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V ENHA AO MUNDO E... lexandre, o bebê da foto acima, nasceu em 11 de maio último, no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism). É uma das 250 crianças vindas ao mundo desde a implantação de um programa que adotou técnicas pioneiras no tratamento de mulheres com histórico de abortos recorrentes, drama que aflige milhares de casais. O programa Imunologia da Reprodução, um dos mais bem sucedidos da área no Brasil, é coordenado pelo ginecologista Ricardo Barini, em parceria fundamental com o Hemocentro da Unicamp. Caderno Temático sta foto do Observatório Anglo-Australiano mostra o movimento circular das estrelas, registrado com a máquina fixa e em filme de alta sensibilidade. Os leigos em astronomia poderão aprender, nesta edição, como identificar estrelas e a se orientar por elas, principalmente nessas noites limpas de outono/inverno. É um artigo de Romildo Faria, da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp e coordenador do Planetário de Campinas. Páginas 10 e 11 E Terra para os pobres O Programa Cédula da Terrajádistribuiu aproximadamente US$ 75 milhões para 7 mil famílias pobres que compraram, até 1999, 242 imóveis rurais no Nordeste. O Núcleo de Economia Agrícola (NEA) da Unicamp está coordenando uma avaliação do PCT a pedido do Governo Federal e publicará os resultados em livro, brevemente. Páginas 12 e 13 Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais Lesões de fim de século As Lesões por Esforços Repetitivos (LER/DORT) evoluíram a ponto de se tornar uma das principais doenças ocupacionais nas últimas duas décadas. A atenção despertada na 1ª Semana de Saúde Ocupacional da Unicamp mostra que a doença, antes atribuída à “LERdeza” do trabalhador, finalmente é abordada seriamente. Páginas 8 e 9 Conheça a história de Albino Souza Cruz, o homem que disseminou os cigarros no Brasil valendo-se de retratos de mulheres estampadas nos maços. Sem nunca ter colocado um cigarro na boca, morreu aos 97 anos, em 1966, justamente no período em que surgiam os primeiros estudos científicos sobre os males do tabagismo à saúde. Páginas 6 e 7 ...VEJAAS ESTRELAS V ENHA AO MUNDO E... ...VEJAAS ESTRELAS A Campinas, junho de 2001 – ANO XV – Nº 163 – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

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Page 1: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

VENHA AO MUNDO E.. .

lexandre, o bebê dafoto acima, nasceu

em 11 de maio último, noCentro de Atenção Integralà Saúde da Mulher(Caism). É uma das 250crianças vindas ao mundodesde a implantação deum programa que adotoutécnicas pioneiras notratamento de mulherescom histórico de abortosrecorrentes, drama queafl ige mi lhares de c asais.O programa Imunologia daReprodução, um dos maisbem sucedidos da área noBrasil, é coordenado peloginecologista RicardoBarini , em parceriafundamental com oHemocentro da Unicamp.

Caderno Temático

sta foto do ObservatórioAnglo-Australiano mostra o movimentocircular das estrelas, registrado com a máquina fixa e em filmede alta sensibilidade. Os leigos em astronomia poderão aprender,nesta edição, como identificar estrelas e a se orientar por elas,

principalmente nessas noites limpas de outono/inverno. É um artigo deRomildo Faria, da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários daUnicamp e coordenador do Planetário de Campinas.

Páginas 10 e 11

E

Terra paraos pobresO Programa Cédula daTerra já distribuiuaproximadamente US$ 75milhões para 7 mil famíliaspobres que compraram,até 1999, 242 imóveisrurais no Nordeste. ONúcleo de EconomiaAgrícola (NEA) daUnicamp estácoordenando umaavaliação do PCT a pedidodo Governo Federal epublicará os resultados eml i vro, brevemente.

Páginas 12 e 13

Souza Cruz (que nunca fumou)e suas musas fatais

Lesões defim de séculoAs Lesões por EsforçosRepetitivos (LER/DORT )evoluíram a ponto de setornar uma das principaisdoenças ocupacionais nasúltimas duas décadas. Aatenção despertada na1ª Semana de SaúdeOcupacional da Unicampmostra que a doença, antesatribuída à “LERdeza” dotrabalhador, f inalmente éabordada seriamente.

Páginas 8 e 9

Conheça a história de Albino Souza Cruz, o homem que disseminou os cigarros no Brasilvalendo-se de retratos de mulheres estampadas nos maços. Sem nunca ter colocadoum cigarro na boca, morreu aos 97 anos, em 1966, justamente no período em que surgiamos primeiros estudos científicos sobre os males do tabagismo à saúde.

Páginas 6 e 7

...VEJA AS ESTRELAS

VENHA AO MUNDO E.. .

...VEJA AS ESTRELAS

A

Campinas, junho de 2001 – ANO XV – Nº 163 – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Page 2: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

UNICAMP – Universidade Estadual de CampinasReitor Hermano Tavares. Vice-reitor Fernando Galembeck. Pró-reitor de Desenvolvimento Universitário Luís Carlos Guedes Pinto. Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Roberto Teixeira

Mendes. Pró-reitor de Pesquisa Ivan Emílio Chambouleyron. Pró-reitor de Pós-Graduação José Cláudio Geromel. Pró-reitor de Graduação Angelo Luiz Cortelazzo.

Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade mensal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária“Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (0xx19) 3788-7865, 3788-7183, 3788-8404. Fax (0xx19) 3289-3848. Homepage http://www.unicamp.br/imprensa.

E-mail [email protected]. Editores Luiz Sugimoto, Álvaro Kassab e ManuelAlves Filho. Redatores Raquel do Carmo Santos, Roberto Costa, Antônio Roberto Fava, Isabel Gardenal e Maria Aliceda Cruz. Fotografia Antoninho Perri, Neldo Cantanti e Dário Crispim. Edição de Arte Oséas de Magalhães. Diagramação Dário Mendes Crispim. Colaboradores nesta edição Carlos Lemes Pereira, CarlosTidei, Tatiana Fávaro, João Maurício da Rosca, Paulo César Nascimento. Ilustrações Félix e Luís Carlos Paulo Silva. Serviços Técnicos Clara Eli de Mello, Dulcinéia B. de Souza e Edison Lara de Almeida.Impressão R. Vieira Gráfica e Editora Ltda.: (19) 3229-9900. Publicidade JCPR Publicidade e Propaganda: (19) 3239-0962

� MalhaçãoSomos alunas do Cefam Campinas,

projeto de formação e aperfeiçoamen-to do Magistério. T emos acesso ao Jor-nal da Unicamp na biblioteca da es-cola.

Na edição de abril, especialmente amatéria sobre a produção da TV Glo-bo, “Malhação”, chamou atenção dopúblico jovem. Achamos muito interes-sante o enfoque dado pela pesquisa-dora. Gostaríamos de parabenizar ojornal pela qualidade das matérias ofe-recidas e sugerir mais assuntos ligadosà área de educação, pedagogia e afinspara podermos ficar sempre por den-tro do que rola na Universidade nes-se setor.

Interessante também sabermosquais são os resultados finais ou osandamentos das pesquisas realizadas.Acreditamos ser de interesse da po-pulação em geral, saber os produtosdas pesquisas divulgadas pela Univer-sidade, que uso a população pode fa-zer deles, principalmente na área dasaúde.

Espero que aceitem nossa sugestão.Parabéns mais uma vez e obrigada.

Liliane Souza, Erika, Desiree eIsadora.

Cefam Campinas

� ObanLi a edição especial do Jornal da

Unicamp sobre os 10 anos da descober-ta do Cemitério Dom Bosco, em P erus,SP. Parabéns! Quando “descobrirão” aOperação Bandeirantes (Oban)???

André MasciaEconomista

� RacismoCreio que lhes cabe uma crítica mui-

to importante. Acho que vocês estãoerrando sem saber que estão, por boasintenções e tentando ser o melhorpossível realistas, porém com umparadigma que já foi ultrapassado.

O que estou dizendo é que vocêsestão participando de palestras, fazen-do entrevistas, mas não estão ouvin-do o que as pessoas estão falando por-que ainda estão presos a um senso co-

mum, a uma concepção de jornalismoque não admite mudanças...

As pessoas que vocês entrevistarame a absoluta maioria dos pesquisado-res dos negros, da questão racial e doracismo no país não concorda que oracismo “começou quando chegou oprimeiro negro”, ou que o negro vive“à margem da história” ou, pior ainda,que é um povo “ sem história” .

Essas opiniões são as mesmas deFernando Henrique Cardoso, que numMais! de 1996 confirmou que continuaachando que os negros são “desvãos dahistória”. Essa opinião dele é a mesmade todo o grupo mau chamado de “Es-cola Paulista de Sociologia”, da qual fi-zeram parte Florestan F ernandes e oprofessor emérito da Unicamp OctávioIanni.

Porém, tanto antropólogos, comohistoriadores, sociólogos e economis-tas que hoje pesquisam a questão, nãoconcord a m generalizadamente comessa concepção. E ficam muito frustra-dos quando vêem manchetes dessetipo. P rincipalmente num jornal uni-versitário.

Porque eles comprovaram – e cadavez comprovam mais – que os negrossempre lutaram, sempre fizeram his-tória (mesmo a partir das margens) eque, por isso mesmo, são as margens

que estabelecem a história central.Também não dá para afirmar que o

racismo começou no século XVI(quando entrou o primeiro negro nopaís). Primeiro, não era negro, não erapaís e não era racismo. O país só co-meçou a se entender como país porvolta de 1821. Negro era uma expres-são ideológica religiosa que significa-va “não iluminado” e designava os ín-dios (chamava-se os africanos de pre-tos e os negros brasileiros de “criou-los”). E, por último, o racismo é umainvenção do século XIX! Antes dissonão se considerava uma pessoa inferi-or por causa de sua pele. Mas por suacrença e atos! E exemplos há de so-bra.

Se quiserem, podem re-entrevistarSuely Kofes e Marisa Correa. Mas tam-bém deveriam entrevistar Célia Mari-nho, Bob Slenes, a Lília Schwarz daUSP... Há muita gente.

Eu tenho uma posição que não éúnica. Mas estou pensando seriamen-te em fazer uma pesquisa/levantamen-to sobre como a Imprensa divulga pes-quisas sociais – notadamente de His-tória, que é meu curso – porque oserros são inúmeros e geralmente co-locados nas manchetes, pois se funda-mentam numa visão culturalista eevolucionista que impede que se ve-jam os progressos nas Ciências Huma-nas, que relativizam ainda mais as an-tigas concepções sobre o ser humano.Não só uma pesquisa, mas também umprojeto de divulgação científica na áreade humanas.

Claro, não são erros intencionais,mas erros para mim ideológicos e quepermitem, sim, reportagens e concep-ções opostas e portanto podem man-ter a aparência da “imparcialidade”.Mas essa crítica é necessária e um le-vantamento também, porque a im-prensa nunca publica críticas comoessa, nunca aceita propostas que vãocontra a concepção dominante na re-dação e nunca relativizam suas posi-ções.

Agradeço muito a oportunidade edeixo aqui registrado que muitagente e a grande maioria dos pes-quisadores de humanas gostaria dever algumas reportagens enfocando

também essas mudanças de modode ver (ou de “paradigmas” como sediz, num termo já tido como estú-pido) e modos de estudar a realida-de humana.

W arney SmithAluno do Instituto de F ilosofia

e Ciências Humanas (IFCH)

� ArteSou aluno da graduação em artes

plásticas na Unicamp. Eu tenho ape-nas uma pergunta: por que sempre oInstituto de Artes é retratado no seujornalzinho como uma escolinha deartesanato? Talvez por ignorância daparte de quem produz essa publica-ção, mas arte é um trabalho sério e éantes de tudo um trabalho intelectu-al.

No último jornal ( Semana daUnicamp 143) tem uma reportagemsobre a “arte da caligrafia”. Vocês con-seguem perceber que isso é somenteuma questão técnica? Por que vocêsnunca comentaram por exemplo so-bre a peça “P rimus”, dos alunos doIA, que foi um destaque no festivalde Curitiba e ganhou espaço na revis-ta “Bravo” (que para explicar paravocês trata-se de uma revista especi-alizada em arte).

Nós já sofremos preconceito den-tro da Unicamp: falta de professores,prédios caindo aos pedaços ecomumente ouço comentários deque dinheiro para o IA é grana joga-da fora. V ocês poderiam colaborarmostrando que investimento na cul-tura é essencial, e que arte é políti-ca, que produz conhecimento e quetransforma o ser humano em pes-soasmais plenas, mais desenvolvidas, en-fim, em pessoas melhores.

Gabriel Braga

SEUESPAÇO [email protected]

Anuncie noAnuncie noAnuncie noAnuncie noAnuncie noJJJJJororororornal danal danal danal danal daUnicampUnicampUnicampUnicampUnicamp

JCPRJCPRJCPRJCPRJCPRPUBLICIDADE E PROPAGANDA

Fone: 3239-0962CEL.: 97051916

Universidade Estadual de CampinasJunho de 2001

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LEITORLEITOR

Page 3: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

CARLOS [email protected]

s conhecimentos econômicose sociais adquiridos naUnicamp estão sendo utiliza-dos para melhorar as condi-

ções de vida da população do maior,mais rico e mais produtivo municípiobrasileiro, e que enfrenta um dosenormes problemas sociais do Pa ís: odesemprego e a falta de estrutura eco-nômica que garanta a ocupação pro-fissional e a redistribuição de renda.

Marcio P ochmann, professor doInstituto de Economia (IE) daUnicamp e coordenador dos P roje-tos Sociais da P refeitura de São Pau-lo, tem sentido na pele a diferençaentre desenvolver teses e pesquisasacadêmicas sobre os problemas bra-sileiros e de aplicar os conhecimen-tos em busca de soluções na práti-ca, diante da realidade política, eco-nômica e social do Pa ís.

Segundo ele, o padrão de regimede dedicação exclusiva da universi-dade pública possibilita o desenvol-vimento da ciência e pesquisa, e osconhecimentos acadêmicos facilitama aplicação prática das teorias. “Semo conhecimento da realidade é im-possível a execução de ações sociaiseficientes. P ara exercer atividadesque buscam melhoria das condiçõesde vida de uma população, é neces-sário estudar experiências políticasnão só do Brasil, mas também deoutros países onde foram formula-das ações que funcionam na práti-ca. A contribuição do conhecimen-to empírico e o investimento empesquisas, aliados ao conhecimen-to abstrato de teorias e experiênciasdo nosso e de outros países, com-pletam a capacidade de atuação naárea. Isso só foi possível pela atua-ção na Unicamp”, avalia P ochmann.

Embora o trabalho de aplicaçãodeste conhecimento ainda esteja emgestação, a implantação das açõesencontra respaldo político e a neces-sidade social pressiona para que se-jam efetivadas. “A maior dificuldade,que provoca distanciamento entreteoria e prática, é o desgaste do se-tor público, com funcionários malremunerados e desmotivados naprefeitura, a ausência de capacitaçãoprofissional e a enorme quantidadede decretos e leis que dificultam aoperacionalização dos programas”,detalha.

Desemprego disfarçado – A gran-de responsável pelo desemprego nacidade de São Paulo, segundo o pro-fessor, é a po lítica econômica neo-liberalista do Governo F ederal a par-tir dos anos 90, que decidiu abrir a

Da teoriaà práxis

Conhecimento acadêmicoajuda a melhorar a vidados excluídos na maior

cidade do Brasil

Naáreadeações sociais, aPrefeitura deSãoPaulo atuaem dois eixos básicos para os pobres desempregados nacidade:oprimeiroprevêumamploprocessoderedistribuiçãode renda através do Programa de Renda Mínima, com acomplementação de renda para famílias que ganham me-nos de três salários mínimos e tenham dependentes meno-res que 15 anos, visando evitar que crianças fiquem fora daescola; o Programa de Bolsa-Trabalho, que atende jovensde 16 a 20 anos de idade, desempregados, incentivandoque voltem à escola e tenham melhor capacitação para de-senvolver atividades como as de agentes comunitários, noatendimento de deficientes e idosos, com remuneração de45%dosaláriomínimomaisvale transporteesegurodevida;e o programa “Começar de Novo”, voltado a desemprega-doscom40anosoumais, garantindoumacomplementaçãode renda, mais capacitação profissional para sua reintegra-ção nomercado.

O segundoeixo prevê ações nabasedaeconomia, comum processo de desenvolvimento sócio-econômico queviabilize a reestruturação do parque industrial paulistano,principal centro produtivo daAmérica Latina; a criação demelhores condições de organização para os pobres, atra-vés do programa “Economia Solidária”, com ênfase na di-fusão da cultura do cooperativismo e atividades de peque-nas e médias empresas; e, finalmente, a democratizaçãodo crédito popular, com a criação do Banco do Povo.

“O objetivo é romper com o ciclo estrutural da pobreza.Ações que somente distribuem renda e alimentos funcio-namapenas enquanto dura o programa.Depois que o pro-grama termina, a situação continua a mesma e até piora,sem romper o cruel ciclo da pobreza. As linhas de créditoque existem não atingem os pobres. Queremos que osmenos favorecidos possamcaminhar comas próprias per-nas”, esclarece Pochmann.

Para implantação dos projetos foram alocados recursosda ordem de R$ 68 milhões, o que possibilita atender 60mil famílias com o Programa de Renda Mínima. “É o maiorprograma de distribuição de renda daAmérica Latina, masainda insuficiente diante de 309 mil famílias carentes deSão Paulo”, acrescenta o economista. O volume de recur-sos poderia sermaior se nãohouvesse a redução da recei-ta em função do grande número de pobres que não pagamimpostos na cidade.

Outras tentativasde recuperar onível deemprego, comoa adoção do “Simples” para micro e pequenas empresas,e a desregulamentação das leis trabalhistas para reduçãodos custos de contratação, com jornada de trabalho flexí-vel e regularização do trabalho temporário, mostraram-seinfrutíferas diante da realidade do mercado. “O problemaestrutural sobrepõe-seaestaspolíticas”, afirmaPochmann.

Portas fechadas – Os trabalhadores de São Paulo per-deram 540 mil postos de trabalho nos anos 90 e quatro milempresas fecharamasportas.Reverteresteprocessoexigegrande esforço político. “A abertura comercial dos anos 90mudou radicalmente a cadeia produtiva.Muitos componen-tes de automóveis, só para citar um exemplo de um setorespecífico, passaramaser importados, oque reduziudrasti-camente os postos de trabalho na indústria de auto-peças.Emoutros setores, comodas indústrias têxtil e gráfica, ocor-reram problemas semelhantes. É importante recuperar acompetitividade nacional na cadeia produtiva”, afirma.

Outra frente de atuação segue a proposta de ampliarcomplexos produtivos de setores específicos, como o doturismo e lazer, em franca expansão e com grande poten-cial. “São Paulo recebe o maior número de visitantes emtodo o País e esta atividade ainda é concentrada basica-mente em turismo de negócios. Mas existe boa estrutura ecapacidade de crescimento do setor, capaz de gerar umvolume apreciável de empregos”, conclui.

economia às importações em detri-mento da produção nacional. “O tra-balho informal não é novidade noBrasil e está historicamente consti-tuído na economia. Em São P auloocorre em menor parcela que emoutras cidades. Até o final dos anos70, à medida que crescia o trabalhoformal, reduzia-se o informal. O ca-minho inverso, ou seja, a expansãodo trabalho informal , ocorreu nosanos 90, justamente pela reduçãodos postos de trabalho formais.Grande parte deste contingente dis-farça o desemprego e busca alterna-tivas estratégicas de sobrevivênciadiante da exclusão do processo pro-dutivo regular”, conclui P ochmann.

