discurso cotidiano feminino, tendo como objeto de análise

textos veiculados em postagens de redes sociais. Dessa forma, contemplando esse contexto

como condição de produção sócio histórica, pretende-se refletir sobre a identidade feminina a

partir do discurso, já que é a partir dele que nos configuramos como sujeitos, sendo mediante

o discurso que a ideologia se corporifica. Parte-se da hipótese de que o discurso machista ainda

perpassa de forma muito tenaz o discurso feminino, principalmente no que diz respeito aos

valores atribuídos às mulheres, seja explicitamente ou de forma velada, o que ocorre em função

de uma dominação muito forte e ainda presente na vida da mulher, arraigada não apenas no

discurso misógino, mas também alicerçada no discurso religioso. A própria mulher, mesmo de

forma inconsciente, reproduz esses enunciados, resquícios da ideologia patriarcal que ainda

domina as práticas sociais, assujeitando a mulher e contribuindo para a manutenção da

desigualdade entre os gêneros.

Palavras-chave: discurso feminino; mídias sociais; misoginia.

Abstract: We aim to analyze how the prejudiced image of women, which is outlined in/by the

discourse of the woman herself, was structured and how inequality, prejudice and oppression

against women were aligned in the everyday feminine discourse. The object of analysis are

texts conveyed in social media posts. Therefore, contemplating this context as a condition of

socio-historical production, we intend to reflect on the feminine identity from the discourse,

since we configure ourselves as subjects from the discourse. The ideology is embodied through

the discourse. The analysis is based on the hypothesis that the sexist discourse still pervades

very tenaciously the feminine discourse, especially with regard to the values attributed to

women, either explicitly or veiled, which is due to a very strong domination that is still present

in the life of women. Domination is rooted not only in misogynistic discourse, but it is also

grounded in religious discourse. Women themselves, even unconsciously, reproduce these

statements, remnants of patriarchal ideology that still dominates social practices. They

subjugate women and contribute to the maintenance of inequality between genders.

Key words: feminine discourse; social media; misogyny.

Mãe, santa, anjo, megera, prostituta, bruxa. “Evas” e “Liliths”. Aquela que leva o

homem à ruina, aquela que é sua redenção. Vários são os estereótipos femininos que se

cristalizaram ao longo dos tempos. Mas possuem em comum a capacidade de polarizar e

reduzir aquilo que diz respeito ao feminino. A literatura, o cinema, a música, a mídia em geral,

o discurso cotidiano, as redes sociais, demonstram-se impregnados dessas imagens, que se

difundem e se perpetuam ao longo dos séculos, parecendo estar longe o dia em que deixarão

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de existir. O discurso preconceituoso, por mais que seja combatido, ressoa altissonante nos dias

atuais.

Antigamente, mulher de verdade era a “Amélia”, esposa dedicada e mãe zelosa que

cumpria diligentemente as tarefas domésticas. Hoje, além das “Amélias”, a sociedade depara-

se com as odiosas “Feminazzis”, dispostas a demolir os antigos conceitos construídos em torno

da imagem da mulher. Mas como a própria mulher enxerga-se nesse contexto de embate? Como

a mulher olha para a outra, sua igual? Qual o grau de tolerância existente entre “Amélias” e

“Feminazzis”?

Michel de Foucault, ao teorizar a respeito da “sabedoria do casamento”, em sua obra

História da sexualidade, cita um célebre aforismo de Demóstenes: “As cortesãs, nós a temos

para o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas, para ter uma

descendência legítima e uma fiel guardiã do lar” (1998, p. 129). Ora, essa alusão aos distintos

estereótipos de mulher evidencia uma visão que perdura até o presente momento, sendo que as

mulheres continuam rotuladas como descentes/indecentes, honradas/desonradas, para

casar/para diversão.

