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OS BATALHADORES BRASILEIROS NOVA CLASSE MÉDIA OU NOVA CLASSE TRABALHADORA?

SOUZA, Jessé (Org.) - Os Batalhadores Brasileiros - Nova Classe Média Ou Nova Classe Trabalhadora-Editora UFMG (2012)

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Editora UFMG (2012)

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  • OS BATALHADORES BRASILEIROSNOVA CLASSE MDIA OU NOVA CLASSE TRABALHADORA?

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    REITOR Cllio Campolina Diniz

    VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton

    EDITORA UFMG

    DIRETOR Wander Melo Miranda

    VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said

    CONSELHO EDITORIAL

    Wander Melo Miranda (presidente)

    Antnio Luiz Pinho Ribeiro

    Flavio de Lemos Carsalade

    Heloisa Maria Murgel Starling

    Mrcio Gomes Soares

    Maria das Graas Santa Brbara

    Maria Helena Damasceno e Silva Megale

    Roberto Alexandre do Carmo Said

  • J E S S SOUZACO L A B O R A DO R E S

    Brand Arena r i |D jami l l a O l i v r io

    Emerson Rocha | Fabr c io Mac ie l

    Fe l ipe Cava l can te Ba rbosa | Mrc io S

    Mar i a de Lourdes Mede i ros

    R i ca rdo V i s se r | Rober to Tor re s

    Tba ta Be rg

    OS BATALHADORES BRASILEIROSNOVA CLASSE MDIA OU NOVA CLASSE TRABALHADORA?

    2 edio revista e ampliada

    Belo HorizonteEditora UFMG

    2012

  • 2010, Jess Souza 2010, Editora UFMG 2012, 2 ed. rev. e ampl.

    Este livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizao escrita do Editor.

    Elaborada pela DITTI Setor de Tratamento da Informao

    Biblioteca Universitria da UFMG

    DIRETORA DA COLEO Heloisa Maria Murgel Starling

    COORDENAO EDITORIAL Danivia Wolf

    ASSISTNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Eucldia Macedo

    COORDENAO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro

    PREPARAO DE TEXTOS Maria do Rosrio A. Pereira e Michel Gannam

    REVISO DE PROVAs Danivia Wolff, Nathalia Campos e Simone FerreiraCOORDENAO GRFICA Cssio Ribeiro

    PROJETO GRFICO Glria Campos - Mang

    FORMATAO, MONTAGEM DE CAPA E PRODUO GRFICA Digo Oliveira

    EDITORA UFMGAv. Antnio Carlos, 6.627 CAD II / Bloco IIICampus Pampulha 31270-901 Belo Horizonte/MGTel.: +55 (31) 3409-4650 Fax: + 55 (31) 3409-4768www.editora.ufmg.br [email protected]

    S729bSouza, Jess. Os batalhadores brasileiros : nova classe mdia ou nova classe trabalhadora? 2. ed rev. e ampl. / Jess Souza ; colaboradores Brand Arenari... [et al.]. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2012. 404 p. (Humanitas) Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7041-921-7 1. Classe mdia Brasil. 2. Classes sociais Brasil. 3. Brasil Aspectos sociais. I. Arenari, Brand. II. Ttulo. III. Srie. CDD: 305.55981 CDU: 316.343-58.13(81)

  • AGRADECIMENTOS

    A pesquisa que deu origem a este livro foi realizada em todasas grandes regies brasileiras graas ao apoio do CGEE (Centro deGesto e Estudos Estratgicos), organizao social supervisionadapelo Ministrio da Cincia e Tecnologia, e da Fapemig (Fundaode Apoio Pesquisa do Estado de Minas Gerais), atravs do projetoPronex EDT 464 e pelo projeto PPM 319/09, e do CNPq (ConselhoNacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico), atravs doprojeto 472381/2008-3. Nosso agradecimento maior, no entanto,dirige-se a Roberto Mangabeira Unger, ento ministro extraordinriode assuntos estratgicos, que foi o principal estimulador deste estudo.

  • Desde o momento em que nos perguntamos acerca de nossa sociedade (...) no podemos deixar de perceber que as

    formas de classificao so formas de dominao, a sociologia do conhecimento inseparvel de uma sociologia do reconheci-mento e do desprezo, ou seja, de uma sociologia da dominao

    simblica.

    Pierre Bourdieu

  • S U M R I O

    PREFCIO 09

    Rober to Mangabeira Unger

    INTRODUO

    UMA NOVA CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA? 19

    1P A R T EPERFIS DE BATALHADORES BRASILEIROS

    CAPTULO 1

    A FORMALIDADE PRECRIAOs batalhadores do telemarketing 61

    CAPTULO 2

    O BATALHADOR FEIRANTE E SUA ADMINISTRAO 85

    CAPTULO 3

    BATALHADORES EMPREENDEDORES RURAISUnidade familiar, unidade produtiva 105

    CAPTULO 4

    O BATALHADOR E SUA FAMLIA 123

    CAPTULO 5

    BATALHADORES FEIRANTESO Ver-o-Peso de Belm e a Feira de Caruaru 149

    CAPTULO 6

    BATALHADORES E RACISMO 173

  • 2P A R T EA ECONOMIA POLTICA DO BATALHADOR

    CAPTULO 7

    POPULISMO OU MEDO DA MAIORIA?Como transformar em tolice as razes da massa 199

    CAPTULO 8

    ENTRE A GLORIFICAO DO OPRIMIDO EA LEGITIMAO DA OPRESSO, H UMA ALTERNATIVA? 257

    CAPTULO 9

    AS ESTRUTURAS SOCIAIS DO MICROCRDITO 269

    3P A R T EA RELIGIO DO BATALHADOR

    CAPTULO 10

    OS BATALHADORES E O PENTECOSTALISMOUm encontro entre classe e religio 311

    CONCLUSO

    O ELO ORGNICO ENTRE PATRIMONIALISMO E RACISMO DE CLASSE A nova classe mdia no discurso liberal/conservador 349

    POSFCIO 369

    Je s s Souza

    NOTAS 375

    REFERNCIAS 393

    SOBRE OS COLABORADORES 403

  • P R E F C I O

    OS BATALHADORES EA TRANSFORMAO DO BRASIL

    A publicao de Os batalhadores, de Jess Souza, marca um avano no entendimento que o Brasil tem de si mesmo. Ao mesmotempo, ajuda a apontar rumo para o pensamento social brasileiro.

    Um dos acontecimentos mais importantes no Brasil das ltimasdcadas o surgimento, ao lado da classe mdia tradicional, de uma segunda classe mdia. Morena, vinda de baixo, refratria a sentir-se um pedao do Atlntico norte desgarrado no Atlntico sul, essa nova classe mdia compe-se de milhes de pessoas que lutam para abrir ou para manter pequenos empreendimentosou para avanar dentro de empresas constitudas, que estudam noite, que se filiam a novas igrejas e a novas associaes, e queempunham uma cultura de autoajuda e de iniciativa. Quase des-conhecida das elites do poder, do dinheiro e da cultura, j esto no comando do imaginrio popular. Representam o horizonte que a maioria de nosso povo quer seguir.

    A revoluo brasileira hoje seria o Estado usar seus poderes e recursos para permitir maioria do povo brasileiro trilhar ocaminho dessa vanguarda de emergentes. Para consegui-lo, porm,seria preciso fazer o que raramente fizemos em nossa histria nacional: reconstruir as instituies, inclusive as instituies que organizam a economia de mercado e a democracia poltica. S essa reconstruo institucional abriria caminho para a estratgia nacional de desenvolvimento fundada em democratizao deoportunidades para aprender, para trabalhar e para produzir.

  • 10

    Debaixo dessa classe mdia emergente e do nmero rela-tivamente pequeno de assalariados relativamente estveis e quali-ficados, h uma massa de trabalhadores pobres que, em outra obra, Jess Souza chamou a ral brasileira vtima ainda deincapacitaes e de inibies que no se limitam falta deoportunidades econmicas. Incluem os nus que resultam de famlias desestruturadas, tipicamente conduzidas por uma mesozinha, que tem de combinar o trabalho ocasional ou instvel com a luta para resguardar os filhos; comunidades desorganizadas,que no conseguem, portanto, fazer as vezes das famlias desfal-cadas; e crenas que naturalizam o sentimento de impotncia, resignao e fuga. Para muitos membros dessa ral, a vida parecebloqueada.

    Dentro da ral brasileira, surge, porm, surpreendentemente, umgrupo que se soergue. Sados do mesmo meio pobre e constran-gedor, abraados com os mesmos obstculos enfrentados por seuspares do Brasil pobre, esses resistentes levantam-se. Comumente,tm mais de um emprego. Podem, por exemplo, trabalhar como faxineiros durante o dia e vigias noite. Lutam, ativamente, com energia e engenho, para escapar da ral e entrar no rol da pequenaburguesia empreendedora e emergente. Exibem qualidades queEuclides da Cunha atribua aos sertanejos. Existem, tambm, aos milhes, sobretudo nas partes mais pobres do pas. So eles, os batalhadores, o tema deste livro.

    A realidade dos batalhadores e da nova classe mdia a que se querem juntar no se desvenda apenas luz de ambies materiais. Entre eles, como em tantos outros aspectos da vida das sociedades contemporneas, ressoa a ideia que h tempos sacodea humanidade, tanto em forma secular como em forma sagrada: a ideia da participao de cada homem e de cada mulher nos atributos que os crentes identificam em Deus e a esperana de aumentar a parte que lhes cabe nesses atributos. No se trata apenasde assegurar certo grau de prosperidade e de independncia. Trata-se, tambm, de construir uma subjetividade densa, digna da vida retratada na cultura romntica popular e mundial. Junto com o projeto da democratizao das sociedades, representada historicamente pelas doutrinas do liberalismo e do socialismo, talcultura representa uma das duas grandes foras revolucionrias no mundo de hoje. Para entender quem so e o que querem os

  • 11

    batalhadores, preciso apreciar a variedade das manifestaes, e a profundidade do alcance dessas duas foras.

    A presena dos batalhadores na vida do pas tem implicaes para a poltica social, para a transformao de nossa sociedade e para o pensamento social, no Brasil e no mundo.

    Todos querem que os programas sociais de transferncia,como o Bolsa Famlia, ganhem elementos de capacitao. No se restringe essa aspirao a ns brasileiros; aspirao que se difunde por toda a parte. Nessa busca, o equvoco mais comum que se comete direcionar os programas de capacitao priori-tariamente para o ncleo duro da pobreza: a ral de Jess Souza. Dificilmente, conseguem os membros da ral beneficiar-se de tais programas. As incapacitaes sociais e as inibies culturais intervm para barrar a porta de sada. Antes de se poderem beneficiar de tais programas, precisam que o Estado atue para estimular a auto- -organizao comunitria. Precisam que o Estadose associe, por meio de corpo prprio de agentes, com as comu-nidades organizadas para apoiar as famlias desestruturadas e, atmesmo, para assumir parte das responsabilidades.