Programa garanterenda mínima

para 60 milfamílias

Se o município não tem capacida-de de gerar empregos – o que depen-de da política econômica federal –procura então implantar programasalternativos que reduzam os impac-tos negativos da exclusão social.

Trata-se nada menos da terceiramaior cidade do mundo, com umapopulação de 10,4 milhões de habi-tantes, 850 mil desempregados e10% da população vivendo abaixo dalinha de pobreza.

Marcio Pochmann(19) 3788-5720 e [email protected]

Marcio Pochmann, dos projetos sociais em São Paulo: pesquisas colocadas em prática

O

Contato

Universidade Estadual de CampinasJunho de 2001

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EMPREGOEMPREGO

Page 4: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

PAULO CÉSAR [email protected]

fitoterapia, ou uso terapêutico de plantasmedicinais, é um hábito identificado empraticamente todas as civilizações ou gru-pos culturais conhecidos desde os

primórdios da humanidade. No passado, as plan-tas representavam a principal arma terapêutica co-nhecida, e sua intensa utilização resultou em co-nhecimentos empíricos que foram transmitidos degeração para geração.

O acúmulo dessas informações pelo homem pri-mitivo propiciou o surgimento da cultura popularda arte de curar e também da farmacoterapêutica,que se tornou uma das bases importantes para onascimento da indústria farmacêutica. Como diver-sas moléculas vegetais com estrutura complexa de-pendem de síntese biológica, e a síntese em labo-ratório não pode ser feita ou é economicamenteinviável, vários produtos industrializados, entremedicamentos e cosméticos, têm sido desenvolvi-dos a partir de ervas medicinais, com base nas indi-cações populares.

Atualmente, há uma ampla gama de chás, sucos,xaropes, tinturas, óleos, pomadas, cremes, loções,sabonetes, shampoos e desodorantes à disposiçãodo público naturalista nas farmácias homeopáticase lojas de fitoterápicos. Mas até que ponto seu usoindiscriminado é seguro para a saúde?

Os riscos são grandes, conforme atestou pesqui-sa desenvolvida na Unicamp pela química Cáritasde Jesus Silva Mendonça, como parte do estudopara sua tese de doutorado “ Alcalóides Pi rrol i -zidínicos em plantas brasileiras de interesse alimen-tar e medicinal: identificação e toxicologia”. Reali-zado com bolsa do CNPq, o trabalho foi orientadopelo professor Gil Eduardo Serra, da F aculdade deEngenharia de Alimentos (FEA), e co-orientado peloprofessor Lauro Euclides Soares Barata, do Institu-to de Química (IQ).

Plantas contendo alcalóides pirrolizidínicos (umasubstância tóxica produzida no processo de bio-síntese da planta) são amplamente consumidascomo remédios caseiros ou alimentícios, na formade saladas e sucos, em alguns países como Índia,

Afeganistão, Estados Unidos, Rússia e Brasil. En-tre os exemplos mais comuns estão a “crista de galo”(Heliotropium índicum), o “bico de corvo” (Helio-tropium transalpinum) e o “confrei” (Shymshitumoficinalis) usado em saladas.

Pesquisa inédita – No Brasil, até então, não ha-via um trabalho investigativo sobre essa categoriade vegetais. Coube pioneiramente a Cáritas com-provar, após sete anos de pesquisa, que o consu-mo contínuo dessas plantas com alcalóidespirrolizidínicos pode provocar a cirrose hepática,com risco de chegar ao câncer através da destrui-ção das células do fígado.

Inicialmente ela procurou identificar a presençada toxina em plantas desidratadas colhidas noherbário do Instituto de Biologia (IB) da Universi-dade. O exame compreendeu 23 espécies do gêne-ro Senécio braziliensis (popular maria-mole ou flordas almas), típico do Sul do país, e 32 espécies dogênero Elpatorium laevigatum (mata-pasto oucambará falso), muito encontrado no Sul e Sudes-te, cujas folhas são usadas para curar feridas e nopreparo de sucos contra febres.

Posteriormente analisou oito espécies de plan-tas in natura, colhidas em diferentes épocas do ano.Além de amostras de arnica silvestre, de Senéciobraziliensis e de Elpatorium laevigatum, tambémcolheu e testou em laboratório espécies dos gêne-ros Heliotropium indicum e Heliotropiumtransalpinum (utilizados na forma de chás para tra-tar úlcera, complicações renais ou para combater

doenças do aparelho respiratório), Ageratumconyzoides (popular mentrasto), Crotalarialanceolata (conhecida como chocalho de cascavel)e Crotalaria spectabilis, comumente encontradasem pastagens.

Esforço multidisciplinar - Os exameslaboratoriais para identificar a presença dealcalóides nas plantas e comprovar seus malefíciosconstituíram a parte mais exaustiva da pesquisaconduzida por Cáritas. “Foi necessário um esforçomultidisciplinar, com a participação de especialis-tas das áreas de química, toxicologia e histologiada Unicamp”, conta a pesquisadora.

Além do orientador e do co-orientador da tese,ela contou, ao longo do estudo, com o apoio dosprofessores João Ernesto de Carvalho e P atrícia Cor-rêa Dias, do Centro Pluridisciplinar de PesquisasQuímicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), e SaraArana, do Departamento de Histologia e Embrio-logia do IB.

Para a identificação dos alcalóides, ela empregouum processo que consiste, inicialmente, em pre-parar com metanol um extrato da planta, aquecê-lo e analisar os diferentes compostos químicos con-tidos no vapor em um cromatógrafo gasosoacoplado a um detetor (espectofotômetro) de mas-sas. Depois, com o uso de técnicas de ressonânciamagnética nuclear de próton e de carbono 13, iso-lou e caracterizou dez diferentes tipos de alcalóidesentre os compostos químicos, conseguindo obterextratos purificados da substância.

O passo seguinte foi realizar os ensaios toxi-cológicos, com a injeção dos alcalóides em 100 ra-tos, dez para cada tipo de substância isolada. Cáritasaplicou doses diferentes em cada cobaia, para po-der melhor controlar e avaliar o efeito da toxina noorganismo do animal.

Por último, os ratos foram sacrificados e seusfígados submetidos a análises histológicas, paraavaliação microscópica do estado das células. Fo iquando Cáritas pôde constatar os danos causa-dos aos órgãos dos animais que haviam recebidodoses maiores de alcalóide. “Os alcalóides sãohepatóxicos, ou seja, tóxicos para o fígado. A to-xina obstrui a circulação sangüínea no órgão ecompromete seu funcionamento”, esclarece aquímica.

Plantas que fazem mal‘Crista de galo’, ‘ bico de corvo’ e ‘confrei’ podem provocar cirrose

Confusãonos sintomas

A química Cáritas de Jesus Silva Mendonçaadverte que, por apresentar sintomas semelhan-tes, casos de intoxicação por consumo de chásà base de plantas com alcalóides podem estarsendo confundidos com cirrose, câncer ou he-patite, já que o órgão afetado nesses casos é omesmo. A pesquisadora pondera, entretanto,que a intoxicação depende da concentração dasubstância na planta e da freqüência do uso domedicamento produzido a partir do vegetal.

Porém, não há no país dados científicosabrangentes sobre plantas medicinais, nem umcontrole eficaz da qualidade dos produtosfitoterápicos capaz de avaliar a concentraçãode alcalóides e prevenir intoxicações. Muitomenos orientações para a população sobre ouso correto dos medicamentos. Enquanto isso,a ingestão indiscriminada coloca em risco asaúde dos consumidores.

“Os fitoterápicos transformaram-se numa pa-nacéia”, observa Cáritas. “O uso popular deplantas medicinais in natura é cada vez maiore, na mesma proporção, cresce a produção e oconsumo de cosméticos e medicamentos ditosnaturais. Não se percebe, contudo, uma preo-cupação em se conhecer melhor os efeitoscolaterais da utilização desses produtos, comoa toxicidade.”

Produto proibido – A tese de doutorado éuma contribuição da pesquisadora para mudaresse quadro. O que ela pretende, com esta epróximas pesquisas que começa a esboçar, éestimular o aprofundamento do estudo e da sis-tematização das tradições populares do uso deplantas medicinais no Brasil, como forma deter uma estratégia para investigação e compro-vação farmacológica de seus benefícios emalefícios ao organismo humano.

É o que ocorre na Alemanha, país que teminvestido muito no campo da etnofarmacologia(estudo da farmacologia popular de um deter-minado grupo cultural) para o desenvolvimen-to de novos medicamentos à base de plantasmedicinais.

O trabalho de Cáritas, no entanto, já influen-ciou uma decisão do Ministério da Saúde. Oórgão proibiu no Brasil a produção de umfitoterápico a partir do algerato – popularmen-te utilizado na forma de chás, emplastros eem banhos para males tão diversos como reu-matismo, cólicas menstruais e cálculos renais– depois que a pesquisadora demonstrou o altograu de toxicidade da planta.

A

ContatoCáritas de Jesus Silva Mendonça

(19) 3874-1267 [email protected]

Cáritas Mendonça, química da Unicamp, que analisou 23espécies de plantas: “Alcalóides são tóximos para o fígado”

Acima á esquerda, Senecio brasilienis, popular‘maria-mole.Abaixo à direita, Heliotropiumindicum, popular ‘crista de galo’

Universidade Estadual de CampinasJunho de 2001

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PESQUISAPESQUISA

Page 5: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

ÁLVARO [email protected]

professor Humberto de Araújo Ra ngel olhou para t rásdepois de aposentar- se em 1996, aos 70 anos. Foi umclarão da memória afetiva que o r econduziu às ru as deum bai rr o humi lde das c ercanias de Salvador, berço de

uma trajetória marcada pela luta por um diploma de médico, pro-fissão exercida nos ermos esquecidos, no interior das carências. Oofício prático l ogo s eria t rocado pela pesquisa experimental , noslaboratórios do Insti tuto Butantan, da Escola Paul ista de Medicina,do I nsti tuto Pasteur ( Paris) e por fim no Departamento deMicrobiologia e Imunologia do Insti tuto de Biologia (IB) da Unicamp.

Um mergulho no mundo c lassi fi cado pelo próprio Rangel de“al ienante”, repleto de moléculas e camundongos, divorciado das afl i -ções i mediatas. Contudo, mesmo na “ redoma”, para usar outra ex-pressão cunhada por ele, o pesquisador ouvia a reverberação dos ecosda sociedade. A aposentadoria serviu para material izá-los – Rangel eum gru po de professores f undaram, em 1997, o I PES ( Insti tuto dePesquisas Especiais para a Sociedade), ONG que busca um modelo detrabalho que promova a interação entre universidades, organizaçõesda sociedade civi l e administração pública. O professor voltara à práti-ca, à f rente de um c onvênio estabelecido c om a Unicamp e de umprojeto de política pública aprovado em primeira instância pela Fapesp.

E foi na condição de presidente do IPES que Rangel se emocio-nou na palestra proferida r ecentemente pelo professor GeraldoDi Giovanni , do Insti tuto de Economia da Unicamp. Na platéia, 20aspirantes a agentes comunitários de saúde que vêm sendo pre-parados pelo I PES para a tuar na r egião do J ardim São Marcos,bairr o da peri feria de Campinas, ouviam pela primei ra v ez a lgosobre Economia Solidária, tema do seminário que teve o apoio daPró-Rei toria de Extensão e Assuntos Comuni tários e da Fapesp.

Foi o caso, por exemplo, da professora de educação especial Ma-ria Nazareth Evangel ista dos Santos. Demitida da prefei tura de Cam-pinas, ela trocou o Jardim Santa Mônica por Brasíl ia. A permanên-cia do filho no bairr o, porém, fez com que vol tasse para suas coisas.Um pedido fei to por uma vizinha, que queria ser al fabetizada, mu-dou a vida da professora. A carti lha não bastava. Logo a garagem desua casa se transformou em sala de supletivo. Hoje ela busca apoiopara conseguir um espaço que acomode a demanda. Maria Nazareth

Ecos da sociedadeProfessor deixa ‘ redoma’ do laboratório ecoloca-se à frente de projetos comunitários

O

Geraldo Di Giovanni, do Instituto de Economia: falando sobre economia solidária aos agentes comunitários

A professora Maria NazarethEvangelista dos Santos: “Nósprecisamos da universidade”

A futura agente comunitária Joana JúliaTripolini: “As palestras na Unicamp têmajudado muito”

O professorHumbertoRangel,presidente doIPES: “Auniversidadepode ser uminstrumentodetransformação”

Contato [email protected]

gostou da palestra de Giovanni , embora tenha ficado mais entusias-mada c om a c onversa i nformal entre o professor e s uas c olegas,após o s eminário. “ É mui to i mportante esse c ontato. Nós precisa-mos da universidade, e a universidade precisa da gente”.

Opinião comparti lhada pela operária aposentada Joana Júl ia RezendeTripoloni , minei ra que em 1973 deixou Monte Santo de Minas para seestabelecer no Jardim Santa Mônica, à época um matagal sem fim.

Joana milita no movimento popular, coordena um gr upo demulheres, i ntegra a s ociedade amigos de bai rr o e ainda arr umatempo de parti cipar das r euniões do c onselho de escola. Uma l i -derança que aprendeu, no seminário, o significado daquilo queparte da mídia, à exaustão, banal izou: comunidade sol idária. “Alémdo aprendizado, as palestras na Unicamp têm me ajudado muitono trabalho que desenvolvo no meu bairr o”.

Sem oba-oba – Rangel puxa mais uma vez pela memória parafalar de outra palestra, também na Unicamp, na qual um fi l ósofotransmi tiu noções de ética aos futuros agentes comuni tários. “Foiuma discussão muito madura, muito consciente. A reação dosalunos f oi t ípica de pessoas ávidas pelo c onhecimento”, r elata oprofessor, para quem encontros como esses derr ubam a teoria deque não é possível transmi ti r o conhecimento científi co para pes-soas comuns. “A universidade pode transformar os benefícios daciência e da t ecnologia em i nstrumentos de mudança, além dedesmisti fi car aspectos da l i nguagem ao buscar palavras mais pró-ximas da real idade das pessoas”.

Uma aproximação que dispensa as armadilhas do paternalismo,do assistencial ismo e do oba-oba, conforme prega a l i nha de açãodo IPES, cujo ideário deixa claro que dar coisas ou proporcionarsi tuações é uma estratégia equivocada. “ Não f azemos f i lantropiano sentido clássico, mas criamos meios e estímulos para que elesbusquem alternativas. À medida que os agentes adquirem auto-nomia, a gente tem que se afastar” , prega Rangel . O professor vêuma relação de troca nesse contato com as comunidades. Revela

que está aprendendo muitas coisas, sobretudo nas áreas do ensino eda assistência médica, que, em sua opinião, deveriam passar por modi-ficações estruturais. “ Seriam mudanças s imples, mas, que uma v ezimplantadas, revolucionariam a maneira de ver e de fazer as coisas”.

Rangel usa como exemplo o Centro de Saúde do Jardim SãoMarcos, para ele bem equipado e com pessoal de “excelente qua-

l idade profissional ”. Na opinião do presidente do IPES, a popula-ção não se sente assistida por haver um problema de comunica-ção, no qual predomina uma visão distorcida do papel da medici-na – tanto da parte da comunidade como da dos profissionais.Entraria em ação, nesse quadro, o agente comuni tário, cuja tare-fa s eria s obretudo educati va. “ Ele deve promover um d iálogo nosentido de se estabelecer uma pol íti ca de saúde preventiva, cadas-trando a população, conhecendo sua realidade e traçando umapol ítica a s er desenvolvida pelos profissionais do c entro de s aú-de”, r eceita Rangel . Segundo o professor, t rabalhos dirigidos àsaúde da família têm dado excelentes resultados sem que haja anecessidade de gastos desnecessários ou de mandar o paciente deum especialista para outro, sem um diagnóstico fechado.

Atuação ampliada – O I PES, que c onta hoje c om aproximada-mente 40 integrantes, pretende estender o campo de atuação para asáreas de educação e cul tura, por meio de parcerias e de ações que vãoser orientadas por um núcleo de trabalho transdiscipl inar, envolven-do docentes, alunos e agentes comuni tários. Rangel sente que cresceo interesse da universidade pelo trabalho na peri feria, embora saibaos l imites de sua i nfluência, assim com a do i nsti tuto que preside.“Podemos dizer c om s egurança que mui tas das c ausas e dos efei tosdos problemas sociais, inclusive a violência, fogem à nossa ação, poisdependem de estr uturas econômicas que demandam um trabalhoque não pode ficar restrito aos níveis local e nacional”.

O professor, porém, vai seguir, com seus parceiros, na busca de alter-nativas aos modelos existentes, mais ainda no t err eno da economiasolidária. Rangel entende que o cooperativismo, o microcrédito e o im-posto sobre capitais especulativos atenuariam os efeitos das diferençassociais, que c onheceu ainda menino. Que c resceu, c orr eu o mundo,ficou na “redoma”, mas não deixou de ouvir os ecos da sociedade.

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SOCIEDADESOCIEDADE

Page 6: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

LoirainfernalA profética trajetório deAlbino Souza Cruz, o fabricante decigarros, e suas musas fatais

RAQUEL C. [email protected]

“Eu quero a l oura i nfernal ”. Assim s e pediaYolanda, um dos c igarr os de maior popularidadedo início do século passado, à venda naqueles bote-quins. A “ loura i nfernal” era a musa i nspiradorade Albino Souza Cruz. Pouco se sabe sobre a artistae modelo Yolanda D’Alencar, mas as fotos mostrammuito, pois ela chegou a posar nua para o rótulo docigarr o. Várias outras musas ajudaram o empresá-rio a t ornar s eu produto um f enômeno da i ndús-tria brasileira: Dalila, Rosita, Pr imavera, Sudan eMarly, nomes estampados para atrai r principalmen-te os homens, embora com a segunda intenção defaci l i tar o acesso também às mulheres, então pou-co interessadas na prática de fumar.

A idéia de uti l i zar mulheres para vender pro-dutos, portanto, v em de l onge. Souza Cruz f oipionei ro em outras técnicas de marketing, comoa de colocar dentro dos maços vales depois tro-cados por prêmios. Com essas e outras, o portu-guês, que nunca experimentou a droga, iniciouum império que hoje movimenta milhões dedólares ao ano, graças, somente no Brasi l , a maisde 30 milhões de dependentes.

A primeira f ábrica de c igarr os do País foi fun-dada em 1903 e hoje é s ubsidiária da i nglesaBri tish American Tabacco. Albino Souza Cruz es-colhia pessoalmente os nomes das musas. Yolandatornou-se a mais famosa e permaneceu no mer-cado por três décadas, tempo de sucesso extraor-dinário para uma marca. Mui tas al terações foram

fei tas no rótulo ao longo dos anos. A mulher nuaque segurava um tridente acabou substi tuída poruma que só mostrava o rosto e cujos cabelos nãoeram mais pretos e sim louros. Mas a intimidadedos fumantes com Y olanda só aumentava.

Bi lhete da s orte – Ano de 1885, Largo do Ros-sio, Lisboa. Um garoto de 15 anos, com o irmão ca-çula a ti racolo, troca uma moeda por um bi lhetinhoda sorte que pega no bico de um canário: “És incl i-nado a passar águas do mar. Terás de l utar muitopela vida e por fim serás feliz”, dizia o papelote.

