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www.lusosofia.net VERGÍLIO FERRREIRA E A FILOSOFIA DA SUA OBRA LITERÁRIA José Antunes de Sousa 2001

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    VERGLIO FERRREIRAE A FILOSOFIA DA SUA

    OBRA LITERRIA

    Jos Antunes de Sousa

    2001

  • Covilh, 2008

    FICHA TCNICA

    Ttulo: Verglio Ferreira e a Filosofia da sua Obra LiterriaAutor: Jos Antunes de SousaColeco: Teses LUSOSOFIA: PRESSDireco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M.S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

  • Universidade Catlica PortuguesaFaculdade de Cincias Humanas

    Dissertao de Doutoramento

    Jos Antunes de Sousa

    VERGLIO FERRREIRAE A FILOSOFIA DA SUAOBRA LITERRIA

    Lisboa,2001

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    OTA DE APRESETAO

    So misteriosos, bem o sabemos, os desgnios da vida. De mim a Verglio Ferreira apenas uma tmida aproximao e, mesmo essa, imagine --se, pela via da psicologia no mbito da Psicologia Social que, ao tempo, leccionava na Universidade. Afigurou-se-me, com efeito, particularmente elucidativa de um determinado tipo de vivncia em grupo, prximo do que os americanos designam por Total-institution, a caracterizao que do mundo asfixiante do Seminrio do Fundo faz Verglio Ferreira em Manh Submersa. Reconheo agora, porm, que algo mais que a pura caracterizao psicolgica se me imps j ento. , porm, s agora que o sei. Porque hora de decidir-me por um tema que justificasse o investimento que do melhor de ns requer uma tese de doutoramento foi numa casual providencial, sei-o agora conversa com o Professor Joaquim Cerqueira Gonalves que o que era j em mim bvio de se me fazer se me fez bvio de facto: havia um secreto mas forte apelo filosfico em Verglio Ferreira. E por que no acolh-lo, ento, e explorar o filo filosofemtico da sua obra literria? E assim nasceu a deciso de tratar o filsofo que cremos bem haver no autor de Apario, deciso que s o foi, porque, a mesmo, o

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    Professor Cerqueira Gonalves se disps generosamente a acompanhar-me com a sua sbia orientao. , pois, para essa figura mpar de sacerdote, mestre e amigo que vai a minha desvanecida gratido. Quantos entusiasmos refreados, quantos acertos sugeridos, quantos pormenores evidenciados! Tudo, porm, num clima de socrtica liberdade, como , alis, apangio do seu fecundo magistrio.

    Gratido devo-a tambm D Lisete Pereira pelo seu profissionalismo e pela sua paciente compreenso.

    E, a finalizar, trs notas apenas. A primeira acerca das notas propriamente ditas que, sendo, por opo, sobretudo de teor ilustrativo e confirmativo, so-no quase sempre no interior do prprio texto vergiliano. Optei, com efeito, por mover-me predominantemente num quadro hermenutico, ou seja, num contexto afectivo de descoberta, sem desviar excessivamente a ateno para as mediaes. So, por isso, relativamente escassas as notas baseadas em textos de intrpretes de Verglio Ferreira, a cujo mrito indiscutvel presto sincera homenagem, mas que poderiam, de algum modo, perturbar a genuinidade do eco filosfico que em mim causou a obra literria do autor de Para Sempre.

    A segunda nota tem que ver com a opo de inserir no corpo do texto um nmero significativo de citaes da prpria obra de Verglio. Fi-lo por duas razes principais: para salvaguardar a fluncia e a harmonia do prprio texto que se desenvolve num clima de dilogo hermenutico e para evitar sistemticos cortes na leitura, obrigando a desviar, a cada passo, o olhar de quem l para o rodap,facto inegavelmente perturbador de uma leitura integral.

    A terceira nota refere-se excepo que aqui se abriu. Por se tratar de um texto que, referindo-se minha intimidade, , aqum de tudo, do mbito da confidncia, recorri aqui, e apenas aqui, ao uso da primeira pessoa, j que a impessoalidade hiertica do ns acadmico retirar-lhe-ia, decerto, esse tom emotivo que, num clima vergiliano, to

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    pertinente e justificado considero. Seja-me isso relevado pelo que de sincero o motivou.

    Lisboa; Setembro de 2001

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    SIGLRIO

    Na citao das obras de Verglio Ferreira utilizmos as siglas que a seguir se indicam e identificam. As pginas citadas correspondem s da edio referida na BIBLIOGRAFIA.

    AB Alegria Breve AF At ao Fim AN Apelo da 'oite AP Apario AT Arte Tempo C Contos CC (1,2,3,4,5) Conta-Corrente (1,2,3,4,5) CC (ns) 1,2,3,4 Conta-Corrente nova srie (I, II,

    III, IV) CF Carta ao Futuro CFi Cntico Final CFL O Caminho Fica Longe CS Cartas a Sandra E Escrever EI (1,2,3,4,5) Espao do Invisvel (1,2,3,4,5) EP Estrela Polar IC Invocao ao Meu Corpo

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    IDM Interrogao ao Destino, Malraux M Mudana MO Do Mundo Original MS Manh Submersa NN 'tido 'ulo NT Em 'ome da Terra P Pensar PS Para Sempre RS Rpida, a Sombra SS Signo Sinal TF 'a Tua Face TFM Onde Tudo Foi Morrendo VJ Vago J

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    PRLOGO

    Temeridade, dir-se-, isso de remexer assim obra to vasta, to quente ainda de sangue e por isso to presente a de Verglio Ferreira. E s-lo-ia, decerto, se o nosso propsito fosse o de submet-la a eito ao crivo, quantas vezes leviano, da crtica. Julgar o recurso mais mo dos que de mais nada se sabem valer a prontido com que se julga quase sempre sintoma da superfcie em que se . de compreender que o fundo de ns precisa, que compreendendo que se potencia a fraternidade dos espritos: Julgar no compreender, porque assenta na separao do que outrem (IDM,56). Julgar por isso dizermos de algum o que detestaramos ver dito de ns, como acontece na sentena que o juiz proclama com voz solene e moralizante na sala de audincias. Julgar a obra de Verglio Ferreira, ainda por cima sem ter dado tempo a que ela diga de sua justia, seria, convenhamos, correr o risco de conden-la por aquilo que alegadamente parece ter dito o seu autor, quanto muito. Mas quem disse que o autor de uma obra que se deve julgar? isso, antes do mais, insistir no ru errado, pois, como bem se sabe, a obra de arte no tem dono (EI192) porque (...) ideia que se exprima j dos outros(P,26). E por s - -lo, com a emoo que outros ao longo do tempo nela vo investindo que essa obra se vai realizando, pois no que nos diz em cada momento que ela se nos revela como obra de arte. Como muito bem viu o nosso autor: Uma obra de arte aquilo que , e mais o que todos ns atravs das idades,

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    fomos lendo nela (MO,75). Ela tem, assim, uma objectualidade referencial, uma espcie de fisionomia, um certo tom, enquanto rasto emotivo na alma de quem a l. Mas justamente esse saldo que vai determinando o dinamismo estruturante da sua indizvel polissemia. Dito de um outro modo, luz de conceitos bem insistidos em Verglio: h na obra de arte, no caso vertente na obra literria, uma estrutura denotativa que, ao ser investida da carga emotiva do leitor, situado num tempo concreto, se desdobra numa multidimensionalidade conotativa. Seria, por isso, cmoda irresponsabilidade1 pormo-nos a julgar uma obra ainda no abalada pelos estremecimentos de perspectivas que se abriro do segredo (mistrio) de outros tempos. Preferimos a incomodidade da interpelao que a meditao da obra vergiliana nos impe e, partindo de um real parentesco emotivo, desenhar motivos novos de recriao de uma obra que esgotar as suas virtualidades apenas com o desaparecimento do ltimo leitor.

    tambm por isso que no razo para ns aquela tradicional, a de preencher uma lacuna, desgnio ditado, no raro, por um nvio reflexo cientista, como se exaustividade inventarial, bem visvel superfcie por ser do mbito da explicao, houvesse de corresponder um efeito de aprofundamento j do nvel da compreenso. Dir-se- at que quando uma obra de arte (...) mal nos responde..., isto , quando nela se no encontra eco emotivo, justamente ento que ns podemos confront-la estritamente com os vagos e genricos princpios que arte sabemos presidirem (EI1,139). No sendo, pois, o

    1 Julgar o no julgado ainda o mais difcil, j o sabemos, ou seja, sobretudo a obra do

    presente. O mais difcil obviamente o mais fcil. Que a irresponsabilidade cmoda (EI 3,57).

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    nosso desgnio mobilizador o pretendermos preencher uma lacuna, havemos, contudo de reconhecer que os estudos sobre Verglio Ferreira se tm centrado, mais que tudo, na componente especficamente literria da sua obra2. No que no tenha havido algumas abordagens de pendor filosfico3, mas mais como necessidade de adequao ao aparato conceptual de Verglio do que como resposta a um estmulo genuinamente filosfico que da obra vergiliana se lhes impusesse. Ns colocamo-nos assumidamente no campo exclusivamente filosfico, no, porm, a partir de um qualquer sistema em que obra visssemos integrar, mas a partir de uma constelao categorial perfeitamente reconhecvel ao longo da variada obra vergiliana que, enquadrada necessariamente pela tpica exigncia de rigor, v, aos poucos, construindo todo um mundo de sentido. De notar, porm, que filosfico todo o mundo que radicalmente se constri, mesmo que o sentido que a se nos oferea no seja exactamente, como acontece em Verglio Ferreira, um sentido que nos tranquilize e

    2 Desta situao sugestiva mostra a panplia das intervenes dos mais variados e

    autorizados estudiosos que se reuniram a 28, 29 e 30 de Janeiro de 1993 na Fundao Eng Antnio de Almeida com organizao e coordenao da Professora Fernanda Irene Fonseca para homenagear Verglio Ferreira, assinalando os seus cinquenta anos de vida literria. Percorrendo, com efeito, o ndice dos ttulos das vrias comunicaes, excepo porventura das comunicaes de Eduardo Loureno (Pensar Verglio Ferreira, Maria Jos Cantista (Temtica existencial na obra de Verglio Ferreira), Joaquim Cerqueira Gonalves (sentido e paradoxos dum Colquio Uma leitura de Invocao ao Meu Corpo de Verglio Ferreira), verifica-se que fundamentalmente sob o ponto de vista literrio que a obra vergiliana vem sendo analisada e estudada.

