15
Revista de Letras Dom Alberto Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012 Página119 SOZINHO, QUE SENTIU BLOOM? MELANCOLIA EM ULISSES, DE JAMES JOYCE ___________________________________________________________________ Girvâni Seitel 1 RESUMO Publicado em 1922, o romance Ulisses, de James Joyce, se insere ao rol das obras literárias canonizadas pela literatura universal. Aproveitando as considerações de Sigmud Freud acerca da melancolia (1974), de Marshall Berman sobre a modernidade (1986) e de Zygmunt Bauman com “vida líquida” (2009), o estudo reflete sobre a personagem protagonista da narrativa, Leopold Bloom, que faz da sua trajetória de um dia por Dublin um momento de reflexão acerca da sua existência. Em seu itinerário, a dualidade vida/morte assume relevância para que se compreenda a melancolia do sujeito moderno quando este se questiona sobre o seu estar-no-mundo. Palavras-chave: Romance. Ulisses. Melancolia. ABSTRACT Published in 1922, the novel Ulisses, by James Joyce, falls to the list of literary works by canonized literature. Taking advantage of the considerations about the melancholy Sigmud Freud (1974), Marshall Berman on modernity (1986) and Zygmunt Bauman to "liquid life" (2009), the study reflects on the character of the narrative protagonist, Leopold Bloom, who is the trajectory of a Dublin day for a moment of reflection about their existence. In his journey, the duality life / death is relevant to understanding the gloom of the modern subject when it is questioned about his being-in-world. Keywords: Novel. Ulisses. Melancholy. INTRODUÇÃO O tema da viagem é sobremaneira intenso na literatura grega. Na Odisseia de Homero, o retorno de Ulisses a Ítaca é exemplar por revelar um herói que rivaliza com manifestações adversas da natureza, e não apenas a natureza exterior, mas também com sua natureza interior. O herói homérico sobrevive ao canto das sereias, pois sabe reprimir seus desejos por meio de um sacrifício contínuo. James Joyce é considerado o pai da ficção moderna. Sua obra serviu de inspiração para muitos escritores que tentaram afastar-se da narrativa tradicional, pois o autor 1 Mestrando em Letras. Área de Concentração Literatura Comparada. Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI. Campus de Frederico Westphalen RS. E-mail: [email protected]

SOZINHO, QUE SENTIU BLOOM? ULISSES - domalberto.edu.br · MELANCOLIA EM ULISSES, ... Para a personagem, sentir é também ver, pois são atos indissociáveis. Leopold Bloom sente

  • Upload
    vanbao

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

19

SOZINHO, QUE SENTIU BLOOM? MELANCOLIA EM ULISSES, DE JAMES JOYCE

___________________________________________________________________

Girvâni Seitel1

RESUMO Publicado em 1922, o romance Ulisses, de James Joyce, se insere ao rol das obras literárias canonizadas pela literatura universal. Aproveitando as considerações de Sigmud Freud acerca da melancolia (1974), de Marshall Berman sobre a modernidade (1986) e de Zygmunt Bauman com “vida líquida” (2009), o estudo reflete sobre a personagem protagonista da narrativa, Leopold Bloom, que faz da sua trajetória de um dia por Dublin um momento de reflexão acerca da sua existência. Em seu itinerário, a dualidade vida/morte assume relevância para que se compreenda a melancolia do sujeito moderno quando este se questiona sobre o seu estar-no-mundo.

Palavras-chave: Romance. Ulisses. Melancolia.

ABSTRACT Published in 1922, the novel Ulisses, by James Joyce, falls to the list of literary works by canonized literature. Taking advantage of the considerations about the melancholy Sigmud Freud (1974), Marshall Berman on modernity (1986) and Zygmunt Bauman to "liquid life" (2009), the study reflects on the character of the narrative protagonist, Leopold Bloom, who is the trajectory of a Dublin day for a moment of reflection about their existence. In his journey, the duality life / death is relevant to understanding the gloom of the modern subject when it is questioned about his being-in-world.

Keywords: Novel. Ulisses. Melancholy.