    Tal avano no pode ser apenas inovao em matria de polticasocial. Tem de ser, tambm, avano em matria de federalismo. Exige a cooperao entre as trs instncias da federao. E exem-plifica a substituio, que precisamos operar, do federalismoconstitudo que distribui rigidamente poderes e responsabili-dades, entre estas instncias por um federalismo cooperativo que associe Unio, estados e municpios em aes conjuntas e em experimentos compartilhados.

    So os batalhadores os primeiros beneficirios potenciais dos projetos de capacitao e de ampliao de oportunidades.Mostraram que se podem resgatar porque j comearam aresgatar-se por conta prpria. Nisso, como em muito, podem servir como o elo que nos faltava identificar entre a ral e a pequena burguesia empreendedora. Devem ser os primeirosdestinatrios das iniciativas de capacitao no por uma lgica de caridade (em que o critrio quem sofre mais), seno por uma lgica de eficcia transformadora (para a qual o critrio quem pode mais).

    A existncia dos batalhadores importa, tambm, para a prticada poltica transformadora. Erro capital da esquerda, sobretudo

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    da esquerda europeia, nos dois sculos anteriores, foi identificar a pequena burguesia como adversria inevitvel. Hostilizada, veioessa pequena burguesia servir de sustentculo dos movimentos de direita mais poderosos do sculo XX. Hoje no mundo, entre-tanto, h mais pequeno-burgueses, e incomparavelmente mais aspirantes a condio pequeno-burguesa, do que gente que caibano figurino novecentista do proletariado industrial.

    Por trs do equvoco estratgico, havia, e h, um enganoterico. Ao contrrio do que imaginou o marxismo, no h uma lgica objetiva de interesses de classe que se clareie medida que se agrave e que se amplie o conflito social e ideolgico. Pelo contrrio, medida que o conflito se aprofunda e se estende, os interesses de grupo perdem sua aparncia mendaz de contedo objetivo. O contedo dos interesses se torna inseparvel da defi-nio dos prximos passos, do possvel adjacente, na reconstruoda ordem estabelecida.

    A definio e a defesa dos interesses de uma classe, ou de qualquer grupo, sempre podem desdobrar-se em duas direes divergentes. Pode seguir por meios que so institucionalmente conservadores e socialmente excludentes (o nicho que o grupo por exemplo, determinado segmento de trabalhadores ocupa ser aceito como o cadinho em que se forjam os interesses do grupo). E os grupos vizinhos os segmentos da fora de trabalhomais prximos (por exemplo, os trabalhadores terceirizados ou temporrios em relao ao corpo permanente de trabalhadores) sero vistos e tratados como rivais e ameaas.

    A definio e a defesa dos interesses de grupo pode, contudo,sempre seguir por meios que so institucionalmente transforma-dores e socialmente includentes. Abraa-se uma estratgia de transformao, ainda que fragmentria e gradualista, da ordem existente. Tal estratgia permite ver os grupos vizinhos como aliadosat que se construa com eles a base para uma convergncia maisprofunda de interesses e de identidades coletivos. Por exemplo, os operrios organizados da indstria intensiva em capital se podemaliar aos trabalhadores terceirizados e temporrios para defender alternativa de poltica industrial.

    Assim tambm ocorre com respeito aos batalhadores, ou segunda classe mdia, no Brasil. Seu destino poltico no est definido. No Brasil, como em qualquer outro lugar, tudo depende

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    das alternativas, sobretudo das alternativas institucionais. Nada condena esta nova classe mdia, ou os batalhadores como aspi-rantes a se incorporarem a ela, a estarem vidrados nas formasconvencionais do anseio pequeno-burgus: a pequena proprie-dade urbana ou rural e o pequeno empreendimento familiar. Masso essas as formas que prevalecem por falta de outras.

    Tratemos de providenciar essas outras. Para faz-lo, preciso inovar na organizao dos mercados. Podemos imaginar que essareconstruo avanaria em quatro passos.

    O primeiro passo a reviso da poltica industrial. Ela teria porprincipal destinatrio a parte mais importante de nossa economia:as pequenas e mdias empresas. E assumiria como tarefasprincipais a ampliao dos acessos ao crdito, tecnologia, ao conhecimento e s prticas produtivas vanguardistas, bem como a difuso dos experimentos locais exitosos.

    Com isso, ajudaria a criar um dnamo de crescimento eco-nmico socialmente includente. E ajudaria tambm a assegurar condies para um modelo industrial diferente daquele que foi o cerne do sistema industrial instalado no Sudeste do Brasil em meados do sculo passado: a produo em grande escala de bens e servios padronizados, por meio de maquinria e pro-cessos produtivos rgidos, mo de obra apenas relativamente qualificada e relaes de trabalho muito hierrquicas e espe-cializadas. o Fordismo industrial.

    O Brasil todo no precisa transformar-se na So Paulo de meados do sculo passado para depois poder virar algo dife-rente. Fora dos centros industriais do pas, no basta acelerar a passagem rumo a um modelo industrial que atenue o contraste entre superviso e execuo, relativize as especializaes, com-bine concorrncia com cooperao e transforme a produo em inovao permanente. preciso e possvel organizar uma travessia direta do pr-Fordismo para o ps-Fordismo, sem que opas todo tenha de passar pelo purgatrio do Fordismo industrial.Os batalhadores e a pequena burguesia empreendedora seriam os primeiros beneficirios dessa construo.

    O segundo passo a renovao dos acertos institucionais que organizam a relao entre governos e empresas. No h por que escolher entre o modelo americano de um Estado que regula as empresas distncia e o modelo do nordeste asitico:a formulao de poltica industrial e comercial unitria, imposta

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    de cima para baixo pela burocracia do Estado. H uma terceira opo: coordenao estratgica entre governos e empresas que seja descentralizada, pluralista, participativa e experimental.

    O terceiro passo o surgimento, a partir dessa associao entreo pblico e o privado, de regimes alternativos de propriedade privada e social. Tais regimes passariam a conviver experimen-talmente dentro da mesma ordem econmica, com maior oumenor prevalncia, de acordo com as caractersticas de cadasetor. A economia de mercado deixaria de estar fixada em uma nica variante. A liberdade para combinar fatores de produo seria radicalizada como liberdade para inovar nos componentes do regime jurdico da produo e da circulao de bens e ser-vios. As novas variantes do mercado e, portanto, do direito de propriedade e de obrigaes dariam descentralizao da iniciativa formas que no se cingissem pequena propriedade e ao empreendimento familiar.

    O quarto passo mais longnquo o avano rumo a dois objetivos entrelaados que gozaro de autoridade crescenteno mundo se a humanidade quiser engrandecer-se. Um desses objetivos a superao, ainda que fragmentria e gradual, do trabalho assalariado como forma predominante do trabalho livre.Os liberais e os socialistas do sculo XIX sempre entenderam o que ns esquecemos: que o trabalho assalariado uma forma imperfeita do trabalho livre. Carrega ainda a mcula da servido e da escravido. S a combinao das outras duas formas do trabalho livre o autoemprego e a cooperao , de maneira que permita agregar recursos e alcanar escala, d eficcia ao ideal de trabalho livre.

    O outro objetivo assegurar que no futuro ningum tenha de fazer o que uma mquina possa executar. Tudo o queaprendemos a repetir podemos expressar em frmulas. E tudo o que expressamos em frmulas podemos encarnar num aparelho mecnico. As mquinas existem para que as pessoas no tenham de trabalhar como elas. Existem para que possamos dedicar nossorecurso supremo (o tempo) apenas quilo que ainda no sabemosrepetir. Com isso, voltamo-nos para a criao do novo.

    A trajetria demarcada por esses quatro passos a radicalizaodaquilo que mais poderoso nos sonhos dos emergentes e dos batalhadores. a construo cumulativa da convergncia entre suas ambies e os interesses da humanidade.

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    As implicaes das ideias e das descobertas expostas neste livro no se limitam ao desdobramento das polticas sociais e ao contedo de uma alternativa nacional democratizante e transfor-madora. Tocam, tambm, um enigma metodolgico nas cincias sociais. E ajudam a suscitar um debate a respeito da vocao do pensamento social brasileiro.

    A tradio das cincias sociais construda a partir de Montesquieupressupe a quase irrelevncia das caractersticas dos indivduos.Valem as determinaes, as prticas e as regras coletivas. A fora dessa orientao tal que ela se impe mesmo nas vertentes da cincia social que abraam o individualismo metodolgico. Entreelas figura a linha da teoria econmica que ganhou ascendnciadesde o marginalismo de finais do sculo dezenove e depois, em meados do sculo vinte, veio a se corporificar na chamada sntese neoclssica.

    Qualquer pessoa que atua no mundo e lida com seus seme-lhantes sabe que as coisas no so assim. Divide-se a humanidadeem temperamentos, no apenas em classes, etnias e ideologias. Nas mesmas circunstncias, diante de constrangimentos e deoportunidades anlogas, pessoas sadas do mesmo meio reagem de forma dramaticamente divergente. Alguns fazem muito com pouco; outros, pouco, com muito. Os devotos das determinaescoletivas preferem acreditar que no final das contas tudo poderia ser explicado sem que ns tivssemos que preocupar com o avisodos gregos: carter destino.

    Essa reflexo vem a ttulo da histria dos batalhadores. Saem do mesmo meio dos outros, que compem a ral brasileira de Jess Souza. Enfrentam a mesma carncia de oportunidadeseconmicas e educativas. Muitos so filhos das mesmas famlias desestruturadas que predominam na massa pobre do pas. Por alguma combinao de vontade individual, de graa dada por outra pessoa uma me, um amigo ou at um estranho , e at de sorte, reagiram. Foram luta.

    No h motivo aqui para celebraes morais. H razo para compreender que no se desvenda a realidade dos trabalhadoressem admitir haver mais no mundo do que cabe em nossa vfilosofia. No so, porm, herosmos anmalos que fizeramos batalhadores. Os atos de resistncia individual repetiram-se milhes de vezes. E produziram um fenmeno que h de alterar nosso entendimento do que o Brasil do que ele pode vir a ser.

  • 16

    O mesmo princpio que as determinaes e os constrangi-mentos admitem respostas diferentes repete-se no plano das explicaes coletivas. Ao repetir-se, indica a tarefa do pensamentobrasileiro na prxima etapa de nossa histria.

    O trao dominante das ideias sociais no Brasil sempre foiamor fati o amor do destino. Hoje o amor do destino apareceem nossa vida intelectual de duas maneiras aparentementeantagnicas, porm em verdade aliadas.

    Uma das duas vozes que falam mais alto no pensamento socialbrasileiro o de um neomarxismo encolhido e acabrunhado. H muito tempo deixou-se de acreditar que podemos nos aliar Histria, amiga, para mudar o mundo. Do iderio Marxista, reteveum fatalismo desfalcado. Atrai-lhe as doutrinas que explicam a fatalidade do nosso atraso, dada a irresistvel correlao de forasno mundo: engrenagem medonha e supostamente inescapvel. No lhe impressionam os contrastes entre as experincias dos grandes pases continentais em desenvolvimento, a braos com a mesma ordem mundial.