    3 De entre os estudos de pendor filosfico sobre Verglio Ferreira assinalamos, para alm dos que referamos na nota anterior alguns mais de Eduardo Loureno (Verglio Ferreira, do alarme jubilao, in Colquio Letras, n90, 1986; Sobre Verglio Ferreira in O Canto do Signo Existncia e Literatura (1957-1993), pp.83-135; e o prprio prefcio 4 edio de Mudana), de Pedro Viegas (A reinveno da Condio humana in Pensar a Cultura Portuguesa Homenagem a Francisco da Gama Caeiro, Edies Colibri, Lisboa, 1993, pp.249-271) ou, de J.L.Gavilares Laso (Verglio Ferreira, Espao Simblico e Metafsico, Publicaes Dom Quixote, Lisboa, 1989. Este ltimo estudo sendo-o prioritariamente da componente literria no pde, segundo o prprio autor, (cf. p.15) evitar s-lo tambm do ser e da temtica existencial. Em rigor e em coerncia, so tambm filosficos todos os estudos que sobre a obra literria de Verglio Ferreira se vm emprendendo. Mas, faltava, cremos, um que se assumisse como expressamente filosfico. Este nosso estudo , nesse vasto campo, um modesto contributo apenas que o teor filosofemtico da literatura vergiliana nos estimulou a dar.

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    satisfaa, mas o sentir que algum sentido pode haver em continuar a procur-lo. Negar sentido vida no em Verglio, como veremos, instalar-se no sem-sentido dela, mas viver como se sentido tivesse a vida que se vive. E viver assim o sem-sentido s em atmosfera de nvio lamento que , paradoxalmente, o sinal subsersor da referida negao. Na verdade, mais que negar o sentido da vida, Verglio deseja-o mais que tudo, mas no v como esse profundo desejo se lhe possa fazer realidade. No queira, porm, ver-se neste nosso modesto mas sentido vislumbre das intrminas possibilidades do texto vergiliano um qualquer estudo crtico sobre a obra e muito menos sobre o seu autor.

    Sobre a obra, desde logo porque a frieza tcnica do crtico nos separaria da sua matriz emotiva, ficando refm de uma anatomia sem alma, maneira do cirurgio demasiado profissional que, exclusivamente centrado nas partes que opera, se esquecesse do ser humano de quem aquelas so partes apenas (P.573). E sobre o autor porque ou se fazia um estudo sobre o lado protocolar, social e transacionvel do cidado Verglio Ferreira, e a estaria a mais sonora decepo a marc-lo4 ou se cingia esse estudo ao artista que no sabe que o , pois s o enquanto escreve e cria e a ele aquilo que escreve e seria intil tal estudo, porque Todo o artista traz consigo uma palavra a transmitir. Mas pobre dele, se a conhece. Se a sabe(P.535); e, por muito que se vasculhasse, o seu mistrio que se no v (P.588) permaneceria inviolvel s investidas de fora.

    Que no tivemos oportunidade de conviver com a pessoa de Verglio Ferreira? Pena, decerto que sim. Mas

    4 Quase todos os que contactam comigo sofrem uma decepo (CC1,14). Cf.ainda P.,591

    e CC1,51: Para mim, jamais, creio, engrenarei bem num convvio decente seja com quem for.

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    sorte tambm. Pena, porque, no mnimo, teramos sentido a distncia que sempre vai entre o lado banal e lidvel da pessoa quotidiana e o artista que cria, em arroubos de emoo original, sintonizado com o centro do universo. Teramos testemunhado a tenso entre a parte mais animal que puxa para baixo e a outra, a parte espiritual, que empurra para cima. Uma tenso dilacerante que acompanhou Verglio Ferreira toda a sua vida5. Mas sorte tambm, porque o convvio com um artista no a melhor forma de desvendar o mistrio da sua obra. Mas talvez a melhor forma de o destruir (P.591). O no ter sido contaminado pela quotidianidade protocolar de Verglio, longe de traduzir-se num handicap hermenutico, constitui mesmo aprecivel vantagem por permitir-nos uma mais genuina adeso emotiva sua obra, que , no fim de contas, o que verdadeiramente conta. Trata-se de uma vantagem sobretudo porque o desafio que de facto se nos apresenta o de compreender a obra superando-a. E no haver obra nenhuma se, do que agora se fizer, no nascer uma outra obra. Pior, certamente, mas outra. S assim, no seu indiciante inacabamento, uma verdadeira obra de arte se cumpre como tal dar-se em renovadas leituras ao impossvel que o homem .

    E eis-nos perante uma questo central em Verglio Ferreira: publicada a obra, ela deixa de pertencer-lhe, tornando-se patrimnio da humanidade. A partir da, a sua obra ficou merc das mltiplas apropriaes afectivas que dela venham a fazer os seus leitores6. 5 Congressos, saracoteio, conferncias, intrigas. E tradues e prmios e falatrio. Tudo

    isso acessvel ao que mundano no prprio artista, ou seja no outro de si (P.100), (sublinhado noso). penosa em Verglio Ferreira essa convivncia entre homem interior e homem exterior, entre o lado sagrado e o lado profano do artista. Nota importante para quem se queira dedicar a traar-lhe o perfil psicolgico. E em CC1, 89 : Cada vez me mais sensvel a necessidade da separao entre a pessoa que sou e o tipo que escreve livros e vou sendo para os outros. E em CC1,22: No fui eu que fiz os livros, senhores. Foi um tipo que mora comigo e com quem alis, no mantenho grandes relaes.

    6 Sobre os desejos ilusrios de perenidade e de glria do autor, leia-se o que diz, de forma lapidar e bela, o prprio Verglio Ferreira em EI1, 91-93.

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    E esta a nossa postura - afectiva acima de tudo. a partir de um secreto estado de con-cordncia que se pode, depois, naturalmente discordar a nica forma de a obra nos falar, superando ns, pela emoo do que ela nos diz, aquilo que nela ficou dito. Porque, ao sair das suas mos, a obra liberta-se definitivamente de quem a produziu7. No nos deixaremos tomar, pois, do clssico zelo anatomizante do crtico, decompondo-a e expondo-a, atados e atidos a um critrio de extenso, mas, antes, procuraremos detectar nela sinais, apenas entreditos, de algo mais do que aquilo que o seu autor quis dizer. Porque esse mais que a obra diz, apesar do autor, que nos atinge8. Alm de que uma tal concepo performativa do estudo crtico visando preencher uma lacuna subsidiria de uma outra, no confessa, de uma obra de arte como algo esttico e exposto um conjunto em bruto merc dos nossos instrumentos cirrgicos da crtica. Como se fosse possvel, assim, arrumar a questo, dizer a ltima palavra. Puro logro, que o dinamismo da obra, se realmente de arte, no deixa que a confundam com as pedras.

    Interessante questo essa, a da autonomia significante da obra em relao qual Verglio Ferreira se v apenas como instrumento9, como interessante essa

    7 Procurar numa obra a subjectividade do seu autor justamente considerado como uma

    falcia (...) e o testemunho de um autor quanto s suas intenes correctamente entendido como uma evidncia inadmissvel Richard E. Palmer, Hermeneutics-Interpretation, Theory in Schleiermacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer, Northwestern University Press, 1969.

    8 Porque uma ideia, como um filho, liberta do que a criou e onde ela existiu como ideia que foi, existe por si e como tal que h-de ser aceite ou repudiada por quem a recusa ou acolhe, e no como espiritualizao da carne que a concebeuP.,416. Cf. tb P.26. possvel que o texto revele a vida do autor, mas tal vida certamente irredutvel da biografia. J.Cerqueira Gonalves, Fazer Filosofia como e onde? FF/UCP, Braga, 1995, p.68.

    9 Toda a gente admira a obra de um grande artista e ergue-lhe mesmo s vezes um monumento a confirmar. Mas nunca ningum ergueu um monumento a um homem e a sua mulher por terem gerado um filho, o que obra infinitamente maior. P.,654. Gerar um filho, escrever um livro ambos instrumentos da Vida.

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    outra, a da comunho dos espritos, a tal con-cordncia de que falvamos mais acima10. por existir j no ntimo de ns muito do que na obra de Verglio fomos encontrar que esta se prolonga neste nosso reconhecimento. Um re-conhecimento, que no uma cega coincidncia.

    Sejamos honestos. a legitimidade dessa simpatia espiritual, ao princpio, que permite a discordncia, ao fim. Partir juntos com uma bssola na mo no garante que se siga o mesmo caminho nem sequer que se chegue ao destino. Partindo, pois, dum sincero estado emotivo que os traos identificativos do pensar vergiliano nos provoca, no temeremos a divergncia e percorreremos inclusive o nosso prprio caminho. Podemos at adiantar, desde j, o motivo central e decisivo dessa divergncia que h-de constituir, de resto, a afirmao-tese deste nosso trabalho de aproximao obra de Verglio Ferreira: a sua sistemtica e obsessiva travagem onto-lgica. Atravessam toda a sua obra ficcional e ensastica sinais ntidos dessa manobra decretria que suspende in extremis o trnsito lgico de uma descrio existencial do ser para o acolhimento da transcendncia que naquela vivnvia se implicaria. Foi, com efeito, impressivo e irresistvel o estmulo que filosofia em ns desencadeou a obra vergiliana. E esse estmulo, digamo-lo claramente, deveu-se ao facto de haver realmente literatura em Verglio, que o que acontece quando, pela escrita radical, como o seu caso, um mundo a partir da raz que se constri. E um mundo construdo radicalmente um mundo filosoficamente construdo11. Aquela sua exigncia de uma racionalidade que se no ficasse apenas pela lgica funcional da pura 10 Falando do gnio diz Verglio Ferreira: Um homem que teve uma ideia genial, em que

    que superior a outro que teve a mesma ideia depois, mesmo sem saber que outro a tinha j tido? (...) o gnio tem que ver com uma jogada de antecipao.. (P.545). Cf. ainda P.535, 162, 113, 93, 76, 58 e 25.

    11 Joqauim Cerqueira Gonalves, apud Maria Leonor Xavier Ditos Filosficos de Joaquim

    Cerqueira Gonalves, Poitica do Mundo Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonalves, Edies Colibri, 2001, p.69.

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    demonstratividade, mas que nela incluisse o que parece mesmo, se no contrari-la, seguramente super-la e integr-la numa dimenso de um homem total obrigou-nos a segui-lo, passo a passo, ao longo da sua vasta obra. Chegados, porm, ao termo dessa caminhada, inegavelmente absorvente, um travo nos ficou como se o excesso que no homem se investiu merecesse melhor sorte e um desfecho mais a condizer com o que de augurial o inundara. como se uma palavra a estivesse pronta a ser dita e que, de algum modo, exigia ser dita e que, ao fim, ficou por dizer. E entre essa exigncia de que essa palavra se dissesse e o silncio aflito que a substituiu toda a trgica amargura de Verglio e, paradoxalmente, todos os interstcios de esperana por onde agora ns espreitamos.

    No fora o pudor de cair no pendor psicologizante de certa hermenutica e arriscaramos a dvida sobre se Verglio Ferreira no ter transportado, vida fora, o travo amargo da dissonncia entre o que se permitiu escrever e o que desejou escrever: decerto eu estava cheio no bem daquilo que disse, mas do que desejei dizer (...) (EI4,263). Ser no ltimo captulo que confrontaremos o autor com as frestas do seu prprio sistema de que irrompem nvias luzes de esperana para o homem cujo destino o seu reducionismo existencial condenou barriga das minhocas12. Ou, como quando o protagonista de um dos 12 -Cf. n/estudo sobre Verglio Ferreira (reflexo filosfica sobre o ser e a existncia) em

    Histria do pensamento filosfico portugus. O sculo XX, vol.V (tomo 1), Ed. Caminho, Lisboa, 2000, pp. 455-456.