INTRODUÇÃO

O tema da viagem é sobremaneira intenso na literatura grega. Na Odisseia de

Homero, o retorno de Ulisses a Ítaca é exemplar por revelar um herói que rivaliza com

manifestações adversas da natureza, e não apenas a natureza exterior, mas também com

sua natureza interior. O herói homérico sobrevive ao canto das sereias, pois sabe

reprimir seus desejos por meio de um sacrifício contínuo.

James Joyce é considerado o pai da ficção moderna. Sua obra serviu de inspiração

para muitos escritores que tentaram afastar-se da narrativa tradicional, pois o autor

1 Mestrando em Letras. Área de Concentração Literatura Comparada. Universidade Regional Integrada do Alto

Uruguai e das Missões – URI. Campus de Frederico Westphalen – RS. E-mail: [email protected]

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

20

inova no que tange à linguagem e às técnicas formais da prosa de ficção. Ulisses (1922) é

vista como a epopeia do homem moderno. Permeado por uma prosa inovadora e

audaciosa, a obra descortina aos olhos do leitor muitas áreas do conhecimento humano,

como filosofia, religião, ciências naturais e médicas, psicologia, política, sociologia,

economia, jornalismo, publicidade, literatura e artes plásticas.

Na literatura ocidental, o tema da “viagem de Ulisses” é retomado pela tradição

literária após a Odisseia, seja para confirmar o ideal do herói nostálgico, seja para

representar o afã do retorno à pátria. Nesse sentido, o romance Ulisses, do escritor

irlandês James Joyce, configura como uma ficção literária considerada uma das maiores

expressões do modernismo e da literatura universal. Considerada como uma espécie de

epopeia do homem moderno, a volumosa obra, que toma por base a Odisseia de Homero,

narra o caminho traçado por Leopold Bloom num dia comum, 16 de junho de 1904, em

Dublin, na Irlanda.

O romance de James Joyce pode ser lido de um viés que revele elementos que

corroboram para que se tenha uma representação dos sintomas de Leopold Bloom em

sua viagem de um dia por Dublin até retornar à sua casa, à noite, completando seu

itinerário. Como sintomas, pode-se elencar os anseios, as dúvidas, o medo, a ironia, o

prazer, a euforia e o desencantamento do mundo. Estes sintomas são próprios do sujeito

que se quer total, inteiriço, mas que sente seu universo fragmentado e artificial,

mimetizando os sintomas da personagem. O artigo tem por objetivo detectar no

romance Ulisses elementos voltados à melancolia do sujeito moderno.

SOZINHO, O QUE SENTIU BLOOM?

O aumento da densidade demográfica não é proporcional ao aumento da

densidade psicológica. Nas ruas das grandes cidades, os olhares perderam a serenidade

de observar as pessoas e a realidade com profundidade. Para o sujeito moderno, a

velocidade faz das cenas do cotidiano um imenso outdoor, uma grande e interligada

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

21

imagem de um quebra-cabeça que passa aos olhos do transeunte moderno tão

rapidamente como se ele estivesse olhando da janela de um metrô.

No coração da cidade, os dramas diários daqueles que procuram soluções para

seus desacertos impõem ao sujeito o esfacelamento de toda e qualquer certeza diante de

uma realidade precária. Na modernidade, o sujeito transita pelos espaços da cidade

envolto pela multidão e, à medida que o tempo passa, a euforia dá lugar ao

desencantamento do mundo. Nessa direção, Ulisses é tecido sobre a tábua rasa de uma

natureza cosmopolita, em que o autor se presta a observar e a escrever sobre a condição

humana na esfera da modernidade, que é uma experiência vital através do tempo e

espaço e que sugere possibilidades e oferece perigos (BERMAN, 1986, p. 15). Mas esta

experiência é, no entender de Marshall Berman (1986), paradoxal, pois “despeja a todos

num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de

ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15), o que caracteriza sujeitos descentrados

e, consequentemente, melancólicos.

No campo das artes, a melancolia já foi representada de várias maneiras:

pinturas, esculturas, obras literárias. Há um quadro intitulado Melancolia I, do alemão

Albrecht Dürer (1741-1528). Matos toma por base esta obra de arte para descrever o

estado melancólico do sujeito moderno.

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

22

Dürer, Melancolia I

Em sua mirada crítica, Olgária Matos descreve a obra de Dürer. Para a autora, a

Melancolia é alada.

