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STEFANIE LIZ POLIDORO PÍLULA DA VISIBILIDADE: MARIA SCARIOT PRESENTE! O PROCESSO CRIATIVO E FEMINISTA DE DUE LATI DELLA CAMPANA Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestra, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade. Orientação: Profa. Dra Maria Brígida de Miranda. FLORIANÓPOLIS SC 2016

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STEFANIE LIZ POLIDORO

PÍLULA DA VISIBILIDADE: MARIA SCARIOT PRESENTE!

O PROCESSO CRIATIVO E FEMINISTA DE DUE LATI DELLA CAMPANA

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestra, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.

Orientação: Profa. Dra Maria Brígida de Miranda.

FLORIANÓPOLIS – SC

2016

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P766p

Polidoro, Stefanie Liz

Pílula da visibilidade: Maria Scariot presente!: o

processo criativo e feminista de Due Lati della Campana /

Stefanie Liz Polidoro. - 2016.

249 p. il.; 21 cm

Orientadora: Maria Brígida de Miranda

Bibliografia: p. 203-210

Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa

Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em

Teatro, Florianópolis, 2016.

1. Teatro – Séc. XX. 2. Teatro feminista. 3. Criação. I. Miranda, Maria Brígida de. II. Universidade do Estado de

Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. III.

Título.

CDD: 792.0904 – 20.ed.

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Dedico este trabalho à minha mãe, Cleusa, meu primeiro exemplo de mulher e incansável guerreira; às minha avós Laurinda (in memorian) e Talita, por me ensinarem desde criança sobre o amor à vida; à Maria Scariot, a mulher desta viagem; e a todas as mulheres que perseveram por um mundo justo e mais acolhedor.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha mãe, Cleusa, por em incentivar desde sempre no mundo das artes, e por me ensinar os primeiros pensamentos feministas, mesmo sem considera-los assim. Agradeço ao meu avô Agostinho por toda a disponibilidade, carinho, e paciência dedicada a mim e ao meu trabalho. Sem ele este trabalho não teria sido possível. Muito obrigada, nono! Um imenso obrigada à Isaura Scariot e à Tia Aurora, que se colocaram à disposição para falar sobre a vida de Maria Scariot, e que me receberam tão bem durante as visitas. Espero que vocês gostem do resultado... Ao Márcio Ramos, amigo, colega, irmão de escolha, que aceitou o convite para participar do processo do Due Lati della Campana, abraçando-o com o amor e generosidade ímpar; Ao Rafael Salib, pelo amor, companheirismo, pelas conversas e discussões sobre minha pesquisa, e por contribuir com a trilha do espetáculo; À Carine Panigaz, pela amizade e pelo figurino maravilhoso confeccionado a custo irrisório. À Maria Brígida de Miranda, minha orientadora, que me guiou durante toda a pesquisa, escutando, lendo e aconselhando com simplicidade e sabedoria. (Só ela poderia ser minha orientadora. Muito obrigada!!!); À minha banca de qualificação e defesa Daiane Dordette, Luciana Lyra e Sandra Meyer; Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Teatro, a todos os funcionários e professores que estiveram comigo ao longo da jornada; em especial à linha Linguagens Cênica, Corpo e Subjetividade, por receber e incentivar propostas de pesquisas como a minha.

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A todos meus colegas e amigos do mestrado, pelas trocas e discussões ao longo dos dois anos. Aprendi demais com vocês; Ao Jura Mendes, Matheus Vinicius e Nando Freitas, que foram além de colegas e amigos, meus portos-seguros em Florianópolis. Ao Teatro do Encontro e ao Teatro Moinho da Estação, por disponibilizarem espaços para nossos ensaios; Ao Hi Hostel Barra da Lagoa, por me abrigar durante o mestrado com zelo e carinho. Aos meus amigos queridos Adriana Marchiori, Andre Elias, Camila Tomazoni Macarini, Fabíola Papini, Marcelo Santos, Sissa Marin, Vinícius Meneguzzi, pela amizade, pelas cervejas e pelo incentivo de sempre. Agradeço a bolsa CAPES, que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa.

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Ressurreição

Manhã Não mais madrugada Esplendor de manhã plena Em que o corpo ressurge Parindo o espírito A maçã que se parte Qual útero cósmico Pela primeira vez Liberta o espírito Preso nas trevas do desencontro E o espírito se faz corpo E pela primeira vez O sol vermelho do corpo Explode num canto de liberdade.