    Sobre a decisiva questo da travagem onto-lgica operada pelo autor cf. nosso estudo supracitado (pp 449, 453 455). E a propsito do provvel papel do intrprete de dizer o que Verglio Ferreira no quis dizer : sem concedermos a Verglio Ferreira que o homem absurdo, pode, contudo, admitir-se, entretanto, que o objectivo nico vlido como sentido de orientao, mas se s apenas orientao (...) o que falta a este ensaio [Invocao a Meu Corpo] no propriamente a coragem, palpvel a muitos ttulos, mas a coragem de ir at ao fim da reflexo. Mas tal exigncia ser de a fazer ao escritor? Ao heri? Ao intrprete? CERQUEIRA GO'ALVES, Sentido e Paradoxos dum Colquio uma leitura de Invocao ao Meu Corpo de Verglio Ferreira, in Verglio Ferreira Cinquenta anos de vida literria, ACTAS do Colquio interdisciplinar organizado pela

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    seus romances, sentindo-se rebentar naquele excesso de si, exclama em duas situaes de aperto: Tudo to de mais, tudo to de mais (...) (CFi,64;155).

    Parece, de facto, ressaltar da leitura da obra vergiliana uma espcie de voluntarismo decisionista, dando a impresso de que, decretando-se aquela obstinada confinao apodicticidade absoluta e assptica do existir individual, se poupava a implicaes que lhe resultariam pessoalmente incmodas. Interessante hiptese esta que, afigurando-se-nos lcito enunciar, talvez seja abusivo e perigoso contudo explorar em demasia.

    Em todo o caso, ao intrprete, animado do movimento induzido pelos pressupostos vergilianos, no se pode privar do seu prprio ritmo e impedi-lo de que v at onde o levar essa embalagem conceptual, exigindo-lhe que trave bruscamente. Num ltimo captulo, daremos, pois, conta do nosso prprio percurso luz do pensamento vergiliano, num impulso re-criativo e re-orientador da obra interpretada. No sem antes, no corpo central, nos obrigarmos a um levantamento, to fiel quanto possvel, da temtica vergiliana, ressaltando-lhe o que julgamos ser os seus traos mais significativos, trabalho sobretudo de identificao, que uma adequada chave hermenutica de acesso ao pensar vergiliano (1 parte) h-de por certo facilitar.

    Apenas uma palavra mais agora sobre o cho ontolgico em que cremos radicar a criao literria e a criao filosfica. Diremos mesmo que, s enquanto criao, qualquer delas pode ser, realmente filosfica. S da radicalidade enunciativa e anunciativa se solta uma cadeia nova de sentido e, s assim, um mundo se nos prope como expresso radical de um comeo que se nos abre a insuspeitadas aberturas de sentido. E esta radical fundao de um mundo de sentido que a verdadeira

    Faculdade de Letras do Porto, Fundao Eng Antnio de Almeida, Porto, 1995, p.292. Doravante simplesmente ACTAS.

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    literatura promove que estabelece a fluidez articulativa entre literatura e filosofia: no se inventa um mundo sem que se lhe tenham que inventar razes de o viver e de como viv-lo. Um mundo que literariamente se pe tambm um mundo que se nos prope e isso construir um mundo luz de um critrio genuinamente filosfico. No se inventa um mundo sem que isso que se criou tenha consequncias - e das consequncias do que fundamentalmente se ocupa a filosofia. E assim que a base do nosso estudo filosfico justamente a obra literria de Verglio Ferreira que inclui naturalmente tanto a obra romanesca como a obra ensastica. Romance porque o de ideias e, por isso, romance-ensaio e o ensaio porque versa problemas de forma literariamente criativa, quase como ensaio-romance13. E, nesse aspecto, importa, desde j, assinalar, com toda a nfase, a notvel marca de originalidade de Verglio Ferreira no contexto das Letras Portuguesas. Ele que, com o sangue quente da juventude nas veias, foi, como tantos outros, sensvel urgncia da questo social, pronto se deu conta que nem s de po vive o homem e de que l, no fundo dele, lateja o grito surdo do seu interrogar, rasto ontolgico do que nele realmente importante, o nico problema essencialmente humano e que subsiste mesmo quando todos os demais tenham sido eventualmente resolvidos. E foi como Verglio Ferreira passou duma arte visando um problema dos homens (o neo-realismo) para uma arte exclusivamente dedicada ao homem-problema, mesmo sabendo que no uma soluo que visa, mas gast-lo, at que o sofrer-se homem se torne mais suportvel. E neste original interrogar-se a si e no aos outros, foi como medrou a obra de Verglio

    13 Eu prprio, alis, tenho cultivado esse tipo de ensaio emotivo e de criatividade, ou seja,

    no bem apenas informativo ou neutral e nele assim tenho procurado uma contaminao do que ensastico e romanesco (EI4, 36).

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    Ferreira14. Esta transio de uma problemtica social para uma outra, a da radicalidade existencial, do Verglio-indivduo girando sem fim em torno do eu de si mesmo, a passagem, enfim, de uma literatura marcada ainda pelo ferrete ideolgico para uma outra alimentada pelas ideias de sangue est lapidarmente caracterizada por Eduardo Loureno no prefcio que dedicou a Mudana, romance que anuncia em Verglio Ferreira, letra e, num registo quase onomatopeico, precisamente essa tal transio15. , curiosamente, em aluso explcita ao ensasmo alterolgico e mediato de Eduardo Loureno que o nosso autor confessa: compreendo agora porque problemtico que ele realize uma obra, porque um livro no pode

    14 Ao princpio do evangelho de que nem s de po vive o homem, ops a justia

    imediata o de que sem ele no se vive. E nestes dois plos equilibrei a minha obra toda. Fui sensvel, como toda a juventude do meu tempo, s injustias sociais e opresso salazarista que sufocou a liberdade durante dezenas de anos. E comeando assim pelo imediato, o que se me imps foi a evidncia de que sem po no se vive. Depois estabeleci uma distino entre o que mais urgente e o que mais importante, se bem que a urgncia fosse tambm sempre importncia. Admiti ento que um problema de injustia era decerto resolvel, como admiti que, sendo imediato, no era o mais profundo e duradouro (...) O meu primeiro livro juvenil O Caminho Fica Longe tenta equilibrar-se logo no apelo das duas vozes. Predominou depois a primeira, a da urgncia, e ao seu impulso realizei vrios outros livros, inseridos no que entre ns se chamou o neo-realismo, ou seja o realismo social. De seguida, lentamente (...) a minha temtica desceu ao que suponho basilar no homem, ao problema que nos espera, depois de resolvidos quaisquer outros. O problema do destino do homem e do mistrio que o envolve insolvel. Mas o que mais seduz o homem no o que tem soluo, mas justamente o que a no tem. E no entanto uma das formas de resolvermos o que a no tem justamente gast-lo. Dizer, alis, uma dor objectiv-la e portanto sofr-la menos (EI5, 79-80).

    15 No caso de Verglio Ferreira, a aventura criadora complica-se, pois a sua referncia mtica inicial a de Ea de Queirs, patrono do nosso romance moderno e seu rochedo de Ssifo. Na realidade, o seu itinerrio a histria de um afastamento contnuo de Ea sem jamais o perder de vista e uma aproximao do expressionismo de Raul Brando sem jamais aceitar a sua caoticidade visionria nem o seu empirismo pattico. Entre o romance como conscincia crtica do mundo alargada at viso dialctica requerida pelo neo-realismo e a expresso nua da pulso inconsciente, alheia ou indiferente s razes sociais que hipoteticamente exprimem, Verglio Ferreira efectuar a sntese que o seu gnio prprio consentia. Esse gnio essencialmente tanto no romance como no ensaio o de uma aguda e permanente capacidade de sentir a dupla agonia ou o combate nico da vida sem razo e da razo como tribunal da vida. A forma romanesca, objectivante e dialogal a cobertura de um longo, renascente e pattico monlogo entre uma conscincia atenta ao seu destino social e histrico e uma conscincia a mesma incapaz de encontrar em qualquer forma desse destino uma resposta para o que nela interroga desde a origem e a pe em causa, (Eduardo Loureno, Prefcio a Mudana, pp. 11-12).

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    simplesmente distrair-nos. necessrio um saldo final que nos comprometa com a vida. Que nos perturbe. (CC1,48 e 51). Foi essa obra fico ou ensaio que ele nos deixou, no como algo produzido s tecnicamente, que isso , segundo ele, literatura de consumo, mas como algo em que investiu a fundo, no deixando fora uma pinga de emoo que fosse ele jogou-se inteiro na sua obra. Que tipo de obra? A da interrogao. E no de um interrogar assptico e inconsequente, como se tudo no passasse de um mero exerccio de puro enlevo intelectual. Tem consequncias o seu pensar porque, sendo um no--pensar, uma vez que a realidade excede o objecto que se lhe suporia inerente ('',277), o horizonte da morte cintila, perturbador de um qualquer conformismo fustico.

    Em Verglio Ferreira, tanto o ensaio como o romance convergem num ponto de auto-questionao dramtica, em que o pathos metafsico se intromete sempre e de modo obsidiante16. Numa poca a que parece faltar um projecto global Verglio Ferreira cumpriu, de forma genial, o dever essencial do homem culto e intelectual o de interrogar o seu tempo. E convenhamos que o fez como ningum. Para

    16 Chegados aqui, talvez algum possa concluir que o seu ensasmo, tido como o exemplo

    mesmo do ensasmo de interrogao, seja, ao fim e ao cabo, o de uma interrogao que no interroga, por fechada ou centrada ela mesma em evidncias anlogas a certezas precoces. Talvez fosse assim se o tipo de evidncias sobre que se alicera a sua reflexo no pertencesse ao nmero das evidncias percorridas pela conscincia da sua intrnseca fragilidade. Mesmo aquela que a evidncia-fundadora, a tantas vezes j aludida apario. Da evidncia das evidncias faz parte, no universo de Verglio Ferreira, a conscincia da sua inscrio no horizonte da morte, e isso bastaria para que a sua meditao escapasse no seu cerne tentao do contentamento de si, quero dizer, do contentamento intelectual ou espiritual, bice supremo de um ensasmo digno desse nome, (Eduardo Loureno, O Canto do Signo Existncia e Literatura (1957-1993), Ed. Presena, Lisboa, 1993, p.121. E mais adiante, p.131 : Todos os romances de Verglio Ferreira, mesmo os primeiros, esto cheios do que se poderia chamar obsesso metafsica ou pathos metafsico, expresso na predileco pelos que tradicionalmente pertencem esfera da filosofia, temas da angstia, da morte, do tempo, de Deus, do sentido da arte ou da histria. (...). A essncia da viso de Verglio Ferreira que a de encontrar sob o sentido bvio de tudo, o nome divino, aquele que diz a realidade do mundo quando ns no esquecemos que ela uma s coisa connosco mesmos, contm essa exigncia de um pensar absoluto, mas sem finalidade fora de si prprio.