Está agachada em uma laje de pedra de um edifício cuja construção ficou inacabada. Situa-se em um ponto frio e solitário, não longe do oceano, fracamente iluminada pela luz do luar. Está acompanhada por um Eros moroso instalado em uma pedra afiada e abandonada. Ela rabisca qualquer coisa em uma lousa, perto de um cão arrepiado e maltratado. Está proscrita em uma inação melancólica: negligente no vestir, cabelos em desalinho, descansa a cabeça na mão e com a outra segura mecanicamente um compasso, seu braço apoiado em um livro fechado. Seus olhos estão erguidos, seu olhar é desperto, sombrio, fixo. O estado de espírito de seu gênio infeliz se reflete na quantidade de objetos em desordem. (...) a Melancolia está plenamente acordada, com o olhar fixo em busca desejada mas infrutífera. É inativa não por preguiça, mas porque o trabalho perdeu o sentido: sua energia está paralisada não pelo sono, mas pelo pensamento. A melancolia não é, deste ponto de vista, somente um caso mental, mas um ser pensante em perplexidade (MATOS, 1987, p. 151).

A descrição pretendida por Matos (1987) substantiva a racionalidade que conduz

o sujeito na sociedade moderna. Ela é a centelha para que possamos jogar luz sobre a

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

23

personagem Leopold Bloom em sua trajetória melancólica por Dublin, no curso de um

dia.

No romance, esta experiência paradoxal é marcada quando Leopold Bloom revela

visão melancólica, às vezes irônica, dos acontecimentos que fazem parte da constelação

da modernidade. Um desses acontecimentos é a morte. No pensamento da personagem,

a ideia de morte acompanha seu itinerário pela urbe. Enquanto o sacerdote reza em

frente ao caixão fúnebre, o diálogo entre personagens caracteriza a incerteza e a

precariedade que caracteriza o sujeito moderno perante à ideia de algo além desta vida

terrena: “In paradisum. Disse que ele está para ir para o paraíso ou está no paraíso. Diz

isso para cada um. Espécie de trabalho mais para o cansativo. Mas ele tem de dizer

alguma coisa” (JOYCE, 1983, p. 105).

Vida. Morte. “Em meio à morte estamos com vida. Os extremos se tocam” (JOYCE,

1983, p. 51). Esta dualidade vem ao encontro das palavras de Zygmunt Bauman (2009),

que expressa que viver numa sociedade líquida-moderna é estar envolvido no bojo das

relações que oscilam sob o signo da incerteza e da precariedade. Tudo é precário e

incerto, e, nesta esteira, a fragmentação das relações humanas é reflexo de uma

modernidade em que o equilíbrio não é satisfatório. Assim, ninguém melhor que a figura

de Leopold Bloom para representar o arquétipo desse sujeito descentrado que busca um

sentido para seu estar-no-mundo.

Os questionamentos de Leopold Bloom acerca da existência mostram que ele não

é inteiriço como o Ulisses de Homero. A personagem de James Joyce é fragmentada em

sua subjetividade. No romance, não mais há mais aquele abrigo comum da epopeia, para

onde o herói retornava após suas andanças e lutas; não há mais aquele “lar” para

resgatar o sentido da sua vida e restauração da sua existência. Se na epopeia o herói

homérico enfrenta as sereias e figuras míticas, o sujeito Bloom transita por sua cidade

em que os elementos da modernidade se apresentam aos seus olhos. “Sozinho, que

sentiu Bloom” (JOYCE, 1983, p. 657), interroga o narrador? Como resposta, o narrador

ordena, ironicamente, elementos próprios de uma modernidade precária e oscilante.

Para a personagem, sentir é também ver, pois são atos indissociáveis. Leopold Bloom

sente e vê:

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

24

Música, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituição, dieta, a influência da luz de gás ou luz de arco ou lâmpada de filamento no crescimento de árvores para-heliotrópicas adjacentes, latas de lixo de emergência da prefeitura expostas, a igreja católica romana, o celibato eclesiástico, a nação irlandesa, educação jesuítica, carreiras (...) (JOYCE, 1983, p. 619).