No dia 15 de novembro do mesmo ano, a pri-mei ra parte da predição s e c oncretizou. AlbinoSouza Cruz s aiu de Santa Eulál ia da Palmeira,um lugarejo do interior de Portugal, cruzando oAtlântico na t erceira c lasse do navio. Cheio desonhos, aportou no Rio de J anei ro e, j á no s e-gundo dia em terr as brasi lei ras, começou a cum-prir a outra parte da profecia. Portando uma re-comendação, di rigiu-se à Fábrica de Fumos Vea-do. Trabalhou duro por 18 anos na empresa,sendo recompensado por um sólido conheci-mento no ramo e algumas economias.

Com 33 anos de idade, instalou-se num peque-no prédio do c entro do Rio e c omeçou a produzi rcigarr os enrolados em papel , uma novidade queem pouco t empo s e espalhou pela s ociedade. Daprodução artesanal , passou à industrial . Em 1962,dono da maior indústria de fumos da América Lati -na e maior contribuinte de impostos no Brasi l , Sou-za Cruz retirou-se da presidência. Faleceu em 1966,aos 97 anos, s em nunca t er provado um c igarro.Talvez sem remorsos, apesar dos malefícios à saú-de provocados pelo produto que o enriqueceu. Éque os primeiros trabalhos científicos sobre as con-seqüências da atração pela l oura f atal, surgi ramapenas em meados da década de 60.

Uma pessoa que fuma 20 cigarros por dia, dáum total de 200 tragadas, pelo menos. Isto significaque o fumante recebe 73 mil impactos cerebrais denicotina por ano, além de estar inalando entre 2.000e 2.500 substâncias tóxicas diferentes. Daí, a fortedependência. É mais fácil um usuário largar as dro-gas do que um fumante abandonar o cigarro.

“O tabaco é o único agente que, não sendobactéria ou vírus, possui caráter pandêmico pelosmalefícios que causa à saúde mundial”, afirmou opresidente do Comitê Coordenador do Controledo Tabagismo no Brasil, professor JoséRosemberg, em palestra no Hospital das Clínicasda Unicamp, em abril último.

As estatísticas mostram que, a cada 4 dependen-tes, pelo menos um morre prematuramente entre os34 e 69 anos de idade. Rosemberg explica que atu-almente morrem no mundo, por doenças tabaco-re-lacionadas, 4 milhões de fumantes por ano. Se ospadrõesdeconsumonãose reverterem,noano2030morrerão 10 milhões de tabagistas, sendo sete mi-lhões nos países em desenvolvimento. “Será a mai-or causa de mortalidade no mundo, à frente daAids,trânsito, violência e tuberculose”, alerta.

Os números mais recentes, referentes ao perío-do de 1990 a 1999, apontam 21 milhões de óbitospor doenças tabaco-relacionadas. No Brasil a esti-mativa é de 80 mil mortes por ano ocasionadas peladroga. Dentre as 50 doenças que mais atingem osfumantes, o tabagismo é responsável por 90% doscasos de câncer do pulmão, 80% da bronquite crô-nica e enfisema e 33% dos infartos do coração. Nafaixa dos 45 a 55 anos, o tabaco concorre com 50%dos infartos fulminantes.

Fumantes passivos – Na opinião de JoséRosemberg, trata-se de um problema cultural quepoderá ser atenuado em parte com a adoção deprogramas educacionais e uma legislação especí-fica proibindo o fumo em lugares públicos. Metadeda humanidade está exposta direta ou indiretamen-te à ação nociva do tabaco. Os fumantes passivos– aqueles que não fumam, mas convivem com usu-ários em um mesmo ambiente – também entramnas estatísticas. Estima-se que no Brasil existamperto de 15 milhões de fumantes passivos, segun-do o cálculo de que cada dependente convive comdois não-fumantes. Quem traga ingere 60% dassubstâncias tóxicas, deixando no ar os outros 40%.“Embora em menor proporção que o viciado, é gran-de a chance de o passivo apresentar doenças ta-baco-relacionadas”, afirma o professor.

A ação da nicotina –Após a tragada, a nicotinachega aos pulmões, onde é absorvida pelos vasossangüíneos; em sete segundos, chega ao cérebro.A estimulação das células nervosas causam a sen-sação de bem-estar. Em pouco tempo, o cérebroacostuma-se a funcionar com a nicotina, fazendocom que o fumante tenha de ingeri-la cada vez mais.

Ana Maria Arruda Rosemberg, do Programa doControle do Tabagismo em São Paulo e esposa doprofessor Rosemberg, destaca que para as mulhe-res os prejuízos são ainda maiores: alterações comoa menopausa precoce, rugas, risco de problemascardio-circulatórios (quandoutilizado juntamente comanticoncepcionais) tornam-se freqüentes.As gestan-tes podem ter bebês com baixo peso, elevam o ris-co de abortos e de complicações pós-parto.

A face nada lúdicada história do cigarro

Musas nuasem maços decigarros, noinício doséculo:Souza Cruzmostravamuito, masnão tudosobre o seuproduto

Rosemberg e Ana Maria: luta contra o fumo

José Rosemberg/Ana Maria RosembergE-mail:

Contato

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TABAGISMOTABAGISMO

Page 7: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

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TABAGISMOTABAGISMO

A Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitá-rios da Unicamp abraçou a marcha mundial contrao fumo em 1999, com medidas práticas já adotadasem várias unidades. De acordo com o pró-reitorRoberto Teixeira Mendes, estudos comprovam que50% dos alunos adquirem o hábito de fumar de-pois de entrarem na Universidade. “Trata-se de umvício socialmente aceito”, afirma.

Teixeira esclarece que a iniciativa da Universida-de faz parte de um programa maior de combate aoconsumo de substâncias psicoativas lícitas e ilíci-tas como álcool, cocaína e outras. Para ele, o com-bate ao fumo é apenas o início de uma discussãomais ampla que está prestes a acontecer no campus.“Estamos colocando os temas em debate para a co-munidade, com o cuidado de que não se estabele-ça um tabu em torno deles”.

A Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) proi-biu o fumo em suas dependências, por decisão doConselho Interdepartamental, que se baseou na lei9.294/96. Aos fumantes foram destinadas áreas ex-ternas, com ventilação adequada, apelidadas de“fumódromos”. A FEM também espalhou cartazespara orientar funcionários, alunos e professoressobre os malefícios do cigarro.

O Centro de Saúde da Comunidade (Cecom)mantém um serviço específico para os interessa-dos em deixar o vício. São realizadas reuniões peri-ódicas, onde o dependente é orientado quanto àsreações em seu organismo provocadas pela falta danicotina. No início do tratamento, o interessado é

Metade dos alunos fumantesé iniciada na universidade

acompanhado mais de perto duranteum mês. T ambém são indicados trata-mentos com medicamentos, tudo soborientação médica. A Diretoria Geral deAdministração também espalhou carta-zes de conscientização.

Eficácia – No Hemocentro da Uni-camp, desde outubro do ano passado,as ações de combate ao fumo têm sidoeficazes. Naquela unidade, aproximada-mente 12% dos funcionários são fuman-tes. Além de afixar cartazes, o diretorFernando Costa montou uma comissãode oito pessoas para direcionar as me-didas. A presidente da comissão,biomédica Maria Cecília T eoriHashimoto, apoiada por sua equipe, iniciou omapeamento de todos os locais onde o cigarro se-ria ou não permitido. “Destinamos duas áreas paraos fumantes, ainda que internas”, diz.

Ficou estipulado que, num primeiro momento,o fumante flagrado em área proibida seria aborda-do e informado sobre os locais reservados. Em rein-cidência, uma advertência por parte da chefia ime-diata. P ersistindo a transgressão, a V igilância Sani-tária procederá às penalidades previstas: multa de40 unidades fiscais (cerca de R$ 360), com base nalei paulista 9178/95. Cecília salienta que houve boaaceitação por parte da comunidade local. “Até omomento não tivemos nenhuma notificação”.

O hábito de fumar surgiu por influência dos índios,com o cachimbo do pajé. Prática permitida

apenas ao líder espiritual, porque eles acreditavamque a fumaça tinha poderes terapêuticos.

A nicotina (alcalóide presente na folha do tabaco)começou a ser difundida em 1560, quando Jean Nicot,

embaixador francês em Portugal, enviou asprimeiras sementes do tabaco à rainha Catarina de Médicis,

com intuito de aliviar suas enxaquecas. Com isso, ohábito de fumar espalhou-se rapidamente por toda

a Europa, chegando a ser catalogadas 59 doenças quese poderiam curar com o fumo. Depois do cachimbo

vieram o charuto, rapé (tabaco em pó)e o cigarro de papel.

Jean Nicot e a rainha

de mortalidade atingem os fumantes,como câncer do pulmão, bronquite

crônica, enfisema e infarto do coração

50 causas

é a idade média de iniciação no fumoe, destes, 59,6% são homens

e 40,4%, mulheres

15 anos

de crianças fumantespassivas possui o

Estado de São Paulo,onde se estima

8 milhões de fuman-tes

foi a queda narelação

homem-mulherfumantes,

de 1970 para 1985

3 milhões

2,7 para 1,1

4 milhõesde pessoas morrem por ano no mundo, emvirtude de doenças tabaco-relacionadas

de óbitos foram registrados no períodode 1990 a 1999 em decorrência do fumo

21 milhões

O ex-fumante é o principal incentivador de medidas que combatam o fumo.É uma afirmação correta se observarmos experiências como a do pediatra PauloEduardo Moreira Silva, superintendente do Hospital das Clínicas da Unicamp.Fumante desde a adolescência, ele tomou a decisão há pouco mais de cincoanos, em uma palestra do professor José Rosemberg, outro ex-fumante. “Játinha consciência de todos os malefícios que o cigarro acarretava em minhavida, mas naquele dia algo me despertou”, afirma.

O esforço para largar o vício foi grande. O superintendente recorreu a adesi-vos de nicotina e medicamentos para conter a síndrome de abstinência, mas oque eliminou a dependência foi a decisão de parar. “Quem decide deixar ocigarro, não deve mais colocá-lo na boca. O primeiro cigarro, nunca mais”,ensina.

Passados os primeiros meses sem o vício, Paulo Moreira sentiu uma trans-formação em sua vida. Passou a realizar atividades físicas e sua saúde estámais controlada. A experiência pessoal acabou por estimulá-lo a adotar medi-das de combate ao fumo dentro do hospital, em 1998, antes mesmo das açõesinstitucionais da Universidade. Em conjunto com a assistente social LauraHoffman, realizou um levantamento na unidade. “Identificamos que 25% dosfuncionários e médicos eram fumantes”, afirma Laura. Em seguida foram pro-movidas campanhas de conscientização e restringiu-se os locais para a práticado fumo.Aabordagem é sempre feita no corpo a corpo, um trabalho de formiga.“É difícil conscientizar um médico, por exemplo, porque se presume que ele jásaiba o risco que o cigarro representa”, conclui a incansável assistente social.

Superintendente do HC,ex-tabagista, adere à campanha

Pró-reitor Teixeira, ao centro: “Apenas o início de uma discussão mais ampla”

Paulo Moreira Silva, superintendente do HC,ex-fumante: “O primeiro cigarro, nunca mais”

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LUIZ [email protected]

esões por Esforços Repeti tivos ( LER), Lesões por TraumasCumulati vos ( LTC), Distúrbios Músculol igamentares Rela-cionados ao Trabalho (DMRT), Distúrbios ÓsteomuscularesRelacionados ao Trabalho (DORT ). A doença, que ganhou

várias e compl icadas nomenclaturas durante as duas úl timas déca-das, quando se tornou um dos maiores problemas de saúdeocupacional no mundo, afeta músculos, t endões, s inóvias, nervose l i gamentos, com ou sem degeneração dos tecidos, principalmen-te dos membros s uperiores, ombros e pescoço. Causas mais f re-qüentes: atividades repeti tivas ou esforço exagerado sobre esses gru-pos musculares, ou a inda a postura i nadequada. Alguns patrões emesmo colegas de serv iço, i gnorantes quanto ao assunto, ainda achamam de “LERdeza”, atribuindo- a a uma s uposta preguiça dotrabalhador, já que as lesões não são aparentes.

“É um termo pejorativo cada vez menos usado, mas ainda emvoga dentro de empresas mal estruturadas, que visam apenas aolucro e não pensam na importância da capacidade intelectual eda saúde física de seus funcionários”, afirma o médico Lu izFernando Macatti, coordenador de saúde ocupacional do Ciesp(Centro das I ndústrias do Estado de São Paulo). Ele c oncedeupalestra sobre o tema na 1ª Semana de Saúde Ocupacional, even-to oferecido em maio pela Unicamp ao seu quadro de serv idores.

O fato é que a DORT – definição tida como a mais corr eta a partirde 1997 – tornou-se uma questão bastante séria. Os estudosaprofundados acerca da doença começaram em 1980 na Austrália,país onde o serv iço de seguridade quase quebrou e se viu obrigadoa al terar a normatização relacionada a l icenças e indenizações, frenteao processo de evolução mui to grande das lesões. Nos Estados Uni -dos, que possuem estatísticas c onfiáveis, s ão acometidos de 3,2 a3,5 trabalhadores em 100. O tempo médio de afastamento é de 25dias. O American Journ al aponta que os norte-americanos gasta-ram, em 97, US$ 418 bilhões em custos diretos com a DORT . Omontante alcança US$ 837 bi lhões com os custos indi retos e a ci fraimpressionante de US$ 1,2 t ri lhão s e s omados os t ratamentos, r e-clamações trabalhistas, perda de produção, dias parados e perda decapacidade produtiva dos empregados.

Em 1995/96, as atividades de escritório respondiam por 65%dos ocorr ências e, as i ndustriais, por 35%. Mas as c oisas estão

Depois de duas décadas deestudos por especialistas, asLesões por Esforços R epetitivosfinalmente deixam de sertratadas pejorativamente

hormonais e al terações psicológicas. “ É possível i maginar a di fi -culdade para esta identi fi cação com o fato de que antes pensáva-mos apenas em hormônios femininos e hoje sabemos que os ho-mens têm andropausa e, portanto, dificuldades hormonais, quepodem influenciar à DORT ”, compara o especial ista.

Luiz Macatti ressal ta um outro equívoco, cometido inclusive pormédicos mal informados, que vêm LER/DORT apenas como dor.“Nas f ases i niciais a c aracterística básica é a f adiga nos membros,um peso e um dolorimento. A pessoa s ente d i fi culdade de s e aco-modar para dormir, uma sensação estranha, um incômodo no mem-bro superior. As dores só aparecem em fase mais adiantada”, adver-te o médico. Ele acrescenta que nos níveis 1 e 2 a DORT regride namaioria dos c asos, c om o uso de anti inflamatórios e analgésicos,repouso e exercícios fisioterápicos.

Nos níveis 3 a 4 a s i tuação c ompl ica, c aminhando-se para aincapacitação física. “Não há chance de reverter o quadro, a não ser quesurjam mecanismos novos. Com o envolvimento da genética, por exem-plo, talvez possamos curar um paciente no nível três, evitando que al-cance o nível quatro e se torne incapaz para sempre”, confia o médico.

Afastamento – Macatti garante que médicos, fisioterapeutas epsicólogicos j á possuem i nformações s uficientes para d iagnosti -car o paciente com LER/DORT e afi rmar com certeza se seu qua-dro é r eversível ou não. São f reqüentes, c ontudo, as denúnciascontra o I NSS ( Insti tuto Nacional de Seguridade Social ) de que oórgão estaria determinando o retorno ao trabalho de funcionárioslesionados e com dor, aparentemente para diminuir custos dogoverno com esses afastamentos.

“Há dois anos t i vemos 300 ou 400 c asos desse t ipo s omente emCampinas”, r ecorda o médico. “ Mas c reio que aquela determinaçãofoi uma tendência momentânea e deixou de existi r. A questão é que omédico do INSS não parece ter as mesmas condições que seus cole-gas de fora. O processo para afastamento é bastante di ficul tado, por-que ele precisa ter a certeza da ocorr ência de DORT. E esta certeza nãose obtém apenas com diagnóstico e exames médicos; é preciso i r àsempresas para aval iar as condições de trabalho no local , procedimen-to que raramente um médico do INSS pode tomar” , conclui.

Definição de LER/DORTSão lesões de músculose/ou nervos causadaspela utilizaçãobiomecanicamenteincorreta dos membrossuperiores, que resultamem dor, fadiga e quedada performance notrabalho, incapacidadetemporária e, conformeo caso, evoluem parador crônica.Incluem-se nesta fasefatores psíquicosque reduzem olimiar de sensibilidade

� Tendinites: acometimento dos tendões

� Tenossinovites: acometimento dos ten-dões e da capa (sinóvia) que os recobre

� Epicondilites: acometimento do músculo edo osso do cotovelo

� Síndrome do Túnel do Carpo: acometi-mento dos nervos, quando passam do ante-braço para as mãos (ponto de estrangulamen-to chamado “túnel do carpo”)

� Fibromialgia: acometimento dos músculosdo pescoço (trapézio, esternocleito, elevado-res da escápula etc.)

O que compreendem� Locais mais afetados: punho, cotovelo, ombro epescoço� As funções costumam vir associadas: punho +cotovelo; punho + pescoço� O membro superior é um conjunto mecânico fun-cionalmente integrado, de forma que, quando se for-ça o antebraço, há uma sobrecarga tensional estáti-ca ou dinâmica sobre ombros ou pescoço� As lesões podem ser unilaterais ou bilaterais.Quando são bilaterais e evoluem mal, levam a umaincapacidade funcional grave, chegando à invalidezpara o trabalho. Quando são unilaterais, permitemao trabalhador utilizar o outro membro para suas ati-vidades, tomando-se o cuidado de evitar os fatoresdesencadeantes das atividades anteriores

� Fragilidade� Tamanho do pulso� Saúde em geral

� Personalidade: tensão, insegurança, distonia neurovegetativa� Experiência pessoal com o trabalho

� Atividades domésticas obrigatórias� Interação hormonal� Inadaptação pessoal com a vida

� Concentração do mesmo padrão de movimento� Fatores causadores de desprazer

� Fatores causadores de fadiga

Aspectos importantes Fatores causais

‘L.E.R.deza?’

L

Macatti, da Ciesp: “Tenossinovite ocupacional é fenômeno antigo”

Luiz Fernando [email protected]

mudando. “Houve uma forte diminuição no número de trabalha-dores na i ndústria e , quem f i cou, está t rabalhando e s e expondomais. Em pouco tempo teremos o equilíbrio em 50% entre asl inhas de escri tório e de produção. A quantidade de processos tra-balhistas nas indústrias já atingiu o mesmo nível ”, observa Macatti.

Mal antigo – O médico lembra que, em princípio, as LER/DORTnão são uma doença, e sim lesões que ocasionalmente adquirem aconformação de uma doença. Não advêm necessariamente das ati-vidades de trabalho. A maioria dos casos é totalmente curável e ape-nas uma minoria progride para a i ncapaci tação. Também não sãouma novidade, pois tem-se conhecimento delas desde 1950. “Otermo t enossinovi te ocupacional é apenas uma c onstatação c on-temporânea de um fenômeno mais antigo. O número de pessoasque uti l i zavam máquinas de escrever era pequeno no passado e,por conseguinte, as reclamações. Comparati vamente, podemos afi r-mar que 95% das pessoas hoje mexem com computador, quandohá duas décadas somente 20% estavam digi tando”, i lustra Macatti .

Um terço das ocorr ências se deve ao trabalho e um terço a fato-res extra-profissionais. Os f atores c ausais do outro t erço s ão dedi fíci l i denti fi cação, podendo estar r elacionados c om problemas

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SAÚDESAÚDE

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M.N. precisa concentrar-se para apanhar um copo, que vira e mexe lhe cai das mãos. Pede ajuda para lavar os cabelos, e obanho, antes um prazer, agora traz apreensão, pois os movimentos para se ensaboar geralmente vêm seguidos de forte crise dedor. Nem sempre consegue regar suas plantas, outro diletantismo proibido. Agradece se alguém fatia seu bife. Não se esquece dedar comida aos peixes, mas se fossem gatos, não poderia acariciá-los porque a lesão nos dedos impede movimentos finos.