É inegável que, nas últimas décadas, a mulher avançou consideravelmente em direção

à igualdade de gênero. Conforme observa Vera Lúcia Pires, em Discurso e relações de gênero:

sob o signo da contradição, o rompimento com o senso comum e a instauração do sentido-

outro,

Desde 1975, quando a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher e a

década da mulher, proliferou um campo de estudos políticos e sociológicos

visando a obtenção de fundamentos e dados sobre a situação da mulher nas

mais variadas culturas. Ao final da década, comprovou-se, oficialmente e com

o referendo da ONU, o que as feministas já sabiam há quarenta anos: a

invisibilidade feminina, sua opressão, discriminação social e a desigualdade

no mercado de trabalho em todas as partes do mundo. Em consequência dessa

situação, foram implementadas políticas de reformulação das estruturas

sociais e jurídicas, visando ao comprometimento dos governos na busca da

igualdade e no combate à discriminação das mulheres. Quase quinze anos

depois, conforme estatísticas da mesma ONU, a força produtiva feminina

formal e informal já alcançou 64%1 em todo o mundo, fazendo do “sexo

frágil” a maioria no mercado econômico. (PIRES, 1999, p. 5)

Nota-se que a década de 70 foi marcada pelos movimentos reivindicatórios que

ampliaram o acesso das mulheres à educação, ao desempenho de diversas atividades e à

emancipação sexual. No entanto, apesar do evidente avanço enquanto “mão-de-obra”, a mulher

continua em situação de desprestígio. Remuneração inferior, violência doméstica, violência

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simbólica são alguns dos imperativos que a mantém em uma posição de inferioridade. De

acordo com Pires,

A contradição é flagrante. E não são só os números que a comprovam, ainda

que muitos pensadores afirmem que a luta das mulheres em busca de

mudanças na sua posição social, em todo o mundo, tenha provocado a mais

significativa revolução cultural deste século. A contradição entre a posição

alcançada pela mulher na sociedade contemporânea e a representação que

dela se faz está presente em quase todas as áreas sociais como um reflexo das

relações de gênero, relações de desigualdade entre os seres humanos,

constituídas socialmente e determinadas histórica e culturalmente. (PIRES,

1999, p. 5)

E, dentre as formas de violência, a simbólica perpetua-se de forma inconteste, graças

aos padrões éticos e morais da sociedade patriarcal, que dissemina o preconceito em seu

discurso cotidiano. E, nessa esfera, a própria mulher assume o discurso do opressor,

reproduzindo em sua relação com outras mulheres, a opressão e preconceito. O chamado

discurso de gênero não se registra somente no discurso masculino, mas de forma muito ativa

na fala das próprias mulheres.

Tanto o silêncio físico, a ausência de textos sobre as mulheres, quanto o que

chamamos discurso de gênero, que também é uma forma de silenciamento,

pois ao dizer determinadas coisas emudece outras, são registros da

contradição entre certas práticas discursivas e a posição participativa da

mulher na sociedade atual. A linguagem é um processo de interação social

entre os indivíduos. Sua natureza social torna-a um espaço de conflitos em

que, como enfatizou Bakhtin, a palavra é o fenômeno ideológico por

excelência. (Bakhtin, 1929: 36). Reflexo das contradições existentes no meio

social, a linguagem é sensível a qualquer alteração que nele se efetue,

inscrevendo essas mudanças e engendrando novas representações

discursivas. (PIRES, 1999, p. 6)

De acordo com Lúcia Osana Zolin (2005), há um modo de pensar, falar e agir

culturalmente ensinado como “próprio da natureza feminina”, modo este difundido e

perpetuado não só pelos homens, mas também pelas mulheres. Zolin observa que “toda

manifestação de poder exige o consentimento por parte do oprimido. No caso da mulher, tal

consentimento é obtido através de instituições de socialização, como a família e a igreja, ou

através de leis que punem o aborto ou a violência à esposa, afirmando, às avessas, o poder

masculino” (2005, p. 189).

No campo sutil do cotidiano, é importante observar que a palavra difunde

constantemente as ideologias arraigadas no seio da sociedade. E, nesse âmbito, os posts

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veiculados nas redes sociais, bem como os comentários observados nessas postagens,

oferecem-se como fértil campo de análise das representações simbólicas e ideologias que

regulam o imaginário. Mesmo veiculados em determinados momentos em tom de

“brincadeira”, revelam o vasto campo simbólico da desigualdade e do preconceito quando o

assunto em pauta é a mulher. Nesse contexto, importante salientar que:

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da

palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação

à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os

outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre

o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do

interlocutor. (BAKHTIN, 1986, p. 115)