A justaposição dos elementos postos em tela configura como integrantes de um

mundo moderno fragmentado, em que tudo é visto de maneira caleidoscópica pela

personagem. Ao passo que Ulisses homérico transita por um mundo em que o objeto da

representação é o passado absoluto dos deuses e dos heróis, o herói moderno, Leopold

Bloom, faz suas andanças num tempo transitório, em que não é dado ao homem da

modernidade líquida mais crer na ideia da eternidade. Na “vida líquida” (BAUMAN,

2009), a infinitude é a regra, é ela o tempo ao qual o sujeito deve render-se. Infinitude é

o tempo presente protelado, esticado. Segundo Bauman, “o dia de hoje pode-se esticar

para além de qualquer limite e acomodar tudo aquilo que um dia se almejou vivenciar

apenas na plenitude do tempo” (BAUMAN, 2009, p. 14-15).

Nesse sentido, ao ter-se conhecimento da “caminhada” da personagem joyceana

pela capital irlandesa, o que fica é essa sensação de eventos que se repetem no curso do

tempo. A “vida líquida” da personagem é uma sucessão de reinícios. A esta altura, já é

possível perguntar onde teria ocorrido a perda de Leopold Bloom? O que perdeu o

sujeito que circula pela escritura das páginas do romance? Lendo a narrativa, percebe-se

que suas perdas são interiores, e que se avolumam e ganham forma em seu pensamento.

A personagem sofreu perdas consideráveis: a morte de seu amigo Paddy Dignam e a

explícita rejeição da mulher.

Matos expressa que a “viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a

humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto

à sociedade, da auto-repressão ao autodesenvolvimento” (MATOS, 1987, p. 145). O herói

homérico é a figuração do sujeito que busca uma vida independente das vicissitudes do

acaso e das tentações do cotidiano. O traçado oscilante da longa viagem feita por Ulisses

para chegar a Ítaca traz outra marca, além da cicatriz que Odisseu busca esconder dos

que lhe recebem: a do reencontro e do reconhecimento, que advém da volta à pátria, o

nostos.

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

25

Nostos vem do grego, e significa decorrente do regresso, do retorno, vontade de

retornar (MIRANDA, 2003, p. 49). O Ulisses homérico sente uma vontade demasiada

grande e profunda em regressar para junto dos seus entes queridos. Corajoso e astuto,

ele enfrenta as inúmeras adversidades da natureza e provações postas pelos deuses. Já

Leopold Bloom, com seu nostos - retorno para sua casa -, demarca o território da

observação e da linguagem no que tange a suas múltiplas referências de suas sensações

e impressões sobre a urbe moderna.

Leopold Bloom faz da sua trajetória pela cidade moderna um momento de

reflexão acerca da sua existência. Em seus pensamentos, a dualidade vida/morte revela

o descentramento do sujeito moderno, que faz das interrogações um modo de

questionar o sentido da vida e também da morte: “E o que é a morte, a de sua mãe ou a

sua ou a minha? (...) Eu as vejo cada dia na Mater ou em Richmond pipocar e na sala de

dissecção pôr as tripas à mostra. É uma coisa animal e nada mais (JOYCE, 1983, p. 11).

No diálogo com seu amigo, logo ao principiar da sua odisseia, Leopold Bloom comenta

sobre a morte de sua mãe. A morte é um enigma aos olhos da personagem – E o que é a

morte? – ressoa sua voz na narrativa.

As indagações da personagem protagonista vêm ao encontro do exposto por

Sigmund Freud em Luto e melancolia (1974). Segundo ele, os dois termos mostram que a

melancolia trata de uma reação à perda de um objeto querido. O melancólico denota um

sentimento doloroso, associado à indiferença em relação ao mundo e ao retraimento do

eu. No pensamento de Leopold Bloom, a morte “tudo vê”, é ela que o investiga através

dos olhos do morto, à espreita:

Seus olhos perscrutadores, fixando-se-me da morte, para sacudir e dobrar minha. alma. Em mim somente. O Círio dos mortos a alumiar sua agonia. Lume agonizante sobre face torturada. Seu áspero respirar ruidoso estertorando-se de horror, enquanto todos rezavam aos seus pés. Seus olhos sobre mim para redobrar-me (JOYCE, 1983, p. 13).