    A outra voz s aparentemente contrastante a das cinciassociais concebidas e praticadas no figurino da academia dosEstados Unidos. Dessas cincias, a que de longe desempenha influncia maior a economia, manejada, como as outras, para dar cores de naturalidade, de autoridade e, at mesmo, de neces-sidade aos arranjos institucionais dos pases do Atlntico norte, que nos acostumamos a tomar por referncia.

    Caso parte entre as cincias sociais o da antropologia, cuja vertente principal no Brasil, como em tudo o mundo, tem sido o determinismo cultural e a disposio de tratar as culturas, fossilizadas, como os protagonistas da histria humana. Por trs dessa venerao pelos dolos da cultura, esto a teologia daimanncia (o que h de sagrado no mundo est encarnado nestesentes culturais coletivos) e a pragmtica da suficincia (trabalhe e transforme o mundo s at o momento de adquirir o bastante para viver como est habituado; depois, descanse). Pela frente, h a crueldade travestida de benevolncia: o sacrifcio dos povos e, sobretudo, dos indivduos indgenas no altar das supersties antilibertrias do culturalismo.

    As duas vozes a do neomarxismo e a das cincias sociaissequestradas pelo esprito da mistificao racionalizadora juntaram-se no Brasil para entoar o coro do fatalismo.

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    Desmerece-se, como voluntarismo jacobino, tudo o que destoe desse coro. Na verdade, as tendncias construtivistas que seafirmaram na histria das ideias no Brasil como vertente minori-tria (por exemplo, por meio do positivismo republicano) sempreforam apenas o reverso da mesma medalha de racionalizao fatalista.

    Para decifrar o Brasil e contribuir ao pensamento mundial, temos de romper com tudo isso. Nossa preocupao central no pensamento deve ser afirmar o vnculo entre o entendimento do existente e a imaginao do possvel. Por isso mesmo, h afinidadenatural entre a imaginao programtica e transformadora, e a interpretao da realidade social e histrica. Direito e economia so as duas disciplinas da imaginao institucional. Precisam das luzes de uma sociologia que prefere entender a realidade a se ajoelhar diante dela. O caso dos batalhadores , para o embate das ideias no Brasil, um chamamento s armas.

    Roberto Mangabeira UngerJunho de 2010

  • I N T R O D U O

    UMA NOVA CLASSETRABALHADORA BRASILEIRA?

    O QUE UMA CLASSE SOCIAL?

    Perceber mudanas sociais, polticas e econmicas profundas,no contexto de uma poca em transio, o maior desafio do pensamento crtico. Isso acontece porque as categorias e osconceitos que todos ns nos acostumamos a usar, para pensar um mundo que se transforma to rapidamente, no o explicam mais. Ao mesmo tempo, no temos ainda os conceitos e as ideias novas necessrias para pensar o realmente novo nesse mundo em ebulio. Esse fato fica sobejamente claro quando falamos, por exemplo, no mundo do neoliberalismo, seja do ponto de vista de seus defensores, seja por parte de seus crticos. O obser-vador atento certamente percebe que todos falam como se o mundo inteiro tivesse se modificado sob uma nova lei social que constrangesse a todos. Mas o que ningum diz o como, exatamente, o mundo teria se modificado.

    Em outras palavras, o que nunca explicitado como esse suposto novo mundo neoliberal se torna em carne e osso humano de todo dia, transformando o cotidiano, as emoes, os sentimentos, os sonhos e as esperanas das pessoas comuns. Porque apenas quando as mudanas ganham a alma e o corpo de homens e mulheres comuns que estamos lidando verdadeiramente com mudanas efetivas da sociedade, da polticae da economia. O que importa, portanto, penetrar no drama humano e cotidiano que produz sofrimento, dores, alegrias e esperana. A sociologia pode e deve fazer isso de modo claro e compreensvel a qualquer pessoa de boa vontade com disposiode aprender. Mas o que vemos so analistas falando bem ou mal do novo mundo, utilizando-se de categorias e ideias do mundo

  • 20

    velho. Isso verdade, no Brasil, tanto em relao aos intelectuais,polticos e formadores de opinio que afirmam o mundo existentecomo (sempre) o melhor mundo possvel, quanto em relao maioria dos intelectuais, polticos e formadores de opinio que criticam e, supostamente, pretendem modificar o mundo para melhor.

    Todas as sociedades tm os seus profetas da boa ventura que Max Weber percebia desde o judasmo antigo, os quais vendem o mundo que efetivamente existe como o melhor dos mundos possveis , e eles so, numa sociedade profundamente conservadora e desigual como a brasileira, a imensa maioria. A mar est sempre do lado desses afirmadores do mundo, posto que todos os interesses que esto ganhando se regozijam com esse tipo de legitimao dos especialistas. Como os interesses que esto ganhando so os que mandam no mundo seno no seriam os dominantes , so esses profetas da afirmao que esto falando todo dia nos grandes jornais da grande imprensa brasileira e nos canais de TV.

    O que eles dizem? Eles dizem que a nova classe de emergentesbrasileiros que ajudaram a mudar a economia e a sociedadebrasileira recente mostra o triunfo do mercado (neo)liberalizado e desregulado desde que o Estado corrupto e politiqueiro no atrapalhe.1 Afinal, os conservadores do Brasil, ao contrrio dos conservadores de outros pases, gostam de tirar onda de crticos.O tema do patrimonialismo e da crtica da corrupo que seria apenas do Estado serve, afinal, apenas para que a conservao domesmo a reproduo da sociedade amesquinhada reproduodo mercado tenha a aparncia de crtica. Quem essa nova classe de emergentes? So, pelo menos, 30 milhes de brasileiros que adentraram o mercado de consumo por esforo prprio, os quais so o melhor exemplo da nova autoconfiana brasileira dentro e fora do Brasil. Mas no apenas isso. Eles seriam uma novaclasse mdia, que est transformando o Brasil no pas moderno e de primeiro mundo que foi e o maior sonho coletivo de seu povo desde a independncia poltica em 1822. Dizer que os emergentes so a nova classe mdia uma forma de dizer, naverdade, que o Brasil, finalmente, est se tornando uma Alemanha,uma Frana ou uns Estados Unidos, onde as classes mdias, e no os pobres, os trabalhadores e os excludos, como na periferiado capitalismo, formam o fundamento da estrutura social.

  • 21

    Nossa pesquisa emprica e terica demonstrou que isso mentira. Mas as mentiras da ideologia e da violncia simblica dominante no so simples mentiras, e sim meias-verdades. Elas so tambm verdade porque de algum modo se referem a mudanas reais. So mentira, por outro lado, porque essas mudanasreais so todas interpretadas de modo distorcido, sem conflitos e sem contradies. Sua funo no esclarecer o que acontece, mas reforar o domnio do novo tipo de capitalismo que tomou o Brasil e o corpo e a alma de toda a sua populao. Interpretar o mundo como rosa dizer que ele o melhor e na verdade onico dos mundos possveis e ridicularizar qualquer crtica.Com isso naturaliza-se a sociedade tal como ela se apresenta ese constri a violncia simblica necessria para sua reproduo infinita.

    Mas os perigos das vises distorcidas do mundo no vm apenas da direita pensada aqui como aceitao acrtica do mundo como ele . Boa parte dos perigos para uma adequada percepo do Brasil moderno em mudana to acelerada advm de uma esquerda que se pretende crtica do mundo como ele envelhecida e algumas vezes mais conservadora que os intelectuais orgnicos da nova dominao do capitalismo finan-ceiro no Brasil. aqui, afinal, onde encontramos, muito frequen-temente, o apego a noes de um passado que no volta mais, combinado com a lamria e o narcisismo infantil tpico de toda tica da convico, a qual , como nos ensina Max Weber, se recusa a aceitar e, principalmente, que se recusa a conhecer a realidade como ela .

    O que, na verdade, comum, tanto ao liberalismo economi-cista dominante quanto ao marxismo enrijecido dominado, o fato de que ambos so cegos em relao verdadeira novidade do mundo novo no qual vivemos sem compreend-lo adequada-mente. Como sempre, a cegueira social tem a ver, na realidade, com a cegueira em relao percepo das classes sociais que compem e estruturam a realidade. Gostaria de defender aqui uma tese simples e clara: sempre que no se percebem a cons-truo e a dinmica das classes sociais na realidade temos, em todos os casos, distoro da realidade vivida e violncia simblica,que encobre dominao e opresso injusta. A razo para que isso acontea tambm simples. Como o pertencimento s classes sociais que predetermina todo o acesso privilegiado a

  • 22

    todos os bens e recursos escassos que so o fulcro da vida de todos ns 24 horas por dia, encobrir a existncia das classes encobrir tambm o ncleo mesmo que permite a reproduo e legitimao de todo tipo de privilgio injusto.

    O que complica a situao que as mentiras sociais so, comovimos, sempre meias-verdades, do contrrio elas no convence-riam ningum. Assim, ningum nega, na verdade, que existam classes sociais. Em um pas to desigual como o Brasil isso seria um disparate. O que o liberalismo economicista dominante faz dizer que existem classes e negar, no mesmo movimento, a sua existncia ao vincular classe renda. isso que faz com que os liberais digam que os emergentes so uma nova classe mdia por ser um estrato com relativo poder de consumo. O marxismo enrijecido no percebe tambm as novas realidades de classe porque as vinculam ao lugar econmico na produo e, engano mais importante e decisivo ainda, a uma conscincia de classe que seria produto desse lugar econmico.

    Embora a reduo economicista seja comum a ambas as posi-es, as consequncias so distintas. O ponto comum que no sepercebe a gnese sociocultural das classes.2 O segredo mais bem guardado de toda sociedade que os indivduos so pro-duzidos diferencialmente por uma cultura de classe especfica.Quando se fala do brasileiro em geral, do jovem, da mulher,do carter nacional, do jeitinho brasileiro etc., para se dar a impresso de que o brasileiro, o jovem, ou a mulher da classemdia, por exemplo, teria algo a ver, ainda que remotamente, com o brasileiro das classes baixas. Quando os grandes jornais conservadores do Brasil falam que o jovem brasileiro entre 14 e 25 anos costuma morrer de arma de fogo, eles, na verdade, escondem e distorcem o principal: que 99% desses jovens so de uma nica classe, a ral de excludos brasileiros. Quando se falaque a mulher brasileira est ocupando espaos importantes e valorizados no mercado de trabalho, o que se esquece de dizer que 99% dessas mulheres so das classes mdia e alta.