Eni Orlandi, por sua vez, assevera que “as palavras simples do nosso cotidiano já

chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no

entanto, significam em nós e para nós” (2003, p. 20). Ora, o eu se funda nessa relação marcada

pela alteridade. Como preconiza Bakhtin, “não posso ser o autor de meu próprio valor assim

como não posso pegar-me pelos cabelos e içar-me” (1997, p.73). O discurso feminino segue

esse mesmo viés, em que a relação eu/outro, masculino/feminino, homem/mulher forjam os

elementos simbólicos que envolvem a construção da imagem feminina, difundida desde os

ambientes mais requintados, até os mais esdrúxulos. Locutores e interlocutores travam um

embate cotidiano, em que as ideologias se revelam e em que se busca construir uma imagem

de si pautada na interação com o outro. E é nesse contexto que muitas mulheres reproduzem

o discurso marcadamente machista e patriarcal, a fim de distinguirem-se como sujeitos de

valor, afinal, todo ato enunciativo origina a construção de uma imagem de si e do outro.

Determinadas perspectivas foram validadas e autenticadas ao longo do tempo, permanecendo

como um instrumento de opressão, inclusive, da mulher pela mulher, transformando discursos

preconceituosos em absolutamente naturais. Assevera Kate Millet que “a situação das mulheres

no quadro do sistema patriarcal é tal que delas se espera justamente que sejam passivas, que

sofram, que sejam objetos sexuais; é indubitável que a sua socialização as incita, com mais ou

menos sucesso, a desempenhar este papel” (MILLETT, 1969,p. 198).

Como bem observa Zolin,

à mulher é vedada a possibilidade de ação. Além de estar aí, sua opressão está

também, e principalmente, na crença de que o destino da mulher é ser passiva,

uma vez que a passividade integra, irremediavelmente, sua natureza. [...] a

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mulher mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da

própria escravização. (ZOLIN, 2005, p. 188)

Ou seja, ainda na atualidade a mulher assume o espaço da passividade que lhe é

reservado no universo masculino, defendendo e propagando as crenças e ideais nitidamente

patriarcais, convertendo-se em cúmplice nos atos de discriminação, desigualdade e manutenção

da opressão. “Os seres humanos são livres, mas podem enganar-se fingindo não sê-lo” (2005,

188), afirma Zolin ao justificar o porquê da passividade de grande parte das mulheres ainda

nos dias de hoje. Já Marilena Chauí observa que

a liberdade não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo

do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os

vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como

abertura de novas direções e de novos sentidos a partir do que está dado.

(CHAUI, 1997, p. 362)

Pires, por sua vez, assevera que

Toda a carga histórica de valores e comportamentos diferenciados e

discriminatórios entre homens e mulheres fundaram o que se convencionou

chamar relações de gênero, constituídas e perpetuadas social e

economicamente e determinadas pela cultura e pela história. [...] As relações

de gênero têm sido relações de dominação, hierarquicamente controladas pelo

sexo masculino. [...] a relação social hierárquica entre os sexos é uma

estratégia de poder que, articulada a partir do discurso, tenta encobrir as

desigualdades, naturalizando-as. Assim, elas nem sempre tornam-se visíveis,

não podendo ser questionadas. Produz-se um consenso e o que foi construído

culturalmente é atribuído à natureza. (PIRES, 1999, p. 110)

E essa aparente “naturalização” permite que o oprimido se aproprie do discurso do

opressor, propagando de forma por vezes até mais eficaz as ideologias, preconceitos e

desigualdade que por ele são mantidos. Se pensarmos na quantidade de mães que perpetuam

na educação de seus filhos os conceitos machistas e discriminatórias já se abre diante de nós

um repositório de conteúdos a serem refutados pela crítica feminista. Vera Lúcia Pires, ao

discutir os entremeios do discurso e relações de gêneros, também observa que

O ser humano é contraditório: algumas vezes assujeitado, pode, entretanto,

por sua própria experiência chegar à superação de sua sujeição. O primeiro

passo é o reconhecimento da sujeição. O segundo é a resistência. Resistência

que, dialeticamente, acontece em dois sentidos: pela reivindicação das

diferenças e pela afirmação da igualdade de oportunidades. Em qualquer um

dos casos, o fundamental para a construção do sujeito é o processo de

interação de sua experiência com a sociedade. Por tudo isso, afirmamos a

existência de um indivíduo consciente que intervém para transformar. Nem

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meramente objeto nem somente sujeito, mas ambos. Em uma palavra: plural

(PIRES, 1999, p. 02).