Enquanto Leopold Bloom e seus amigos observam o ritual de encomendação da

alma de Dignam – Et ne nos inducas in tentationem – feito pelo sacerdote da igreja, o

narrador tece digressões sobre a morte que ocupa o corpo do ser humano. A morte, na

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

26

visão da personagem, habita o homem, nasce com ele e o acompanha durante sua

existência. Irônico, à beira do túmulo, a personagem divaga:

Teu coração talvez mas que é que vale para o sujeito entre quatro tábuas comendo margaridas pela raiz? Não tocante isso. Sede das afeições. Coração partido. Uma bomba ao cabo de tudo, bombeando milhares de galões de sangue todo dia (JOYCE, 1983, p. 106-7).

Nesta passagem, de linguagem imagética, o coração é comparado a uma máquina

– uma bomba ao cabo de tudo – que, “um belo dia ela se entope e eis tudo. Porções deles

jazendo aí em redor: pulmões, corações, fígados. Velhas bombas enferrujadas: tudo mais

é uma história” (JOYCE, 1983, p. 106-7). A melancolia toma ares de ironia, pois o

narrador põe em xeque a aura de esperança que a todos encobre. Esta atitude condiz à

raiz do romance moderno, em que narrar requer uma atitude irônica diante do efêmero

e do contraditório.

A ressurreição e a vida. Uma vez que estás morto, estás morto. Essa ideia do juízo final. Pipocando todos de suas tumbas. Levanta-te, Lázaro! E ele chegou em quinto e perdeu o lugar. Levanta! Dia final! Então cada gajo a esquadrinhar em torno por seu fígado e por seus olhómetros e pelo resto de sua traquitanda (JOYCE, 1983, p. 107).

Em Leopold Bloom a elaboração da perda não se completa, pois o sujeito

melancólico não sabe exatamente o que se perdeu, o que sugere que “a melancolia está

de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência” (FREUD,

1974, p. 168), o que pode ser uma pessoa amada, um ideal, um sonho ou até mesmo a

pátria.

Na narrativa, lê-se que Leopold Bloom perdeu um amigo. E, olhando o corpo do

amigo depositado no caixão, desabafa “Pobre Dignam! Seu último jazer sobre a terra na

sua caixa. (...) Bem, é um longo repouso. Não sentir mais. É no momento que se sente.

Deve ser infernalmente desagradável” (JOYCE, 1983, p. 111) Não mais sentir, não mais

ver. Melancolicamente, o narrador afirma que não há redenção na morte: “Não se pode

crer no início” (JOYCE, 1983, p. 111), não há reinício, só fim, pois como escreveu Freud,

“o objetivo de toda a vida é a morte” (FREUD, 1976, p. 56).

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

27

No romance, a matéria-prima em que se prende à escritura se origina das pulsões

de que trata Freud no texto Além do princípio do prazer (1976), em que Eros (pulsões de

vida) e Thanatos (pulsões de morte) denotam a dualidade originada de uma escrita

altamente imagética que compõe o romance. Em Ulisses é notório a relação das pulsões

vida/morte. Nesta relação, Thanatos sobressai nos movimentos cíclicos do dia. Mas,

mesmo sabendo que a morte é a única certeza que guia o homem no curso da existência,

no romance a perda não é reconhecida. Há uma identificação do ego com algo que se

perdeu no curso do tempo, do qual fala Freud, e assim, “devido ao processo de

identificação do ego com o objeto perdido, no caso da melancolia, a perda objetal é

equivalente a uma perda do próprio ego” (FREUD, 1974, p. 166).

Descentrado e tomado de desalento, Leopold Bloom lamenta que não pode crer

mais nos reinícios que o cotidiano da vida moderna enseja. E sendo a morte a única

certeza, a personagem quer dela fugir, esconder-se: “Se nos tornássemos todos de

repente outros quaisquer” (JOYCE, 1983, p. 111), enfatiza. Isto corrobora com que Freud

destacou em Reflexão para os tempos de guerra e morte (1996), ao escrever que “no

fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira,

que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”

(FREUD, 1996, p. 299).

No romance joyceano é possível notar a presença de um sentimento em forma de

alegoria, em que Eros e Thanatos, forças antagônicas, duelam no embate psicológico que

emana do discurso da obra. Esse “descobrir” da dualidade denota que as pulsões

freudianas de morte e de vida se relacionam através do pensamento de Leopold Bloom

ao refletir a respeito da vida e da morte. A passagem: “se nos tornássemos todos de

repente outros quaisquer” (JOYCE, 1983, p. 111) caracteriza o desânimo e baixa estima

da personagem, atitudes que são próprias do sujeito melancólico (FREUD, 1974, p. 166).