(Rose Maria Muraro)

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RESUMO

Maria admirava-se ao espelho. Do ângulo onde eu estava não conseguia enxerga-la, então me posicionei ao lado. Ao buscar seus olhos deparei-me com os meus: nossos reflexos fundiram-se e eu me vi Maria...e eu me vi, Maria. A presente dissertação é resultado da pesquisa acerca do processo criativo do espetáculo Due Lati della Campana, que teve como premissa a busca por uma abordagem feminista em sua concepção, e como referência para criação o método devised theatre. A pesquisa inicia com o resgate da história de Maria Scariot, tataravó da pesquisadora, aparentemente invisibilizada por parte de sua família devido a algumas condutas “não-normativas” em relação à sua época. No decorrer deste processo, são apresentadas reflexões e novas formulações feitas pelos integrantes do projeto acerca das discussões propostas, referentes ao feminismo. Ao final, são tecidas ponderações acerca do material criado, culminando com a elaboração do texto dramático do espetáculo.

Palavras-chave: Teatro Feminista; Processo de Criação Cênica; Texto Performativo; Maria Scariot.

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ABSTRACT

Maria was admiring herself in the mirror. I could not see her from where I was, so I changed my position. In seeking her eyes I came across my: our reflexes merged and I found myself Maria... and I found myself, Maria. This dissertation is the result of a research into the creative process of the theater play Due Lati della Campana, which had as its premise the search for a feminist approach in its conception, and the devised theater as a reference for its creating method. The research begins with the rescue of the story of Maria Scariot, researcher’s great-grandmother, apparently invisibly by her family due to some "non-normative" behaviors regarding their time. Throughout this process, we present reflections and new formulations made by the project members about the proposed discussions related to feminism. Finally, considerations are presented about the created material, culminating in the preparation of the dramatic text of this theater play.

Keywords: Feminist Theatre; Scenic Creation Process; Performative Text; Maria Scariot.

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SUMÁRIO

Introdução 19

x .1 Da Estrutura....................................................22 x .2 Da escrita .......................................................26

x.3 Do gostar de escutar .......................................29 x.4 De bailarina e coroinha, à atriz e feminista......30 x.5 Do primeiro trabalho biográfico feminino.........34 x.6 Deste trabalho..................................................38 x.7 Da (In)visibilidade.............................................39 x.8 Pílula da Visibilidade: Maria Scariot presente!.41

1 O espelho de Vênus – Buscando Maria Scariot 45 1.1 Eu refletindo a imagem da outra........................45 1.2 Maria, a mulher invisível....................................56

1.2.1 Descobrindo Maria Scariot .......................56 1.3 Descobrindo Eu – Maria.....................................61 1.3.1 Quem somos?............................................61 1.4 Maria do ventre livre!..........................................69 1.5 Eu – Maria: Aportar e parir.................................71 1.6 Nós- Maria..........................................................80

1.6.1 Os retratos borrados.................................80 1.6.2 Maria Scariot por Aurora, sua filha............85

2 Dos Caminhos que percorremos – nossos estímulos..................................................................93

2.1 AUFLÖSUNG – A morte não como um fim.........93 2.2 Sonhando com os pés no chão...e descalços....96 2.3 Os cafés de Stefanislávski e Martchenko..........101

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2.4 “Um cafezinho antes do ensaio é muito bom pra ficar pensando melhor”............................................105 2.5 Construindo as carapaças no brechó...............109 2.6 A segunda pele, o figurino................................113 2.7 Músicas para Maria danças..............................123 2.8 A luz em Maria Scariot......................................135 3 Bordando a história no tecido branco: O que levo para mim de Due lati della Campana.................................................................141

3.1 Das laterais do pano ao desenho: optar para ser livre...ser livre para criar (Aquecimento e momento de pré-cena) ................................................................141 3.2 A cena do baile: bordar sem saber aonde vai...(Improvisações)...............................................153 3.3 Quantas cruzes são necessárias para compor um bordado?(repetições) .............................................161

3.3.1 Sentindo o peso do corpo: na academia de ginástica............................................................162 3.3.2 Sentindo o peso do corpo: nas práticas com Márcio...............................................................163

3.4 Organizando o enxoval: juntar as partes para construir uma dramaturgia.....................................169

3.4.1 O caleidoscópio: uma forma de vencer o cansaço.............................................................170

3.5 Expondo o enxoval............................................173 3.5.1 Chegou a quinta-feira...............................179 3.5.2 Chegou a sexta-feira................................183

4 Um ponto sem nó: impressões que ficam até aqui ......................................................................195

Referências ...........................................................203 Apêndice - Due lati della Campana (Texto)........201

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 – Tefa Polidoro em (E)terno...........................37

Figura 2 – Toalete de Vênus ........................................49

Figura 3 – Pergaminho de Caxias do Sul.....................55

Figura 4 - Ilustração de Helena Zelic para divulgação da IV Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres.........................................................................60