    O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas economicamente,no primeiro caso como produto da renda diferencial dos indi-vduos, e, no segundo caso, como lugar na produo. Isso equivale a esconder todos os fatores e precondies sociais,emocionais, morais e culturais que constituem a renda diferencial,

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    confundindo, ao fim e ao cabo, causa e efeito. Esconder os fatoresno econmicos da desigualdade , de fato, tornar invisvelas duas questes que permitem efetivamente compreender o fenmeno da desigualdade social: a sua gnese e a sua repro-duo no tempo.

    Como as ideias dos intelectuais desde que estejam associadasa interesses econmicos e polticos importantes no ficamapenas nos livros, mas ganham o senso comum compartilhado pelas pessoas que no so especialistas no funcionamento de algo to complexo como a sociedade moderna, essa viso super-ficial das classes sociais atinge o espao pblico, domina ecoloniza tudo que se pensa sobre a nossa vida coletiva. Assim, normalmente, apenas a herana material, pensada em termos econmicos de transferncia de propriedade e dinheiro, perce-bida por todos. Imagina-se que a classe social, seus privilgios positivos e negativos dependendo do caso, se transfere s novas geraes por meio de objetos materiais e palpveis ou, no caso dos negativamente privilegiados, pela ausncia destes.

    Onde reside, no raciocnio acima, a cegueira da percepo economicista, seja liberal, seja marxista, do mundo? Reside em literalmente no ver o mais importante, que a transferncia de valores imateriais na reproduo das classes sociais e de seus privilgios no tempo. Reside em no perceber que mesmo nas classes altas, que monopolizam o poder econmico, os filhos s tero a mesma vida privilegiada dos pais se herdarem tambm o estilo de vida, a naturalidade para se comportar em reunies sociais, o que aprendido desde tenra idade na prpria casa com amigos e visitas dos pais, se aprenderem o que de bom tom, se aprenderem a no serem over na demonstrao de riqueza como os novos ricos e emergentes etc. Algum capital cultural tambm necessrio para no se confundir com o rico bronco, que no levado a srio por seus pares, ainda que esse capital cultural seja, muito frequentemente, mero adorno e culto das aparncias, significando conhecimento de vinhos, roupas, locais in em cidades charmosas da Europa ou dos Estados Unidos etc. Esse aprendizado significa que apenas o dinheiro enquanto tal no confere, a quem o possui, aquilo que distingue o rico dentre os ricos. a herana imaterial, mesmo nesses casos de fraes de classes em que a riqueza material o fundamento de todo privilgio, na verdade, que vai permitir

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    casamentos vantajosos, amizades duradouras e acesso a relaes sociais privilegiadas que iro permitir a reproduo ampliada do prprio capital material.

    Na classe mdia a cegueira da viso redutoramente econo-micista do mundo ainda mais visvel. Essa classe social, ao contrrio da classe alta, se reproduz pela transmisso afetiva, invisvel, imperceptvel porque cotidiana e dentro do universo privado da casa, das precondies que iro permitir aos filhos dessa classe competir, com chances de sucesso, na aquisio e reproduo de capital cultural. O filho ou filha da classe mdia se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai lendo jornal, a me lendo um romance, o tio falando ingls fluente, o irmo mais velho ensinando os segredos do computador brincando comjogos. O processo de identificao afetiva imitar aquilo ou a quem se ama se d de modo natural e pr-reflexivo, sem a mediao da conscincia, como quem respira ou anda, e isso que o torna tanto invisvel quanto extremamente eficaz como legitimao do privilgio. Apesar de invisvel, esse processo de identificao emocional e afetiva j envolve uma extraordinria vantagem na competio social, seja na escola, seja no mercadode trabalho, em relao s classes desfavorecidas. Afinal,tanto a escola quanto o mercado de trabalho iro pressupor a in-corporao (literalmente tornar corpo, ou seja, natural e automtico) das mesmas disposies para o aprendizado e para a concentrao e disciplina que so aprendidos, pelos filhos dessas classes privilegiadas, ainda que com grande esforo, por identificao afetiva com os pais e seu crculo social.

    Essa herana da classe mdia, imaterial por excelncia, completamente invisvel para a viso economicista dominante do mundo. Tanto que a viso economicista universaliza ospressupostos da classe mdia para todas as classes inferiores, como se as condies de vida dessas classes fossem as mesmas. Esse esquecimento do social ou seja, do processo de socia-lizao familiar, que diferente em cada classe social permite dizer que o que importa o mrito individual. Como todas as precondies sociais, emocionais, morais e econmicas que permitem criar o indivduo produtivo e competitivo em todas as esferas da vida simplesmente no so percebidas, o fracasso dos indivduos das classes no privilegiadas pode ser percebido como culpa individual. As razes familiares da reproduo do

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    privilgio de classe e o abandono social e poltico secular de classes sociais inteiras, cotidianamente exercido pela sociedade como um todo em todas as suas prticas institucionais e sociais, so tornadas invisveis para propiciar a boa conscincia doprivilgio econmico (das classes altas) ou cultural (das classes mdias) e torn-lo legtimo.

    Para se compreender por que existem classes positivamente privilegiadas, por um lado, e classes negativamente privilegiadas,por outro, necessrio perceber como os capitais impessoais que constituem toda hierarquia social e permitem a reproduo da sociedade moderna, o capital cultural e o capital econmico, so tambm diferencialmente apropriados. O capital cultural, soba forma de conhecimento tcnico e escolar, fundamental para a reproduo tanto do mercado quanto do Estado modernos. essa circunstncia que torna as classes mdias, constitudas historicamente pela apropriao diferencial do capital cultural, uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. A classe altase caracteriza pela apropriao, em grande parte, pela herana de sangue, de capital econmico, ainda que alguma poro de capital cultural esteja sempre presente.

    O processo de modernizao brasileiro constitui no apenas as novas classes sociais modernas que se apropriam diferencial-mente dos capitais cultural e econmico. Ele constitui tambm uma classe inteira de indivduos no s sem capital cultural nem econmico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse o aspecto fundamental, das precondies sociais, morais e culturais que permitem essa apropriao. essa classe social que designamos, em livro anterior a este, de ral estrutural, no paraofender essas pessoas j to sofridas e humilhadas, mas para chamar a ateno, provocativamente, para nosso maior conflito social e poltico: o abandono social e poltico, consentido por toda a sociedade, de toda uma classe de indivduos precari-zados que se reproduz h geraes enquanto tal. Essa classe social sempre esquecida como classe com gnese e destino comum, e s percebida no debate pblico como um conjunto de indivduos carentes ou perigosos, tratados fragmentariamentepor temas de discusso superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tal como violncia, segurana pblica, problema da escola pblica, carncia da sade pblica, combate fome etc.

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    A nossa atual pesquisa, apresentada neste livro, sobre uma classe social nova e moderna, produto das transformaes recentesdo capitalismo mundial, que se situa entre a ral e as classes mdia e alta. Ela uma classe includa no sistema econmico, como produtora de bens e servios valorizados, ou como consu-midora crescente de bens durveis e servios que antes eramprivilgio das classes mdia e alta. Mas como as classes sociais no podem ser definidas como vimos acima e veremos no decorrer de todo este livro apenas pela renda e pelo padro de consumo, mas, antes de tudo, por um estilo de vida e uma viso de mundo prtica, que se torna corpo e mero reflexo, mera disposio para o comportamento, que em grande medidapr-reflexivo ou inconsciente, temos que estud-la emprica e teoricamente para definir seu lugar preciso.

    Por razes que ficaro claras no decorrer da leitura deste livro,nossa tese que os emergentes que dinamizaram o capitalismo brasileiro na ltima dcada constituem aquilo que gostaramos dedenominar como nova classe trabalhadora brasileira. Essa classe nova posto que resultado de mudanas sociais profundas queacompanharam a instaurao de uma nova forma de capitalismo no Brasil e no mundo. Esse capitalismo novo porque tanto suaforma de produzir mercadorias e gerir o trabalho vivo quanto seuesprito so novos e um verdadeiro desafio compreenso.

    O CAPITALISMO E SEU ESPRITO

    O capitalismo, fato percebido pelos seus melhores observa-dores, de Max Weber a Luc Boltansky, precisa de um esprito que justifique e legitime a atividade econmica. Essa necessidade compreensvel, acima de tudo, quando percebemos que o capi-talismo moderno habitado por uma irracionalidade fundamental: a primeira forma de produo econmica na histria que est desvinculada de uma relao direta com necessidades humanas, ou com valores de uso, como diria Karl Marx. A definiomais abstrata de capitalismo envolve a ideia de uma acumulao ilimitada de capital como um fim em si mesmo. Em si esse fim irracional, posto que o capital, como o prprio dinheiro, apenas um meio de satisfao de desejos e necessidades humanas,e no um fim em si. Como se justifica, ou seja, como se torna

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    racional uma atividade instrumental, sem relao com fins e valores humanos?

    precisamente essa necessidade de tornar aceitvel, expli-cvel, justificvel e legtima uma atividade irracional que torna um esprito coisa to indispensvel ao capitalismo moderno. E, efetivamente, o capitalismo sempre teve um esprito, ainda que sempre implcito e inarticulado, formado de modo a permitir a iluso de que a atividade econmica havia se libertado de qualquerforma de legitimao moral. Este foi e , alis, o segredo mais bem guardado do funcionamento do capitalismo durante toda sua histria: aparecer como uma atividade econmica pura, desvinculada e independente de limites e de justificaes morais,quando, na verdade, alguma forma de justificao moral lhe indispensvel. Quanto mais implcita, invisvel e opaca essajustificao for, melhor ela cumpre sua funo. Mais ainda, alegitimao moral tem que aparecer como algo natural, intrnseco economia e seu funcionamento, o que, precisamente, permite tornar opaco o dado moral extraeconmico.

    A explicao para isso simples. Pode-se obrigar as pessoas a irem ao lugar de trabalho e, se houver controle e vigilncia constantes (o que envolve custos crescentes), pode-se obrig-lasa realizarem seu trabalho porque necessitam do salrio paraaplacar a fome. Mas isso seria pouco. Como qualquer sistema de dominao eficiente e que pretende se reproduzir no tempo, o capitalismo necessita se legitimar, ou seja, fazer com que as pessoas acreditem no que fazem e que, se possvel, se empenhemo mximo possvel naquilo que fazem. O sucesso do capitalismo no pode sequer ser compreendido sem o trabalho de legitimaoprvio no sentido de ganhar a boa vontade, a adeso ativa e o comprometimento de seus participantes.