M.N. evita passear nas ruas: é constrangedor ter de explicar a todos para que servem as talas amparando seus braços; e osbraços imobilizados a denunciam como vítima fácil aos assaltantes. Raramente vai ao cinema, a hora e meia na poltrona torna asdores inevitáveis. Pelo mesmo motivo, reluta em sair com amigos, temendo estragar a festa.

Mesmo quando menos intensa, a dor é insuportável, porque constante. Um minuto sem dor, que seja, é o sonho acalentado.Para enfrentar a crise, M.N. toma medicamentos à base de morfina, além de outros para conseguir dormir. E não encontra remédiopara a dor da alma, fruto da incompreensão dos outros, insensíveis diante de um sofrimento que não enxergam. Dor aonde, minhacara, se seus membros estão inteiros, se não há feridas aparentes?

M.N. está afastada do emprego há mais de cinco anos, com LER diagnosticada em nível 4. E, apesar de todos os seus pesares,viu-se convocada pela médica perita da empresa a passar por avaliação de um psiquiatra, como se a doença pudesse ter fundopsicológico. Foi quando enviou à perita a carta abaixo:

Doutora,

Perdir-lhe-ia a fineza de me ouvir uma confidên-cia: fiquei perplexa com sua sugestão de que euseja avaliada por um psiquiatra. Pois a senhorame disse a palavra amiga de que estava interessa-da em tornar melhor minha qualidade de vida. Eminha insipiência não logra dirimir em que talavaliação me seria útil. Por gentileza, observe ocontexto.

Há cerca de cinco anos fui surpreendida pelaLER. Estava no banco havia mais de treze anos,fazia uma boa car reira, era respeitada pelos cole-gas, gozava de um bom conceito funcional. Eracompetente em minha área de atuação, aprecia-va sê-lo, gostava muito de meu trabalho. Meu sa-lário atendia de maneira satisfatória a meu or-çamento doméstico. Havendo par tido de um con-curso público e caminhando apenas pelos cami-nhos de meu esforço, sentia-me vitoriosa.

E de repente, estava inválida. A tenha-se, por ob-séquio, a minha per das. Pe rdi uma car reira e umaprofissão. A presença no mundo de trabalho e oexercício do poder. A possibilidade concreta de umnovo trabalho. A saúde, pela vigência do processodoloroso. A relativa tranqüilidade econômica deantes, pela situação nova de redução salarial. Aestabilidade preexistente em meu emaranhado delaços afetivos e sociais. A fastada do universo dosque trabalham, o ser empurrada para uma posi-ção de mar ginalidade.

A senhora por certo imagina a experiência difí-cil que vivi e continuo a viver. Em vez de por exem-plo me encontrar gerindo uma agência bancária

e usufr uindo do bom mundo dos vitoriosos, aquiestou a lhe escrever esta carta – que se não meenvilece, não chega a me enobrecer. É uma cart apedinte – no caso, pedinte de compreensão -, e sa-bemos bem o quão desconfor tável é pedir.

Aos poucos me foi sendo oferecida uma consola-ção: se o mundo do trabalho me considera inváli-da, não o sou no que é essencial: mantenho ínte-gras minhas funções mentais e afetivas. Consciên-cia, liber dade, escolhas, afeto. Se estes atributos nãosão apreciados no mercado de trabalho, nem porisso deixam de ser a excelência da pessoa humana.

Em tal contexto, veja a doutora onde incide aavaliação psiquiátrica que se me sugere. Nem mes-mo a higidez mental ter -me-ia sido preser vada.

Ousaria lembrar à doutora que possui três boasfontes para a avaliação de minhas condições men-tais. Meus prontuários funcional, médico e social.Nele estarão por certo registradas as ocorrênciasque me dizem respeito. Se em algum deles houverindícios de insanidade, a senhora os encontrará.Pois, como naturalmente é de seu conhecimento,não há distúrbios mentais graves que não se refli-tam no ambiente de trabalho, e comintercorrências de saúde e sociais.

O que lhe peço, de maneira sincera e franca, éque se empenhe em se ater ao conjunto de minhavida. E que, como me disse na conversa que tive-mos, busque me ajudar a efetivamente melhorarminha qualidade de vida. Nem que seja me pou-pando das incontáveis grosserias que se me diri-giram nestes cinco anos de afastamento. Ou dosincontáveis exames subsdiários. Ou de situaçõesconstrangedoras, como a atual.

Ao realizar uma consultoria sobre equipamentos e ambiente detrabalho para uma empresa do Vale do Paraíba, o médico LuizFernando Macatti, antes de se apresentar ao operário, foi perguntan-do: “Há quanto tempo você sente dores no pescoço?”. O trabalhadorse surpreendeu: “Como o senhor sabe?”. Óbvio, segundo o especia-lista: “Ele trabalhava em uma bancada de 1,10m, quando a sua alturaera de 1,92m. Ele tinha que sentir dor”.

Ergonomia. “Ergo” significa trabalho; “nomos”, regras. Regras parase organizar o trabalho. Um conjunto de tecnologias que busca a adap-tação confortável e produtiva entre o ser humano e seu trabalho ou,falando inversamente, busca adaptar as condições de trabalho às ca-racterísticas do ser humano.

Ergonomia abrange a compatibilidade de equipamentos (banca-das e cadeiras à altura, tesouras com molas, almofadas para os coto-velos, canto de mesas arredondado), ritmo de trabalho (redução daforça na tarefa, revezamento de funcionários, controle quantitativo ede repetividade de movimentos, descansos periódicos no dia-a-diade labuta) e particularidades pessoais (massa muscular pequena emrelação ao esforço, insegurança, tensão, dificuldades de inter-rela-ção, distonia neurovegetativa, desprazer nas funções que exerce).São os fatores pessoais, biomecânicos e de organização do trabalhoque influenciam à DORT.

Incisivo nesta questão da ergonomia, Macatti ensina que ela deveser uma preocupação também nas residências: altura da pia da cozi-nha, da fechadura de armários, desenhos do sofá, cama, tanque delavar roupas, do banco do automóvel. O teclado do microcomputador,de acordo com o especialista, já nos obriga a movimentos incorretos:o normal seria dedilharmos na vertical, como se tocássemos uma san-fona: na horizontal, sobre a escrivaninha, estamos tencionando o pul-so. “Quando carregamos nosso filho, o fazemos apenas com o braçoesquerdo ou direito, é característico, ninguém muda de braço. Quan-do lemos um livro depois de uma jornada de trabalho, às vezes elecai no rosto porque seu peso cansa; ou lemos junto ao abajur, deita-dos de lado, posição ainda menos confortável”, exemplifica.

Ergonomia:adaptação do homem

ao ambiente detrabalho e vice-versa

Queixas

Limitação dos movimentos

Força muscular diminuída

Atrofia e/ou deformidades

Membrossuperiores

Normal

Dor à palpação

Dor à palpação demovimentação ativa

Dor à palpação demovimentação passiva

Aumento de volume

Ausência de sinaissugestivos decompressão de nervos

Presença de sinaissugestivos dacompressão de nervos

Edema importante

Fase 0Sensação de desconfortoou de peso durante ospicos de produção; pioranos finais de jornada emelhora com o repouso

Fase 1Sensação constante dedesconforto ou depeso nos membrossuperioresrelacionados commovimentos repetitivose com mais deum mês de duração

Fase 2Dor constante dos membrossuperiores com pequenosperíodos de remissão, masque se agrava com arepetitividade de esforços.O quadro clínico não melhoracom medicamentose fisitoerapia.Interferência nas atividadesde trabalho e fora dele

Fase 3Acorda à noite com dor,deixa objetos caírem dasmãos.Dificuldade para realizartarefas fora do trabalho,higiene pessoal, vidadoméstica

Fase 4Perda dos movimentos finos.Exacerbação da dor,impossibilidade de realizar tarefasdomésticas e de trabalho.Dificuldade de dormir devido à dor

� Dor nos graus 1, 2, 3 e 4� A dor nos níveis 1 e 2 podem ser revertidas, apesar de crescen-tes� A dor nos níveis 3 e 4 são bem mais intensas e incapacitantes� Nos graus 2 e 3 reduzem a produtividade� No grau 4 a capacidade de trabalho é nula� A partir do grau 3 o prognóstico é reservado e o retorno ao traba-lho torna-se problemático� Além da dor, o paciente apresenta parestesias, limitação de mo-vimentos, edema subjetivo, rigidez matinal, cefaléia, insônia, fadi-ga, fraqueza e estresse

� Quando crônica, o sucesso do tratamento é reduzido� Pelo motivo acima, o médico não pode errar no diagnóstico, nemusar tratamentos inadequados,oquepode levaraseqüelas irreversíveis� Conduta básica: eliminar ou minimizar a intensidade dos sinto-mas físicos, principalmente a dor, por meio de medicamentos e fisi-oterapia; sem sucesso, a conduta passa a ser a cirurgia� Outras recomendações: restrição de movimentos, repouso da re-gião afetada e imobilização com talas� Contra a dor, além de medicamentos, são usados calor ou gelo;no caso de edema, eleva-se o membro afetado e, se necessário, éfeita compressão no local

Carta à doutora

Sintomas Tratamento

Saúde ocupacional

A Diretoria Geral de Recursos Humanos(DGRH) da Unicamp promoveu, de 14 a18 de maio, a 1ª Semana de SaúdeOcupacional, voltada ao quadro defuncionários da Universidade. Foramcinco dias com o auditório do Centro deConvenções lotado por 600 inscritos.Além da LER/DORT, tema destareportagem, foram abordadas outrasdoenças ocupacionais e formas deprevenção, como ergonomia e fisioterapia,e as iniciativas tomadas pela Unicampnesse sentido. Entre os palestrantescompareceram especialistas daUniversidade, de grandes empresasprivadas e da Procuradoria Geral doTrabalho. Na foto à esquerda, o públicoparticipa de sessão de ginástica laboral,no intervalo das palestras.

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SAÚDESAÚDE

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ROMILDO PÓVOA FARIA*[email protected]

rientar -se significa descobrir onde está o oriente, o nascente. Ou seja,orientar-se significa descobrir onde está a direção do leste, que é adireção do oriente. Sabendo-se qual é o leste, na direção oposta esta-rá o oeste, o poente, o ocidente. Um observador, esticando seus bra-ços, um para o leste e o outro para o oeste, terá à sua frente a direçãonorte e, às suas costas, a direção do sul.

O leste é a direção onde nasce o Sol e onde surgem, com o decorrer dashoras, outros astros. P osteriormente, eles vão ficando mais altos no céu, atécomeçarem de novo a se aproximar do horizonte e se esconderem no oeste.Para encontrar estas direções é necessário portanto observar onde nascem ouse põem os astros e, a partir disso, encontrar as direções norte e sul.

Mas também é possível orientar -se usando a constelação do Cruzeiro do Sul,visível no céu, atualmente, desde as primeiras horas da noite. As constelaçõessão agrupamentos de estrelas, nos quais imaginam-se as mais diversas figuras,como animais, objetos e heróis lendários.

Presente na bandeira do Brasil e de outros países, no emblema do Exército bra-sileiro e de time de futebol, as estrelas que formam o Cruzeiro do Sul já haviamsido descritas por Cláudio Ptolomeu, no século II d.C., em seu livro “ Almagesto”.Entretanto, para ele aquelas estrelas faziam parte de outra constelação, o Centauro.

Somente em abril de 1500 este grupo de estrelas foi descrito como “Cruz doSul”, em carta que Mestre João (astrônomo, físico, médico e engenheiro da esqua-dra de Cabral) enviou ao rei de Portugal, D. Manuel. A partir do início do séculoXVII, com a publicação do livro “Uranometria”, do astrônomo e médico J. Bayer, onome se universalizou. Em nosso século, com a divisão oficial do céu em 88 cons-telações, o Cruzeiro do Sul permaneceu, com o nome oficial latino: Crux.

Estrelas girando – Esta constelação se carateriza principalmente por quatroestrelas que representam o madeiro maior (Estrela de Magalhães e Rubídea) eo madeiro menor (Mimosa e Pálida) de uma cruz. Além destas, há a f amosaIntrometida, estrela de brilho mais fraco, que recebe este apelido no Brasilpor “atrapalhar” o desenho da cruz.

Se observarmos estas (e outras) estrelas, registrando suas trajetórias pelocéu durante várias horas, iremos perceber que elas parecem girar em torno deum ponto do céu, chamado de pólo celeste sul.

É possível fazer o registro deste movimento colocando uma máquina foto-gráfica apontada fixamente para a direção do sul, abrangendo uma região deaté 60 graus acima do horizonte. P assadas algumas horas, a mudança de posi-ção das estrelas será registrada num filme fotográfico sensível.

Revelando-se o filme, pode-se ver que todas as estrelas descrevem trajetóri-as circulares, como mostra a foto de capa desta edição do Jor nal da Unicamp.O centro comum é o pólo celeste sul, que fica situado na direção da constela-ção do Oitante, formada por estrelas de fraco brilho.

Quem está em algum local do hemisfério norte da T erra registrará algo seme-lhante, só que na direção do norte. Para eles as estrelas parecem girar em tornode outro ponto: o pólo celeste norte, situado na constelação da Ursa Menor, nãovisível aqui de Campinas.

O que são os pólos celestes? – São os pontos do céu (ou do espaço) paraonde está dirigido o eixo imaginário de rotação da T erra. Nosso planeta comple-ta este movimento a cada 24 horas siderais (equivalente a 23 horas e 56 minutosdo tempo marcado pelos nossos relógios). Ao sermos arrastados com a Terra emseu movimento de rotação, de oeste para leste, temos a impressão de que sãotodos os astros que se movem; de que é toda a paisagem celeste que se deslocano sentido contrário, do leste para o oeste. E, nas direções sul e norte, as estrelasparecem descrever este movimento em torno dos pólos celestes.

Uma maneira prática de saber onde está o pólo celeste sul é observar a conste-lação do Cruzeiro do Sul. Se prolongarmos o imaginário madeiro maior da cruz,quatro vezes e meia o seu tamanho aparente (ângulo entre as duas estrelas),encontraremos a posição do pólo celeste sul. Isto em qualquer posição em queestá a constelação.

Quando ela está mais próxima ao horizonte leste, a cruz parece “deitada”,com o “pé” (a Estrela de Magalhães) para a direita. O contrário ocorre quan-do ela se apresenta mais próxima do oeste, quando o pé aparece apontandopara a esquerda.

Já em outros horários, quando a cruz está mais alta no céu, a cruz parece “empé”, com seu madeiro maior apontando para o horizonte sul. Mais exatamente,quando o Cruzeiro do Sul está no ponto mais alto do céu, o braço maior da cruzestá apontando para o ponto cardeal sul, no horizonte.

A partir deste encontramos, na direção oposta, o ponto cardeal norte. E, a 90graus destes dois, no horizonte, localizam-se os pontos cardeais leste e oeste.

Assim, através do Cruzeiro do Sul podemos nos orientar, como diz a músicade Gil.

Se oriente, rapaz!Pela constelaçãodo Cruzeiro do Sul...como sabiamentecanta Gilberto Gil

O

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ASTRONOMIAASTRONOMIA

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arece complicado localizar o Cruzeiro do Sul, jáque há muitas “falsas” cruzes no céu, que pode-mos formar com várias outras quatro estrelas. Mas

na realidade é fácil, pois somente o Cruzeiro do Sul tem,em sua proximidade, duas estrelas de forte brilho: AlfaCentauri e Beta Centauri.

Estas estrelas são conhecidas aqui no Brasil como “guar-das” ou “guardiãs” da cruz, pois como que apontam parao Cruzeiro do Sul, facilitando sua localização no céu. Elasfazem parte da constelação do Centauro (oficialmenteCentaurus), que representa um ser cuja metade superi-or era o tronco, os braços e a cabeça de um homem, esua metade inferior, o corpo e as pernas de um cavalo.

Centauro é formada pelas estrelas que estão em voltado Cruzeiro do Sul, exceto aquelas ao sul da cruz, quecompõem a constelação de Mosca. A mais brilhante es-trela é Alfa Centauri (ou Alfa do Centauro). É a estrelamais próxima da Terra, com exceção do Sol. Enquantoo último está a aproximadamente 150 milhões de qui-lômetros de nosso planeta, Alfa Centauri fica a quaren-ta trilhões de quilômetros de nós.

Mesmo com as melhores espaçonaves atualmente dis-poníveis, demoraríamos cerca de cem mil anos parachegar perto de Alfa Centauri. A luz desta estrela demo-

A estrelas que‘pescaram’ a Terra

A partir de 21 de junho, quando se iniciaráo inverno, outra bela constelação predomina-rá no céu de nossa região: a de Escorpião,cujo nome latino (oficial) é Scorpius. Ela secaracteriza por ser uma das poucas que separece com a figura que tenta representar, prin-cipalmente sua cauda.

Entretanto, para indígenas neozelandeses,este grupo de estrelas representava o “Anzol”que o chefe de seus deuses, Mauí, utilizoupara retirar a Nova Zelândia do fundo do oce-ano. É assim que, em suas lendas, eles expli-cam como surgiu a terra onde vivem.

Para gregos e romanos da antigüidade, aconstelação representava um escorpião, coma brilhante estrela de cor avermelhada Antaressimbolizando o “coração” do aracnídeo, e asduas estrelas brilhantes de sua “extremida-de” (Shaula e Lessath), o ferrão venenoso.

Antares, que está a 365 anos-luz da Terra, éuma estrela supergigante, 125 milhões de ve-zes mais volumosa que o Sol. Não muito dis-tante de Antares e da constelação de Escor-pião pode-se observar o planeta Marte. Vistoa olho nu, ele parece uma brilhante estrelaavermelhada no céu da madrugada.

Vênus e osdiscos voadores

O astro que mais chamará a atenção duran-te a madrugada do outono/inverno (além daperiódica presença da Lua) será o planetaVênus, que reaparecerá imponente na alvora-da, como “Estrela D’Alva”. Nas épocas em queeste planeta torna-se visível, são comuns osrelatos sobre aparição de “discos voadores”.Isto se deve ao intenso brilho do astro e aosefeitos que a atmosfera nele produz (mudan-ças de coloração, brilho e posição). E, é cla-ro, ao desconhecimento que a maioria daspessoas tem a respeito, o que permite a ex-ploração malandra do tema.

Além de Estrela D’Alva e Estrela Vesperti-na, este planeta recebe outros nomes popula-res: Estrela Guia, Estrela do Pastor e Boieira,dentre outras. A denominação Vênus provémda mitologia romana. Era a deusa do amor eda beleza. Os gregos o chamavam de Afroditee, os babilônicos, de Ishtar.

Os planetas brilham por refletir a luz do Solem direção à Terra. Como eles giram em tor-no do Sol, há uma variação de sua distânciaem relação ao nosso planeta. Por isso seusbrilhos diferem com o decorrer do tempo.

No caso de Vênus, seu brilho muda tam-bém porque apresenta fases semelhantes àsda Lua. É o planeta com maior capacidade derefletir a luz do Sol e aquele que mais se apro-xima da Terra (cerca de 39 milhões de quilô-metros) em certas ocasiões. Em decorrência,seu brilho é sempre intenso, superior ao damais brilhante estrela do céu, Sírius.