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    nosso desassossego. E ainda bem. Seguiremos, na sua peugada, interrogando. Que a interrogao, luz de Verglio o verdadeiro instrumento do aprofundamento. E s o que se vive em profundidade verdadeiramente humano. E s quando acontece filosofia. Porque s o que nos acontece nos surpreende. E s o que nos surpreende, nos interpela. Esse, sem dvida, o verdadeiro papel da filosofia. E neste campo nos moveremos17.

    17 No ignoraremos, bem pelo contrrio, os meritrios estudos sobre o autor empreendidos

    por Maria da Glria Padro Verglio Ferreira, um escritor Apresenta-se, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1981, de J.L.Gavilanes Laso El espacio simbolico en la obra de Verglio Ferreira, trad. Antnio Jos Massano, Lisboa, D.Quixote, 1989, e sobretudo de Helder Godinho Estudos sobre Verglio Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda,1982 e O Universo Imaginrio de Verglio Ferreira, Lisboa, INIC, 1985, sem esquecer Eduardo Loureno em O Canto do Signo Existncia e Literatura (1957-1993), Editorial Presena, Lisboa, 1993, pp.83-135. Em Fernanda Irene Fonseca, Deixis, Tempo e 'arrao, Fundao Eng Antnio de Almeida, Porto, 1992.

    Este nosso estudo tem, contudo, como objectivo, ousado mas sincero, tentar, pela primeira vez, uma viso de conjunto ou sistematizao da obra vergiliana luz de um critrio exclusivamente filosfico, procurando posicionar Verglio Ferreira com um estatuto prprio no contexto da Filosofia Portuguesa, mesmo que sob tal designao queiramos entender to-s a filosofia feita por portugueses e no uma maneira especficamente portuguesa de fazer filosofia a eterna polmica em que nos no enredaremos aqui.

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    PRIMEIRA PARTE

    RUMO OBRA

    Principais categorias vergilianas

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    CAPTULO I

    A Obra literria de Verglio Ferreira 1 A situao do homem e do autor

    Move-nos to-s a inteno de, em breves pinceladas, traar o perfil filosfico de Verglio, avivando para isso alguns traos mais significativos do mundo que foi o seu18. Identificar com preciso todas as fontes verdadeiramente estruturantes do pensamento vergiliano , contudo, tarefa, s por si, to exigente e complexa que o melhor reservar-no-la para um futuro em que a coragem nos disfarce o risco ou, o mais certo, reservarmo-la para outros, que os h, bem mais habilitados para a empreender. Aqui, algumas pistas apenas. E uma delas , sem dvida, avaliar o modo como Verglio se viveu na sua condio de portugus. T-lo- sido a partir de um conceito apologtico e pico de ptria e cuja vivncia fosse predominantemente exaltatria e celebrativa? No, decerto, como expressamente o afirma o prprio Verglio (cf. EI4, 222-224). Os valores,

    18 De resto, Verglio Ferreira, reconhecendo embora a influncia de muitos autores, sublinha a

    autenticidade do seu mundo : eu sei que o que realizei meu e no dos outros. Se os outros estiveram na origem disso, foi como quando se empurra um carro e depois anda por si (CC1,357).

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    nomeadamente o da grandeza e do herosmo tm o seu estilo de ser, segundo o estilo do tempo em que so (EI4,222). A vida valoriza-se-nos prismaticamente, ou seja, a partir do valor que para ns viv-la. E a grandeza em Verglio est no tanto nas formas partilhadas e equivocamente comunais de viver, mas em viver por inteiro e no absoluto solitrio do eu a vida que a cada um coube viver. A um conceito passadista de ptria, configurado sobretudo pelo que no presente se nos d sob a forma de evocao, algo narcsica, de um passado que, de algum modo, nos qualificasse os genes, a esse conceito glorificativo da singularidade da nossa gesta histrica prefere Verglio um outro, o de ptria como uma comunidade de destino em que o que se valoriza no tanto a glria de se ter sido o que se foi como sobretudo a responsabilidade de sermos no futuro o que em ns sentimos que devemos ser19. E o modo especial de sentir que justamente nos define como povo: a histria de um povo a histria de uma sensibilidade, que as h vrias nas mltiplas formas de sermos em concreto o homem que somos.

    Porque h o homem fundamental que o ter que se ser homem aqum mesmo de todos os motivos para o sermos, mas o sermo-lo de facto no mundo que nous coube que o somos. Mais, ns somos esse mundo. Da que, para alm da individualidade que se , haja a individualidade do mundo em que somos e essa individualidade um todo to macio e natural que o ser dela, de to nosso ser, coisa que quase no d sequer para pensar, como no pensamos no ar que respiramos e esse um alto valor que , por muito que, em dados momentos, 19 Mas, expurgado de toda a conotao pica e ancestral, o conceito que (a Ptria)

    corresponde no vejo que possa ser outro seno o de uma comunidade ou da integrao de um povo naquilo que o constitui e sobretudo o projecta. Ela assim menos o que e muito menos o que foi do que aquilo que a define na responsabilidade do que h de ser. (EI4,222).

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    se tenda a depreciar, inexorvel reaprender. E Verglio Ferreira reflectiu bastante acerca da validade do conceito de ptria, o que, decerto, traduz a preocupao de encontrar uma razo que lhe justifique o sentimento, mesmo que a ptria a no tenha sentido Verglio maneira dos patriotarrecas de Ea de Queirs (cf. EI1,222). A este conceito de ptria tende Verglio a des - -socializ-lo e a ver nele a expresso do mero correlato situacional da decisiva realidade pessoal20. H, pois, na concepo vergiliana de ptria uma contraco at ao plano fundante da unidade consciencial de cada um e em que mal cabe um conceito que se imponha e se acolha pela indiscutibilidade de um contedo universal ou, para usarmos um conceito de ressonncia husserliana, de um contedo regional: A ptria, como tudo, s tu. Se for tambm a do teu adversrio poltico, j problemtico haver ptria que chegue para os dois (E,133). Esta concepo remete para a ambiguidade matricial de Verglio, como veremos, entre uma radical insularidade do eu em cuja histria se consuma e esgota o prprio universo e a necessidade de um modus vivendi que permita a sobrevivncia em ordem e em paz da vida em comunidade. Entre a essencial determinatividade da situao que a cada um faz ser o que e o diferencia, portanto, como um mundo que se reconhece no mundo que o seu e esse apelo vivo da fraternidade que, no ntimo de cada eu, a radical experincia existencial reclama e sublinha. E a a importncia da ptria que Verglio to enfaticamente reconhece e assume21. E a este conceito tende Verglio a dar uma conotao de persistncia no ser ao longo do tempo sermos o que somos e h tanto tempo que 20 A circunstncia, alis, no apenas circunstancial mas envolve os milhentos

    condicionamentos, desde o sangue que os pais nos injectaram at ao todo em que realizmos a vida (E,55).

    21 Em E,59 por exemplo exclama Verglio : Porque amo tanto o meus pas? Ele deu-me a lngua, ou seja o mundo que ela me escolheu. Deu-me a terra e o mar e a montanha e tudo o que na paisagem e ns seres meus irmos a realidade da pessoa que sou, a identidade com que me reconheo. Assim amo o meu pas porque sou eu. E o que sou, s depois de morto o poderei saber.. Termos semelhantes poderemos encontrar em E,242.

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    o somos que no queremos nunca deixar de s-lo. Duas conotaes, por isso, tende Verglio a ver no conceito de ptria: a de antiguidade e a de um certo reaccionarismo que quela naturalmente se associa. E se a ns, portugueses, nos resulta relativamente natural falar em ptria, outros povos h a quem um tal termo resultar estranho e artificial, nomeadamente queles cujos pases so de recente constituio. Que, nesses casos, se prefira falar de povo em vez de ptria parece abonar a hiptese vergiliana de que a antiguidade e o apego s origens sejam os elementos realmente constitutivos de um universal sentimento de pertena que ao conceito de ptria fundamentalmente se associa22. Parece pois anotar-lhe Verglio ao conceito de ptria uma indispensvel diacronicidade, sem a qual se no d a sensao de persistncia e de continuidade, mas em que a essncia do que se como que se petrifica num plano sincrnico somos hoje e continuaremos a esforar-nos por ser at onde se possa o que sempre fomos (cf. CC (ns) IV,178). No importar sequer muito que tenha Verglio misturado num mesmo conceito os de ptria e de nao, porque no foi inteno sua esse rigor cientfico salvaguardar. O que sim relevante o seu sentido apreo pela terra bere e materna em cujo seio a sua forma de ser

    22 O conceito de ptria. No existiu sempre como sabemos. Mas tambm no existe hoje

    para todos os povos (...) A Grcia tinha o conceito de ptria mesmo depois da unificao macednica? No me lembro. Roma teve. Depois, o Renascimento. Depois outras pocas com as oscilaes. E hoje? Compreendemos uma Frana a falar em ptria. E a Alemanha, um pouco. Menos uma Inglaterra, em que a ptria ser talvez a terra. Ou uma Espanha, em que a ptria o povo espanhol, ou simplesmente a Espanha. Mas algum concebe uma Amrica a dizer ptria? Ou um pas africano? No apenas uma Angola ou Moambique, que falaro sempre e s do povo angolano ou moambicano. Mas mesmo os outros? A oscilao faz-se entre povo e ptria, sendo a ptria evocadora de certa antiguidade e talvez de reaccionarismo. Mas, e a Amrica? E que que diz a Sua, a Holanda, o Luxemburgo? A Itlia, de unificao to recente? Os povos sul-americanos? A saber, para reflectir (CC2, 217 9 Agosto 79). A este propsito cf. tambm EI5, 105-106 e E, 133,242, 59 e 85.

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    homem se forjou23. E tal esse apreo que, do mesmo modo que nenhum filho suporta ofensa que sua me atinja, assim Verglio se mostra sentido com o facto de Portugal, que se despojou mui justamente do seu sonho imperial (no o mando que est no seu horizonte) se esteja agora a agachar tanto em atitude de submisso perante o desgnio imperialista de outros: mas no deve estar tambm a submisso24. Incomoda-o e entristece-o particularmente esta sonolncia colectiva, esta indiferena perante a inalienvel tarefa de assumirmos a razo de sangue e de alma pela qual ningum possa fazer-nos sumir que isso que acontece no apenas quando o nosso destino foi cair s mos de outrem, como quando ns prprios o no reconhecemos para o assumir e continuar. Em qualquer dos casos, some-se o que sumir no pode nunca: esse o nosso dever, o de nos no esquecermos de ns, que, nessa altura, no faltar quem de ns se lembre: perdermo-nos de ns correr o risco de que outros nos encontrem (EI4, 223)25. Mas no uma entrega que como tal se sinta, mas mediada por uma ideologia que a disfarce e a engrandea, integrando-a num absoluto prometeico que a todas as submisses justifique, como data da angustiada pergunta de Verglio sobre o futuro de Portugal esteve na iminncia

    23 : Aprendi a montanha ao nascer, tive a primeira noo do mar na infncia e fiz uma longa

    aprendizagem da plancie na idade adulta. Hoje tenho o pas todo dentro de mim e sinto-o circular-me nas veias ao pulsar do corao (E,242); cf. tambm E,59.