    Na formulao weberiana original, que quer compreender, antes de tudo, o tipo especfico de justificao social e moral que permitiu a consolidao simblica do novo sistema econmico, essa legitimao moral ainda em grande parte religiosamente motivada. A religio ainda a esfera produtora de sentidoque monopoliza toda justificao possvel de conduo de vida prtica. Tanto a atividade empresarial quanto o trabalho passam a ser compreendidos como uma vocao, ou seja, como umchamado religioso e divino, para realizar por meio da atividade econmica racionalizada e disciplinada o desejo e a glria divina

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    na Terra. Aqui, a necessidade externa de justificao moral ainda bvia e clara.3

    Com a queda do prestgio das justificaes religiosas, como Weber j havia percebido, entra em cena o processo de trans-formao da economia, com a ajuda decidida da cincia e da filosofia, em esfera (supostamente) amoral, como se a economiahouvesse se libertado de qualquer necessidade externa dejustificao da atividade econmica percebida como acumulao indefinida no tempo, como um fim em si. Na verdade, a prpria definio da economia enquanto esfera autnoma, independentede qualquer justificativa ideolgica e moral, foi um processo histricolento que contou com a ajuda das justificaes legitimadas pelo discurso cientfico e filosfico, como o antroplogo francs LouisDumont demonstra sobejamente.4

    Na realidade, a desconstruo da justificativa religiosa permite aassociao, por debaixo do pano, da ideia moral de bem comumcomo algo intrnseco prpria atividade econmica capitalista nostermos do utilitarismo. A justificao moral do capitalismo passa ase vincular noo de bem-estar geral definida como produto doprogresso material. , afinal, esse vnculo entre progresso materiale bem-estar geral que est implcita na definio do PIB como smbolo mximo do progresso material e do bem-estar de uma sociedade. A nao passa a ser percebida nos termos de uma empresa capitalista.5 Esse tipo de associao precisamente o que necessrio para naturalizar a argumentao simblica da atividade econmica no capitalismo e, de certo modo, produzir uma justificao moral to ampla, to bvia e to indiscutvel quea economia possa ser percebida, ao fim e ao cabo, como hoje em dia, como neutra em termos morais.

    Na verdade, tanto a cincia como todas as formas de justi-ficao que gozam de alto prestgio na esfera pblica sempre insistiram na moralidade inata do comportamento econmico no capitalismo. O prprio Weber falava do capitalismo modernocomo uma moderao do impulso de ganho, ou seja, comoconteno e autocontrole, e como controle do corpo e de suas paixes pelo esprito, a concepo ocidental por excelncia de virtude. Tambm a corrupo percebida como vantagem inde-vida num contexto de presumida igualdade relegada, muitas vezes, para a fase selvagem da acumulao primitiva, como se o capitalismo maduro no se utilizasse, sempre que possvel e

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    sempre que os resultados compensem, de todos os meios para se obter o maior lucro possvel. A ltima crise internacionalapenas deixou esse fato, mais uma vez, claro como a luz do sol ao meio-dia para quem tenha olhos e queira ver. Que j tenhamosnos esquecido das causas da crise recente apenas nos lembra quo slida a atual justificao do capitalismo contemporneo dominado pelo capitalismo financeiro.

    , no entanto, apenas percebendo a combinao desses fatoresmateriais e simblicos que podemos compreender a universalizaoda economia capitalista como principal instncia reguladora e coordenadora das aes sociais no mundo moderno. A clareza com relao a esse ponto fundamental para toda a nossa argu-mentao nesse livro, pois a questo central , precisamente, tentar perceber em ato, no instante em que est acontecendo, a dinmica do capitalismo contemporneo brasileiro. Essa dinmica,ao contrrio de todo o discurso legitimador que emana da prpriaesfera econmica, no apenas material, tcnica, racional, ou, para dizer tudo em uma nica palavra, no neutra em relao a valores substantivos. Muito pelo contrrio, o processo deacumulao s acontece por meio de uma violncia simblica especfica, a qual possibilita que a legitimao moral e poltica do capitalismo ocorra por meio de um processo ambguo de expresso/represso econmica do contedo poltico e moral que lhe inerente. Em uma palavra: o capitalismo s se legitima e se mantm no tempo por meio de um esprito que justifique o processo de acumulao de capital.

    Esse esprito um conjunto de ideias e valores que permite conferir sentido a uma atividade econmica vivida como processoabstrato de acumulao infinita to mais eficiente quo mais inarticulada e implcita for a sua mensagem moral. Como vimos,a atividade econmica no capitalismo vive da aparncia deautonomia e independncia em relao s outras esferas sociais, muito especialmente das esferas de valor. Nesse sentido, o pro-cesso de acumulao de capital no se justifica em si mesmo, e perceber seu ncleo simblico em cada contexto histrico implicareconstruir suas formas de legitimao tornadas invisveis.

    Essa talvez seja a ideia mais interessante da obra de LucBoltansky e Eve Chiapello, O novo esprito do capitalismo.6 Nesselivro seminal para a compreenso do capitalismo contemporneo,os autores avanam duas ideias de importncia fundamental para

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    nossos interesses no presente trabalho: primeiro, a ideia de que o capitalismo s sobrevive se assimilar, nos seus prprios termos,seus inimigos em cada poca histrica; segundo, a ideia de que o capitalismo contemporneo, conhecido como neoliberal,assimila e reconstri um tipo muito peculiar de capitalismoexpressivo.

    A primeira ideia fundamental, uma vez que permite explicarno s a permanncia do capitalismo como sistema social epoltico dominante no planeta nos ltimos 200 anos, mas tambmseu atual prestgio e fora inditos em toda a sua histria. Aconstruo de um esprito do capitalismo um desempenho pragmtico, e no primariamente movido por consideraes de coerncia do tipo de justificao. O capitalismo no escolhe seu sentido e legitimao em cada poca histrica, mas o campo de luta definido por seus inimigos. Assim sendo, o capitalismo tem que assimilar as ideias que desfrutem de prestgio e poder de persuaso em cada poca, muito especialmente as que lhe so hostis e mais perigosas. O capitalismo no constri novas ideias, mas, antes de tudo, mobiliza as construes simblicas j existentes e que desfrutam de alta penetrao social em cada contexto, conferindo-lhes um sentido novo que permita adapt-lass exigncias da acumulao de capital.

    essa capacidade de transformao e de antropofagia que permite e explica tanto a sobrevivncia histrica quanto o vigor do capitalismo ao lograr formas de compromisso e convergncia com seus diversos inimigos histricos. isso, tambm, afinal, que permite que o processo de acumulao econmica assuma a aparncia de generalidade e universalidade como se realizasse princpios ticos universais. desse modo que o processo de acumulao permite blind-lo contra seus inimigos e sobrepor- -se s crticas anticapitalistas em torno da noo de justo e injusto.A leitura de Boltansky do processo de legitimao simblica do capitalismo nos termos de uma justificao simblica implcita que se refere a noes de bem comum interessante porque permite tanto se afastar das verses apologticas, que confundema realidade material e simblica e so cegas realidade das justifi-caes implcitas e inarticuladas, quanto tambm se afastar do tipo de crtica que desconhece a dinmica das justificaes como compromisso e luta, imaginando que os interesses econmicos possam se realizar sem peias e sem limites.

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    A in-corporao dessa dimenso simblica de luta por justi-ficaes a nica maneira de se compreender a capacidade de renovao histrica do capitalismo como resultado contingente e aberto de uma luta que implica assimilao ainda que nos seus prprios termos, ou seja, como forma de garantir o processode acumulao infinita do capital e resistncia das posies de seus inimigos histricos em cada contexto especfico. O preo dacrtica a sua incorporao de modo a possibilitar o processo de acumulao num patamar novo de justificao normativa. Essa perspectiva rica e interessante porque crtica de concepes que so cegas dinmica normativa tensional interna ao capita-lismo como sistema social total. Isso significa tambm que uma crtica vigorosa ao capitalismo pode ajudar a reformular seusprprios padres de justia e legitimidade. O outro do capita-lismo no est apenas fora dele, mas tambm pode ser gestado no seu prprio interior ao se problematizarem seus prpriosdispositivos de justia em seus prprios princpios implcitos de equidade e de bem comum.

    Perceber a dimenso simblica de justificao do capitalismo equivale no apenas a ultrapassar a dimenso ingnua que percebea atividade econmica como neutra em relao a valores, mas tambm, e principalmente, perceber o prprio terreno da justi-ficao do processo de acumulao de capital como uma luta em aberto que pode ser refeita em qualquer tempo. Ainda que essa luta exija mobilizao poltica e ao coletiva organizada, a desconstruo conceitual da economia e de suas justificaes como algo natural, e no como algo construdo socialmente, ao privilegiar positivamente alguns e estigmatizar outros, parte importante na luta simblica por justia social. isso que pro-curaremos fazer neste livro. No nos interessa uma condenao global do novo tipo de capitalismo vigente entre ns, nem tambmnos interessa comprar ingenuamente o discurso dos vencedoressobre si mesmos. Nosso objetivo perceber as ambiguidades constitutivas dessa nova fase do capitalismo mundial e brasileiro e tentar compreender o potencial de chance e de mudana possvel nesse contexto especfico. assim que compreendemos o dever da sociologia e da cincia crtica no mundo moderno.

    No existe crtica social possvel sem a articulao e a dramati-zao do sofrimento humano que foi relegado ao silncio pelo domnio da violncia simblica dos vencedores. Quando a doxa

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    discurso construdo socialmente naturalizado como autoe-vidente dominante entre ns fala da produo de uma nova classe mdia como resultante do processo de dominao do capitalismo financeiro, existe muita dor e sofrimento silenciado. Oobjetivo aqui a produo de uma verso apologtica do desen-volvimento capitalista brasileiro na direo de uma sociedade do primeiro mundo sonho nacional desde a independncia quese caracteriza precisamente pela preponderncia quantitativa e qualitativa de uma classe mdia pujante, e no por uma maioria de pobres, como nos pases do terceiro mundo.

    Por outro lado, articular esse sofrimento e dor especficos de toda uma significativa poro da populao brasileira tambm se afastar de crticas gerais que pouco ajudam e no explicam o tipo sociedade neoliberal, em que o apelo se estiola na prpria acusao genrica e abstrata sem que o conhecimento da situaosocial efetiva das pessoas tenha qualquer ganho ou aporte inter-pretativo efetivo. Essa crtica concreta aqui tem que se mover no fio da navalha da crtica da ideologia apologtica e da violncia simblica que apagam a dor e o sofrimento e o reconhecimento das chances possveis num contexto de mudana irreversvel. Paraque isso acontea, necessrio tanto o esclarecimento terico prvio quanto o trabalho emprico de ouvir os agentes sociais emquesto. Foi isso que procuramos fazer. Inicialmente, portanto, temos que nos inquirir acerca de com que tipo de ator social peculiar estamos, na realidade, lidando. Se no razovel falar de uma classe mdia, como argumentamos mais acima, de que classe social, afinal, estamos tratando aqui?

    A resposta a essa questo central exige uma reconstruo histrica prvia que permita perceber e separar a antiga da nova classe trabalhadora do capitalismo moderno. Para isso, temos quecompreender a fase do capitalismo imediatamente anterior atualpara que possamos perceber o novo no presente momento do desenvolvimento capitalista mundial e brasileiro. Apenas assim poderemos determinar a mudana e a novidade da constituio de uma nova classe social entre ns.