Figura 5 – Tefa Polidoro em Eu-Mulher.........................74

Figura 6 – Tefa Polidoro em Da Imigração ...................78

Figura 7 – Tefa Polidoro em Do Parto...........................79

Figura 8 - Registro da I Turma da Cruz Vermelha de Caxias do Sul ...............................................................85

Figura 9 – Tia Aurora e meu avô Agostinho ................92

Figura10 – Alessandra Belloni tocando pizzica...........100

Figura 11 – Stefanislavski e Martchenko ...................101

Figura 12 – Figurino – a segunda pele .......................122

Figura 13 - Márcio Ramos e Tefa Polidoro em Cena do Baile.............................................................................139

Figura 14 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro na cena A Doma da Donna..........................................................140

Figura 15 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro Preparando o pano para ser bordado................................................150

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Figura 16 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro Preparando a terra para o plantil.......................................................151

Figura 17 – “Pra viajar no cosmos não precisa gasolina”......................................................................153

Figura 18 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro em Cena do Baile ...........................................................................159

Figura 19 - Tefa Polidoro em “No rastro da lua cheia se chega em qualquer lugar!”(Almir Sater) .....................................................................................160

Figura 20 - Tefa Polidoro e Márcio Ramos na Cena do Baile antes da parada.................................................167

Figura 21 - Tefa Polidoro e Márcio Ramos na Cena do baile depois da parada................................................168

Figura 22 - Ela rezava muito ......................................190

Figura 23 – Monumento ao Imigrante ........................194

Figura 24 – O pano cai desvelando-me .....................201

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O Silêncio é o que tememos.

Há um Resgate na Voz –

Mas Silêncio é Infinidade.

Não tem sequer uma Face.

(Emily Dickinson)

INTRODUÇÃO – SAUDAÇÃO

Olá...

.

.

(Silêncio constrangedor)

Tenho a impressão de que não nos conhecemos........................................mas se você está aqui é porque temos algo em comum... alguma busca em comum .....Estou certa?...

.

.

Hoje está frio, né? Ouvi na rádio hoje que os termômetros estão marcando 5 graus.......................O cheiro da comida que fiz no almoço ainda não saiu da casa, porque não tenho coragem de abrir as janelas.......Veja!!! Os vidros

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estão todos embaçados...(Escrevo com meu dedo na janela “Please Read the Letter”, música do Robert Plant que estou escutando no momento )...

.

Bem, a verdade é que são tantas coisas a dizer e não sei por onde começar.............................. Ah, sim....talvez me apresentando: meu nome é Stefanie, mas pode me chamar de Tefa. Prazer em recebe-la em minha casa.

.

Antes de continuarmos, acredito que seja importante colocar algumas regras e avisos para esta visita:

1) Embora eu relate uma metodologia de trabalho cênico autoral, esta dissertação não deve ser vista como um manual, ou uma fórmula para desenvolvimento de espetáculos, pois refere-se ao processo único de criação do Due Lati della Campana;

2) Este trabalho não tem caráter de manual, como uma fórmula para a construção de um processo criativo, mas relatos, indagações e reflexões acerca da poética do espetáculo Due Lati della Campana, da Cia Sopro, que dialogam com o método de criação Devised Theatre.

3) Os diálogos mostrados nas próximas páginas versam entre transcrições de conversas e entrevistas gravadas/ escritas, memórias pessoais de conversas vivenciadas, organizadas por mim para inserir no texto, e

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criações/invenções a partir do meu imaginário. Cada trecho corresponderá a uma das cores acima (roxo, vermelho e verde) para designar a natureza do diálogo.

4) A escolha pelo formato de escrita do presente trabalho foi inspirado em quatro escritoras feministas de épocas diferentes: Luciana Lyra, atriz, encenadora e pesquisadora, pelo o caráter performativo da tese Guerreiras e Heroínas em Performance: Da Artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas (2011); Rose Maria Muraro, escritora e economista, por sua forma subjetiva e indireta de comunicar no livro Memórias de Uma Mulher Impossível (2000); Betty Friedan, escritora e ativista feminista, pelo protagonismo que dedica às mulheres estadunidenses e ao ambiente privado da década de 1960, na obra A Mística feminina (1963); e Emily Dickinson, poetiza estadunidense do século XIX, pela maneira friccionada com que tecia suas poesias, como cartas ficcionais, nas quais criava ilusões sobre vivências pessoais...quem lê Dickinson percebe a escritora e as personagens, mas não sabe dizer o que é invenção e o que é acontecimento real.

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x.1 Da estrutura...