    24 Decorria o ano de 1977 e Portugal tinha, em rigor, a sua independncia formal condicionada pelas leoninas exigncias do FMI (Fundo Monetrio Internacional).

    25 De notar, porm, que o sentimento patritico, luz das concepes vergilianas, tem sempre

    a sustent-lo uma tica da responsabilidade num duplo sentido : s ao homem que compete gerar e assumir a identidade que se e s no ntimo de cada um, sem a tutela vampiresca de um falso salvador, que essa mesma identidade se garantir. Dito de um outro modo, o milagre de Portugal no se deve a um poder divino qualquer mas ao poder de querer ser o que se deve ser.

    Confronte-se esta concepo com, por exemplo, esta passagem de Antnio Sardinha, Glossrio dos Tempos, Edies Gama, 1942, Porto, p.115 : sem um poder mstico que unifique, as sociedades no perduram. O milagre de Ourique, foi para ns o sentido oculto de uma vocao imortal a cumprir foi uma finalidade que nos comunicou segurana e altivez nas grandes jornadas da nossa histria..

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    de acontecer26. vivncia colectiva preciso desideologiz-la, porque uma doutrinao enrijece-nos e instala-nos no fortim do absoluto que nos aquieta. A ideologia em que nos enquistemos toma conta de ns e fossiliza-nos na exactido axiomtica de ns. E a o dogma ideolgico que nos invadiu o sangue e se nos consubstancializou resiste a tudo o que de sensato o queira desmentir. A alienao ideolgica como que um estado alterado de conscincia; ela provoca um estado demencial e bem sabemos que na loucura que se perde a identidade. Por isso, o mnimo que de ns podemos exigir assim a sensatez (Ib.). Mas o povo brio e inconsciente. Mas: o povo no existe. H um tradicional amorfismo que nos instala naquele estado gelatinoso da indolncia espiritual em que a conscincia de sermos em comum se nos esvai na urgncia niveladora dos modos de vida: no somos um pas de vocaes comuns, de conscincia comum (CC1,296). E a histria de Portugal, segundo o nosso autor, obra de impulsos mais que tudo individuais: Ns somos um pas de lites, de indivduos isolados que de repente se pem a ser gente (CC2,296). Prevalece um estado geral de inadvertncia acerca do que somos e por isso que to necessro que alguns, de vez em quando, sejam por ns e que outros, volta e meia, nos venham lembrar o que somos. Que provavelmente este o nosso verdadeiro milagre que sejamos um povo na inconscincia de s-lo. Mas esta fulgurao individualista de uma razo que a todos v ordenando e integrando no seu modo de ser tem como contraponto a mediocridade em que a colectividade

    26 Essa angstia exprime-a Verglio, por exemplo, em CC1,231 (10 Fevereiro de 1975) :

    Entretanto a Junta de Salvao Nacional chamou j a si todos os poderes ... s j falta o ditador. Mas que outra soluo podemos ns sonhar? Miserveis, escalavrados, broncos s um dspota. Oxal seja bem iluminado. Entretanto a angstia : e se o dspota o Cunhal em telecomando?

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    alegremente se afunda27. E dessa mediocridade surge a projeco mitificadora dos cones nacionais que personificam para ns o que deles tomamos por emprstimo. , pois, uma histria feita de espasmos de heroicidade e grandeza a nossa. Uma histria com o seu qu de providencialismo, j que, mesmo no existindo um povo que como tal se vivencie, h os outros, os grandes homens que por ele vo existindo e, deste modo, a Histria vai-se fazendo mais ou menos a horas (CC2,296). Uma Histria que, apesar de to distrado estar o povo, teima em manter-se mais ou menos em dia com a Ordem que tudo governa e conduz ao seu fim. Mas que fim, se no h finalidade em funo da qual uma vida se ordene? Responde Verglio, solcito: mesmo sendo esse fim, como a desagregao e o silncio (CC5,388). Em rigor, esta desteleologizao da Grande Ordem que o destino (Ib.) implica que viver-se um povo como comunidade de destino no conduz a lado nenhum, que s conduziria se destino houvesse que no h. O destino est no em chegar a 27 Embora um pouco extenso, julgamos o texto que se segue bem ilustrativo do que julga

    Verglio serem os traos mais identificativos do povo portugus. Escreve o nosso autor no seu Dirio (CC2,295 a 8 Agosto 79) : Pensar o meu pas. De repente toda a gente se ps a um canto a meditar o pas. Nunca o tnhamos pensado, pensramos apenas os que o governavam sem pensar. E de sbito foi isto. Mas para se chegar ao pas tem de se atravessar o espesso nevoeiro da mediocralhada que o infestou. Ser que a democracia exige a mediocridade? Mas os povos civilizados dizem que no. Ns que temos um estilo de ser medocres. No questo de se ser ignorante, incompetente e tudo o mais que se pode acrescentar ao estado em bruto. No questo de se ser estpido. Temos saber, temos inteligncia. A questo s a do equilbrio e harmonia, a questo a do bom senso. H um modo profundo de se ser que fica vivo por baixo de todas as cataplasmas de verniz que se lhe aplicarem. H um modo de se ser grosseiro, sem ao menos se ter o rasgo de assumir a grosseria. E o resultado o ridculo, a ffia, a fuga do p para o chinelo. O Espanhol um brbaro, mas assume a barbaridade. Ns somos uns campnios com a obsesso de parecermos civilizados. O Francs um ser artificioso, mas que vive dentro do artifcio. O Alemo uma broca ou um parafuso, mas que tem o feitio de uma broca ou de um parafuso. O Italiano um histrico, mas que se investe da sua condio no palrapatar barato, na gritaria. O Ingls um sujeito grave de coco, mas que assume a gravidade e o ridculo que vier nela. Ns somos sobretudo ridculos porque o no queremos parecer. Se Verglio fosse muito dado terminologia tcnica da Psicologia teria decerto concludo que a doena congnita do Portugus a sua esquizofrenia : ele sempre o que no realmente. E nesse modo de ser o que no est justamente a sua maneira de ser. Em E,85 escreve Verglio : Ser portugus sermos ns. Ser portugus, na sua maior amplitude, simplesmente ser. Mas sermos ns extremamente penoso.

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    algum ponto, mas simplesmente no modo de caminhar e bem se sabe que h mltiplos caminhos e vrios ritmos de marcha. Da a oblqua contradio que se nos insinua entre a preocupao de Verglio por um certo destino nacional (cf. EI4,223) e a certeza de que, por muito juntos e unidos que caminhemos, o fim a que haveremos fatalmente de chegar a desagregao e o silncio. Mas essa , como veremos, a mesma aparente contradio entre o ser-para-a - -morte e o ser homem at onde mais s-lo se no possa, entre um destino feito do absoluto silncio do tmulo e passar a vida a escrever. que o homem excesso ele de mais para a sua medida. O homem , em sonho, a imortalidade da sua real mortalidade. E a razo para se ser homem quando nenhum destino altura do seu sonho o aguarda, ou a razo para seguir escrevendo quando do lado de l do mundo s o silncio definitivo, exactamente a mesma razo para que um povo o seja na assuno colectiva do s-lo, sem que o espere um destino diferente do de isso ter sido. E que razo essa? Nenhuma. Ou, antes, esta em que todas as razes se incluem: porque sim28. Que no h destino? Mas h o destino de isso sentirmos em comum. como se o nosso destino colectivo se fizesse do nvio esforo de todos para termos razo para a um destino merecer. Como se houvesse o subterrneo fio de esperana de que possa valer a pena vivermo-nos como povo como cada um deve viver-se - nos territrios da dignidade e da honra29.

    28 Esta instncia apodctica do equilbrio interior to presente e to decisiva na temtica

    existencial de Verglio vem por ele caracterizada em E,215 nos seguintes termos : Toda a verdade de um juzo anterior a si mesmo. E a o que se decide se a verdade importa ou no. E a razo desse importar est l onde est o seu nada ou o que dizemos a harmonia de se ser.

    29 Este nvio anelo de que possa haver uma razo para se querer ser homem ou ser povo o que expressa Verglio a propsito da razo por que continua a escrever : Escrevo porque o erro e a degradao e a injustia no devem ter razo (CC5,343 11 Fevereiro 85).

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    No devemos, porm, tomar demasiado risca esta acidez vergiliana na anlise do povo portugus, j que os tempos em que a fez pareciam confirmar esse seu conceito pessimista de um povo amorfo e submisso. Foram tempos do salazarismo ou da ameaa totalitria comunista e foram tempos da colonizao do Fundo Monetrio Internacional. E, embora com a solidificao formal do regime democrtico, se no tenha perdido o jeito da canga (a liberdade para o homem sempre foi difcil de aguentar (EI4,224), a verdade que Verglio Ferreira se reconhece profundamente identificado com o seu pas e com o seu modo de ser (EI5,105; E,59 e 242). E at com os seus defeitos, ou sobretudo naquilo que so os seus defeitos. E reconhece at que lhe difcil falar do modo de ser do portugus, j que se no pode ver bem o que se quando isso se est sendo: Primeiro -se. Depois demonstra-se isso que se (CC5,387). E, mesmo considerando questionvel questionarmo-nos sobre a nossa identidade em face de um facto enorme do nosso tempo que a extraordinria reduo do planeta30, a verdade que, aps a sonmbula digresso imperial, Portugal regressou ao ponto de partida31 e,

    30 A propsito : hoje dia da Ptria e do Cames. Mas daqui a dias outra vez dia de ser

    stio geogrfico e de poeta de provncia (CC5,456). E em1992, a propsito do tratado de Maastricht e da inevitabilidade do esvaimento da identidade nacional escrevia Verglio : Por mim penso, a perda de identidade nacional, uma ameaa irreversvel (...). O Mundo cada vez mais uma bola de tnis por fora das comunicaes. O que importa, pois, defendermo-nos e mantermos um equilbrio at onde puder ser. Maastricht uma tentativa de regulamentar este estado fatal de coisas. Pago mas bufo, dizia-se antigamente em face do irremedivel. Pois bufemos o que pudermos, mas temos de pagar. Eu o que fao. Se houver referendo, vou pelo sim (CC (ns) IV,178 4 Setembro 92). E em CC (ns) IV,142 : A Terra tem j o tamanho de uma laranja. A Europa tem o de uma pevide. Que que o saloismo portugus pretende ser a com a sua pimponice?.