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    A VELHA E A NOVA CLASSE TRABALHADORA

    A fase imediatamente anterior dominao contempornea docapitalismo financeiro conhecida como fordismo. O ano de nascimento simblico do fordismo 1914, quando Henry Ford, dono da companhia de automveis que leva seu nome, introduziua jornada de 8 horas de trabalho e o salrio dirio de 5 dlares (120 dlares segundo padres atuais).7 Estava nascendo um tipo de compromisso entre os capitalistas e os trabalhadores, no qual o trabalho disciplinado, hierrquico e repetitivo nas fbricas era comprado por bons salrios, tempo para lazer e oportunidades efetivas de consumo de bens durveis e conforto para a classe trabalhadora americana. A novidade e a importncia do fordismo se explica, portanto, por um compromisso que ultrapassava em muito as paredes das fbricas.

    O que havia de especial em Ford era que ele vislumbrava uma nova maneira de perceber a reproduo social capitalista como um todo, a qual se fundamentava no apenas em fatores negativos, como a represso aos sindicatos, a perseguio s organizaes operrias autnomas ou o proibicionismo da lei seca como forma de disciplinamento da classe trabalhadora. Fordhavia percebido que produo de massa como a dos seus Ford modelo T implicava tambm consumo de massa que s uma classe trabalhadora afluente e bem paga podia tornar realidade. Como Gramsci percebeu melhor e mais cedo que qualquer outro,o que estava em jogo aqui era no apenas um novo sistema de reproduo da fora de trabalho, com uma nova gerncia e um novo modo de controlar a atividade produtiva, mas, tambm e principalmente, uma nova esttica, uma nova psicologia e um novo estilo de vida em todas as dimenses.8

    O fator positivo do fordismo como um esprito especfico do capitalismo na sua fase monopolista e de produo industrial de massa residia, precisamente, na expanso do mito americano de progresso e felicidade individual ainda que s custas de uma reduo da ideia de progresso individual ideia de consumo tambm s classes trabalhadoras. A questo que animouvrios espritos desde Sombart,9 no sentido de explicar a relativa ausncia de uma tradio socialista nos Estados Unidos, precisavaarticular tanto o aspecto negativo da destruio sistemticadas organizaes autnomas do operariado americano, como o

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    aspecto positivo da expanso do consumo a pores signifi-cativas da classe trabalhadora americana.

    A expanso do fordismo ao capitalismo europeu capitalismo aomesmo tempo menos vigoroso que o americano e mais perpas-sado por lutas de classe e forte tradio de luta operria sseria realidade a partir da Segunda Guerra Mundial. A partir da dcada de 1950, temos em todos os grandes pases europeus a combinao caracterstica do fordismo: rgido controle e disciplinade trabalho hierrquico e repetitivo, por um lado, e bons salrios e garantias sociais, por outro. Alm disso, o poder corporativo baseado na inovao tecnolgica e no alto investimento empropaganda e marketing permitiam economia de escala e lucros crescentes mediante padronizao de produtos estandardizados.

    Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, no entanto, o fordismo sempre foi perpassado por contradies. As benesses do fordismo pressupunham uma ciso entre setores positiva e negativamente privilegiados da prpria classe trabalhadora. Os altos salrios eram restritos aos setores chamados de monopo-listas, grandes indstrias que se aproveitavam da economia de escala da produo padronizada e podiam pagar bons salrios para trabalhadores fortemente organizados em sindicatos com alto poder de presso. A esse setor positivamente privilegiado se contrapunha, no entanto, todo um setor chamado por alguns de competitivo,10 com acesso residual ao excedente global e incapaz de pagar os mesmos salrios e as mesmas vantagens aos trabalhadores. O fordismo, portanto, sempre implicou foras sociais expressivas marginalizadas do compromisso de classes dominantes.

    Mas o frgil compromisso fordista estava baseado num equil-brio precrio. Essa precariedade no residia apenas no compromissoentre duas classes historicamente inimigas afinal, os altos gastosem controle e vigilncia do trabalho pressupunham que a fbrica continuava a ser, em grande medida, o terreno de uma guerra de trincheira entre inimigos com interesses opostos , mas tambm em condies especiais de trocas internacionais desiguais. Afinal,fazia parte do compromisso fordista na dimenso internacional o domnio militar americano em todo o mundo capitalista. Um dospilares do domnio militar americano no mundo livre, por sua vez, sempre foi e ainda hoje a manuteno de preos baixos

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    para matrias-primas estratgicas, como o petrleo. Assim, a crisedo petrleo em 1973 com a exploso dos preos de matrias- -primas fundamentais comprometeu significamente o equilbriofordista em escala mundial e reduziu crescentemente a taxa de lucro aproprivel seletivamente.11 Dificuldades fiscais para a manu-teno das garantias sociais que se multiplicam em diversospases avanados do capitalismo, na dimenso estatal, por um lado, alm da j clssica dificuldade em controlar e disciplinar o trabalho, levando a lucros decrescentes e perda de produtividade,na dimenso empresarial, por outro, ajudaram a fragilizar ocompromisso fordista.

    Mas no existiram apenas causas econmicas, seno tambmaspectos polticos e culturais decisivos. Pouco antes, nos signifi-cativos enfrentamentos contraculturais de 1968, em todo o mundocapitalista avanado, setores marginalizados do fordismo e avanguarda poltica de uma juventude bem formada, criada pela educao de massas do prprio compromisso fordista, j haviam criticado de modo contundente o mundo hierarquizado e inexpres-sivo que o fordismo havia construdo e difundido. A crtica hierarquia e ao mundo convencional e inexpressivo sai do campoeconmico e do horizonte apenas fabril e se transforma tambm em crtica hierarquia poltica e social como um todo. Qualquer que seja a combinao de fatores envolvidos e o peso efetivo de cada um deles na configurao geral, fato que a partir dos anos de 1970, e com mais fora a partir dos anos de 1980, uma srie de novos experimentos inicia-se de modo a garantir a volta das taxas de lucro atraentes e a produzir uma revoluo nas relaes entre o capital e o trabalho.

    O desafio da reorganizao do capitalismo, a partir dos anos de 1980 passa a ter, portanto, dois pilares interligados: transformaro processo de acumulao de capital, de modo a voltar a garantir taxas de lucro crescentes, e justificar esse processo de mudana segundo a semntica do expressivismo e da liberdade individualque havia fincado fundamentos slidos no imaginrio social a partir dos movimentos contraculturais dos anos de 1960 em todo o mundo. Como vimos acima, o capitalismo s sobrevive seengolir seu inimigo e transform-lo nos seus prprios termos. Essa antropofagia sempre um desafio ou seja, um risco e pode falhar e requer enorme coordenao de interesses em todasas esferas sociais para vencer resistncias e criar um imaginrio

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    social favorvel, ou, em outros termos, uma violncia simblica bem construda e aceita por todos como autoevidente.

    O maior desafio da reestruturao do capitalismo financeiro e flexvel foi, como no podia deixar de ser, uma completaredefinio das relaes entre o capital e o trabalho. Desde o seu incio, a histria da industrializao no Ocidente havia sido a epopeia de uma luta de classes cotidiana em todas as fbricas, umcombate latente e muitas vezes declarado e manifesto entre a dominao do capital atravs de seus mecanismos de controle e disciplina, por um lado, e a rebelio dos trabalhadores, por outro.Mesmo em pleno perodo de compromisso de classes fordista, fazia parte da tradio de luta dos trabalhadores se perceber comoum soldado de uma guerra de guerrilha contra toda tentativa de controle e disciplina do trabalho julgada excessiva.12 A uma rotina de trabalho baseada na medio milimtrica de tempos de movimentos se contrapunha toda a criatividade dos trabalhadoresem construir nichos secretos de autonomia. Durante os 200 anos de hegemonia do capitalismo industrial no Ocidente muito especialmente durante o compromisso de classes fordista , a dominao do trabalho pelo capital significou sempre custos crescentes de controle e vigilncia.

    Nesse sentido no de modo algum surpreendente que a nova forma fabril que estava destinada a substituir o fordismo viesse, sintomaticamente, de um pas no ocidental sem qualquertradio importante de luta de classes e de movimento organizadodos trabalhadores no sentido ocidental do termo.13 A grandevantagem do toyotismo japons em relao ao fordismo ocidentalera, precisamente, a possibilidade de obter ganhos incomparveisde produtividade graas ao patriotismo de fbrica, que subordi-nava os trabalhadores aos objetivos da empresa. A chamada leanproduction (produo flexvel) fundamentava-se precisamente na no necessidade de pessoal hierrquico para o controle e disciplina do trabalho, permitindo cortes substanciais dos custos de produo e possibilitando contar apenas com os trabalhadoresdiretamente produtivos.

    A secular luta de classes dentro da fbrica, que exigia gastos crescentes com controle, vigilncia e represso do trabalho,aumentando os custos de produo e diminuindo a produtividadedo trabalho, deveria ser substituda pela completa mobilizao dos trabalhadores em favor do engrandecimento e maior lucro

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    possvel da empresa. O que est em jogo no capitalismo flexvel transformar a rebeldia secular da fora de trabalho em completaobedincia ou, mais ainda, em ativa mobilizao total do exr-cito de soldados do capital. O toyotismo ps-fordista permitia no apenas cortar gastos com controle e vigilncia, mas, mais importante ainda, ganhar coraes e mentes dos prprios trabalha-dores. A adaptao ocidental do toyotismo implicou cortar gastoscom controle e vigilncia em favor de uma auto-organizao comunicativa dos trabalhadores atravs de redes de fluxointerconectados e descentralizados.

    A nova semntica expressiva o velho inimigo de 1968 agoraengolido e redefinido antropofagicamente serve para que ostrabalhadores percebam a capitulao completa em relao aos interesses do capital como uma reapropriao do trabalho, sonhomximo do movimento operrio ocidental nos ltimos 200 anos, pelos prprios trabalhadores. Na verdade, as demandas impostas ao novo trabalhador ocidental, quais sejam, expressar a si prprioe a se comunicar, escondem o fato de que essa comunicao e expresso so completamente predeterminadas no contedo e na forma. Transformado em simples elo entre circuitos j consti-tudos de codificao e de descodificao, cujo sentido total lhe escapa, o trabalhador flexvel aceita a colonizao de todas as suas capacidades criativas em nome de uma comunicao que se realiza em todas as suas vicissitudes exteriores, excetuando-se sua caracterstica principal de autonomia e espontaneidade.14

    Como nota Andr Gorz, a verdade que a caricatura do trabalhoexpressivo do capitalismo flexvel s possvel porque no existe autonomia no mundo do trabalho se no existir tambm autonomia cultural, moral e poltica no ambiente social maior. preciso solapar as bases da ao militante, do debate livre e da cultura da dissidncia para realizar sem peias a ditadura do capitalsobre o trabalho vivo. As novas empresas da lean production no ocidente preferem contratar mo de obra jovem, sem passado sindical, com clusulas explcitas de quebra de contrato em caso de greve: em suma, o novo trabalhador deve ser desenraizado, sem identidade de classe e sem vnculos de pertencimento sociedade maior. esse trabalhador que vai poder ver na empresao lugar de produo de identidade, de autoestima e de perten-cimento.15

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    As modificaes do capitalismo contemporneo, a partir da dcada de 1970, no foram automticas nem bvias para ningum.Ao contrrio, durante toda essa dcada os filhos da revoluo expressiva dos anos de 1960 passaram em vrios pases a ocuparpostos-chaves como formadores de opinio e como figuras centraisda vida pblica dessas sociedades. Essa gerao, a primeira a ser produzida no contexto de educao pblica de qualidade para amplos setores sociais princpio que se consolidou depois da Segunda Guerra Mundial como subproduto do prprio compro-misso fordista foi, ela prpria, o suporte de uma crtica virulenta heteronmia tpica do trabalho fordista, assim como de resto ao corte hierrquico de todas as instituies capitalistas e burguesas dominantes nesse perodo.