Atualmente, há duas vertentes predominantes dos estudos da crítica feminista, quais

sejam, a crítica feminista anglo-americana e a crítica feminista francesa. A primeira, preocupa-

se com a análise dos estereótipos femininos, o sexismo que lhes é subjacente e a pouca

representatividade da mulher na história. Tal perspectiva privilegia os estudos literários,

focalizando a mulher enquanto leitura/escritora. Já a crítica feminista francesa evidencia as

oposições duais e hierarquizadas, solidárias ao falocentrismo, que estabelecem as oposições

homem/mulher, superior/inferior. O discurso feminino é reconhecido como marcadamente

subversivo por essa corrente, sendo que tal discurso pode ser produzido tanto por mulheres

quanto por homens, ultrapassando a dicotomia de gênero. Essa tendência cria o conceito de

“sujeito em processo”, delimitando as modalidades do simbólico (marcadamente masculino) e

semiótico (marcadamente feminino) na produção linguística. O espaço semiótico é

reconhecido como o lugar do imaginário em que há uma significação alternativa do simbólico,

que manifesta livremente a “linguagem sequestrada da mulher” (2005, p. 196), menosprezada

pelo polo masculino da cultura, por colidir com a posição assumida como socialmente

aceitável. Movimentos feministas, como os demarcados pela crítica francesa e anglo-saxônica,

buscam desconstruir o senso comum e muitos valores socioculturais, desejando propiciar o

rompimento com os padrões não igualitários e opressores. Há um desejo crescente de se

reestruturar os significados e dar forma às experiências vividas pelas mulheres.

Assim, pensar a história da mulher e os discursos que lhe perpassam é pensar,

necessariamente, as distinções que marcam homens e mulheres no panorama sócio-histórico-

cultural. A história das mulheres, como observa Mary Del Priore, “não é só delas, é também

aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da

sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores

e dos seus sentimentos” (2000, p. 7). Ao longo da história sempre houveram mulheres que se

recusaram a assumir o estrito espaço que lhes era reservado nas sociedades marcadamente

patriarcais. Da mesma forma que o discurso cotidiano parece acenar para a possibilidade de

que sempre haverá mulheres que contribuem para a perpetuação do machismo.

Mas o que permanece e o que se dilui no discurso que tange à imagem feminina ao

longo das décadas? O que provocou rupturas no discurso contemporâneo sobre a mulher e o

que se manteve inerte? Via de regra, falar em gênero importa em discutir o comportamento e

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as relações entre mulher/homem na sociedade. Mas, e as relações existentes entre

mulher/mulher? Como se constituem discursivamente? As transformações sociais incorreram

em alterações dos papéis de homens e mulheres na sociedade, mas a tão sonhada “igualdade”

é realmente objeto de desejo de todas as mulheres?

Esses e outros questionamentos movem as reflexões aqui pretendidas. Desse modo,

objetiva-se analisar como a imagem preconceituosa da mulher, delineada no/pelo discurso da

própria mulher, foi estruturada e como a desigualdade, preconceito e opressão contra a mulher

alinhavam-se no discurso cotidiano, produzido por pessoas não só do gênero masculino, mas

também do gênero feminino, tendo como objeto de análise um texto veiculados em postagens

de redes sociais, mais especificamente via Facebook. Dessa forma, contemplando esse contexto

como condição de produção sócio histórica, pretende-se refletir sobre a identidade feminina a

partir do discurso, já que é a partir dele que nos configuramos como sujeito, se considerarmos

que é mediante o discurso que a ideologia se corporifica, sendo essa uma “condição para a

constituição do sujeito e dos sentidos” (ORLANDI, 2003, p. 46), vez que “o trabalho simbólico

do discurso está na base da produção humana” (ORLANDI, 2003, p. 15).

Parte-se da hipótese de que o discurso machista ainda perpassa de forma muito tenaz o

discurso feminino, principalmente no que diz respeito aos valores atribuídos às mulheres, seja

explicitamente ou de forma velada, o que ocorre em função de uma dominação muito forte e

ainda presente na vida da mulher, arraigada não apenas no discurso machista, mas também

alicerçada no discurso religioso, que estabelece o matrimônio e a maternidade como obrigações

essenciais da mulher.