    31 10 Um episdio que d a medida da sua emoo de ser portugus, no por certo na viso fascinada e megalmana do Imprio Impossvel, mas na assuno do bocado de cho que nos serviu de bero e onde nos cumpre a responsabilidade de nos afirmarmos no futuro : Assisti pela TV cerimnia da investidura do Presidente Ramalho Eanes. O seu discurso foi exemplar. Em dada altura referiu-se ao nosso regresso casa donde partimos. Quando no fim se cantou A Portuguesa, veio at mim a comoo. Aqui estamos. No bocado de terra que o nosso. E emocionante pensar na modstia do nosso futuro e na determinao de o realizar. Estamos reduzidos a ns prprios. Mas se realizmos o passado, realizaremos o futuro. Heris do mar, nobre povo. Consintam-me que me comova at aos olhos nublados (CC1,337). Verglio Ferreira, notemo-lo, no com a

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    num exerccio de catarse colectiva em que todos nos tivemos que purgar da grandeza que no tnhamos, parece termo-nos instalado num sentimento que um misto de modstia e orgulho. At a sua proverbial averso a viajar (detesto viajar - CC(ns) IV,96); cf. por ex. CC5,410; suplcio -CC5,523) se deve ler tambm como um sinal sanguneo do seu apego ao nicho ntico onde germinou a sua sensibilidade e o modo de ver o mundo do mundo que se nos faz o modo de v-lo: Deu-me [o meu pas] pois a vida toda para eu depois a poder reinventar (E,59). Mesmo que nada haja ao fim do caminho sempre bom uma companhia para caminhar. E, ento, o caminho isso mesmo o modo como caminhamos32. Verglio d, alis, mostras de conhecer bem o povo donde ele prprio veio (povo no, porque o nome foi estragado, antes, o comum das gentes), cujo fundo comum considera ser bom. E at os prprios vcios, que enumera, diz virem-lhe de uma certa ingenuidade que onde a bondade tambm mergulha. E to certo est desta bondade do povo como certo est da lamentvel necessidade de que haja sempre quem lhe indique como e onde aplic-la. E at nisto o nosso autor bem portugus: ele diz mal do que somos, mas ama isso que somos (quem desdenha quer comprar). E que somos ns? Ns somos, por instinto, com intermintncias de conscincia, com uma generosidade e delicadeza incontrolveis at ao ridculo, astutos, comunicveis at ao dislate, corajosos at temeridade, orgulhosos at petulncia, humildes at subservincia e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes tm assim o seu lado

    grandeza perdida que se emociona mas com a modstia reconquistada, que o que condiz com a medida das nossas posses.

    32 E to portugus era Verglio que at sofria pela sua Acadmica. Um dia ps-se a ouvir o relato do jogo Acadmica-Benfica. Como a Acadmica estava a perder desligou o rdio. (cf. CC5,410).

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    negativo, ou seja, o seu vcio (CC2, 296-297). Uma gente do oito e oitenta. Pois . Mas desta massa que nos fazemos. Foi dela que se fez Verglio a partir da experincia telrica do remoto povoado beiro de Melo. Com uma diferena apenas: naquela altura ainda havia povo, ou, pelo menos, no lhe haviam traficado tanto o nome com utilizaes abusivas. Ainda que, no seu caso, na falta de um elemento essencial: os pais.

    Verglio, apesar de no ser um patriota clssico33, um portugus de gema, que se emociona com as coisas e com as vozes que como povo nos definem e nos personalizam apreciava o fado de Coimbra, como admirava (ou amava ?) a divina Amlia em cuja voz ecoava a alma suspirante dum povo34. Ele era assumidamente portugus mesmo no que tem de excessivo s-lo. 33 12 Hoje dia de patriotismo. Muito bem. Deixem-me nesse caso fumar um cigarro e olhar

    o lume do fogo (CC3,176 1 Dezembro 80). 34 13 Ontem fui (...) ver um espectculo integrado na festa dos finalistas de Direito. Foi na

    Aula Magna da Universidade. Do espectculo faziam parte fados de Coimbra pelo Gois e Bernardino (...) e uma srie de fados pela divina, ou seja pela Amlia. Dos fados de Coimbra que dizer ? Ouo um acorde de guitarra e a emoo abala-me como o co de Pavlov salivava ao ouvir uma campainha. O curto-circuito est feito, s unir os dois polos com uma guitarra. A evocao est em mim, s despert-la com duas cordas de arame. Quanto a Amlia (...) a certa altura pareceu-me que ela estava possessa de si e ficaria a cantar indefenidamente pela noite adiante (CC5, 568. 21 Dezembro 85). E em CC5, 570 (Natal de 1985) : Entre as minhas prendas tive uma cassete de fados de Menano (...) E foi bom. E apesar de o fado de Coimbra ter nele um maior eco afectivo no deixava de apreciar o fado de tradio lisboeta, com se depreende da passagem seguinte do seu Dirio : Acontece assim que a So Jos Lapa na incarnao da Hermnia Silva, me dedicou um fado. Era um fado de Lisboa, fora portanto das minhas razes afectivas que no me andam pelo Tejo, mas pelo Mondego. Mas mesmo assim, como fiquei encantado. E ainda agora o estou, no breve sorriso que me enfeita a alma, normalmente sem enfeite nenhum, na sua forma rudimentar e desgraciosa de ir vivendo (CC (ns)III,117). E em CC1, 37-38 sobre o cantar alentejano : Da ida a vora, o que se me ergueu foi a beleza da irrealidade, no a amargura de nunca mais. vora da plancie, dos corais dos camponeses! Os Brancos fizeram um coro, na tarde da Soeira. Ouvi-o desde as razes de mim. a msica mais bela do meu pas. Sagrada. Humana. Terrvel.

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    1.1 Perfil poltico

    Convm, antes do mais, recordar que Verglio se reclama no do estatuto do homem prtico mas do intelectual. eficcia e ao imediatismo do homem de aco que se aturde no estrito domnio do que como urgente se nos oferece prefere Verglio a inutilidade ruminativa de quem actua no domnio das ideias e da imaginao (CC1,377), que onde realmente importante actuar

    35. Da que no seja o seu perfil como homem poltico o que aqui pretendemos traar, que para isso era preciso que fosse Verglio um homem poltico, que, de todo, no . Interessa - -nos, to-s, dar, em duas notas, o sinal dos seus valores (isto , aquilo que, no ntimo de si, como tal se evidenciava ) e encontrar neles uma filosofia a que os mesmos se possam referir. Ele situa-se, como vimos repetidas vezes, no domnio decisivo do homem fundamental e a onde reside a importncia do que fazemos e do que somos a o domnio fundante do ser-se. E a uma tal profundeza de ns isso do simplesmente sermos que quem a isso procure atender e dar respostas (que vergilianamente se do no incessante interrogar) h-de parecer um intil. E Verglio da raa dos inteis, j que se no exprime a sua vida na visibilidade imediata do fazer, mas na ateno pasmada ao que, no obscuro de ns, nos

    35 Vem a propsito a meno do saboroso episdio em sua casa com Sottomayor Cardia

    ministro indigitado da Educao em 16 de Julho de 1976. Depois de vrios conselhos a pedido, Cardia ter convidado Verglio para subsecretrio de no sei qu. Eis a reaco : Tremi. Uma vez mais me encontrava esquartejado por duas foras : o desejo de ajudar na reconstruo do Pas e a incapacidade fsica e psquica para o fazer. Tal convite, no entanto, dependia da nega de dois fulanos j convidados. Oxal aceitem. Para no ter eu de recusar. No nasci para dirigir, trabalhar em tarefas prticas, ser poltico. Nasci ( e j terei morrido) para actuar no domnio das ideias e da imaginao. Sou da raa dos inteis, nasci para a inutilidade, mas essa inutilidade o que me mais importante (CC1,337 sub. nossos).

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    determina na pessoa que somos. E a um homem que ao homem se vota como pedir-lhe que adira a uma ideologia que submerge e nulifica a individualidade que cada homem no vrtice dialctico do colectivo em marcha para um Paraso que, mesmo que um dia se concretizasse, seria o Paraso de ningum? Da que a primeira nota marcante do perfil poltico de Verglio seja a sua natural alergia aos sistemas e a qualquer ideologia totalitria, alergia que exprimira quer em relao ao fascismo quer em relao ao comunismo. E a sua crtica custica aos profissionais do futuro, intrpretes fanticos do dogma comunista, valeu-lhe uma certa m-vontade por parte de alguns crticos, mais ou menos alinhados ideologicamente pelo Partido Comunista Portugus e que lhe no perdoavam a heresia de infestar de ideias o romance36: pr as pessoas a pensar, quando havia um Partido que por elas se encarregava de faz-lo, era prestar ao comunismo o pior dos servios e expor-se-lhe como alvo. Mas Verglio manteve-se firme naquela sua posio duplamente hiertica porque, apegando-se ao que no homem so as suas origens, ele teimou em instalar-se em definitivo nos domnios do sagrado (E,366). E foi, curiosamente, essa sua aura de profeta do que no homem o fundamental que motivou muitos pedidos de personalidades ou foras polticas para que anusse utilizao da sua figura como garantia e tutela

    36 Um desses crticos foi (e dizemos foi porque a acidez da crtica foi dando lugar a uma

    cordialidade na diferena de opinies) Oscar Lopes que brinda, por exemplo 'tido 'ulo com qualificativos de caserna. E perante tanto acinte na crtica, Verglio ps-se a pensar que s se hostiliza algum cujo valor se pressupe mas a todo o custo se quer negar. Esta a resposta de Verglio, bem sintomtica do seu apego sua posio humanista em vez de ceder seduo da militncia ideolgica : Terrvel scar adorvel scar, apesar de tudo. Fico a pensar. Porque se eu sou assim um motivo to polmico, insano, devo ter em mim alguma coisa de transaccionvel. Vou-me apegar ideia para ir vivendo. Cristo, Marx, tantos outros mesmo c mais abaixo quanto motivo de polmica e de escndalo. Voc, meu caro scar, est a ser afinal insensato. No diga nada. J alguma vez disse que era uma merda o Santos Cravina? O problema, claro, outro problema que voc bem sabe. Ah, que se eu me tivesse inscrito... Era de me levantarem ao Olimpo. (CC5, 322 subl.nossos).