    Essa revoluo simblica em vrios pases avanados, tendocomo suporte social essa classe ps-materialista, pesquisada empiricamente por estudiosos como Ronald Inglehart,16 contra-punha-se a uma classe emergente de engenheiros, executivos e gerentes, que estavam se tornando cada vez mais importantes no seio do processo econmico e produtivo. At meados dos anos de 1980, o resultado dessa luta simblica ainda estava em aberto. O pensador mais influente desse perodo, Jrgen Habermas,inclusive, imaginava um mundo muito diferente do que efetiva-mente estava por vir. Imaginava a possibilidade de se manter o complexo mercado/Estado dentro de limites bem definidos de modo a possibilitar o desenvolvimento das virtualidades de uma razo comunicativa pensada como possibilidade concreta preci-samente pela expanso de boa educao para amplos setores. Habermas requentava a velha esperana iluminista de que novos potenciais de reflexividade e possibilidades de ao crtica poderiamconduzir a uma sociedade capitalista de novo tipo.17

    O novo esprito do capitalismo que se consolidou a partir dos anos de 1990 foi algo muito diferente. Tratava-se de uma carica-tura perfeita do sonho iluminista. Os novos gerentes, engenheirose executivos se apropriaram nos seus prprios termos ou seja, como sempre, os termos da acumulao do capital de pala-vras de ordem como criatividade, espontaneidade, liberdade,independncia, inovao, ousadia, busca do novo etc. O que antes era crtico do capitalismo se tornou afirmao do mesmo, possibilitando a colonizao da nova semntica a servio daacumulao do capital. Temos aqui um perfeito exemplo da tese

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    de Boltansky e Chiapello acerca das virtualidades antropofgicas do capitalismo em relao aos seus inimigos.

    Ao mesmo tempo e esse o aspecto mais importantee decisivo nesse contexto , a luta simblica para garantir areproduo continuada do capitalismo nunca est solucionada ou ganha de uma vez por todas. H sempre um componente de chance, de mudana e de crtica, o qual disputado contextual-mente em cada caso. A possibilidade de mudana est embutida constitutivamente no capitalismo por sua prpria dependncia de legitimao moral e tica em termos de justia social. por conta disso que a poltica e as lutas sociais jamais vo se extinguirno capitalismo. A poltica pode at ser silenciada em medida considervel, permitindo economia ou seja, o princpio da acumulao de capital percebido como nica demanda social-mente reconhecida e visvel fazer a poltica em seu prprio nome e em seu prprio interesse.

    Mas a luta est sempre em aberto, dado que a realidade do mundo pode sempre ser comparada, criticada e julgada tendo como base sua prpria justificativa e legitimao. A poltica serveprecisamente para articular o sofrimento esquecido, semnome nem autor, que foi silenciado por violncias simblicas quelograram se impor como leitura dominante da realidade. Cabe cincia crtica tambm explicitar a ambivalncia de cada situao histrica, separando o joio do trigo, evitando tanto a percepo apologtica quanto as crticas abstratas, percebendo ganhos e perdas reais. No se pode jogar o beb fora junto com a gua sujada banheira. O que interessa saber so as chances que esto em aberto pelo domnio do novo capitalismo flexvel e financeiro. A definio do que a chamada nova classe mdia brasileira est no centro do debate poltico nacional, visto que o que est em jogo que tipo de capitalismo ou que tipo de sociedade queremos para ns mesmos. Os inimigos aqui no so apenas os da direita conservadora e mesquinhamente liberal um tipo de liberalismo verde-amarelo realmente nico mundialmente na sua cegueira e mesquinhez de esprito , mas tambm de uma esquerda impotente e confusa, na sua imensa maioria apegada a interpretaes de um passado que no volta mais.

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    A PENETRAO DO CAPITALISMO FINANCEIRO NO BRASIL

    Como a assim chamada nova classe mdia a grande mudanasocial e econmica do Brasil na ltima dcada de crescimento econmico, dizer quem ela e o que ela deseja ou quer significa se apropriar do direito de interpretar a direo do capitalismo brasileiro no presente e no futuro. Isso no pouco. Nesse sentido,temos que deixar claro como o capitalismo financeiro e/ouflexvel penetra na sociedade brasileira, para alm de palavras de ordem abstratas e vazias de sentido como neoliberalismo. Ou se explica como esse neoliberalismo se apropria de prticasinstitucionais e sociais concretas com o fito de legitimar o acesso injustificadamente desigual a todos os bens e recursos escassos em disputa na sociedade, ou somos obrigados a perceber a repe-tio indefinida e oca desse bordo como um desservio de uma esquerda incapaz de imaginao e criatividade na crtica social. Uma pesquisa emprica crtica e bem conduzida serve justamentepara mostrar como regras e princpios sociais abstratos se tornam carne e osso, sofrimento e sonho de pessoas comuns que enfrentam dilemas cotidianos. desse modo que a cincia crtica pode redimensionar o debate na esfera pblica acerca de que tipo de vida coletiva queremos para ns mesmos. isso, ao fim e ao cabo, que est em jogo.

    No Brasil, um observador sagaz da penetrao da nova formade capitalismo que estamos discutindo neste livro RobertoGrn. Grn percebe, com argcia, que o predomnio da esfera financeira na sociedade brasileira envolve muito mais que ocontrole econmico da sociedade, ou melhor, percebe que o controle econmico pressupe o exerccio de uma dominao cultural e simblica que lhe concomitante. Mais uma vez e comosempre: a acumulao econmica exige sempre um esprito ou uma violncia simblica que a justifique. Desse modo, Grn tenta articular o conceito bourdiesiano de campo que pres-supe lutas por recursos escassos em todas as esferas sociais que,entretanto, no podem se mostrar enquanto lutas , de modo a perceber tanto a dominncia do setor financeiro na esfera da economia quanto sua preponderncia no campo maior da luta pelo poder poltico e social.

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    importante notar que grande parte desse jogo se exerce na esfera poltica confirmando que o campo financeiro uma parte importante talvez a mais importante do atual campo de poder brasileiro. Essa atuao se exerce no s nas aes e nas intervenes econmicas em sentido estrito, mas, especialmente,nas intervenes econmicas que funcionam como poltica natu-ralizada e imperceptvel enquanto tal. Ter a poltica como um pressuposto apenas implcito e opaco fundamental, j que o prprio processo de legitimao da atividade financeira implica no explicitar o contedo poltico, percebido como pejorativo, e se apresentar como senso comum da globalizao inevitvele da nova modernidade.18 Um exemplo interessante dessaestratgia, que envolve a possibilidade de ridicularizao do discurso do oponente, pode ser visto na derrota da tentativa de se estabelecerem limitaes atividade financeira, no incio do primeiro governo Lula, atravs da modernizao da lei da usura. A crtica foi to grande, sem que nenhuma voz se erguesse em sua defesa, seja para adapt-la ou melhor-la, que a tentativa foi logo silenciada.19

    Dois exemplos de Grn mostram a transformao, entre ns, de um possvel discurso sobre a realidade no nico discurso possvel, na medida em que se materializa como prtica concreta naturalizada deixando de necessitar de qualquer justificao. Esse ponto fundamental, pois a dominao social inconteste de uma viso de mundo exige a sua introjeo e in-corporao como algo natural e indiscutvel em todas as dimenses sociais. Oprimeiro exemplo mostra a penetrao da noo de governana corporativa entre ns, e o segundo, a justificao natural dos juros altos pela suposta corrupo generalizada no Brasil.

    O tema da governana corporativa significa a importao bem-sucedida entre ns de todo um conjunto de ideias e prticas sociais da produo flexvel e da organizao flexvel sobre asquais j discutimos anteriormente. O ponto a ser mais uma vez esclarecido aqui que se trata de algo fundamentalmente novo e que penetra todas as prticas institucionais e sociais. A importnciado capital financeiro enquanto oposto, por exemplo, ao capital industrial e comercial j havia sido sobejamente reconhecida por diversos autores desde o boom do capitalismo monopolistaa partir de finais do sculo XIX e comeo do sculo XX. Mas a lgica do capital financeiro ainda estava subordinada lgica

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    do capital industrial. Era o ritmo da fbrica fordista que determi-nava o tempo de valorizao do capital empregado. O giro do capital era determinado por uma mistura de compromisso e de luta entre o capital e seus prepostos incumbidos do controle e da vigilncia do trabalho, e o trabalho vivo.

    A dominao hodierna do capitalismo financeiro significa algomuito diferente. Todas as empresas e no apenas as fbricas antes fordistas refletem agora a dominao de um olhar panp-tico, um olho que tudo v, destinado a tornar possvel o controletotal da empresa sem ter que pagar os controladores que antes eram parte significativa dos custos de toda empresa. No apenas a produo flexvel, em que preponderam os trabalhadores diretamente produtivos tpicos do toyotismo, ou a organizao flexvel, na qual redes de comunicao pretendem substituir a organizao hierarquizada anterior, mas tambm instrumentos contbeis de todo tipo analisam agora a empresa de modo tal que a produtividade de cada trabalhador pode ser avaliada e julgada dispensvel ou no.

    Nesse capitalismo de novo tipo, todo o processo produtivo ficasubordinado a um novo ritmo prprio do capital financeiro que quer diminuir seu tempo de giro como uma estratgia central do novo processo de acumulao ampliada. Agora o prprio capitalfinanceiro que dita seu ritmo a todas as empresas em todos os ramos produtivos. Mas no apenas a acelerao do giro do capitalest em jogo. Tambm a disponibilidade (ou flexibilidade) de atuar em novos nichos de mercado, menores e mais restritos, satisfazendo e criando novas necessidades de consumo que so efmeras e passageiras. A superao do fordismo tambm repre-senta a superao do tipo de produo estandardizada, baseada na economia de escala da grande produo de relativamente poucos produtos.