Iniciaremos a análise com uma postagem veiculada no Facebook em 12 de março de

2017. O texto foi veiculado pela página “Moça, não sou obrigada a ser feminista”, que possui

35.829 seguidores e é moderada por uma mulher de 33 anos, formada em Tradução e

Consultora da área de Linguística1. A página autodenomina-se como uma “Organização

Política” e já a imagem de perfil, – contendo um desenho representando uma mulher e um

aparelho de barbear, aludindo à depilação das axilas, – e a foto de capa, que apresenta a frase

“feminism is cancer”, – revelam as ideologias que defende. A postagem foi comentada por

1 Informações retiradas do site: http://br.avoiceformen.com/feminismo-2/feminismo-e-odio/estou-sendo-

processada-por-ser-editora-da-maior-pagina-antifeminista-do-mundo/

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vários usuários, a maioria mulheres, algumas poucas discordando do referido discurso e a

maioria asseverando a legitimidade dos conceitos machistas que apresenta:

É possível observar no discurso acima uma espécie de “demonização” do feminismo.

Primeiramente, salta aos olhos a afirmação: “As únicas pessoas que me dizem que eu preciso

provar que sou igualmente capaz, igualmente valiosa, igualmente respeitadas são as feministas.

Os homens nunca me fizeram sentir depreciada ou subestimada; muito pelo contrário”. Ora,

nitidamente a autora atribui às mulheres “feministas” a responsabilidade por tornar a vida das

mulheres não feministas mais difícil, de gerarem desconforto naquelas que não são feministas.

Na sequência, a autora do texto apropria-se do discurso falacioso de que o feminismo condena

o casamento, a maternidade, a confiança e parceria com o cônjuge, e os afazeres domésticos.

Além disso, reitera o discurso igualmente falacioso de que a mulher feminista não pode fazer

uso de cosméticos, maquiagem, tratamentos capilares, etc. Tal discurso, marcadamente

machista, revela uma oposição tenaz entre as mulheres que optam por uma vida “doméstica” e

aquelas que não desejam esse tipo de vida. No entanto, a base do feminismo não reside em

“regras” de como a mulher deve se vestir, maquiar-se, portar-se. Contrariamente, o feminismo

pretende assegurar a todas as mulheres o direito de escolha, mesmo que sua “escolha” seja “não

fazer escolhas”. Há a presença, no texto, de resquícios do discurso religioso, que prevê que a

“mulher honrada” seja moderada, que seja uma boa esposa que “sirva e aprecie” seu

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companheiro, ou seja, reitera a ideia bíblica de que a mulher se submeta a seu esposo.

Igualmente, a menção à função materna também aparece no texto. Conforme observa Mary

Del Priore, “na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da

mulher. Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher que pariu virgem

o salvador do mundo” (ARAÚJO. In: DEL PRIORE, 2000, p. 52).

Os comentários de outras mulheres demonstram que a moderada da página partilha de

uma opinião defendida também por outras mulheres:

Nota-se acima que a usuária “Adriana”2 reitera a opinião de que o feminismo “odeia os

valores femininos”. Novamente surge o conceito de que o feminismo deseja a degradação

moral da mulher. A questão dos “valores morais” aparece duas vezes no comentário. Não

ocorre apenas uma oposição entre mulher feminista x mulher não feminista. Antes, demarca-

se uma contraposição entre “mulheres não feministas com valores” e “mulheres feministas sem

valores”. Esse discurso é inerente ao discurso masculino que separa as mulheres entre “para

casar e constituir família” – ou seja, aquelas que tem “valores morais sólidos” e tem a

finalidade de gerar filhos e ser uma boa mãe e esposa submissa”, e as “para diversão” – ou seja,

aquelas que não possuem “valores morais sólidos” e, por isso, podem satisfazer à lascívia

masculina. De acordo com Pires,

2 Os sobrenomes e fotos dos usuários foram apagados com a finalidade de assegurar seu anonimato.

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Em todas as sociedades, as relações de dominação têm um caráter cultural e

ideológico, particularizando relações de poder assimétricas e duráveis que

conduzem a desigualdades, como aquelas baseadas em divisões de classe,

raça, etnia e gênero. Essas relações assimétricas estruturam instituições

sociais e espaços de interação entre os indivíduos (interações discursivas, por

exemplo) e, conforme Thompson (1990), são estimuladas, estabelecidas e

mantidas pelas formas representativas que circulam no meio social,

principalmente difundidas pelos meios de comunicação de massas, sendo a

expressão do senso comum. (PIRES, 1999, p. 126)

Tal consideração pode ser vinculada aos discursos aqui observados, vez que

demonstram essas relações de dominação demarcadas por um caráter ideológico, que procura

demarcar e normatizar os espaços sociais, estimulando, assim, a desigualdade de gênero, e

estabelecendo “regras” sociais implícitas para o “bom comportamento” das mulheres e a

punição e castigo social para aquelas que não se enquadram no modelo. Nesse contexto, o

Facebook tem se mostrado como facilitador da propagação de discursos falaciosos, que

promovem o preconceito e a desigualdade, dentre outros efeitos danosos que podemos citar.