Além de Vênus e de Marte, muitas outrasestrelas e constelações enfeitarão o outono einverno, época em que temos mais noites decéu aberto, sem nuvens.

ra 4 anos e 4 meses (4,3 anos) para alcançar a T erra. Porisso se diz que ela está a 4,3 anos-luz de distância. Umano-luz é a distância que a luz se desloca, no vácuo, emum ano. É uma unidade que equivale, arredondando, a10 trilhões de quilômetros.

Beta Centauri está mais longe ainda, a 490 anos-luz, ouseja, praticamente a 4 quatrilhões e 900 trilhões de quilô-metros de distância. Com aquela imaginária espaçonave,demoraríamos pouco mais de 11 milhões de anos parachegar até ela!

Apesar de observarmos Alfa e Beta Centauri aparente-mente próximas, elas estão na realidade muito distantesentre si e de nós. As estrelas do Cruzeiro do Sul tambémse encontram a diferentes distâncias entre si e da T erra. Afigura que vemos no céu, a cruz, é apenas a visão quetemos ao olharmos para estrelas que estão praticamentena mesma direção do espaço, vistas daqui. Se estivésse-mos em outro lugar do Universo, a figura seria outra.

Como estão muito distantes, quando olhamos para asestrelas, vemos na verdade a luz que delas saiu muitosanos atrás. Estamos, portanto, vendo o seu passado. SeAlfa Centauri, por exemplo, explodir no momento em quelê esse texto, você só verá a explosão no céu daqui a qua-tro anos e quatro meses.

Existeoutro fato interessantesobreAlfaCentauri.Elanãoéumaestrela simples.Na realidade, é umaestrelatripla.Ou seja, ondeaolho nu vemosapenasumpontoluminoso, existem na realidade três estrelas próximasentre si, formando um sistema triplo de estrelas. Cadauma gira em torno de um centro comum de gravidade,demorando anos para voltar à mesma posição.

A olho nu seus brilhos se confundem por estaremangularmente muito próximas. Somente com possan-tes binóculos ou telescópios (ainda que de pequenoporte) podemos perceber que há mais de uma estre-la naquele ponto luminoso do céu.

Além das triplas, existem estrelas duplas, quádru-plas, quíntuplas e assim por diante. Há também ver-dadeiros aglomerados estelares, contendo centenas,

Como visualizar o Cruzeiro do Sul

No último dia 20 de março iniciou-se a estação dooutono para o hemisfério terrestre sul, onde nos en-contramos. Nas normalmente agradáveis noites deoutono, pode ser vista, logo ao anoitecer, outra im-portante constelação: Leo, o Leão.

A constelação zodiacal de Leão caracteriza-seprincipalmente por cinco estrelas. Regulus, quesimboliza o coração do animal, é uma das vinteestrelas mais brilhantes do céu. É branco-azulada,situada a 68 anos-luz de distância. Seu diâmetroequivale a 3,5 vezes ao do Sol e, sualuminosidade, é 130 vezes maior.

Regulus é uma das quatro estrelas que os antigos

persas tinham como referência para dividir o céu deacordo com o ciclo das estações (as outras eramAldebaran, da constelação de Touro; Antares, daconstelação de Escorpião; e Fomalhaut, da conste-lação do PeixeAustral). Quatro mil anos atrás, o Solestava na direção de Regulus (e portanto na direçãoda constelação de Leão) no dia de início do verão.

Outras estrelas da constelação do Leão são:Denébola, aquela que marca a “cauda” do Leão, étambém branco-azulada e está a 42 anos-luz da Ter-ra; Algeiba, a “juba” do Leão, é um sistema duplode estrelas (uma alaranjada e outra amarela) situa-do a 130 anos-luz; Zosma, o “dorso”, fica 70 anos-

luz e tem coloração branca.Esta constelação representa o Leão de

Neméia. Segundo a mitologia greco-roma-na, Neméia era uma pequena aldeia daantiga Grécia, onde teria caído este Leão,proveniente da Lua. Além de força desco-munal, ele possuía uma pele impenetrávele ninguém conseguia feri-lo mesmo atiran-do-lhe lanças ou flechas. Por isso mesmoconvocaram seu principal herói, Hércules(Héracles, para os gregos). O herói foi atéNeméia, entrou em luta corporal com o Leãoe conseguiu matá-lo por estrangulamento.

milhares ou até milhões de estrelas relativamente pró-ximasumasdaoutrase interagindogravitacionalmente.

Na constelação do Cruzeiro do Sul encontramosum desses aglomerados, conhecido como “Caixinhade Jóias” (Kappa Crucis), por ser formado por estre-las de várias cores. Está a 7.700 anos-luz da Terra epossui cerca de 218 estrelas.

Outro aglomerado, visível a olho nu como se fosseumamanchinhanebulosanaconstelaçãodoCentauro,é o Ômega Centauri. Em foto feita através de um po-tente telescópio, vemos um conjunto esferoidal de es-trelas. Por isso, este tipo de aglomerado é conhecidocom aglomerado globular. Ômega Centauri é constitu-ído por aproximadamente 5 milhões de estrelas e seencontra a 16.000 anos-luz de distância.

Alfa Centauri, a estrelatripla

A constelação que anuncia o outono

Romildo Póvoa Faria, da Pró-Rei toria deExtensão e Assuntos Comunitários daUnicamp, é coordenador do Planetário deCampinas e autor, entre outros, dos l ivrosFundamentos de Astronomia (Papirus) e Vi-são para o Universo (Ática).

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ASTRONOMIAASTRONOMIA

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JOÃO MAURÍCIO DA ROSA

Núcleo de Economia Agrícolado Instituto de Economia daUnicamp (NEA/IE) está pres-tes a divulgar um relatório fi-

nal sobre o P rograma Cédula da Te r-ra (PCT), concebido pelo Ministériode Desenvolvimento Agrário no finalde 1997, com a intenção de ampliaro leque de alternativas para a orde-nação fundiária no Nordeste brasilei-ro. O trabalho, que vai concluir umasérie de estudos iniciados entre 1997e 1998, promete revelar uma radio-grafia do pequeno agricultor nordes-tino e do caminho do dinheiro públi-co investido em uma política fundiáriainédita no país.

Com recursos de US$ 150 milhõesco-financiados pelo Banco Mundial(Bird), o PCT já distribuiu cerca deUS$ 75 milhões para mais de 7 milfamílias que adquiriram, até 1999,242 imóveis rurais espalhados por cin-co estados: Bahia, Ceará, Maranhão,Pernambuco e a região Noroeste deMinas Gerais localizada no chamadoPolígono das Secas. A meta é atingir15 mil famílias.

Para alcançar este objetivo, porém,o Bird usou seu poder de agentefinanciador e exigiu que o PCT fosseavaliado de maneira a não se tornarapenas mais um programa oficial fa-dado ao descaminho, como se verifi-cou em programas tradicionais de re-forma agrária.

O trabalho de avaliação foi enco-mendado à Unicamp por EdsonTeófilo, diretor do Núcleo de EstudosAgrários e Desenvolvimento (Nead),órgão do Ministério de Desenvolvi-mento Agrário. Um dos patrocinado-res da idéia, T eófilo foi inspirador doProjeto Piloto São José, no interior doCeará, que propunha uma forma di-ferente de distribuir terras para pe-quenos agricultores e agricultoressem-terra. “Um programa que combi-

na crédito para aquisição de terrascom a idéia do associativismo rural,peça chave no P rojeto São José, e queassim explora uma tradição cearenseestimulada por órgãos do governoestadual”, explica o professor JoséMaria da Silveira, do IE.

O trabalho de avaliação exigiu a for-mação de uma equipe de especialistasescalados entre a Unicamp, USP,UFSCar e de 64 entrevistadores recru-tados em quatro universidades fede-rais da região abrangida e ainda de umaONG (Organização Não-Governamen-tal) de Minas Gerais. “Avaliar é impor-tante para dirimir críticas. Isso forne-ce a base para que o debate se apoieem argumentos fundamentados, le-vando constrangimento àqueles cujacrítica é baseada em achismos”,enfatiza o coordenador dos estudos deavaliação, Antonio Marcio Buainain,professor do IE da Unicamp.

Algumas regras – “Em linhas geraise com pequenas exceções, os execu-tores do programa nos estados fixa-ram algumas regras para os candida-tos”, explica José Maria. P ara se ca-dastrar nas associações beneficiáriasdo PCT, os candidatos teriam que serpobres, maiores de 18 anos e meno-res de 65, possuir vocação para o ser-viço agrícola, um mínimo de espíritoempreendedor e, preferencialmente,estarem casados.

Quanto ao favorecimento de casa-dos na triagem, a justificativa é pre-servar as associações do chamado ris-co social. “Entende-se que os casadostêm mais responsabilidade e cimen-to social. Sem vínculo com o grupo,o associado pode abandonar o pro-grama depois de apoderar -se dos US$1,3 mil que cada família recebe a títu-lo de doação para sua manutenção”,explica José Maria, referindo-se a umcrédito a que cada família tem direitoao ser contemplada pelo PCT.

O estudo da fase de implantação do

projeto, finalizado em janeiro de2000, mostrou que as comunidadesconstituídas por pessoas que mantêmalgum tipo de ligação – compromis-so social – são consideradas commaior probabilidade de sucesso. “Istovem do fato de que quanto mais coe-sa a comunidade, melhor é omonitoramento entre os pares, visan-do avaliar comportamentos oportu-nistas que prejudiquem o coletivo.Notamos alguns casos de comunida-des formadas por pessoas vindas dediversos lugares, só para atender aochamado do PCT, que tiveramaltíssima taxa de desistência, compro-metendo seu sucesso”, informa o pro-fessor. Quando alguém abandona oprograma, tem como punição ainadimplência, mas deixa a dívidapara os que ficam com a missão deviabilizar a empreitada.

Aumento de risco – O objetivo defocalizar as populações estrutural-mente pobres foi considerado fácilpelo fato de o PCT ter-se difundidono Nordeste. Mas os riscos de fracas-sos aumentaram em função de suascondições naturais e culturais. “É di-fícil compatibilizar o baixo nível deinstrução dos beneficiários com capa-cidade de gerenciamento das propri-edades, daí a necessidade de assistên-cia técnica e atividades associativas”,observa José Maria.

Uma das críticas consideradas per-tinentes ao PCT, apontada em váriosdebates e pelos próprios estudos deavaliação, é que a região abrangidaimpõe desafios terríveis. “As áreas so-freram cinco anos de seca, conside-rada a pior em 50 anos”, explica.Além disso, o professor lembra quenas regiões onde o programa teriamais chances de sucesso, como aZona da Mata de Pern ambuco, emque água é abundante, a terra tempreços que fogem do alcance do fi-nanciamento.

Cédula da T erraUnicamp avalia programa concebido para promoveruma nova ordenação fundiária no Nordeste

Agricultor em terra adquirida pelo Programa Cédula da Terra: US$ 75 milhões para que 7 mil famílias comprassem 242 imóveis rurais

O

Idéia é criar epotencializarcomunidades

O Programa Cédula da Terra tem característi-cas semelhantes às de similares desenvolvidoscom supervisão do Bird na Colômbia e na Áfricado Sul. A diferença em relação a formas tradicio-nais de reordenamento fundiário, segundo JoséMaria da Silveira (IE), é que o PCT utiliza meca-nismosque incentivamoassociativismoruraledãorápidoacessoà terraparagruposqueseconside-ramaptosaseguiras regraspreestabelecidaspelobanco.

“O programa não se limita a financiar compra-dores de terras. A idéia é a criação de compro-misso e potencialização das comunidades”, ex-plica José Maria, lembrando que a proposta foifundamentada nos trabalhos do economistaAmartya Sen, Prêmio Nobel em 1999.

O mecanismo do PCT foi definido pelo Neade pelos técnicos do Bird. Consta de um conjuntodepontos umpouco complicadospara quemnãoestá familiarizado com mecanismos de políticaagrícola. Em síntese dá-se um teto por família deUS$ 11.200. Para que as famílias consigam fa-zer a transição para o projeto que vai ser instala-do, destina-se R$ 130 por mês por família, emum ano, que por sua vez são descontados dovalor teto.

Em seguida fornece-se um crédito fundiárioa juros favorecidos, por 20 anos, com três anosde carência. Ele serve para pagar a proprieda-de (terras nuas e benfeitorias, fixados pela ne-gociação). Se as famílias negociam bem o va-lor da terra, sobra uma diferença entre os US$11.200 e o que é gasto com a área e manuten-ção das famílias, para o investimento comunitá-rio, que não será pago. O limite para o subsídioao investimento é de US$ 3.800/família. “Quan-to melhor negociarem o valor das terras, maiscondições de investimento as famílias terão eminfra-estrutura”, explica José Maria.

Arbitragem –Acompra da terra, ao contráriodo que se possa imaginar, não se caracterizacomo uma simples barganha, segundo mostrououtro estudo de avaliação do programa.Anego-ciação é feita pelas associações com arbitragemdos órgãos estaduais da reforma agrária e obe-dece a certos critérios, como a proibição de quesejamabandonadase, portanto, passíveis de de-sapropriações.

Os mecanismos para dar crédito de US$ 3,8mil por família acaba por estimular a formação deassociações que reúnem até 100 famílias, o quegarante a captação deUS$380mil a fundo perdi-do só para investimento comunitário. Mas os ob-servadores fazemuma ressalva: neste caso, ase-leçãodosassociados é ruimea coesão social vaipara o brejo.

Os estudos detectaram um número médio de29 famílias, por projeto do PCT, que tende a di-minuir em função da exigência de que a proprie-dade não seja passível de desapropriação parareforma agrária, o que limita o estoque de terrasdisponíveis.

Competitividade–Quantomenoronúmerodeassociados,maiscoesose tornaogrupo, segundoosestudos.O trabalhodeavaliaçãopreliminarcon-siderouqueaaplicaçãocorretadoesforçocomuni-tário,gerandomotivaçãoindividualbemdirecionadapelo chamado monitoramento dos pares, cria con-diçõesdetornarosassentamentoscompetitivosemrelação a grandes propriedades que precisam ar-car com o custo do monitoramento do trabalhadorassalariado, ou seja, para verificar se ele está real-menteempenhadoemcumprir sua tarefa.

José Maria lembra que muitas formas tradi-cionais de exploração do trabalhador no sertãoou em regiões mais adiantadas visam jogar notrabalho da família meeira ou arrendatária, a res-ponsabilidade pelo sucesso da exploração agrí-cola. A diferença é que famílias associadas doPCT conquistam o que sobrar do pagamentoda terra e ainda podem reaplicar como bementenderem.

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AGRICULTURAAGRICULTURA

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O trabalho de avaliação doPrograma Cédula da Terra começouem julho de 1997 e teve váriosdesdobramentos, continuando quaseininterruptamente até os dias atuais.O resultado da avaliação preliminarserá publicada no livro Estruturas deGovernança e Avaliação de PolíticasPúblicas, sem data definida paradistribuição.

Para ser levado a campo, o trabalhocomeçou com a elaboração de umametodologia a ser aplicada nosquestionários, um calhamaço de 40páginas e 1.150 indagações, comcada entrevista demorando cerca detrês horas. A elaboração dametodologia motivou a criação deuma equipe composta porpesquisadores da Unicamp, USP eUniversidade Federal de São Carlos(UFScar), coordenada pelo professorAntonio Marcio Buainain, do IE.

A equipe central do programa écomposta por José Maria da Silveira,professor do IE; Marcelo Marques deMagalhães, agrônomo consultor doInstituto Interamericano de CiênciasAgrárias; Hildo Meirelles de SouzaFilho, PHD em economia e professorda UFSCar; Rinaldo Artes, doutor emestatística do Instituto de Matemáticada USP; Carolina Junqueira Homemde Melo, mestranda em economia doIE; Celeste Maria Diaz Cônsul,estatística doutoranda do Instituto deQuímica da Unicamp; Daniele daSilva Pires, economista mestrandaem economia na PUC-São Paulo; eMarcelo Melo, do IE.

O trabalho de campo envolveestudantes de graduação, mestrado epós-graduação das universidadesfederais da Bahia, Pernambuco, Cearáe Maranhão. Em Minas o trabalho éconduzido pelo Instituto de Estudosde Cidadania Pró-Città, OrganizaçãoNão-Governamental. Ao todo, otrabalho de campo envolve 64entrevistadores.

O relatório final trará dados de 2,6 milentrevistados em 120 municípios doscinco estados beneficiados pelo PCT.Os questionários utilizaram umsistema de coletas e análises deconsistência de dados informatizado,feito sob medida para o programa pelaIntraweb Sistemas, empresa desoluções e desenvolvimento desoftwares criada por ex-alunos daUnicamp.

Um risco também analisado pelo estudo da Unicamp éo do uso do programa para a especulação e favorecimentodos proprietários de terras. Esta foi a principal crítica quemotivou o pedido de um P ainel de Inspeção do BancoMundial para avaliar se o programa proposto estava ounão fugindo de seus objetivos.

O Painel não verificou irregularidades graves nas visitasque fez a vários projetos, mas isso não atenuou as críti-cas, principalmente as feitas por assessores de movimen-tos sociais. “Muitos fazem a crítica pela ação de grupos deinteresse que capturaram verbas sociais sem enxergar asvantagens da prosperidade trazida pela melhor distribui-ção de ativos e de renda”, analisa José Maria da Silveira.

Tomando como base os índices da Fundação GetúlioVargas para o Nordeste, o estudo de avaliação sobre o pre-ço da terra mostra que os mecanismos de controle do PCTestão mantendo o valor dos imóveis em faixas aceitáveis.Gera um endividamento médio de aproximadamente R$ 6mil por família, um valor que varia de acordo com a locali-zação e os recursos naturais disponíveis na propriedade.

“A grande maioria dos envolvidos adquiriu a terra e fi-cou com um excedente que permitiu acesso aos recursosde investimento comunitário, demonstrando que a nego-ciação da terra foi afetada pelo interesse das associaçõesem receber um crédito a fundo perdido”, lembra JoséMaria. O problema tem uma fórmula de cálculo que fazcom que só quando se adquire a terra dentro de certosparâmetros de preço, os beneficiários passem a ter direi-to ao incentivo dos investimentos comunitários a fundoperdido.

Não foi fácil para os pesquisadores do P rograma Cédulada Terra admitirem. Mas a pobreza também dificulta suaexecução no Nordeste brasileiro. Segundo o estudo de ava-liação preliminar, certos grupos usam o financiamento afundo perdido a que têm direito para construir casas naspropriedades, comprometendo a capacidade do projeto.

“Há também o caso de uma comunidade que investiuUS$ 22 mil na compra de um trator (e implementos), quena maior parte do tempo é usado como meio de trans-porte para os associados”, relata o professor José Mariada Silveira, um dos executores do trabalho de avaliaçãodo Núcleo de Estudos de Economia Agrícola do IE.

José Maria detectou que uma grande porcentagem dasfamílias que criaram associações do PCT compõe umacategoria de pobres que ainda não afundou para além dalinha da pobreza, uma distinção feita pelo volume de bensque possuem, os chamados ‘ativos’ no jargão da econo-mia. “Elas têm alguma espécie de ativos e pelo menosuma vez foram assistidas, seja por governos ou entida-des. É uma pobreza assistida com acesso a programas so-ciais, o que facilitou a assimilação do Cédula da T erra”,analisa o professor.

Outro fator observado foi o de comunidades com for-tes laços criados pela religião, como as evangélicas. Seusassociados declararam nas entrevistas que preferem o aces-so à terra por meios distintos daqueles usados pelo mo-vimento social.