A partir do slogan criado por Carol Hanisch “O pessoal é político1”, que demarcou a segunda onda do feminismo estadunidense, proponho nesta dissertação uma investigação acerca do processo de criação cênica e dramatúrgica, buscando como mote histórias pessoais de mulheres. Due Lati della Campana é um espetáculo feminista criado no processo de ensaio Devised Theatre por mim, com a colaboração de Márcio Ramos, colega da Cia Sopro de Teatro2, e Gabriela Viana, minha aluna. Foi concebido a partir dos relatos, histórias, e registros fotográficos de Maria Scariot, minha tataravó materna.

O trabalho está estruturado em três partes:

1 - O ESPELHO DE VÊNUS - Buscando Maria Scariot

Neste capítulo elaboro a argumentação do trabalho, mostrando os motivos que me fizeram tratar da vida de Maria Scariot como mote para criação dramatúrgica e cênica de Due lati della campana. Entrevistas, pesquisas em acervos pessoais, e

1 HANISCH, Carol. The personal is political, disponível em

http://carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html. Acessado em: 28 de agosto de 2015. 2 A Cia Sopro de Teatro, de Caxias do Sul, foi criada pelo ator

Márcio Ramos e por mim, no ano de 2010. Em seu repertório constam os espetáculos (E)terno (2010 – contemplado com o Prêmio de Incentivo à Montagem Teatral) , O Fauno (2011- contemplado com o Financiarte de Montagem, e 4 anos depois com o Financiarte de Circulação) , e Os por fora da cousa (2012 – contemplado com o Prêmio de Incentivo à Montagem Teatral).

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visitas a arquivos históricos foram os principais meios utilizados para reconstruir a história de minha tataravó. Inicio com a reflexão proposta pelo filósofo Antonio Quinet, em sua obra Um olhar a mais (2002), referente ao olhar do observador sobre o Outro acabar contribuindo para a criação de si mesmo. Se olho para Maria Scariot e tento conhece-la, preenchendo as lacunas que me faltam para construí-la, é porque nela também posso me ver, e neste sentido se falo dela, também posso estar falando de mim. Uma mulher pode ser capaz de contar histórias de várias mulheres.

2 - DOS CAMINHOS QUE PERCORREMOS – Processo de construção do espetáculo Due Lati della Campana

Neste capítulo abordarei o contexto que a equipe do espetáculo Due Lati della Campana criou para desenvolver o processo de elaboração de cena e dramaturgia, passando da morte à hora do cafezinho. Tudo era importante para nós.

Inspirados nas práticas colaborativas do devised theatre, buscamos desenvolver no trabalho uma metodologia para criação de ideias, figurinos, cenário, trilha sonora, objetos de cena, sonoplastia e iluminação. Conforme as palavras de Alison Oddey no livro Devising Theater (1994)3,

3 Devised Theatre can start from anything. It is determined and

defined by a group of people who set up an initial framework or structure to explore and experiment with ideas, images, concepts, themes, or specific stimuli that might include music, text, objects, paintings, or movement. (Tradução minha)

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“O Devised Theatre pode começar do nada. Ele é determinado e definido por um grupo de pessoas que estabelece um quadro inicial ou estrutura a ser explorada e experimentada com idéias, imagens, conceitos, temas ou estímulos específicos que podem incluir música, texto, objetos, quadros ou movimento.” (ODDEY, 1994, p.1)

Segundo Priscila Mesquita (2012), o termo devised theatre não possui uma tradução exata, sendo utilizada a forma de denominar tal método como “teatro feito” ou “teatro colaborativo” – embora seja possível a formulação de materiais artísticos individuais com este método. Ainda segundo Mesquita (2012), esta forma de trabalho foi utilizada por grupos de teatro feministas, desde mais ou menos a década de 1970, que por escassez de textos que abordassem suas demandas de lutas e ativismo, começaram a pesquisar maneiras de criação cênica e escritas próprias.

Com base na ideia de um “teatro feito”, uma série de estímulos foram lançados por nós sobre nós mesmos, artistas-criadores, e a partir de nossa relação com eles e entre nós, vários materiais foram construídos. Alguns utilizados, outros modificados, tantos outros apenas abandonados. Criar, pegar, transformar e desapegar, a sequência de ações que sintetiza este capítulo.