Alternando ironia com uma capacidade de compaixão, o narrador sente que sair

da vida para entrar na morte é somente uma mudança de lugar, nada mais:

Estamos rezando agora pelo repouso de sua alma. Desejando que sejas eterno e não no inferno. Bela mudança de clima. Da frigideira da vida para o fogo do purgatório. (...) A terra caía mais leve. Começa a ser esquecido. Longe dos olhos, longe do coração (JOYCE, 1983, p. 111).

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

28

Em outra passagem do romance, o sentimento de perda é combatido com uma

ácida ironia. O narrador busca suavizar a aura de melancolia que encobre o momento

funesto. Em tom sarcástico, ele comenta que “os mortos mesmos, pelo menos os homens,

gostariam de ouvir uma piada salgada ou as mulheres de saber qual é a moda. (...)

Precisa-se de rir por vezes, assim é melhor fazê-lo dessa forma” (JOYCE, 1983, p. 110).

Na epopeia de Homero há sempre a ânsia do retorno, daí a jornada arquetípica

feita por Ulisses para retornar a sua Ítaca. Na terceira parte da Odisseia, denominada

Nostos, lê-se um sentimento de nostalgia pela terra adorada. No romance também há um

capítulo denominado Nostos, que caracteriza o desejo de regresso e corresponde a um

desejo erotizado, pleno de Eros, o qual conduz a energia da vontade de vida, da ação de ir

ao encontro de si mesmo (MIRANDA, 2003).

A representação no romance de James Joyce contempla o mito do eterno retorno,

do qual fala Mircea Eliade (1985). Neste mito, o tempo cósmico é cíclico, pura repetição,

o eterno retorno, que vem do sujeito arcaico e se revela, substantivamente, no sujeito

moderno. A trajetória de Leopold Bloom em seu nostos é própria do sujeito moderno que

não encontra repouso em si mesmo, e suas andanças são simbólicas, pois revelam “como

o fim está no início e o início no fim; ou de como uma aventura – por exemplo, a vida – é

um ciclo, isto é, algo que se desdobra formando como um roteiro em círculo que se

fecha” (HOUAISS, 2005, p. 60). O Ulisses de James Joyce caminha sobre um terreno

pantanoso que é o chão da modernidade, em que a personagem oscila entre

contradições extremas e limites, demarcando seu descentramento.

Ao teorizar a respeito da obra romanesca, Mikhail Bakhtin fala sobre o tema

interior do romance, que é a “inadequação de um personagem ao seu destino e à sua

situação” (BAKHTIN, 1998, p. 425). Leopold Bloom não consegue se adequar ao seu

destino. Para o Ulisses de Homero, a melancolia traz em seu âmago a nostalgia em

retornar à sua cidade. E para sanar a saudade só há um remédio: Ítaca (MATOS, 1987, p.

154). Já para Leopold Bloom, o retorno à sua casa caracteriza a perda de algo

inominável, daí sua reflexão sobre a existência, o que substantiva, sobremaneira, seu

estado melancólico.

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

29

A personagem sente que algo mudou. “O que poderia mudar num ser humano

num curto espaço de tempo de um dia?” Perguntar-se-á o leitor. Sim, mudam as pessoas,

haja vista que a ciclicidade do Cosmos e a velocidade do tempo demarcam relações que

ocasionam perdas, rupturas e fragmentações, não só nos relacionamentos, mas também

na própria concepção de tempo que os homens fazem desta convenção.

Num corte temporal, Leopold Bloom reflete acerca das suas perdas. Estando em

casa depois da jornada por Dublin, a personagem se sente um “homem-criança cansado,

o criança-homem no ventre” (JOYCE, 1983, p. 762). Deitado, seu corpo interioriza a

experiência da morte. Ele vê Paddy Digman, como se a imagem do amigo morto estivesse

registrada na retina dos seus olhos.

O nostos de Leopold Bloom deixou uma cicatriz diferente que aquela que o Ulisses

homérico escondeu ao retornar a Ítaca. A cicatriz de Leopold Bloom é o corte na alma.