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    de credibilidade humana dos seus projectos37. Quer no tempo ainda do salazarismo quer nos tempos conturbados da revoluo, o valor que sempre o norteou foi o de anular as razes que fazem a fora de todo o totalitarismo seja de que sinal for. O seu programa teve sempre como objectivo essencial o de desnutrir os terrenos frteis em que qualquer autoritarismo costuma encher a barriga e medrar: os da misria e da ignorncia (cf. CC1,57). Nos tempos revolucionrios do caos e da desorientao, Verglio teve que assomar ao campo superficial da urgncia, porque o que ento era realmente urgente era salvar, a todo o custo, o que verdadeiramente importante e essencial a liberdade. E nesse alarme colectivo, nessa situao de emergncia em que a prpria personalidade do pas ameaava diluir-se no magma universalista do dogma sovitico, Verglio que j em 1969 aderira ao outro [grupo], socialista sem Sibria vista (CC1,56), confessa-se sobretudo identificado com o Partido Socialista e com o seu lder Mrio Soares de quem se declara admirador, apesar das restrices que na Conta-Corrente lhe fez (CC (ns) III,124). Tudo indica ter sido Verglio um fiel votante do Partido Socialista, apesar do desencanto pessoal de que, para o fim, haveria de dar mostras em relao generalidade da classe poltica, a politiqueirada e as suas rixas de peixeiras (CC (ns) III,124)38. De resto, em rigor e como assinalmos j, 37 Convidaram-me, como disse, para fazer parte da comisso Nacional de Apoio

    Candidatura do General Ramalho Eanes Presidncia da Repblica. Aceitei. (CC1,318). 38 A propsito de simpatias polticas do nosso autor, simpatias que nos do uma ideia bastante

    clara da sua sensibilidade poltica, anotemos o que nos deixou registado no seu Dirio a 1 de Junho de 1991 : No PS admirei sempre o Mrio Soares, apesar das restrices que na Conta-Corrente lhe fiz e ele risonhamente me lanou no rosto, aquando do prmio da APE. Admiro muito o Victor Constncio pela sua sensatez, saber e firmeza. Mas no me vai muito com o sistema simptico o Jorge Sampaio pelo tom agressivo que pe sempre no que diz, no gosto revanchista com que fala em derrotar o adversrio, no ar de quem tem velhos ressentimentos insuperveis (...). Nunca ouvi falar em derrotar o adversrio ao Cavaco Silva to proclamadamente acoimado de arrogante, presunoso, com a mania de que sabe tudo, etc. Daqui a uns anos, quando porventura um outro do seu

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    Verglio tem da poltica um fraco conceito, uma vez que tende a constituir-se, semelhana do Clube de Futebol, em sucedneo caricatural de uma divindade de que se anda transviado, mas saudoso39.

    Intrigar, qui, que um homem que to arraigado viveu ao modo mais rudimentar de viver (com o estrito de si), se d ao incmodo de atarefar-se com a urgncia das solues polticas. Logo, porm, essa aparente incoerncia se nos esclarecer se pensarmos que, com a persistente ameaa da tutela sovitica, o que estava em causa era a nossa condio de homens livres. E a o limiar da batalha decisiva para Verglio. Da a sua quase fixao no perigo comunista40.

    Um estudo interessante a empreender no futuro ser o de procurar uma dilucidao da invulgar personalidade intelectual de Verglio Ferreira ( e recorde--se o contraponto que o autor faz entre intelectual e prtico) luz das

    partido estiver no poder e sobretudo se lhe casse o azar de j estar morto, dir-se-o dele talvez coisas bonitas que hoje se dizem do S-Carneiro que em vida foi insultado, amesquinhado, ridicularizado. Pois se at os inimigos de Salazar j dizem dele coisas aceitveis, de tolerncia e compreenso. Donde a mxima que disto se poderia extrair : morre primeiro, que talvez depois tenhas uma flr na sepultura. Para o inferno a politiqueirada e as suas rixas de peixeiras. (CC(ns),III,124). De S Carneiro diria no dia das suas exquias fnebres, a 6 de Dezembro de 1980 : S Carneiro foi uma forte personalidade (...) Coragem, autodomnio, rapidez de certeza nos lances, e uma capacidade rara de reservar ainda uma fraco grande se si para existir como homem onde no existia a poltica tudo isso fez dele uma invulgar personalidade que seria sempre invulgar em qualquer campo em que actuasse. (CC3,182). Sobre Jorge Sampaio aquando da publicao de Conta-Corrente (nova srie) III, o nosso autor fez questo de incluir uma nota de p-de-pgina com a seguinte rectificao : Jorge Sampaio tem hoje (Set.93) uma postura diferente, grave, responsabilizado. Por isso aceitei com prazer que se inclusse o meu nome na Comisso de Honra para um seu novo mandato na presidncia da Cmara de Lisboa.

    39 A propsito do regozijo que a morte de S Carneiro provocou em certas hostes escreve Verglio : Claro que, se o morto fosse o Cunhal, a reaco seria a mesma. A poltica assim. Que coisa asquerosa! Sacralizada agora, em substituio dos deuses, ela justifica todas as crueldades como quando se matavam infiis. J no h mouros, mas h. Como os h-de haver sempre. Porque ns somos deuses e os outros, no o sendo, devem por isso exterminar-se. O inferno, ou seja, o diabo so esses outros (CC3,181).

    40 E esse receio de uma eventual ditadura comunista em Portugal adensou-se ainda mais na sequncia de uma viagem de Verglio Ferreira ento Unio Sovitica em 1985 : Rolmos no carro do Gilo em direco a casa. E nos intervalos pontua-me a memria uma frase que algum me disse em Moscovo : no deixem que o PC suba ao poder... (CC5, 532 2 Outubro 85).

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    vrias vicissitudes da vida poltica portuguesa a partir de Abril de 1974.

    Em qualquer caso, a nica razo por que disse Verglio da sua razo ao longo deste processo tem um nome inequvoco e sonoro: liberdade. E agora que o perigo de que outros pensem por ns est disfarado (Maastrich, segundo Verglio, apenas regulamenta o inevitvel), cumpre - -nos administrar a liberdade que a Revoluo nos trouxe at onde nos for possvel.

    No tem nada que ver Verglio, contudo, com a vida poltica enquanto interveno sistemtica e imediata. Verglio foi, nesse aspecto, um anacoreta da poltica pensou-a, pensando-se no recndito da sua solitria posio. Nada da estridncia ftua do fazer at aos polticos lhes estalar a cabea daquela boa conscincia. Em Verglio o que encontramos uma tica da aco, que no agir que se homem, uma tica do homem que se exprime no desejo incerto de orientar-se e no no desejo absolutista de orientar. Uma tica de aco que rigorosamente o contrrio de uma lei do activismo, to do gosto dos polticos naquela sua solicitude de aplanar o futuro e imp-lo ao seu jeito. Uma lei do activismo que, no raro, se converte na lei da bala. Para Verglio, o homem apenas, cuja constitutiva liberdade bala nenhuma pode anular. , de resto, por se reconhecer livre o homem que se inventou a linguagem do tiro (P.345).

    2 Verglio Ferreira e a cultura portuguesa

    Por causa da sua postura de radicalidade existencial no lhe foi fcil a Verglio relacionar-se com as expresses mais visveis, mas nem sempre mais autnticas, da vida

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    cultural portuguesa. Desde logo, porque o separava da grande maioria dos autores contemporneos o recato prprio de quem se vive no estrito de si que , segundo ele, a nica maneira de ser profundo: Desejo ardorosamente cortar com o meu pas cultural (EI5,109). Entrincheirado na radicalidade fenomenolgica do eu, Verglio tinha dificuldades bvias na relao com uma cultura que, em definitiva, o que lhe apregoava era justamente o outro que mal cabia naquele seu reduto existencialmente preenchido pela ansiosa tarefa egolgica do simplesmente ser-se. Verglio tinha srias dificuldades naquele desdobramento que era socialmente obrigado a fazer entre a parte profunda, obscura e misteriosa de si e a parte exterior, lidvel e transacionvel do homem que escrevia livros. A Verglio Ferreira que escrevia para estar vivo (...) para ser (CC5,343) no era fcil entender aos que pareciam escrever exclusivamente para ter (literatura de consumo), apostando sobretudo numa escrita distractiva e desopilante (CC3,101). A via predominantemente exibicional da escrita que alimenta uma literatura em que o romance se esgota num estril espectadorismo imediatista choca com aquela outra, a de Verglio, de uma escrita profundamente suspirativa em que as ideias emotivas se no do j pensadas mas, antes, do, e muito, que pensar. A rasoira do comprazimento voyeurista da sociedade extrovertida e unidimensionalizada nivela por baixo uma literatura que se descaracteriza no af da resposta pronta, sem um projecto global que a articule e que integre todos os escritores mais recentes (EI5,107)

    41. O absoluto vivencial do presente provoca um efeito contagiante de aturdimento. E nessa vivncia absoluta do presente no h

    41 Sobre a literatura portuguesa actual (...) a nica coisa que se me oferece dizer que pela

    primeira vez, desde h 500 anos (...) no h um projecto global que integre todos os escritores mais recentes. Houve antes o neo --realismo, surrealismo e mesmo o existencialismo. Antes houve o presencismo. E antes o modernismo, e recuando cada vez mais, o simbolismo, realismo, romantismo e classicismo. Hoje o que h? Isto quer dizer alguma coisa. (EI5,107).

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    parcela do passado que caiba, a no ser uma, bem pequena, do mais recente. E, mesmo a, h Pessoa e basta. A cultura portuguesa compraz-se na continuao do Orpheu, mas sem nada adiantar para lhe contrapor. E a cultura faz-se de propostas que de ns projectem uma imagem para o futuro. E que imagem a nossa para o futuro ? Se esse futuro tiver razo de se afirmar, ns no teremos imagem para l da que herdmos e anexmos (CC5, 501. 17 Agosto 85). Neste apego obtuso ao presente, o desnorte e o arrivismo. Prova dessa cultura de restos , segundo o nosso autor, a recente profuso de experincias no domnio do diarismo e que ele prprio mimoseia com expresses do gnero ninharias diarsticas, resduos, desperdcios (CC(ns) IV,212)42. A este desnorte generalizado cobre-o o ps-modernismo que, na sua radical atipicidade, bem o reflexo de nada se ter para propor. Enfim, s manifestaes residuais, expresses de desfalecimento, de ocaso43.

    De resto, este diagnstico de uma cultura astnica, desarticulada e residual no visa, em exclusivo, o que se passa em Portugal (mas que pensar da de outros pases ? - EI5,107). geral esta crise do homem, como vimos j e, numa era do vazio, a cultura, ou a caricatura dela, alimenta-se no do homem fundamental, mas do sucedneo que dele se inventou. E exemplos h (e Verglio aponta-os) de uma literatura narcsica, alinhada pelo gosto multitudinrio que o nvel do umbigo, numa espcie de celebrao hedonstica do homem, sacralizando e absolutizando o que nele apenas a parte animal, justamente aquela em que verdadeiramente homem no 44. 42 Alis o diarismo est a pegar entre ns, como prprio da tolice, que pega sempre

    (CC(ns) IV, 210-3 Nov 92). 43 22 J anotmos a caracterizao cida que faz Verglio do ps-modernismo : a hora

    dos restos, dos desperdcios, do lixo camarrio (P,149). 44 Referindo, por exemplo, a Lobo Antunes cuja linguagem a roar a pornografia Verglio

    denuncia, escreve em CC (ns)IV,210 : O pagode esbarrigou-se de gozo por pr ali em

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    Apesar, porm, do cinzentismo do actual panorama cultural portugus, a verdade que Verglio, no se revendo nomeadamente no patriotismo do coitado do Torga que estava ali para se bater pelos destinos da ptria, nem no salosmo portugus e na sua pimponice (CC (ns) IV,142) que se desunha por um lugar especial numa Terra que tem o tamanho de uma laranja ou numa Europa que tem o de uma pevide, a verdade, dizamos, que Verglio, j um pouco tarde, mas a tempo (segundo ele prprio, a 18 de Fevereiro de 1986), se sentia plenamente integrado na totalizao de uma cultura nacional, acatando inclusive a personalidade espiritual dessa mesma cultura e de que se via apenas como circunstancial instrumento45.