3 BORDANDO A HISTÓRIA NO TECIDO BRANCO – O que levo para mim de Due lati della Campana

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Neste capítulo descrevo as etapas do processo criativo de Due Lati della Campana, enfatizando nos aprendizados que tive durante o desenvolvimento do espetáculo e nas reflexões feitas durante a escrita desta dissertação. Como aporte teórico optei pela obra Memórias de uma Mulher Impossível (1999), da economista e feminista brasileira Rose Maria Muraro, devido à leitura que a autora faz sobre a importância da subjetividade feminina nas produções acadêmicas, como busca de desmistificar a ilusão de controle total sobre o que está sendo tratado, que a forma objetiva de escrita (que segundo a autora, é característica da abordagem masculina) oferece. Nas palavras de Rose Maria Muraro:

Por isso acho que a obra objetiva em geral, feita pelos homens, vai contra a realidade, que é ordem e desordem. É uma tentativa de dominação. A física, a matemática e as ciências, com a sua “objetividade”, enquanto não incorporarem o irracional, são a própria trama do poder. (MURARO, 1999, p 361)

Para tanto, dividi o relato do meu processo criativo em 4 etapas, fazendo analogia às etapas ou características dos bordados, que aprendi em convívio com minhas avós, Laura e Talita. A escolha por esta analogia deu-se como uma forma de reverenciar os trabalhos manuais artísticos que ao longo da história, assim como a história das mulheres, ficaram encerrados no ambiente privado, sendo invisibilizados ou considerados menores em relação à arte inserida em âmbito público, produzida predominantemente por homens. Segundo a

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pedagoga e teóloga Edla Eggert, na obra Narrar processos: tramas da violência doméstica e possibilidades para a Educação (2009):

Os processos de trabalho manual são trazidos de geração a geração e fazem parte do mundo das mulheres. Podem ser rechaçados, por serem entendidos como a representação da submissão e da opressão, mas podem ser vistos de outro modo: como uma nova possibilidade de pensar e agir, trazendo à um conhecimento silenciado, que foi construído pelas mulheres. (EGGERT, 2009, p. 68).

Atrelar a prática teatral à prática do bordado foi uma estratégia pensada para tratar de ambas com um mesmo nível de importância e significância, no que refere ao emprego da subjetividade e da criatividade, tanto da bordadeira quanto da atriz sobre seus trabalhos.

x.2 Da escrita...

Desde o período inicial de escrita deste trabalho Brígida, minha orientadora, chamava minha atenção sobre a forma sisuda e “quadrada” de me

comunicar:

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Brígida – Tua escrita está

muito formal, te vejo pouco

nela. Pensa em dizer as coisas

de maneiras mais circulares. A

estrutura de escrita acadêmica

é patriarcal, é quadrada,

pensa em curvas. Mais do que

as informações eu quero saber

dos caminhos que te levaram

até os acontecimentos, o que

deu errado me interessa tanto

quanto o que deu certo. Tu é

feminista. Mostra teu

protagonismo, te coloca mais.

Circulaaaaaaar...oooooondas...cuuuuuuurvas............estas palavras me

acompanharam durante todo o processo de escrita.

Colocar-me mais em meu próprio texto. Logo

eu que já me sentia tão posicionada, tão decidida, tão dona de mim. Palavras interessantíssimas que me fizeram perceber o quanto acho que consigo demais no meu cotidiano. No fundo, parece que tanta luta às vezes me faz aceitar o mínimo: “ainda é

pouco, mas já foi pior”. Não pode ser pouco, tem que ser igual. Esse foi um dos desafios na

minha escrita, colocar-me nela, e deixar

Transbordaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

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o caos dos meus pensamentos. Meus registros, minhas formulações, os processos de uma mulher acadêmica e artista.

Para esta dissertação, então, optei por escrever de uma forma romanceada, tornando ficção minhas próprias vivências, buscando referência na escrita da poetiza estadunidense do século XIX Emily Dickinson, e sua forma de abordar suas cartas pessoais como poesias, e suas poesias como desabafos de sua vida pessoal, levando o seu pessoal feminino para a esfera social. A poetiza portuguesa Ana Luiza Amaral, em sua tese intitulada Emily Dickinson: uma poética de excesso (1995, p.52), fala que “aspectos da sua vida apresentam-se como textos; as cartas que deixa, a sua mais importante ligação ao mundo, são também expressão poética, de tal forma que é difícil decidir se as devemos considerar textos poéticos”. Segundo Ana Luiza Amaral, Dickinson utilizava como metáfora de sua escrita a figura da circunferência, como um ato de ampliar o discurso de um ponto de vista para vários pontos, sem um centro delimitado ou um ponto de chegada:

Viciosamente fechado, o trajecto contido na circunferência é também infinito de possibilidades. Permitindo isolar do mundo exterior, a linha que compõe a circunferência é também a que com esse mundo efectua a tangencia, única multiplicidade de pontos por onde é possível o acesso. [...] Com "circunferência" não pretendia Dickinson definir a movimentação da escrita num espaço

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fechado e contido, mas trabalhar (oficiar) na margem (ou nas margens), na linha sugestiva da experiência-extrema, na linha em que, de forma paradoxal, limite e acesso se entrecruzam sinonimicamente. Numa linha de geométrica parcimónia e excessivos sentidos, onde os limites, sendo transportados para a sua fronteira mais longínqua e incomportável, se transformam em excesso. (AMARAL, 1995, p.82)

Assim como Dickinson, estou eu pensando em círculos,

ciclos, ciclones... girando junto com eles.

x.3 Do gostar de escutar...