    O novo capitalismo financeiro transforma essa realidadetambm. Passa a existir o culto ao produto desenhado para as necessidades do cliente e criam-se novos ramos de negciosanteriormente inexistentes. Passa a existir o culto ao moment-neo, ao passageiro, ao consumo instantneo, aos eventos de umdia ou poucas horas, com retorno rpido, que tambm obedecem lgica do aumento da velocidade de giro do capital. Shows de rock, feiras, negcios sazonais, revalorizao dos negcios fami-liares, roupas produzidas mo, revalorizao do artesanato, so

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    todas formas que se adaptam a uma nova estrutura produtiva quese constitui como nicho especfico, criando e atendendo a todo tipo de necessidade. Em grande medida, o pblico que entrevis-tamos se compe dessa nova dinmica do capitalismo.

    A instalao dessa lgica entre ns foi rpida e retumbante. O perodo de privatizaes de FHC repudiava todo tipo de inte-resse divergente penetrao sem peias dessa nova lgica como corporativo. tpico dos interesses que dominam pretenderem representar a universalidade, deixando os interesses dominados na dimenso do particular. Hoje, s se fala de empreendedo-rismo, como se todo mundo pudesse se tornar empresrio, e algum como Roberto Justus, que humilha e desrespeita os jovensque participam do programa de TV que ele dirige, eleito pelos jovens brasileiros como uma das figuras mais dignas de admira-o frente de Jesus Cristo e Lula.20 Como resultado de intenso trabalho de legitimao, a viso de mundo do novo capitalismo financeiro assimilada no apenas pelos setores no financeiros das elites, mas por amplos setores sociais em todas as classes.

    Mas o outro exemplo de Grn acerca da naturalizao dodomnio do capital financeiro entre ns ainda mais eloquente: as renitentes altas taxas de juro da sociedade brasileira. Como aqui se trata de uma apropriao do excedente produtivo por meia dzia de financistas em desfavor dos interesses da populaointeira, a questo interessante : como se legitima apropriao to desigual? A resposta de Grn toca num ponto extremamente interessante. Como existe um amplo consenso social acerca de uma suposta corrupo endmica brasileira, esse fato implicaria a necessidade de uma taxa extra de segurana para o capital emprestado.

    A pesquisa emprica inclusive a pesquisa emprica comparativa acerca da corrupo diferencial em cada sociedade particular extremamente difcil por razes bvias. Existe mais corrupo em Wall Street ou na Avenida Paulista? H alguns anos, nossos colonizados culturais no teriam nenhum pejo em dizer que no existe corrupo nos Estados Unidos, terra por excelncia da confiana mtua e das relaes transparentes. Afinal, a imagem idlica e fantasiosa desse pas o fundamento da (aparente)percepo crtica de todos os nossos liberais acerca do Brasil.21 A crise de 2008/2009 tornou essa fantasia insustentvel. Ainda assimela segue vivendo como que por inrcia. Existiu maior corrupo

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    na construo do metr carioca ou na reconstruo de Berlim? O conluio entre bancos, empreiteiras e polticos do CDU que regeram a cidade durante os anos de reconstruo foi fartamente documentado na imprensa e por documentrios muito benfeitos exibidos na TV pblica alternativa eis aqui uma diferena real e importante em relao sociedade brasileira , documentando o desvio sistemtico de bilhes de euros.

    Mas aqui a questo principal no a realidade do mundo, e sim a consumao de uma violncia simblica secular, internalizadacomo verdade evidente, como resultado de uma colonizaosimblica magistralmente realizada. O culturalismo, que sesegue imediatamente ao racismo cientfico como paradigma dominante da antropologia e da sociologia americana no sculo XX, implica a ideia de sociedades inteiras substancializadas e percebidas no todo como inteiramente confiveis nessepatamar s ficaria mesmo a prpria sociedade americana, segundotodos os tericos (coincidentemente quase todos americanos) da teoria da modernizao e outras sociedades, como a brasileira, por exemplo, inteiramente compostas de pessoas inconfiveis. A sociologia, a antropologia e a cincia poltica brasileira dominante,de Srgio Buarque a Roberto DaMatta, engoliram o opressor e apenas repetem esse discurso quase sem crticas at hoje sob formas variadas h dcadas.22

    Como as produes intelectuais e cientficas so, no mundo moderno, as herdeiras diretas do prestgio que, no passado, era monoplio das grandes religies, essas ideias saem das universi-dades e dos livros e vo marcar a prtica social dos formadores de opinio, dos polticos, dos empresrios, dos jornalistas e de todos aqueles que so responsveis pela autoimagem que uma sociedade tem de si prpria. Algum j parou para pensar na legitimao que esse tipo de preconceito que imagina candida-mente a existncia de sociedades perfeitas sem corrupo e que chegaram ao pice da virtude humana possibilita para todo tipo de troca desigual e monoplios de poder na arena das relaes internacionais? E para a apropriao do excedente de toda uma sociedade, como a brasileira, que acha justo e legtimo pagar um plus em juros escorchantes por conta de uma autoimagem que a condena como um todo? A meia dzia de financistas internacio-nais e nacionais que se locupletam com lucros fabulosos desse preconceito agradece penhoradamente inteligncia nacionalcolonizada.

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    UMA NOVA CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA?

    A articulao terica em conceitos abstratos sempre que possvel sem o jargo tcnico artificial e com uma linguagem acessvel ao maior nmero da penetrao do novo tipo de capitalismo financeiro e flexvel no Brasil uma tarefa prvia e fundamental para compreendermos os batalhadores brasileiros.Mas a outra ponta fundamental do trabalho de uma sociologia crtica do Brasil contemporneo o acesso emprico a dramas, angstias e sonhos dos prprios batalhadores. No existe teoria que substitua esse trabalho, sempre rduo e difcil, mas funda-mental. A relao entre empiria e teoria de dilogo constante e de aprendizado mtuo. A prpria empiria pelo menos aempiria crtica, que reflete sobre seus pressupostos j saturadade reflexo terica, e vice-versa. o esclarecimento terico que permite perceber a existncia de classes sociais como o maior segredo da dominao social no capitalismo.

    Como vimos, fala-se o tempo todo de classes sociais sem que se compreenda o que elas so. Classes sociais no so determinadas pela renda como para os liberais nem pelo simples lugar na produo como para o marxismo clssico , mas sim por uma viso de mundo prtica que se mostra em todos os comportamentos e atitudes como esclarecida, com exemplos concretos acessveis a todos, mais acima nesta intro-duo. Esse esclarecimento terico fundamental para que a dominao social de alguns poucos setores privilegiados, com acesso possibilidade de construir e utilizar para seus prprios fins a pauta das questes julgadas relevantes em cada poca e sociedade especfica, no distora os fatos de modo a legitimar os prprios privilgios.

    justamente a legitimao de privilgios inconfessveis que est em jogo na noo, hoje corrente entre ns, de nova classe mdia para os brasileiros batalhadores que examinamos. Trata-sede uma interpretao triunfalista que pretende esconder contra-dies e ambivalncias importantes da vida desses batalhadores brasileiros e veicular a noo de um capitalismo financeiro apenasbom e sem defeitos. A ideia que se quer veicular a de uma sociedade brasileira de novo tipo, a caminho do Primeiro Mundo,

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    posto que, como Alemanha, Estados Unidos ou Frana, passa a teruma classe mdia ampla como setor mais numeroso da sociedade.E isso como efeito automtico do mercado liberal desregulado. Essa concepo um produto direto da dominao financeira que fincou slida base no nosso pas nas ltimas dcadas e que quer interpretar os seus interesses particulares como interesses de todos. Se possvel, tenta-se tambm passar a ideia de que essa nova classe mdia produto apenas da poltica monetria e de privatizaes do governo de FHC.23

    Como a compreenso dessa classe em constituio est no centro do debate nacional e sua importncia s deve aumentar nos prximos anos, a importncia poltica desse debate bvia. Tambm o marxismo, e no apenas nossos liberais-conservadores,tem extraordinria dificuldade de compreender a nova classe quese constitui entre ns. O problema dos marxistas com a anlise do novo capitalismo o seu apego afetivo que impede um olhar mais atento ao novo mundo que se cria sob os nossos olhos a conceitos de uma poca que no existe mais, como o de proletariado tradicional. Como o proletariado industrial do capitalismo competitivo e fordista era a classe da mudana social e a da iniciativa poltica, romper com esse esquema tradicional significa tambm a ferida narcsica de perder as iluses consti-tutivas da prpria personalidade desse tipo de intelectual. Nossa pesquisa pretende oferecer uma alternativa a esses dois modelos opostos: tanto o apologtico-liberal quanto o de uma esquerda nostlgica que se recusa a se confrontar com uma realidade nova e complexa.

    O que percebemos na pesquisa que o leitor ir ler nos cap-tulos seguintes que a realidade cotidiana dessa classe, ou seja, sua viso de mundo prtica que se materializa em aes, reaes, disposies de comportamento e, de resto, em todo tipo de atitude cotidiana concreta consciente ou inconsciente no tem a ver com o que se entende por classe mdia, na tradio sociolgica, em nenhum sentido importante. Ainda que classe mdia seja um conceito vago (e, exatamente por conta disso, excelente para todo tipo de iluso e de violncia simblica que se passa por cincia), ela implica, em todos os casos, um componente expressivo importante, e, consequentemente, umapreocupao com a distino social, ou seja, com um estilo devida em todas as dimenses que permita afast-la dos setores

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    populares e aproxim-la das classes dominantes. Aqui no setrata de renda, j que efetivamente pode-se ter uma renda rela-tivamente alta e uma conduo de vida tpica das classes populares.Associar classe renda falar de classes, esquecendo-se de todo oprocesso de transmisso afetiva e emocional de valores, processoinvisvel, visto que se d na socializao familiar, que constri indivduos com capacidades muito distintas, como vimos mais acima. Mas por conta desse tipo de pseudocincia que associa classe a renda, uma associao que mais encobre que explica, que possvel falar-se de nova classe mdia sem a cerimnia que se fala no Brasil.

    O fato que acreditamos estar diante de um fenmeno social e poltico novo e muito pouco compreendido, pelos motivos j explicitados, seja pelos conservadores, seja at pelos mais crticosentre ns: o da constituio no de uma nova classe mdia, mas sim de uma nova classe trabalhadora no nosso pas, nas ltimas dcadas. Essa nova classe trabalhadora convive com o antigo proletariado fordista ou com o que restou dele , posto que o fordismo no acabou, e grande parte da produo demercadorias e de acumulao de capital ainda realizada na tpicaforma fordista de controle do trabalho. Ainda que o fordismo notenha acabado e possua uma existncia paralela nova classe trabalhadora que se constitui, houve uma diminuio sensvel do nmero de trabalhadores nesse setor,24 que no pode apenas ser creditada a ganhos em produtividade e inovao tecnolgica.

    Mas as virtualidades do novo tipo de capitalismo, as quais discutimos em detalhe anteriormente, atingiram em cheio asclasses populares brasileiras. No setor mais precarizado, que, como j dito, chamamos em outro livro provocativamente de ral, houve um aprofundamento de sua prpria precarizao que relativa e comparativa em relao s classes logo acima , que polticas sociais bem intencionadas como o Bol