Em todos os casos a avaliação permitiu constatar que oprograma cumpriu um de seus objetivos principais: o de

Nesta fase inicial do PCT, as negociações também foramfavorecidas por outros fatores, segundo a avaliação. Pr i-meiro: não existe um mercado de terras no Nordeste, fatocomprovado por um trabalho de Bastiaan Reydon eLudwing Puerta, do NEA/IE da Unicamp, que também foipublicado pelo Nead. O trabalho dá conta de que algunscartórios da região registram cinco negócios em dez anos.

O pesquisador Marcelo Marques de Magalhães, do Insti-tuto Interamericano de Ciências Agrárias, que também par-ticipa da avaliação, informa que esta inexistência de merca-do de terra no Nordeste dificulta o processo de negociaçãopara compra, o que demanda a atuação dos órgãos estadu-ais responsáveis pelo programa no sentido de avaliar o imó-vel e impedir que a impaciência dos compradores os leve aaceitar preços elevados. “Isso reforça a tese de que o meca-nismo do PCT funciona, já que é a única margem de nego-ciação das terras na região”, conclui Marcelo.

“É claro que o mecanismo do programa ajuda, pois oincentivo do investimento comunitário contribui para queas comunidades façam acordos indesejáveis com os pro-prietários”, argumenta. A avaliação mostrou que nessa faseinicial os proprietários de terra não estavam organizadospara se aproveitar da oportunidade de vender a terra àvista a um preço favorável.

O segundo ponto: os proprietários estavam mal infor-mados e meio amedrontados com a possibilidade de ex-propriação. “No futuro isso será um desafio para o pro-grama, o que tende a se reduzir à medida que a liquidezdada pelo programa seja vista como uma boa oportunida-de de negócio pelos fazendeiros.

atingir famílias pobres, mas motivadas para o trabalhoassociativo. “Na maioria dos casos, porém, este objetivofoi atingido graças ao desempenho dos executores do pro-grama”, destaca José Maria”, lembrando que também nanegociação das terras houve uma mão externa para evitarprejuízos.

Autonomia – Assim como todo processo de reformaagrária, o PCT tem como meta principal a sustentabilidadee a autonomia dos beneficiários. P ara José Maria, o pro-grama pode tornar -se auto-sustentável em algumas regi-ões, mas para tanto depende de vontade dos governos es-taduais e municipais, responsáveis pela arbitragem na com-pra das terras e divulgação dos programas. Depois disso,da assistência técnica.

“Apontar a necessidade fundamental de dar assistência téc-nica aos assentados parece chavão, mas tem que ser feito,pois é um problema generalizado no campo brasileiro”, res-salta. Segundo ele, a avaliação preliminar não deixa dúvidasde que o problema torna-se crucial no caso do PCT, uma vezque os beneficiários não dominam todo o ciclo de produçãoagropecuária e tampouco têm verniz para o gerenciamentode uma propriedade, apesar da origem comum no meio ru-ral. “Como diaristas, conhecem apenas as tarefas pontuais enão a produção desde cultivo e até o mercado”.

Outro aspecto observado na pobreza: alguns novos proprie-tários tendem a mimetizar em seus projetos produtivos as ati-vidades dos ex-donos das terras adquiridas, dedicando-se, porexemplo, a criar gado, que não exige tanta mão-de-obra.

Livro vaidivulgar

avaliação

O risco da especulação

Barreiras do mundo real

Silveira, do IE: “Programa combina crédito com associativismoBuainain, coordenador do PCT: dados em livro

Magalhães, do IICA: falta de mercado de terras dificulta negociações

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AGRICULTURAAGRICULTURA

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PAULO M. F. ARAÚJO*[email protected]

expansão do conhecimento da Imunologianeste século contribuiu sobremaneira paraa sua consolidação como uma Ciência Bio-lógica-Médica. O seu instrumental de ci-

ência experimental deriva dos estudos monitoradospela Bioquímica, Biologia Molecular, Genética,Histologia, Fisiologia, entre outras disciplinas. A suaestratégia de ciência aplicada à Medicina, buscan-do uma precisão clínica, ultrapassou em muito asperspectivas que fundamentaram o pensamentomédico por mais de um século, no qual o SistemaImune (SI) se prestava primordialmente para a de-fesa do organismo em conexão direta ao combatedas moléstias infecto-contagiosas.

Essa premissa empírica serviu aos argumentos deilustres pesquisadores como P asteur, Koch, Behringe tantos outros do final do século XIX para o iniciodo século XX. A Imunologia foi inicialmentejustificada como um objeto central para resolveros problemas médicos das grandes epidemias queassolavam a humanidade. Este conceito transfor-mado em generalidade, estabeleceu que para cadadoença haveria um agente microbiano associado,contra o qual poderia se produzir uma vacina. Eassim foram consolidadas as práticas preventivasou profiláticas da vacinoterapia e da soroterapia.

A amplitude do conhecimento atual da ação dosistema imune vem desencadeando entre muitosimunologistas um posicionamento de vanguardaque busca uma mudança do paradigmaimunológico. O argumento que destacamos dizrespeito às evidências de que o SI não existe ape-nas para nos defender contra as diferentes agres-sões ao corpo (microrganismos, substânciasalergênicas, esquemas de vacinação). Este represen-ta hoje muito mais que uma simples operação deresposta em defesa contra um agente patogênico.

Células especiais – Essa resposta ao distúrbiogerado pela infecção, corresponde apenas ao re-sultado das suas manifestações. Ele opera com cé-lulas especiais os linfócitos T e B, que circulam cons-tantemente e são as responsáveis pela respostaimune; e células auxiliares (macrófagos, dentrícas,etc.) com função de processarem e apresentaremos antígenos aos linfócitos, para indução da res-posta imune. As moléculas livres (citocinas,anticorpos, etc.) ou associadas à superfície das cé-lulas (adesinas, receptores de antigenos doslinfócitos B, BCR, ou dos linfócitos T, TCR, diferen-tes marcadores genéticos como os dehistocompatibilidade – antígenos do MHC classesI e II, etc.) representam um outro referencial im-portante para a sua operação.

Existe um potencial de repertórios linfocitários (Te B) com receptores que ultrapassam todas as previ-sões teóricas naturais ou imaginárias, sugerindo uma

Na interface entrea saúde e a doença

completitude para respostas imunes específicas. As-sim, os indivíduos elaboram um arsenal de linfócitoscom esses receptores complementares a qualquerestrutura molecular. Essa diversidade é determina-da por um controle genético que é o único descritonos seres vivos: para a síntese de um receptor deantígeno da célula B (BCR) ou da molécula similarsecretada de anticorpo; ou do receptor de antígenode célula T (TCR), além da participação de váriosgenes para a codificação de uma única cadeiapolipeptídica, a biosíntese de uma pequena regiãovariável nas cadeias dessas moléculas resulta dorearranjo ao acaso de genes encontrados em famíli-as multigênicas. O resultado dessa proeza ampliaessa diversidade para um potencial da ordem de 10¹²linfócitos. E tudo isso acontece dentro do corpo in-dependente de qualquer estimulação específica an-terior. Experimentos em fetos e recém-nascidos pro-varam que o SI já está operando independentemen-te de qualquer estímulo.

Ponto discutível – Assim, o que vem a ser a res-posta imune específica resultante de uma infecçãoou de uma vacinação, senão o resultado de um dis-túrbio de proporção global provocado no organis-mo? E as suas conseqüências serão sempre benéfi-cas? Este é um ponto discutível, considerando-seque nem sempre podemos visualizar além do re-sultado imediato, sem o conhecimento de seqüe-las futuras. Ademais, tomando-se como exemplo oestudo das vacinas, não tivemos um sucesso expres-

sivo que garantisse uma regra de operação do SI,isto é, o organismo responde de diferentes manei-ras para diferentes antígenos. Por isso, não é curio-so que apenas cerca de 15 vacinas sejam reconhe-cidas como eficazes pela OMS?

Esse conhecimento acumulado reforça a idéia deque o SI opera em equilíbrio dentro do nosso cor-po. Entretanto, pouco temos explorado sobre osmecanismos de regulação dessa atividade fisiológi-ca como um todo: do significado funcional da redede interações idiotípicas de complementação en-tre moléculas de anticorpos livres ou presas noslinfócitos B e sua conexão com as moléculas nascélulas T; da amplitude da rede de citocinas comsuas inúmeras conexões passíveis de sinalizaçãoregulatória; dos mecanismos associados à tolerân-cia imunológica, em especial a realizada junto àsdiferentes mucosas através da alimentação e da res-piração; da definição de especificidades nas respos-tas imunes decorrentes de ativações policlonais, etc.

Também demonstra que ele interage numaincorrência dinâmica de mão dupla com os siste-mas nervoso e endócrino, e em conseqüência como psicológico.

Coração do bem-estar – Por ser o detentor deuma parte importante dos componentes efetorespara realização desse equilíbrio poderíamos nome-ar o SI como o coração do nosso bem-estar. Abiodinâmica resultante dessa ação integrada suge-re e corrobora a necessidade de uma intervençãomédica também integrada.

Nesse particular encontramos que a biodinâmicade ação integrada do SI se identifica com a premis-sa da Ciência Médica Homeopática consagrada porHahnenmann e hoje reconhecidamente emprega-da por muitos adeptos.

Na abordagem da ciência convencionalreducionista, onde a grande importância se voltapara o estudo das partes, a Medicina Alopática aquiinserida prioriza o destaque clínico e terapêutico dadoença. Ao contrário dessa prática científica, onde aimportância se volta para o estudo global, a Medici-na Homeopática aqui inserida, ao invés de uma vi-são pontual da doença, analisa o indivíduo comoum todo, e o entendimento da cura de sua doençatem a abrangência da alteração geral do indivíduo.

É gratificante podermos assistir hoje à discussãosobre o entendimento da interação entre os siste-mas imune – nervoso e endócrino e a prática daMedicina Homeopática. T ambém já se faz otimista aexpansão e derivação de estudos imunofisiológicosbásicos e clínicos em vista de melhores esclarecimen-tos para os demais princípios que regem aHomeopatia: Similitude, e eficácia das Diluições ePotencialização dos remédios, além da cura global.

A Imunologia encontra identidade na prática homeopática

MATHEUS MARIMGRACIELA MARTÍNEZ*

A qualidade do congresso A Homeopatia noSéculo XXI, realizado há alguns meses naUnicamp, despertou curiosidades e inquietou osespíritos. As centenas de visitas ao site, o maisde milhar de mensagens eletrônicas, a solicita-ção de informações sobre o que foi dito, os pe-didos de anais e cópias das fitas demonstramque o repasse feito pelos que estiveram presen-tes reforçou o desejo a respeito da necessidadedesse tipo de discussão. Os saberes excluídos

Matheus Marim e Graciela Martínez são daComissão de Pesquisa da Associação MédicaHomeopática Brasileira (AMHB)

daquilo que se espera como sendo o locus quedeveria estudar o universal: a Universidade. Pro-tegida atrás de e defensora de um método apeli-dado de científico, que ao excluir variáveis cuida-dosamente chega apenas aos resultados deseja-dos, funciona como regente de exclusões, procu-rando silenciar até mesmo os acordes diferentesque nascem das incursões do seu próprio saber.

As palavras precisas de Checchinatto, a avalia-ção espistêmica perfeita de Chibeni, a crítica bemhumorada de Chagas, a unidade imunológica de-monstrada por Araújo e as soluções imagens de-senvolvidas por Faigle e seus colaboradores de-

monstram que a Universidade alberga cérebros quea podem ajudar nessa abertura para o universal.

Ausência marcante foi a da FCM.Apenas os con-vidados a participar da abertura e da mesa compa-receram.Apesar da apresentada reforma curricular,a fala explícita é de que a FCM continuará com ori-entação para formar especialistas e pesquisado-res, bem ao gosto das indústrias farmacêuticas eempresas de saúde. Embora esse esquema sejareconhecido pela ONU como anacrônico desde1962 por não atender às necessidades dos paísessubdesenvolvidos (naquela época) etecnologicamente excluídos nos dias de hoje (75%

do Brasil está nessa categoria), ele ainda persis-te, pois está na dependência dos seusfinanciadores.

Não cabe neste artigo discutir o que é ahomeopatia, seu histórico, estatuto, pressupostos,prática, eficiência, efetividade. Isso tudo deve serdiscutido dentro da Universidade, intra muros, nãoextra muros, ou então que caiam os muros poisnada há a temer, apenas crescer.

*Paulo M. F. Araújo é professor livre docente do Departamento deMicrobiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp

Paulo Araújo, do IB: posicionamento de vanguarda

Inquietando espíritos

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HOMEOPATIAHOMEOPATIA

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ROBERTO [email protected]

s relações do torcedor de futebolcom seu clube extrapolamparâmetros. O atual presidente doVasco da Gama do Rio de Janei ro,

Eurico Miranda – odiado por 10 entre 11torcidas do Brasi l –, embora não sejaunanimidade, é querido pela maioria dosvascaínos. “A parti r do Eurico o Vasco voltou aser r espei tado, t emido e , em c onseqüência,mais odiado. Os outros clubes estão pagandopelo que fizeram. Foram eles, com ainestimável ajuda dos desonestos meios decomunicação, que geraram o Eurico”, dizHenrique (nome fi ctício), 56 anos,aposentado, torcedor de São Januário.

Esta declaração de amor é uma dentretantas colhidas por Sílvio Ricardo da Si lva,também vascaíno, para a tese de doutoradoque defendeu na Faculdade de Educação Física(FEF) da Unicamp, em março último.

Paixão ou ódio de torcedor independem dedi rigentes. A escolha de um time é motivadapor vínculos fami l iares, amizades, residência

ContatoSílvio Ricardo da Silva (UFV)

(31) [email protected]

próxima ao c lube, i denti fi cação c om s uaorigem, sucessos e insucessos. “Torcer éexpressão pública dos sentimentos”, resumeSílvio, relembrando uma frase de Geertz.

O pesquisador destaca ainda que a “relaçãointensa do torcedor com o clube faz com queele não separe a identidade sujei to/torcedor”.Esta identidade é construída através de bons emaus momentos com a equipe. “Ser vascaínaé quase uma herança genética”, afirmaCândida, 40 anos, que mora em Te ófilo Otoni.“Tenho a impressão de que está al i , sob o olharde um microscópio, gr udado no meu DNA” .

Sílvio passou os três úl timos anos entreCampinas (onde estudou) e o Rio, levantandodados para medi r a paixão dos vascaínos. Elerelata uma cena que presenciou na sede doclube, durante seu trabalho de campo. “Eraum pai passando ao fi lho, de 18 anos, o títulode sócio proprietário. Havia naquele senhoruma emoção digna de cerimônias de rito depassagem”.

Geraldo, que esteve em Tóquio na decisãodo Mundial Interclubes com o Real Madrid,quando foi convidado para jantar por Euri coMiranda, garante: “Em dias de festa, toco o

No coraçãodo povo

Pesquisadorvascaínomostra comoo torcedorse apaixonapor seutime de futebol

hino do Vasco de 20 em 20 minutos”.Existem torcedores que se matam para estar

presentes em uma grande conquista. Opróprio Sílvio presenciou uma batalha campalao tentar comprar ingressos para a final contrao Corinthians, pelo Mundial Interclubes, nocomeço do ano passado, quando o Va sco foiderrotado nos pênaltis em pleno Maracanã.“Tudo para depois dizer: ‘Eu estava lá e ajudeio time’ . E a partida seria transmitida pelatelevisão ao vivo”, observa.

Metodologia – Neto de portugueses, Sílviomorou boa parte de sua infância a 500 metrosdo Maracanã. Daí a torcer pelo Vasco, clubefundado por comerciantes portugueses em1898, originalmente para competições de remo,foi questão de tempo. Professor da UniversidadeFederal de Viçosa há 10 anos, Sílvio tentou sergoleiro (fez testes, sem sucesso, no Vasco,Fluminense, Botafogo e Portuguesa) antes deoptar pela academia. Mas não relutou em ter oVasco como objeto de pesquisa em seudoutorado na Unicamp. Pr etendia conhecer osestudos do lazer e para isso contou com a ajudado professor Nelson Carvalho Marcel ino, da FEF,e de outro professor da Faculdade, JocimarDaol io, um especial ista em estudos cul turais.Para desenvolver a tese Tua imensa torcida ébem fel i z - Da relação do torcedor com o clube,o autor entrevistou 12 deles, l íderes de torcida,profissionais l iberais, um árbitro de futebol ejovens que iniciavam a paixão pelo clube.

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Sílvio, vascaíno:medindo a paixão do torcedor

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COMPORTAMENTOCOMPORTAMENTO

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CARLOS LEMES [email protected]

tentadora a idéia de resumir tudo como “oencontro de duas mulheres libertárias”. Po -rém, a biografia da anarquista italiana LuceFabbri, escrita por Margareth R ago, historia-

dora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas(IFCH) da Unicamp, propõe tantas “sutilezas selva-gens”, que é preferível começar de outro modo. En-tre a história e a liber dade: Luce F abbri e oanarquismo contemporâneo (Editora Unesp) é asimbiose entre duas guerreiras intelectuais, geradaa partir tanto de suas afinidades ideológicas, quantodo embate honesto de visões de mundo que, invari-avelmente, materializam diferenças entre uma per-sonagem que pontuou com sua militância quase atotalidade do atormentado século 20 e uma autoraque se municia, a cada obra, de novos saberes, im-prescindíveis ao esforço de tecer o humanismo quedê esperanças ao ainda enigmático terceiro milênio.

Como um brinde extra, o livro é o roteiro de umabela amizade. Cimentada ao longo de meia décadade entrevistas densas, mas intercaladas por bate-papos informais, muitas vezes nos bares do centroboêmio de Montevidéu, ao som do tango que setoca no Uruguai, país que acolheu Luce F abbri – eoutros socialistas libertários, em fuga do fascismoque rugia na Europa. E o qual, com o tempo, elaadotou, na condição de imigrante. Ou “inxilada”,neologismo que inventou.

E, obviamente, em se tratando de Margareth R ago,é mais um trabalho perpassado pela questão do gê-nero. Foi justamente a opção por esse campo de atu-ação que lhe propiciou o contato com Luce, jáoctogenária, aqui mesmo no Brasil, país que visitoupouquíssimas vezes. “A minha questão com a Luce foia seguinte: em 1992, eu estava esboçando um traba-lho com mulheres anarquistas e queria achar alguémque tivesse uma história impactante”, lembraMargareth. “Foi justamente quando, em agosto da-quele ano, o professor de P olítica Edson Passetti, umcolega da PU C -São P aulo, me convidou para partici-par do congresso Outros 500. P ensamento liber táriointer nacional, no T uca. Quando descobri que aque-la senhora delicada e erudita, no meio do público,era uma lenda viva do anarquismo internacional, meuprimeiro impulso foi ir até ela e pedir desculpas, poisafinal quem deveria estar à mesa era ela e não eu”.

“Em seguida, me dei conta de que eu estava sen-do presenteada pelos céus e me ofereci para escre-ver a biografia dela. Uns dois anos depois, obtivefinanciamento da F aep da Unicamp, Fapesp e CNPq,o que me possibilitou as viagens ao Uruguai, paraa pesquisa e, principalmente, conhecer a maravi-lhosa história de vida da Luce”, continua.

Além da casa/biblioteca da veterana libertária, aautora teve como “QG”, em sua estadia em Monte-vidéu, a Comunidad del Sur, experiênciaautogestionária iniciada em 1955 e que até hoje éapontada como uma demonstração cabal de que oanarquismo “pode dar certo”. Reunindo libertáriosde várias nacionalidades, formações cultural e pro-fissional e de faixas etárias, uma das atividades pro-dutivas da comunidade são uma gráfica e editoraque divulgam obras ligadas ao pensamento anar-quista e que, inclusive, publicarão a versão em es-panhol de Entre a história e a liber dade.