Fui uma criança que odiava brincar de bonecas, e constantemente era contrariada ao me reunir com as amigas para passar as tardes. Sempre preferi jogos como “pega-pega”, “esconde-esconde”, “encenar músicas”, “criar histórias”, e principalmente “escutar histórias com meu avô”, atividades que instigassem mais ao movimento e à criação do que a reprodução de algo real. Dos 03 anos aos 19 dediquei-me ao ballet, e dos 04 aos 16 anos também a aulas de piano e violão. Lembro-me de passar tardes chuvosas.... dançando... cantando...e escutando os causo de meu avô, imaginando como era sua vida no campo, prestando atenção a cada novo detalhe das histórias já conhecidas, sempre

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acompanhadas pelo cheiro de café-da-tarde preparado pela minha avó, e da cortina branca a qual eu firmava meus olhos para me concentrar e imaginar todas as cenas com a maior precisão possível. Esta busca minuciosa por construir as cenas em meu imaginário me causava a sensação de ter vivido cada história tanto quanto meu avô. Era como se eu fosse personagem daquelas histórias, daquele tempo passado que eu não conheci. Percebo neste momento da infância meu primeiro interesse por escutar histórias devido à possibilidade de criação e ludicidade que elas me ofereciam. Hoje acrescento a esta minha vontade a percepção sobre o potencial de conhecimento, valorização e a formulação histórica sobre pessoas comuns como meu avô, minhas tias, minha avó, minha mãe. Histórias que me compõem, que

também podem ser eu. A minha história.

x.4 De bailarina e coroinha, à atriz e feminista...

Minha família é católica e bastante praticante. Cresci em meio a rezas, novenas, grupos de liturgia, procissões, levando e recebendo a capelinha de Nossa Senhora de Lourdes na casa dos vizinhos, e frequentando a igreja com meu avô. Até coroinha da igreja eu já fui. Certo dia, eu tinha 12 anos e estava com minha mãe na missa, e percebi que a maioria dos fiéis levantou para comungar, menos minha mãe. Cochichei em seu ouvido:

Tefa – Mãe, tu não vai comungar?

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Cleusa - Eu não posso comungar

porque sou separada e hoje tenho um namorado.

Tefa - Separada? Tu foi

abandonada pelo teu marido quando eu tinha 04 meses. Não foi tu quem decidiu se separar, foi ele, e ele nem te avisou.

Aquela situação me deixou muito revoltada, e me fez refletir sobre os sermões que escutava naquela mesma igreja, sobre “a mulher ter o dever de cumprir seu papel de mãe e ser fiel ao marido”. Ela era, ainda é, uma excelente mãe, cuidou de uma filha sozinha, sem receber qualquer auxílio do ex-marido, e mesmo assim não era digna de comungar porque estava com outro companheiro. Percebi que o assunto não se referia à mulher enquanto mãe, mas enquanto esposa.

Depois daquele episódio, aos poucos fui me afastando da igreja, mesmo com resistência da

família. Comecei a indagar constantemente minha mãe, minha avó, e principalmente meu avô, sobre os ensinamentos de deus, e suas respostas já não me satisfaziam mais.

Comecei a duvidar de quase tudo o que eles falavam. As perguntas começaram

a minar minha cabeça. Minha vida como um todo parecia não fazer sentido. Provavelmente essa “descrença de tudo” também

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tivesse a ver com a fase em que vivia, saindo da infância e adentrando a juventude, mas vejo este momento de transição como parte fundamental da minha trajetória, e que em muito contribuiu para que me tornasse

alguém questionadora. Comecei a odiar a disciplina rígida do ballet clássico, principalmente no que dizia respeito ao controle do peso corporal; aos 15 anos passei a me envolver com o movimento punk; aos 16 anos me vinculei à UCES (União Caxiense dos Estudantes Secundaristas), e neste mesmo período comecei a me interessar por