Por mais que os textos que circulam neste meio sejam profundamente marcados pelo senso

comum, ainda assim estimulam conclusões equivocadas e promovem a disseminação de

ideologias discriminatórias e opressoras.

A resposta da usuária “Marina” no comentário de “Adriana” reitera a ideia de que as

feministas desejam que as mulheres sejam infelizes, acrescentando a opinião de que contribuem

para que as mulheres se tornem depressivas. Percebe-se, implicitamente, uma relação entre

mulher feminista/doente e mulher não feminista/saudável, o que sugere uma patologia daquelas

mulheres ditas feministas. Nota-se que o discurso revela uma visão de anormalidade daquelas

que são feministas.

Na mesma esteira apresenta-se o comentário da usuária “Giselle”, na imagem abaixo:

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“Giselle” assevera que “as feministas são um câncer na sociedade”. Novamente ocorre

a associação entre feminismo e doença, patologia, algo que degenera. A anormalidade também

subjaz a esse discurso.

A usuária “Paula”, por sua vez, além de concordar com a opinião de “Adriana”,

acrescenta que é irônico o fato de no passado as mulheres terem lutado pelo direito de

ingressarem no mercado de trabalho e, na atualidade, a mulher ser “obrigada” a seguir uma

carreira profissional. Há uma acusação implícita de que o feminismo suprime a liberdade das

mulheres de se dedicarem exclusivamente aos cuidados da família, como se hoje todas as

mulheres desejassem permanecer em casa, cuidando de maridos e filhos, ao invés de

trabalharem fora. Ora, novamente há a presença de um discurso amplamente falacioso. Hoje,

assim como no passado, há muitas mulheres que desejam plena independência financeira, bem

como aquelas que não desejam a maternidade e o casamento. Percebe-se em todos esses

discursos que a imagem da mulher/mãe/esposa/do lar é valorizada, sendo colocada em um polo

positivo, enquanto a imagem da mulher que não deseja o casamento/filhos/afazeres domésticos

é associada ao feminismo, logo localizada em um polo negativo.

Não há espaço, nos discursos, para a mulher que decide ser mãe, casa ou não, mas que

ainda assim valoriza a independência que uma carreira profissional proporciona. Subdivide a

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mulher em dois grupos, “de valores” versus “as que não possuem valores”, sendo o segundo

grupo novamente associado ao feminismo.

De acordo com Orlandi,

Na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições.

E isto se faz de tal modo que o que funciona no discurso não é o operário visto

empiricamente mas o operário enquanto posição discursiva produzida pelas

formações imaginárias. Daí que, na análise, podemos encontrar, por exemplo,

o operário falando do lugar do patrão [...]. É assim que as condições de

produção estão presentes nos processos de identificação dos sujeitos

trabalhados nos discursos. E as identidades resultam desses processos de

identificação, em que o imaginário tem sua eficácia. [...] Isto indica a direção

(política e ideológica) dessa formulação. (ORLANDI, 2003, p. 40-41)

Por analogia, o que Orlandi afirma sobre o discurso do operário que fala do lugar do

patrão também pode ser observado no discurso da mulher que fala do lugar do homem

machista, conforme é possível perceber nos discursos analisados. As formações ideológicas

das mulheres cujos discursos foram aqui abordados revelam suas nuances, apontando para uma

perspectiva antifeminista, moralista, fortemente arraigada na moral patriarcal e em preceitos

religiosos solidificados em nossa sociedade.

Assim, constata-se que, apesar de na atualidade ter crescido consideravelmente o

número de mulheres que não vivenciam uma situação real de submissão em relação ao homem,

os discursos machistas sobre essas práticas ainda influenciam fortemente o discurso feminino.

A própria mulher, mesmo de forma inconsciente, reproduz enunciados machistas, resquícios

de uma ideologia patriarcal que ainda domina as práticas sociais, assujeitando a mulher e

contribuindo para a manutenção da desigualdade entre os gêneros.

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