Luce morreu no ano passado, sem ver o livro deMargareth totalmente concluído (saiu em abril de2001, sendo que em Campinas, o lançamento foihá 15 dias, na Editora Saraiva). “Ela se foi logo apóscompletar 92 anos. F azia aniversário em 25 de agos-to e desde que a conheci, compareci a todos. Noúltimo, lúcida como sempre, ela pegou minhasmãos, num gesto de despedida, e disse que já po-dia partir, pois achava que tinha feito tudo o tinhapara fazer”, conta a historiadora, comovida.

No colo de Malatesta – Entre esse “tudo que foifeito”, o livro traz a trajetória de uma mulher desólida formação acadêmica. Nascida em Roma, em1908, estudou na Universidade de Bolonha e, noUruguai, lecionou Literatura Italiana na Universi-dade da República, até ser cassada durante a dita-dura militar. Publicou obras de filosofia política,educação, crítica literária, história e poesia. “Masela levava toda essa erudição para o meio operário,sua casa era o espaço da militância, da lutalibertária”, ressalta Margareth.

Também é retratada a personagem que atravessouduas guerras mundiais intercaladas pelo fascismo eque, já na velhice, chegou a amargar os efeitos dasditaduras militares do Cone Sul. As perseguiçõespolíticas, no entanto, nunca intimidaram Luce. Af i-nal, seu pai, Luigi F abbri, foi amigo e colaboradordo famoso anarquista italiano Enrico Malatesta, comquem ela chegou a conviver quando menina.

Guerreirasintelectuais

Biografia da anarquista Luce F abbri, escrita porMargareth Rago, é o roteiro de uma bela amizade

“Eu achava que meu objetivo era não só dar a co-nhecer essa pessoa, mas fazer um história doanarquismo de dentro. Eu já tinha escrito Do caba-ré ao lar, um livro que deu muito certo, mas lidavacom o tema circunscrito ao início do século no Bra-sil. Eu queria pensar de uma maneira mais ampla”,explica a pesquisadora. “P ensar como as mulheresdefenderam a liberdade, como a enunciaram, poissabia que isso foi muito além da questão do sufrá-gio. As anarquistas questionaram o casamento, asformas de amor, o prazer, a sexualidade”.

Pequenas múmias – Margareth confessa que,quando o assunto focado nas entrevistas era o femi-nismo, Luce resistia um bocado: “É que, apesar doconservadorismo da época, ela teve a sorte de tersido criada num ambiente libertário. Gabava-se denunca ter sido enfaixada como ‘as pequenas múmi-as egípcias’, numa referência a um costume euro-peu de antigamente, baseado na crendice de que osbebês eram tão frágeis que, sem as faixas de conten-ção do corpo, poderiam ‘quebrar -se’ como bonecas.Mesmo a sua adesão ao anarquismo não foi impostano âmbito familiar, apesar de todo o ativismo do pai.‘Ele dizia a mim e a meus irmãos que fizéssemosnossas escolhas por nós mesmos, de forma consci-ente e responsável’, depôs Luce a Margareth.

A historiadora prossegue: “Além disso, Luce era deuma geração de mulheres esquerdistas para quem ofeminismo era bandeira da burguesia. Foi a minhageração que estabeleceu a ponte possível entre asduas frentes de luta, nos anos 70”. Luce discordavaum pouco da visão que Margareth tinha dela. “Diziaque eu dava muita importância ao fato de ela sermulher, que o que importava era a humanidadecomo um todo. Não se dizia feminista, mas lutoupelo divórcio, pregou o amor livre. Imagine entãose fosse feminista!”, diverte-se a biógrafa.

“Eu insistia, argumentando que as mulheres so-freram condicionamentos culturais que as colocamnum mundo no qual elas estão sempre chegandoonde os homens já estão bem à vontade. Por isso,temos que ter mais garra e isso acaba por nos pro-ver de um memória e percepção do mundo diferen-tes”, diz Margareth. Mas, sob aquela casca de turrona,Luce, nos últimos tempos, “dava mostras de que asmulheres realmente podem dar uma contribuiçãodiferenciada da dos homens para a construção deum mundo mais igualitário”, frisa a autora.

Buscoapresentar uma leitura femininadasexpe-riências que compõem a história dessa doutrina emovimento social [o anarquismo] entre Itália, Fran-ça, Suíça eAmérica Latina, sua construção no coti-diano, tendo em vista os acontecimentos políticos,sociais e culturais que agitaram o mundo.Agrandemaioria das histórias de que hoje dispomos sobre omovimentoanarquista, especialmentenoBrasil enaAmérica Latina, é contada à luz das experiênciasmasculinas, o que fazmuito sentido emseconside-rando que as lutas políticas, as greves e os movi-mentossociaisenvolviammuitomaishomensdoquemulheres, até recentemente. Contudo, o

envolvimento das mulheres torna esse passado bas-tante singular, pois permite iluminar novasdimensõesdas vidas pública e privada e levantar outras ques-tõesaseremproblematizadas.Sobretudo, nocasodeuma mulher que é uma livre-pensadora e que produ-ziu muito no campo das idéias.

(MargarethRago)

O anarquismo é mais um caminho do que umfim, a finalidade é sempre inalcançável, qualquerfinalidade, a gente a concebe como inteira, per-feita e como tal não se alcança [...] o que inte-ressa é o presente que estamos vivendo, que éo que existe. O anarquismo é uma forma de sen-tir o presente em vista de algo, em vista de umafinalidade; quer dizer, senti-lo libertariamente emvista de uma liberdade, pois o perfeito não exis-

te, mas para o qual se pode ir, o que interessa àsociedade em seu conjunto; portanto, implicaorganização, ordem, razão, e estou cada vezmais convencida de que a violência, emborapossa ser uma necessidade prática, ineludívelem alguns momentos, sempre produz uma tra-gédia, algo negativo, algo contrário [...]

(Luce Fabbri, em La strada, 1952)

O convívio freqüente com Luce Fabbri e o con-tato com uma rede libertária planetária fez-me per-ceber como nos tornamos herdeiros de uma tradi-ção histórica autoritária, que se reivindica comoúnica e verdadeira, e que invalida outras propos-tas alternativas de ler o passado e de pensar asrelações sociais de uma maneira que aponte parasaídas mais humanas e solidárias [...]

(Margareth)[...] ficou-me gravada a impressão e quero di-

zer que me tornei anarquista no período da guer-ra. Lembro-me de ter chorado à noite, não porcausa desta pessoa [o também bolonhês LiberoBattistelli, republicano antifascista, que se apro-ximou dos anarquistas durante a Guerra Civil Es-panhola e morreu combatendo na Frente deAragão, em 1937], mas porque me parecia im-possível, indigno, que se pudesse obrigar al-guém a matar [...] Era tão desumano obrigar umapessoa a “se não matas, te fuzilo, baixo a penade morte para que mates” [...]

Eu via o poder como um monstro tão espanto-so que me marcou por toda a vida, esse é o ver-dadeiro ponto de partida do meu anarquismo [...]

(Luce)

TRECHOS

É

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Margareth Rago salienta um dosaspectos da personalidade de LuceFabri que mais a impressionou: “Emtudo que ela pensava, pensava emcomo é possível a expe-riência da li-berdade. Não é para menos que olivro traz ‘entre a história e a liberda-de’no título. Luce era anarquista nãosó na dimensão do social, mas tam-bém nas suas relações com o cotidi-ano”. E ilustra com um fato que pre-senciou na casa da velha combaten-te: “Eu a estava entrevistando quan-do os muitos cachorros que ela tinhairromperam sala adentro. Meu primei-ro impulso foi sugerir que os espan-tasse da forma convencional, comumas boas vassouradas. Mas,reconduzindo os bichos só na baseda conversa mansa, ela respondeu:‘No, tendremos que ser libertáriostambién com los perros’”.

Esse “anarquismo visceral” reforça,para a escritora, o quanto é frágil oargumento de que o anarquismo se-ria a “infância utópica do socialismocientífico”. Ela ressalta: “À medidaque o marxismo predominou como ogrande pensamento crítico do sécu-lo 20, a leitura que ele promoveu doanarquismo também predominou ecasou com a leitura feita pelo libera-lismo. Um taxa o anarquismo de ‘ro-mântico’, o outro de ‘caótico’. É aeterna, histórica aliança da esquer-da autoritária com o capitalismo. Omarxismo se afirma como ‘científico’,mas não podemos perder de vistaque ele está falando dele próprio e agente acaba por comprar o seu dis-curso”.

Para a biógrafa de Luce, a falên-cia dos estados operários burocrati-zados é um sinal para se revisar esseconceito. “O anarquismo nunca se co-locou como ciência; a revolução de-pende muito mais do desejo das pes-soas e um dos desejos principais é aliberdade”.

Foucaultiana de carteirinha, Margareth Rago sesurpreendeu com o quanto de comum existe entreo filósofo – que para ela “percebe as múltiplas pri-sões invisíveis e moleculares em que vivemos” – ea anarquista Luce F abbri. O deslumbramento coma descoberta determinou inclusive a escolha dasepígrafes do livro. A primeira é extraída de um tex-to da própria Luce: “T odos os nossos conceitos so-bre o desenvolvimento da história se encontramem crise. A vida desliza por entre as malhas dasconstruções teóricas, escapa às classificações e negaa cada passo as generalizações e as sínteses. Sentiresta multiplicidade significa sentir o valor que paraa vida tem a liberdade (que torna possível a varie-dade infinita)”. Abaixo, fala Michel Foucault: “O queescapa à história é o instante, a fratura, odilaceramento, a interrupção.”

Cheira a plágio? Ou pior, considerando que LuceFabbri teve uma inserção na história humana bemmais modesta que a do pensador francês, teria sidoela quem “chupou” a idéia do outro? Logo de cara,

SERVIÇO

Entre a história ea liberdade: LuceFabbri e o anarquismocontemporâneoMargareth RagoEditora Unesp376 páginas16 cm x 23 cmR$ 30,00

o fator cronológico inocenta Luce: seu texto data de1952 e o de Foucault, contido em de Dits et écrits, éde 1994. E é óbvio que F oucault não roubou nada dalibertária italiana. “Eles nem se conheciam, F oucaultnão leu nada de Luce. Mas ambos leram P roudhon,Bakunin. É a crítica ao micropoder se impondo nascorrentes mais avançadas de pensamento”, defendeMargareth.

Naturalmente, a troca de experiências no plano te-órico entre autora e biografada é muito valorizada nolivro. Mas Margareth não despreza as intercorrênciascorriqueiras durante os cinco anos de convivência que,em muito, contribuíram para a captação das peculia-ridades do “anarquismo de Luce”.

A escritora lembra um episódio, ocorrido duran-te uma das entrevistas, na casa da italiana: “Eu lheexpressava minha surpresa ao ver minha filhaMarina, que eu supunha tão pequena ainda, tecercomentários a respeito de Charles Darwin e de suateoria sobre a evolução das espécies e a luta pelasobrevivência dos mais fortes contra os mais fra-

cos. Ela [Luce] ouviu-me atentamente e depois su-geriu-me apresentar -lhe P ietr Kropotkin [ge ógrafoe socialista liber tário r usso, condenado ao exíliologo que a revolução bolchevique manifestou seulado autoritário] e seu livro A ajuda mútua, emque este polemiza com o autor positivista e ocomplementa, apontando para a impossibilidadede sobrevivência das espécies, animais e humana,sem a cooperação e a solidariedade. Em seguida,ela relata uma passagem do livro em que o geógrafoanarquista descreve a maneira pela qual as formi-gas formam uma bola para conseguirem atravessarum rio: enquanto as de fora morrem, protegem esalvam a vida das que estão dentro”.

São pequenas histórias como esta, temperandouma abordagem apaixonada mas criteriosa, que fa-zem de Entre a história e a liber dade: Luce Fabbrie o anar quismo contemporâneo uma obra vital paraa compreensão de uma figura que, mais do que lutarpela causa libertária, transmutou a própria vida qua-se centenária em uma obra-prima de liberdade.

Margareth Rago é historiadora,professora livre-docente do Depar-tamento de História do Instituto deFilosofia e Ciências Humanas(IFCH) da Unicamp e colaboradorado Grupo de EstudosInterdisciplinar em Sexualidade Hu-mana (Geish), da Unicamp. Princi-pais publicações: Do cabaré ao lar.A utopia da cidade disciplinar (Paz eTerra, 1985), Os prazeres da noite.Prostituição e códigos da sexualida-de feminina em São Paulo (Paz eTerra, 1991), Anarquismo e feminis-mo no Brasil (Achiamé, 1999), Nar-rar o passado, repensar a história(com Renato Gimenes, Editora daUnicamp, 2000). Vários artigos so-bre sexualidade e gênero, comoGlobalização e imaginário sexual(ou “Denise está chamando”), publi-cado na edição 159 do Jornal daUnicamp (março de 2001).

Foucault e as formigas

A autora

A lição de‘los perros’

Acima, Luce emSão Paulo, entreos companheirosanarquistasEdgard Leuenrothe Gino Bibi, em1946

À direita, Luce(cabelosbrancos), duranteuma conferênciasobre ÉticaArnarquista, emMontevidéu, emfevereiro de 1997

Na foto à direita,Luce Fabbri aos 2

anos de idade:criada emambientelibertário

Abaixo, umareprodução dovisto detemporário emParis concedido àpoetiza

Luce Fabbri com o anarquista EnricoMalatesta, por volta de 1921, na Itália: amigofamoso da família

Margareth [email protected]

Contato

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VIDA E FICÇÃOEstou cercado de amigos, e os amigos sempre ajudam no caso

da l i teratura. Eu tentei mui to, durante mais de 10 anos, sobre-tudo na década de 70, quando morei em São Paulo e na Espanha.Tentei escrever um romance político, mas não deu certo. Nãoera um romance, não era ficção. Estava mais para crônica, erauma coisa que está muito em moda, que hoje chamaria de jor-nalismo adaptado. Pr ecisei de mui to t empo para publ i car a lgo.Depois eu fui pensando na questão da imigração, na minha vida:saí de Manaus com 15 anos de idade, sozinho, para Brasília.Não podia vol tar, você sabe que não vol ta. Brasíl ia foi um horr or,fiquei dois anos naquela c idade detestável , nunca mais v ol tei .Depois f ui para São Paulo, Rio, Barcelona, Paris, Madri . Aí meperguntei: que diabo de vida é essa?, preciso parar em algumlugar, não posso ser esse nômade. Aí me dei conta que meu paie meu avô também fizeram isso. Meu avô foi para Marselha,Itália, Recife...Pensei de novo: estou repetindo isso. Quandomorreu meu avô c ontador de h istórias, decidi que i ria c ontaruma história para que essas vozes contassem o que vivi. Aí per-cebi que t inha uma d i ferença, não era a c rônica pol íti ca dosanos 70. Aquela era forte ideologicamente, mas na minha vida oque contava mais eram a infância e adolescência. Fui armandoa trama do meu primeiro livro, Relato de um certo Oriente,publicado em 1989. Antes do meu segundo livro, também deimuita cabeçada. De 1992 a 1997 eu escrevia todos os dias, das10 da noite às 3 da madrugada. Passei 5 anos escrevendo e des-cobri que não era romance depois que acabei. Escrevi aquilo,600 páginas, com tanta exigência, mostrei aos amigos, e nãocomoveu ninguém... Estava com um monte de problemas. Aminha vida foi degringolando, meu pai morr eu, me s eparei , oromance não deu certo....Pensei: eu tenho que ir embora dacidade, sair daqui . Foi quando comecei a escrever D ois irmãos,quando nada deu certo, quando eu precisei e xorcizar essapinimba. Aí comecei a escrever, inspirado num romance do Ma-chado de Assis, Esaú e Jacó, que eu tinha lido há muito tempo.A h istória é f antásti ca; t em até uma f rase do Esaú e J acó queusei textualmente, só mudei uma vírg ula. Aí eu pensei : precisoescrever um pequeno salmo do R elato de um certo Oriente,que é um drama familiar circunscrito à casa em Manaus, preci-so pensar um pouco no Brasil, a minha experiência em SãoPaulo, esse arqui teto frustrado – o arquiteto da memória come-çou a f alar. Aí pensei na trama dos gêmeos como um conflitoentre o Sul e o Sudeste – representantes de uma parte da el i te –e o Norte, Manaus. E aí f oi a mesma t rabalhei ra, f i z v árias v er-sões, sete ao todo, mudei muito. Quis dar um pouco de densi-dade às personagens secundárias, coloquei algumas que apare-ciam no Re lato. Pensei também muito no Euclides da Cunha:ele percebeu o que estava acontecendo com a Amazônia. É isso:a experiência conta mui to e o lei tor percebe. Claro que a l ingua-gem não r eflete essa s egmentação da experiência, acho d i fíci l .

O MUNDO EM TRÂNSITOEssa v oz dos i migrantes, o i maginário dos i migrantes, durante a

minha i nfância, f oi uma experi -ência importante. Porque eles, aomesmo tempo em que fantasia-vam, também contextualizavammuito. Então, por exemplo, quan-do meu avô l ibanês c ontava his-tória, ele f alava do comércio, davida ribeirinha, dos rios, da flores-ta, dos povoados, dos índios, doscaboclos, enfim, de como que issose relacionava com Manaus. Querdizer, f alava dessa v ida entreManaus e o i nterior, da históriadele. Falava desse mundo emtrânsito, entre a cidade e a flores-ta, com suas pecul iaridades cul-turais e econômicas.

O REGATÃOO pai da minha mãe era

regatão (vendedor que percor-re os rios de barco). Ele come-çou como mascateiro emManaus, depois ele f oi r egatãopor um tempo, depois voltoupara Manaus e fi cou lá. Já meuavô paterno é curioso, é outra história. Por que ele foi de Beirutepara o Acre, morou em Rio Branco, onde ficou alguns anos e,depois, vol tou para Beirute. Meu pai nasceu em Beirute, quandomeu avô vol tou. E meu pai cresceu ouvindo histórias do pai delesobre o Amazonas, sobre o Acre. Então ele já não veio mais comoimigrante em busca da fortuna. Ele veio também um pouco pelacuriosidade de conhecer essa região. Meu pai era um homem quetinha uma c erta i nstrução, e le t rabalhava num ministério l á emBeirute, era um homem que tinha um pouco de posse. Então nãoera um imigrante clássico, muito pobre, como era meu avô ma-terno, que era um homem das montanhas, do sul do Líbano,mui to rude, que v eio do mundo mui to primi ti vo, da a ldeia.

FAMÍLIA CLÂNICAHá um lado fundamental na minha obra que é a experiência,

ponto de partida para o que v em depois, a l inguagem. Sem essaexperiência, dos dramas f ami l iares, no meu c aso, não haveria r o-mance. Acho que foi também no caso de Raduam Nassar (LavoraArcaica, Um copo de cólera). Por que uma família do mundo me-diterr âneo, não s ó do mundo árabe, mas t ambém do s ul da I tál i a,do norte da África, é uma f amíl ia c lânica, é um c lã. E i sso geracertos confl i tos, e certos sentimentos fortes. E quando não geram, agente f inge que gera. Certamente não s e t rata de uma i nvenção dahistória da minha famíl ia, apenas. A gente pega histórias de toda aparte, do que a gente ouve, do que a gente observa. E LavouraArcaica também tem esse mundo do incesto, de dramas fortes. E oromance, como gênero, trata da famíl ia de alguma forma. Trata de

dramas humanos que partem de um drama particular para tentaralcançar o geral, o universal.