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teatro. No teatro sentia as

pessoas mais livres, mais contestadoras e irreverentes do que no ballet clássico. Eram mais

divertidas também. Como bailarina, me

sentia como uma ferramenta utilizada para compor ideias da diretora, da ensaiadora, não me sentia alguém com voz para dialogar. Comecei a me desinteressar pela dança e me aproximar cada vez mais do teatro. Aos 17 ingressei na faculdade de História da UCS (Universidade de Caxias do Sul), participando de duas gestões do DCE e duas gestões do DA de História. Nestes movimentos estudantis,

tanto a UCES, quanto DCE e DA, tínhamos a preocupação de trabalhar questões relacionadas a gênero e etnias, e agregar representantes destas pautas nos grupos, como forma de pensar a participação efetiva da diversidade nestes ambientes de luta e reinvindicação. A partir daí me a-pai-xo-nei pelo assunto do feminismo, e participei de alguns grupos como Mulheres do DCE, Mulheres do DA de História, e Grupo de Discussão de Gênero da

História. Aos 19 anos abandonei de vez o

ballet clássico e me envolvi por inteira ao Teatro. Aos 20 anos, prestes a me graduar, abandonei também o curso de História, e iniciei minha graduação em Teatro, na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), mas sempre mantendo minha

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proximidade com os movimentos e as pautas das mulheres.

x.5 Do primeiro trabalho biográfico feminino...

Par meu trabalho de conclusão de curso decidi que gostaria de arriscar um espetáculo solo, a partir da história de alguma mulher, e investigar o feminismo em cena. Pensei em Medeia, Antígona, e Cassandra, mitos que havia me interessado durante a graduação. Porém, certo dia, jantando com minha mãe, começamos a conversar sobre minha infância, e sobre como a vida havia sido difícil para ela enquanto mulher e mãe sozinha. Escrevo sozinha e não solteira porque quando meu pai decidiu ir embora, sem avisá-la, eles já eram casados havia 04 anos. Eu tinha recém feito 04 meses. Minha mãe o aguardou até meus quatro anos com a aliança no dedo, sem receber qualquer notícia sobre ele. Conta ela que, no dia 01 de janeiro de 1990 recebeu uma ligação no escritório em que trabalhava. Era uma voz de mulher.

Voz ao telefone – Alô, eu gostaria de falar com a Cleusa.

Mãe – É ela.

Voz ao telefone – Você é a mulher de Carlos Polidoro?

Mãe – Sim.... sou a esposa

dele. Quem é? Aconteceu alguma coisa?

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Voz ao telefone – Então...quem fala é a sogra dele.

(Ao escutar a palavra ‘sogra’ ficou um pouco confusa, remetendo-se rapidamente à sua mãe. Mas a voz era tão diferente...)

Mãe – Mãe? ................É a senhora?

Voz ao telefone – Não, é a mãe da outra esposa dele. Ele casou com minha filha e eles já têm um menino aqui. Ele comentou que tinha uma mulher e uma filha no sul e quis me certificar.

Mãe – No sul? Mas onde ele está agora?

Voz ao telefone – Eles moram em Mato Grosso do Sul.

.

.

. (Seus olhos fitam o ponto mais distante da cozinha. Serve outra taça de vinho, olha pra mim e diz)

Mãe- Foi aí que entendi que eu

estava de fato sozinha. (Pausa. Toma

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um gole de vinho). O pior era escutar que tu não era filha do teu pai, e que por isso ele havia ido embora. Ouvi

também que ele havia fugido porque eu não

queria cozinhar pra ele.

- Ah, a culpa do abandono dele era tua?

- Sim, segundo parte da família e algumas vizinhas sim.

Neste momento tive vontade de trabalhar sobre a história de minha mãe, uma heroína tão mitológica quanto Afrodite. Achei

que outras pessoas podiam conhecer sua vida, outras mulheres - talvez reconhecer-se nela – e viver um pouco dos percalços pelos quais passou por ser mulher...

.

Foi a partir dessa ideia que o espetáculo (E)terno4 surgiu.

4 (E)terno foi contemplado no Prêmio de Incentivo à Montagem

Teatral no ano de 2010, em Caxias do Sul/RS. Durante os anos que seguiram, participou de festivais como XVI Caxias em Cena e Mostra de Teatro Daqui, ambos na cidade de Caxias do Sul, e do projeto Tem Cultura na Casa, na cidade de Alvorada. No ano de 2011 esteve em temporada durante o mês de setembro na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, rendendo a indicação de Melhor Atriz à Tefa Polidoro no Prêmio Açorianos de Teatro 2011. Para assistir ao espetáculo, segue o link https://www.youtube.com/watch?v=4DGqjJkaC3s.

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Figura 1 – Tefa Polidoro em (E)terno.

Registro de Márcio Ramos (2010)

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x.6 Deste trabalho...