Em pensamento, ele contabiliza todos que com ele convivem: Jack Power (na cama),

Simon Dedalus (na cama), Ned Lambert (na cama), Tom Kernan (na cama), Joe Hynes

(na cama), John Henry Menton (na cama) [...], Paddy Dignam (no túmulo)” (JOYCE, 1983,

p. 729). O reconhecimento de que Paddy só pode ser reavivado na memória, desenovela

a melancolia, pondo a personagem a repensar a “cota” da vida diária, contada minuto a

minuto.

Descentrado, Leopold Bloom busca reconstruir sua personalidade num mundo

desfigurado. Sente “a necessidade da ordem, um lugar para cada coisa e cada coisa no

seu lugar” (JOYCE, 1983, p. 662). A personagem necessita que as coisas e humanos em

seu entorno estejam ordenadas. Contudo, a órbita desordenada do mundo moderno

impossibilita ao herói a relação de completude com ele mesmo e com a natureza, pois

não tem consciência do abandono pelos deuses, nem do caráter ínfimo da vida cotidiana

na urbe moderna.

Em seu retorno para casa, Leopold Bloom não teve espaço e tempo para feitos

grandiosos, posto que o descentramento do sujeito moderno resume-se na aporia da

individualização. A leitura de Ulisses de um ângulo que revele o descentramento de

Leopold Bloom e, consequentemente, sua melancolia, revela que o heroísmo moderno

advém da busca pela sobrevivência numa constante situação de conflito interior. Ulisses

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

30

instaura a anulação das distâncias entre o fato narrado e sua verossimilhança. Tem-se,

pois, como enfatiza Bakhtin, a destruição da distância épica, em que o objeto da

representação artística se dá ao nível de uma realidade imediata, inacabada e fluída

(BAKHTIN, 1998), em que o processo de evolução do romance não está concluído, pois é

esta a sensação que se tem ao ler a narrativa.

O filósofo Heráclito de Éfeso, pré-socrático da Grécia, comentou em certa

explanação que ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso

acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já são outras. Leopold Bloom, em

seu nostos, não é mais o mesmo dentro do movimento cíclico do universo moderno, pois

sua viagem de apenas um dia refez a jornada que o homem faz em si mesmo para

encontrar respostas para seu “inacabamento” como ser pensante. Viajar, sair, retornar a

si mesmo: condição primeira do sujeito para encontrar respostas para os enigmas da

existência. Ainda que Leopold Bloom faça da sua viagem por Dublin uma jornada de

reconhecimento, ao final da peregrinação descobre que o homem nunca consegue fugir

de si mesmo, pois “quando você pensa que está escapando você volta para si mesmo”

(JOYCE, 1983, p. 413).

Ao cabo da odisseia do herói moderno, mister esclarecer que a melancolia que

caracteriza a personagem protagonista se dá através da linguagem. É pela e através da

linguagem e pelo pensamento que o sentido de perda se instaura em sua existência. O

sentido de perda vai além do corpóreo, não é possível tocar, sentir. A trajetória de

Leopold Bloom é a representação do sujeito descentrado, que sente que a unicidade não

é mais possível e o descentramento é a regra.

Leopold Bloom faz do seu itinerário pela metrópole uma constante interpretação

da vida, buscando, assim, explicações para seu estar-no-mundo. Partir, sim, retornar

sempre, pois “em meio à morte estamos com vida. Os extremos se tocam” (JOYCE, 1983,

p. 109), sentencia o narrador. Leopold Bloom expressa sua melancolia em linguagem,

denotando um estado de contemplação, de perplexidade (indagações, questionamentos,

reflexões) diante da realidade contingente. Esta questão joga luz sobre aquilo que

Bakhtin expressou ao se reportar ao romance, em que um dos “principais temas

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

31

interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu

destino e à sua situação” (BAKHTIN, 1998, p. 425).

A representação dos traços da melancolia de Leopold Bloom é própria da

personagem romanesca, que não é unívoco e imutável como o herói epopeico, que

partindo do pensar seu conflito com o universo que o cerca, redimensiona sobremaneira

sua subjetividade através de pensamentos e palavras diante do seu estar-no-mundo. A

melancolia da personagem reveste-se de um sentido metafísico, cujas reflexões sobre a

existência deságuam na ideia da morte.