    2.1 Verglio Ferreira e os escritores portugueses Fosse o nosso objectivo de ndole literria, que no ,

    e todo um aturado estudo se nos imporia no sentido de verificar a posio de Verglio no interior da sociomatriz do universo literrio portugus: o que pensam dele os outros e o que dos outros pensa o prprio Verglio. No o podendo nem devendo fazer, uma coisa, porm, se impe que faamos: recortar-lhe o perfil de escritor de ideias que para

    letra de forma as caralhadas que s se diziam com os copos ou na casa das putas. E eu pensei : vais ter entradas de Lobo e sadas de Antunes. E em CC (ns) IV, 219, referindo-se-lhe, fala Verglio em mixordice e da prosa em lodaal que nos deixa os ps atolados na lama..

    45 Pela primeira vez admiti que na minha escala eu estava colaborando na possibilidade de que amanh se dissesse que temos um passado literrio e o mais. Pela primeira vez eu senti que tudo o que tenho feito se inscreve na totalizao de uma cultura nacional, na continuidade do que constitui o meu pas. No sou eu, pois, que estou em causa, mas todas as geraes futuras que podero amanh voltar os olhos para o nosso tempo e perguntar-nos o que fizemos para que eles se possam pensar com uma literatura, uma tradio, um esprito. E simultaneamente pensei na distncia que vai disso ao acto privado de escrever, s rivalidades sobre quem melhor ou pior se realiza nessa tarefa (CC1, 306-307).

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    si prprio reinvindica, num cotejo sumrio com alguns dos escritores mais representativos do nosso panorama literrio contemporneo. No que nos percamos em anlises tcnicas sobre as correntes estticas em presena, nem isso se nos perdoaria, mas que possamos salientar a real originalidade vergiliana no contexto cultural do seu tempo. No os outros que interessa salientar mas o que deles pensa Verglio e o que, nesse pensar, se nos d do seu prprio pensar. Que, por exemplo, a Jos Rgio de quem admirava no tudo, mas o todo da sua obra, censure o discursivismo de pendor moralista resulta no de que no pudesse ser Rgio moralista, mas que o tenha querido ser no estrito domnio da sua arte, numa dimenso vivencial. E, como vimos j, a arte amoral porque ela o domnio do pulsar livre da alma (cf. EI2,243). Critica-lhe, de resto, a Rgio a tendncia para se intrometer, perturbando o livre curso da sua obra, num jogo forado de espelhos, em que nos violenta a ter que gramar a sua intrusa presena46. Mas se um aparente umbiguismo na sua obra se evidencia, a verdadeira razo dessa aparncia no confronto dele consigo que a devemos procurar. Porque toda a obra de Rgio nos abre em profundeza e complexidade em tragdia a significao desse Outro que duplamente se define como espelho e como ideal como a verdadeira imagem do que se e implicitamente o absoluto do que se deseja ser (EI2,240).

    Mesmo que a Rgio lhe censure Verglio a propenso para a determinabilidade de Deus e a simbologia tradicional com que positiviza a vivncia do sagrado47, 46 O pior da obra de Rgio no a obra mas ele prprio (EI2,240). 47 Embora se creia que essa constelao experiencial que forma a matriz ancestral da

    religiosidade de Jos Rgio no tenha afectado os traos essenciais do homem religioso que, como vimos, se no define pelas expresses clssicas da Religio. Eduardo Loureno que em O Canto do Signo, p.140, no-lo diz : comparadas com o impulso que lhe adveio da imerso numa religiosidade domstica, humanista e piedosamente revisitada nas mais comovidas pginas da Confisso, as formas histricas da Religio tradicional

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    admira-lhe sinceramente a dimenso humana da obra do autor de Jacob e o Anjo, por fora, mais que tudo, do tom radical de uma interrogao ontolgica que se no dirige tanto a Deus, como sobretudo ao que, no fundo de si, como Seu avatar indestrutivelmente se lhe impe. Tendo-se confessado ao fim um homem religioso, Rgio o que personifica , antes de mais, uma religiosidade ancestral que, repercutindo embora vibraes esparsas de uma vivncia de infncia, assumida e existencialmente activa, se no dirige, contudo, a uma realidade transcendente, que nunca o problema se lhe ter posto assim48, mas realidade de si que s como homem religioso se pode ser homem realmente. E de pouco importa que tenha sido o fogo invisvel do Absoluto a servir-lhe de Deus ou que tenha sido Deus a servir-lhe de Absoluto o que importa que disso tenha tido absoluta necessidade. O que definitivamente importa que o autor das Encruzilhadas de Deus se tenha vivido no absoluto de si, naquela to caracterstica palpitao agnica por uma redeno de que o Outro promessa e iluso. E esta sintonia na radicalidade ontolgica do interrogar, aquele tom abafado e imerso de um questionar das funduras da alma em aflio, muito para l de um qualquer particularismo testemunhal, que une estes dois homens que, sem praticamente terem convivido pessoalmente (falaram-se uma nica vez), se irmanam espiritualmente na questo fundamental a do Homem. Valer talvez a pena, a propsito, realar que h dois critrios centrais em funo dos quais se ordenam as preferncias de Verglio. A autores que ele diz amar liga-o a ntima vibrao com a fundamentalidade humana que atravessa a sua obra (Malraux ou Raul Brando), a autores

    (...) pesaro pouco nos reflexos essenciais do homem religioso que ser Jos Rgio, mas determinaro a simbologia e a forma sensvel do seu encontro com o sagrado ou simplesmente Inominado.

    48 Na realidade, Jos Rgio nunca teve que escolher entre uma realidade concebida como imanente e outra qual s a transcendncia confere existncia e sentido (Ibidem, 141).

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    que apenas diz admirar aprecia-lhes sobretudo o gnio artstico. A Rgio liga-o, sem dvida, essa profunda e trgica suspirao em busca de algo que problematicidade essencial do homem a possa desatar. Esta a frmula que acerca de Jos Rgio nos deixou Verglio: Sombra de um sonho nunca alcanado, eco da Transcendncia em ns, furtiva beleza dos instantes mximos, o Outro a nica redeno de uma misria que nada redime excepto a nsia ou a revolta de o alcanar. Essa a lio de Rgio, que a lio do Homem assim mesmo com maiscula, se mo consentem para a hiptese de os mopes o poderem ver. (EI2,245).

    E a Jorge de Sena49, por exemplo, compreende-lhe as suas investidas enfurecidas pelo templo sagrado da cultura para chicotear zelosamente os que se comprazem na sua sistemtica contrafaco: se Jorge de Sena teve sempre razo na clera, foi por ter razo no amor (EI4,172). E quela atitude cruzadista de Sena entendeu-a Verglio como resultado natural do seu amor acendrado pela arte enquanto a expresso mais alta do homem (Ib.). E, uma vez mais, se evidencia que sempre em profundidade que a empatia com os outros artistas e pensadores se lhe impe, mesmo que das profundezas do gnio o que se nos diga nos fale sobretudo ao que nos est mais superfcie, como acontece com Ea e, em certa medida, em Pessoa (cf. CC1,62). E desta ambgua ligao de Verglio Ferreira s suas referncias artsticas em Portugal, ora, por via do crebro, a 49 A Imprensa Nacional Casa da Moeda publicou em 1984 Correspondncia Jorge de Sena

    Verglio Ferreira com organizao e notas de viva de Jorge de Sena, Mcia de Sena e introduo do prprio Verglio Ferreira. Na carta que Verglio escreve a Sena a 7 de Agosto de 1965 encontramos os aspectos mais salientes da personalidade indomvel e multifacetada de Jorge de Sena, e que so, afinal, os motivos da sincera admirao que lhe dedicava. Apesar da s vezes excusada mas ardente afirmao da sua superioridade intelectual como acentua Eduardo Loureno em O Canto do Signo, p.172 que, em tom de sincera admirao pela cintilncia do seu esprito lhe chama o Savonarola da nossa cultura (...) e que por isso mesmo irrita ou fere a sempre sensvel epiderme lusada, coitada.

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    de uma admirao pelo estilo e pelo gnio, ora, por via do corao, a de um amor, qual chispa provinda do acorde ntimo de vibrao entre duas almas, avultam figuras como as de Ea, Pessoa ou Cesrio Verde, no primeiro caso, ou as de Raul Brando, Antnio Nobre ou Ramos Rosa, no segundo. Se queles se sente unido pela impressividade do estilo, a estes uma espcie de encontro a uni-lo, como se dentro de si se desse um acerto de sangue, uma ressonncia plena de uma voz imperativa. o que acontece em relao a Raul Brando. A voz aflita e desalinhada em relao estrutura protocolar do romance bem arrumado do realismo naturalista que o autor de Hmus protagonizou estava a, mas o peso esmagador do magistrio queirosiano no deixava que se ouvisse. Mas acaba sempre por ouvir-se aquilo de que se est escuta. E Verglio, que se no realizava na plenitude da sua arte na articulao mecanicista e no espectadorismo burgus do realismo naturalista, pde encontrar em Raul Brando50 o anncio da temtica existencial, e o prenncio da desconstruo daquela arquitectura da segurana e da ordem to caracterstica do estilo que com Ea se nos impusera: s de facto descobri Raul Brando quando o redescobri (EI2,215). E foi por estar j nele o que procurava, que pde, no reencontro de Raul Brando, reconhecer-se a si prprio. Ao desgnio cartesiano de arrumao e segurana que informava o universo estvel de Ea ops Raul Brando o sentimento apavorado face irrupo do eu investido de uma divindade vicariante que lhe pontilhava o universo de um estremecimento instvel, polarizado pelo ridculo e pelo sonho (cf. EI2,180). Raul Brando vibrou sinceramente face crueza da realidade humana que se esconde, quantas

    50 Raul Brando era da nossa famlia, mas ns no o sabamos. Parente imprevistamente

    descoberto num recanto da provncia, foi s depois que a sua voz se esclareceu numa procura europeia que, atravs dela, a essa voz ns a reconhecemos ainda nossa (EI2,215). Foi preciso, como se v, que primeiro nos chegasse de fora o eco do Existencialismo para depois verificarmos que j antes, c dentro algum (Raul Brando) no-lo propusera de forma to nossa.

  • Verglio Ferreira e a Filosofia da sua Obra Literria

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    vezes, sob o aparato protocolar dos acontecimentos ou, mais artificiosamente, da Histria. E nesta distncia entre a magnificncia do anncio e a misria da vivncia, encontrou Brando a grandeza nica de viver. Em Ea, grandiosidade do artifcio