AS MULHERES No meu primei ro romance, Relato de um certo Oriente, imaginei

uma narr adora. Por que são sempre os homens que partem na l i tera-tura? Por que não uma mulher, que parte e volta para contar a suahistória, o seu passado? Por outro lado, a dependência da mãe, comoaparece no l ivro, é f ruto de uma fraqueza do filho. Nenhuma mãedevoradora, por mais edipiana que seja, se realiza se o fi lho não forcúmpl ice dessa posse doentia. Alguma mulheres estão na minha in-fância, outras na minha adolescência, outras ainda no meu c asa-mento... Algumas f oram i maginadas e i nventadas, outras estão naliteratura. Por exemplo: devo mui to a construção das personagens aFlaubert. O escri tor t em c oncepção da personagem – a lguns c ome-çam a escrever a parti r do nada, mas como eu tenho o pé no século19, s ou f laubertiano até debaixo d’água, até debaixo do Rio Negro.Flaubert f oi uma c oisa i nteressante. Quando eu t inha 13, 14 anos,minha mãe, t ambém f i lha de i migrantes l ibaneses, queria que euaprendesse inglês, francês, alemão, latim, tudo...Passei a ter aulas defrancês com uma senhora de 80 anos, esposa do vice-cônsul da Fran-ça em Manaus. Quando entrava na casa dela, parecia que eu mudavade t empo. Era uma atmosfera da Fr ança colonial- aquela coisa, omapa de Pa ris, do Norte da África. Ela era f i lha de um militar quetinha serv ido no Líbano. A parti r de um certo momento, ela começoua traduzi r um continho do Flaubert maravi lhoso – Um Coração Sim-ples (Fel icidade). Nunca mais fui o mesmo. Pensei comigo, quando

romancista Milton Hatoum é filho de uma pátria sem fronteiras. Caso coubesse demarcação,os limites ultrapassariam o imponderável, ficariam circunscritos à linha imaginária da fantasia:seu território faria divisa com aldeias remotas, montanhas nevadas, portos, rios, florestas,

igarapés...Seja na Manaus da infância e da adolescência, desfigurada pela ação predatória da ZonaFranca, seja no Líbano de seus ancestrais, país castigado por sucessivos conflitos. Não por acaso, umaconfluência que desemboca em pontos diferentes na causa, mas comuns na motivação militarista. Nocaso dos manauaras, por obra da ditadura; na terra dos avós, um “palimpsesto de culturas”, segundoele, por conta dos impérios e dos conflitos religiosos.Hatoum, 49 anos, foi benevolente com sua memória, esquadrinhada nos pormenores de um nomadismoatávico – nascido e criado em Manaus, morou em Brasília, cursou arquitetura (FAU/USP) em São Paulo,fez mestrado em literatura em Paris, depois de passar por Madri e Barcelona. Voltou à cidade natal,onde é professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas. O substrato destatrajetória resultou em dois livros aclamados pela crítica e traduzidos em países da Europa e nos EstadosUnidos: Relato de um certo Oriente (1989, Prêmio Jabuti) e Dois irmãos (2000), ambos publicados pelaCompanhia das Letras. O escritor esteve na Unicamp no último 27 de abril, participando do projetoLeituras Literárias, promovido pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).Nas obras, Hatoum joga todos os dados no tabuleiro da profusão de imagens e sensações caudalosas quemarcaram sua vida. Transforma-se no mercador da bela prosa poética, no mascate cuja embarcaçãopermanece atracada no cruzamento de culturas tão díspares quanto coexistentes. De sua mala saemvozes da tradição oral milenar oriental, cânticos de tribos perdidas no paraíso perdido, sons emitidos porcurumins na selva, falas de judeus marroquinos estabelecidos na província. De suas histórias brotam osconflitos da família árabe, as lendas amazônicas, irrompem os cablocos. O escritor funde carneiro e arara,tanga e túnica, cedro e jacareúba, narguilé e tabaco de corda, tucum e jasmim, cunhantãs e matriarcas,mediterrânico e amazônico. Hatoum espalha um punhado de zatar no Rio Negro.

A pátria sem fronteiras

ÁLVARO [email protected]

O

Foto do Mercado de Manaus em 1900, que ilustra a capa de Relatos de um certo Oriente

Cartão-poema feito por Hatoum nos anos 80: escritor diz que procura ser um “poeta lateral ”

ARQUIVO CEDAE/REPRODUÇÃO

Reprodução

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LITERATURALITERATURA

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comecei a escrever Relato de um c erto Oriente: essa empregada daminha obra pode ser a Felicidade, a empregada construída pelo es-cri tor f rancês, c laro que mesclada c om as minhas experiências dainfância. Então, essa personagem t em mui to a v er c om a minha ex-periência de vida e da l i teratura. E é claro que essas matriarcas, essasmulheres f ortes, t êm a v er, t alvez, com a f igura da mãe na f amíl iaárabe e c om a lgumas mães j udias. Depois, numa v iagem ao Líbano,constatei que as mulheres são muito fortes.

ENTRE DOIS MUNDOSMinha aproximação com a l i teratura francesa tem uma l igação, e

por um e lo h istóri co t ambém. Costumo c ontextual i zar t udo. Porexemplo, a f amíl ia da avó materna é c ristã maroni ta, e la estudouem c olégios de f rei ras em Beirute. Então a f ormação da c ul turafrancesa estava mui to presente nela. Por outro lado, os homens daminha família – meu pai e meu avô – eram muçulmanos. Aconte-ceu um caso raro, inclusive passional , de uma união entre cristãose muçulmanos, que eu exploro um pouco nos dois romances. Namedida que isso poderia ser confl i tuoso, mas não foi . Não foi por-que eles v iveram j untos, s e gostavam, eu presenciei t udo i sso. Poroutro lado, há também uma questão pol íti ca, por que os maroni tasl ibaneses s e acham afrancesados, s e acham quase ocidentais, aopasso que o Líbano é um país árabe, de l íngua e c ul tura árabes,entre mui tas outras. Então, vamos dizer, isso criou conflitos no pró-prio Líbano. Como atestaram vária guerr as, inclusive a guerr a civil(1975-90), agravada pela invasão israelense. É preciso contextual izartudo. E eu vivi entre esses dois mundos. Meu pai , por exemplo, queera muçulmano, v i veu no Líbano c olonial , s ob mandato f rancês.Conheceu pessoas do mandato f rancês, e le f alava de mi l i tares, depol íticos. Meu pai t inha uma c onsciência pol ítica, era mui to maisarabizado do que minha avó, por exemplo.

A MISTURAA questão palestina vem desde a fundação do estado de Israel , e

i sso t eve r epercussão em t odo o mundo árabe, em t odo o OrienteMédio. Quer dizer: estão aí as conseqüências de tudo isso. Mas va-mos dizer que meu pai e meu avô não se enver gonhavam de assu-mi r a c ondição de árabes do Líbano. O Líbano é uma país árabe,mas é preciso sal ientar que passou por camadas e camadas de cul -tura do oriente e do ocidente, que, vamos dizer, moldaram esse paístão pequeno e tão complexo na sua consti tuição, na formação cul -tural e religiosa. No Líbano há milhares de descendentes dearmênios, sírios, egípcios, famíl ias européias. Desde as Cruzadas éum mundo muito misturado. O Oriente Médio precisa entender oseguinte: lá eles são misturados, eles não podem viver separados.

POLÍTICANão militei em partido nenhum. Militei no movimento estudan-

ti l , mas nunca entrei em partido e nem em f acção, nem pretendo.Isso é uma i ntuição minha: acho que um i ntelectual , um escri tortem que ser independente. Acho que ele não deve mi l i tar num par-tido nem defender uma religião, nem defender o estado, nem umacorporação, nem uma empresa, nem o governo. O que faz do inte-lectual um s er í ntegro é a s ua i ndependência de pensamento. E ocompromisso com a verdade e a justiça, que são valores universais.

ALTER EGOO Laval (personagem de Dois irmãos, poeta e professor) é a sínte-

se de mui tas pessoas que conheci . Porque geralmente uma persona-gem não é baseada numa pessoa s ó. Há uma dose de i nvenção aí e ,vamos dizer, de arti fícios. Há uma vivência também pessoal, mescla-da no meio d isso, de pessoas que c onheci em Manaus e em outroslugares, que confluíram para esse poeta aí, o professor de f rancês.Porque t oda a personagem é uma c onstrução complexa que vem devários lados. O Laval tem a frustração do poeta que não fui . Eu queriaser poeta, e eu não t enho menor v ocação para a poesia, porque éoutro ritmo. Tentei , ainda tento, rabisco alguns poemas inéditos, mas

não s ei s e aqui lo é poesia. A prosa t em outro andamento, t em umaoutra estruturação, outro ri tmo, outra l inguagem. Eu procuro ser umpoeta lateral e mitigado na minha prosa.

RESSONÂNCIASEm Dois irmãos, uma das perspectivas do r omance é estabelecer

um diálogo entre a decadência da f amíl ia, dos dramas f amil iares, e adecadência da cidade. E isso tendo como reflexo também o que aconte-ce no sul, no sudeste. Então no início a cidade é a cidade que eu conhe-cia, a cidade mais ou menos civil izada, pacata, belíssima, até os anos 60,e depois, com o advento da Zona Franca, Manaus tornou-se uma cidadeindustrial izada, com uma peri feria urbana miserável , com uma violên-cia urbana parecida c om a de qualquer metrópole brasi leira, onde astensões s ociais s ão enormes e eu quis explorar um pouco i sso. Querdizer, fazer a decadência da cidade ser uma ressonância da decadênciada famíl ia, dessa casa fami l iar que desmorona e que se transforma emruínas, que é i lustrada pelo poema do Drummond que está na epígrafe.

A CIVILIZAÇÃOA tradição indígena é mui to forte em Manaus, não adianta. E isso

criou um choque muito grande. A Zona Fr anca f oi uma v iolênciapara a c idade. Para os valores culturais, para os hábitos, para oscostumes, para o espaço urbano. Também para a relação da cidadecom a floresta, porque antes a natureza pertencia à cidade. Depois,abol iram a f loresta da c idade, destruíram mui tas c oisas. Além doque, a televisão- da forma mais estúpida e vulgar, como é a televisãobrasileira de um modo geral-, também contribuiu para a mudançadesses hábi tos. Manaus c omeça a i mi tar o s ul , quando na v erdadenós t emos al i v alores e uma t radição da c ul tura popular i ndígenaque são mui to fortes. E a pior coisa dessa colonização interna, quefoi imposta pelo governo mi l i tar com a Zona Franca, é o fato de osamazonenses se sentirem diminuídos pela pujança do sudeste. Masse a gente o lhar c om mais c uidado, mui tas v ezes a barbárie nãoestá no norte, mas está aqui , no s udeste. O grau de c ivi l ização deuma cidade como São Pa ulo é t otalmente questionável para mim.Para mim a cidade civi l izada hoje é Belém do Pará, que soube pre-servar a sua cul tura, sua arqui tetura e sua alma.

LITERATURA ÁRABEPara ser sincero, a l i teratura árabe entrou de certo modo na minha

vida por causa dos oriental istas, escri tores franceses, europeus de ummodo geral , que eram fascinados pelo oriente. Alguns tão fascinadosque incorporaram o oriente ao seu projeto estético, como o Flaubert.Outros foram influenciados mesmo pela França colonial, pelo Impé-rio. Mas há uma di ferença ideológica importante: Lamartine é mui todiferente de Flaubert. Então, essa l i teratura orientalista assinada pe-los europeus há muito tempo foi importantes. Dos textos orientais, oque mais me influenciou foi As Mi l e uma Noi tes. Bom, mas foi umtexto que influenciou Deus e o mundo, não? Proust, Borges... Mas dal i teratura mesmo de l íngua árabe f oi mui to pouco a i nfluência. Co-nheço mui to mais a l i teratura ocidental , embora reconheça que exis-tam grandes escritores na l i teratura árabe. Já os narr adores da minhainfância, estes sim árabes – e judeus marr oquinos –, me influencia-ram mui to c om s uas histórias. Não t inha c riança que não ouvisse.Manaus não tinha televisão até 1969. Minha infância não teve televi-são, o que já me desintoxicou para o resto da vida.

A DISSIPAÇÃO DO REALEscolheria Paris para escrever. Relatos de um certo Oriente foi es-

cri to num lugar horr ível lá em Manaus. Havia acabado de chegar deParis e tive que alugar às pressas um lugar quase sórdido, numa bai-xada, foi horr oroso. Foi escri to à mão, na base da perserverança, na-quele calor, sem ar condicionado, o suor pingando no papel . O segun-do l i vro t ambém f oi escri to num quartinho de empregada do t ama-nho de uma mesa que t ransformei num escri tório. O melhor l ugarpara escrever é aquele que esteja distante do seu objeto, do seu mun-do – não i nteressa que s eja um palácio ou uma palafi ta. O r eal t emque se dissipar, para entrar por outra porta como menti ra verossími l .

Milton Hatoum na Unicamp: experiências como ponto de partida

Foto da capa de Dois irmãos, livro lançado no ano passado

O PEIXE DE GALIBO PEIXE DE GALIBO PEIXE DE GALIBO PEIXE DE GALIBO PEIXE DE GALIBO homem que deixara a clientela do restaurante

manauara com água na boca já era um exímio cozi-nheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o quehavia nas casas de pedra de Jabal al Qaraqif, JabalHaous e Jabal L aqlouq, montanhas onde a neve bri-lhava sob a intensidade do azul. A beleza misterio-sa, bíblica, dos cedros milenares nas ondulaçõesbrancas, às vezes douradas pelo sol inver nal – elafazia uma pausa, e os olhos, úmidos, roçavam o ros-to de Halim. E quando visitava uma casa à beira-mar, Galib levava seu peixe preferido, o sultanibrahim, que temperava com uma mistura de ervascujo segredo nunca revelou. No restaurantemanauara ele preparava temperos for tes com a pi-menta-de-caiena e a mur upi, misturava-as comtucupi e jambu e regava o peixe com esse molho. Ha-via outros condimentos, hor telã e zatar, talvez.

Trecho de Dois irmãos

Reprodução

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJunho de 2001

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LITERATURALITERATURA

Page 20: Souza Cruz (que nunca fumou) e suas musas fatais

MáscarasO FASCÍNIO DAS

s primeiras máscarassurgi ram entre os s é-culos V a.C e V d.C, co-mo artigo bastante uti-l izado nas primi tivas

manifestações dramáticas encenadasnos teatros greco-romanos e oriental .Os atores c obriam o r osto ou partedele, na caracterização de suas perso-nagens. Ao longo dos tempos, passa-ram a s ervir também como peça deadorno e até hoje despertam fascínio.

Em Veneza, por vol ta do século 15,acontecia a primei ra mani festação po-pular tendo a máscara como recursopara d isfarce ou d issimulação. Cha-maram-na Bell Masquê. Num perío-do de divergências políticas e constan-tes confl i tos sociais, a população pas-sou a recorr er às máscaras para t en-tar esconder- se. Dos grandes bai les degala, tea-tros e o carnaval de rua, esseSapetrechos tornaram-se também pe-ças decorativas, f azendo s urgi r umadas principais ati vidades econômicasda região de Veneza.

O r i tual alastrou-se, ganhou c onti-nentes e chegou ao Brasi l . Reproduçõesesti l i zadas da f ace humana ou animal– esculpida em barr o, madeira, corti-ça, papelão, guarnecida de pêlos, corese outros enfeites –, aS máscaraSdespertavaM nos usuários a crença deefei tos mágicos. Místicas, enriqueciamrituais, identificavam raças.

Faces - Não c om esses propósi tos,evidentemente, s ete estudantes de artes p lásti cas daUnicamp juntaram-se para parti cipar da exposição Faces,na qual mostraram 35 máscaras de diversos tamanhos,tendências e esti los. Jul iana Kataguini , Carol ine Barbosa deOliveira (Cal), Cristiane Motta, Fernanda Dodi , Fraya Boteman,Carina Thadeu e Deyze Argento formam o gru po que expõe as pe-ças na escola de idiomas I n Touch, na Cidade Universi tária São más-caras indígenas, ri tuais ou para simples decoração.

A i déia de participar da mostra s urgiu quase que por acaso,mais pela intimidade, semelhanças e propósi tos de trabalho dasestudantes, quase t odas na mesma s érie no I nsti tuto de Artes. Amaior parte dos t rabalhos é f ruto de pesquisa, dentro e f ora daUniversidade. “Prática também adquirida com o passar do tempoe que a gente foi apl i cando num constante processo de evolução,com o objetivo de buscar novas técnicas e esti los de trabalho”, dizJul iana Kataguini .

Quase todas as máscaras têm como modelo as próprias arti stas.Como as de Carol ine, fei tas de papel colado, machê e tinta acríl ica.“Primei ro passa-se uma mão de vasel ina no rosto, para não grudar.

Em seguida, junta-se uma cama-da de gesso e espera-se uns três ou quatro mi-

nutos para s ecar. Retira-se o molde negativo, obtendo o positivo.Depois preenche-se com gesso a matriz da peça”, expl ica.

Em todas as máscaras – rostos de diversos tamanhos, formatos ecores – existe a possibi l idade de sal ientar alguns elementos, comobochechas, nariz, queixo e orelhas, s egundo acrescenta CristianeMotta. Inclusive em chapéus ou outros enfei tes, como nas peças deFernanda Dote. Cada uma delas seguiu pelo caminho que melhorlhe aprouvesse. Como Carol ine e Fraya Bateman, que optaram pe-las máscaras primi tivas. Outras escolheram as ri tuais ou mistas.

Místicas – As máscaras têm o poder místico de dar vazão aalegria, t risteza, r evelar ou ocul tar s entimentos. No Egi to antigoeram colocadas nos rostos dos mortos para ajudá-los na arr iscada

passagem à vida eterna. Gregos e romanos exibiam-nas em ceri-mônias rel igiosas. Na China, afastavam maus espíri tos.

Para as artistas da Unicamp, é puro processo de criação. “Quan-do começo uma peça, não penso no que vai dar. Principalmente

quando o trabalho é em arg i la, que aos poucos vai lhe sugerindoformas e mostrando p lasti cidade. Quando v ocê v ê, a peça estápronta”, conta Carol ine.

O tempo que se demora para concluir uma peça depende decada t écnica e d a f i gura. Uma máscara c onfeccionada de papelcolado pode f i car pronta em dois ou t rês d ias e até em s emanas,como a Felicidade no mundo- chamas, de papel colado, ou Feli-cidade no mundo-negro, de Cristiane Motta, de papel machê.

Carol ine costuma dizer que em artes plásticas não se perde nada,nada s e j oga f ora. J ul iana e Cristiane endossam a afi rmação, poisnesta profissão aprende-se a corr er atrás de todo tipo de l ixo: metal,papel , isopor e outros materiais encontrados na rua. Uma máscarachamada Dayse Argento, por exemplo, é c onfeccionada c om c on-chas do mar e fi tas magnéticas de cassete. “Até pauzinho de c hur-rasco pode servir para alguma coisa”, final iza Cristiane.

ANTÔNIO ROBERTO [email protected]

A

MáscarasJuliana Kataguini, Caroline deOliveira e Carina Thadeu, doInstituto de Artes: entre outrasafinidades, o interesse pelasmáscaras, que levou à formaçãodo grupo que expõe “Faces”

As autoras exibem suas obras,que têm as próprias artistascomo modelos: barro, madeira,cortiça e papelão são alguns dosmuitos materiais utilizados

Universidade Estadual de CampinasJunho de 2001

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