Em Ulisses vislumbra-se que vida e texto literário são o locus onde o homem se

encena consciente ou não da sua cisão com o mundo, deixando-se sempre habitar pela

linguagem da narrativa. O texto joyceano é o lugar onde o sujeito moderno se inscreve e

se escreve. A personagem Leopold Bloom causa a impressão enigmática, pois seu

trânsito por Dublin não permite esclarecer claramente o que o absorve tão

intensamente, se é a melancolia resultante do seu desencantamento com a órbita

ambígua da modernidade ou se é tão somente aquilo próximo da limitação da

possibilidade de ação dentro de um cosmos (des)ordenado, o qual Bauman descreve

como sendo a “vida líquida”.

Assim, o cotidiano da moderna líquida oferece elementos que fazem surgir a

ansiedade e o tédio existencial, fazendo com que o sujeito experimente sensações que o

colocam frente a frente com os dilemas da existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a leitura de Ulisses percebe-se que é através da linguagem que as

personagens saem de si para encontrar no outro a experiência melancólica que é o estar-

no-mundo. – O que sentiu Bloom? – ressoa a voz ao final da narrativa. E a indagação se

dirige ao próprio leitor do romance, o qual viveu com Leopold Bloom a odisseia e que no

final do livro (final da página da vida?) sai da linguagem pictórica impressa na branca

página para retornar a si mesmo.

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

32

Fechar o livro é abrir a possibilidade de outra odisseia. E se o leitor entrou na

porta da frente do romance pensando que sairia igual após a viagem da leitura, está

enganado. Ao ler-se o texto joyceano, ninguém sai sem uma marca particular: a cicatriz

deixada pela linguagem e subjetividade do romance.

O homem que transita nas páginas de Ulisses desconhece a totalidade do mundo

grego. Não há a certeza do absoluto, do amanhã, há apenas a melancólica constatação

que o homem de ciência, como constata o narrador: “como o homem da rua tem de

enfrentar factos obstinazes que não podem ser escamoteados e de explicá-los como

melhor possa. Pode aí haver, é verdade, algumas questões a que a ciência não saiba

responder - no presente” (JOYCE, 1983, p. 415).

Grosso modo, a racionalidade técnica e a evolução dos aparatos tecnológico-

científicos não oferecem explicações convincentes e confortantes acerca da constituição

do sujeito moderno. Contudo, acompanhar a trajetória do Odisseu de James Joyce na

modernidade, marcada pela sucessão de reinícios diários, é compreender que a “vida

líquida” é uma incógnita, onde “o fim chega de súbito” (JOYCE, 1983, p. 419).

Acredita-se que ao lançar mão da melancolia em Ulisses, o tema em tela não esteja

explorado totalmente. Mas, o caminho optado pode ser produtivo para a compreensão

de um dos muitos ângulos que a leitura do romance possibilita.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance). In: _____. Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. BAUMAN, Zygmut. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. 2. ed. Rio de janeiro: Zahar, 2009. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70, 1985.

Revista de Letras Dom Alberto

Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012

Pág

ina1

33

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: _____. Obras completas. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Livro 11 – Metapsicologia. ______ . Além do princípio de prazer. (1920) In: ___. Além do princípio de prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V. XVIII. ______ . Reflexão para os tempos de guerra e morte. In: _____. Edição Standard das obras completas de Sigmund Freud. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. v. XIV. HOMERO. Odisseia (em forma de narrativa). Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. HOUAISS, Antonio. Ulisses – de James Joyce. In: SEIXAS, Heloisa (org.). As obras-primas que poucos leram. (v. 1). Rio de Janeiro: Record, 2005. JOYCE, James. Ulisses. Trad. António Houaiss. 2. ed. 1983. Difel – Difusão Editorial By Civilização brasileira S. A. e António Houaiss (versão digital). 737 p. MATOS, Olgária. A melancolia de Ulisses: a dialética do iluminismo e o canto das sereias. In: CARDOSO, Sérgio et al. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. MIRANDA, Lenir de. Nostos: a nostalgia de todos nós. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2003. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/12130. Acesso em: 20 jun. 2012.

Artigo aceito em julho/2012.