Para meu trabalho de mestrado, tive vontade de continuar investigando sobre histórias biográficas de mulheres e a partir delas construir dramaturgias e espetáculos. Percebi a partir de (E)terno, o trabalho que desenvolvi na minha graduação, que o teatro poderia ser um meio bastante eficaz para visibilizar e questionar algumas visões a respeito de mulheres rechaçadas ou escondidas por interesses quaisquer: ou porque mancharam a história de alguma família, ou porque não contribuíram para a formação cultural ou financeira de algum local, ou porque destoram de alguma realidade vigente. Ou simplesmente por serem mulheres.

As mulheres passaram a ser incorporadas como parte dos estudos historiográficos, sociológicos e antropológicos apenas no século XX, a partir dos estudos familiares, sobre as relações parentais e a organização do lar - ou seja, as condições da mulher ainda estavam atreladas às condições do homem. Nas palavras da historiadora Cleci Eulália Favero

(...) o que se vê, na realidade, são histórias individuais – e masculinas, naturalmente. Quando falam as (poucas) mulheres, a referência são os homens (pai, irmãos, maridos,

filhos). (FAVERO, 2007, p.12) Desta forma, a legitimação social da mulher

não contou tanto com o auxílio da ciência, como buscou respaldo principalmente nos movimentos feministas ao longo do século XX, que segundo a

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historiadora Michelle Perrot (1995, p.10), no artigo Escrever uma História de Mulheres, suscitaram novas reflexões acerca de seus assuntos: "Verdadeiro movimento social em virtude da sua amplitude, ele não se preocupou inicialmente em escrever a história das mulheres, embora obtivesse efeitos quase imediatos nesse sentido".

Desta forma, acredito que seja de suma importância a participação das mulheres na comunidade acadêmica, tanto como proponentes de pesquisas quanto sujeitas que contribuem para estes estudos, como forma de legitimá-las num ambiente historicamente considerado masculino.

Mulheres da educação formal e informal, unamo-nos.

x.7 Da (in)visibilidade

Na obra Os estabelecidos e os outsiders

(2000), Norbert Elias e John Scotson apresentam estudos acerca da comunidade Wiston Parva, nos arredores de Londres, problematizando a questão de sua notória divisão social. Segundo eles, tal cisão acontecia em virtude de um grupo de pessoas estabelecido na localidade há mais tempo - os estabelecidos - que se conheciam há 2 ou 3 gerações, e que atribuíam adjetivações inferiores aos grupos novos que se avizinhavam – os outsiders. O alto grau de concordância e familiaridade entre os estabelecidos gerava exclusão e preconceito sobre os outsiders. Segundo os autores,

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A exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade. (ELIAS; SCOTSON 2000, p. 22).

A estigmatização e o preconceito, neste caso,

serviam como ferramentas para o enfraquecimento da identidade do grupo outsider, pois anulavam suas características mais subjetivas.

Pensando nos estabelecidos como indivíduos pertencentes a um grupo dominante, e os outsiders como os excluídos, aqueles que fogem às normas estabelecidas pelo grupo dominador, percebo a relação da visibilidade e da invisibilidade social.

A visibilidade está ligada aquilo ou àquele que percebo, que reconheço, e que de alguma forma julgo semelhante a mim, ou igual. Ao tornar visível aquele que me contempla, eu acabo tornando-me visível também. Em contraponto, a situação de não me reconhecer no outro, por não considerar um par meu, pode gerar o preconceito, a exclusão, a invisibilidade. Segundo a psicanalista Maria Lenz Cesar Kemper, “O excluído é invisível, está no âmbito do que não é inscrito ou representá- vel.” (KEMPER, 2013, p.108). O ato de invisibilizar pode ser visto como uma tática utilizada para o fortalecimento dos estabelecidos, porque ao tornar inexistente o que não os representam, exaltam a hegemonia de suas próprias normas, de sua identidade, daquilo que são. Eles existem, e o que difere não.

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x.8 Pílula da Visibilidade: Maria Scariot presente!

...E Maria Scariot aparece...

Não que ela tivesse se escondido... É que do ângulo onde eu estava posicionada não conseguia enxergá-la.

Coloquei-me mais ao lado....................................................................Lá estava ela...

(Pausa. Aperto os olhos para focar melhor a visão)

Acho que era ela, mas estava tão longe......... Sua

silhueta quase me parecia definida, sua altura, sua maneira de andar e

parar,mas o tamanho de seu nariz, a cor de seus lábios, suas

marcas de nascença, se roía unhas como eu ou não, qual era seu perfume, sua voz, como seus olhos enxergavam o mundo ...Estes detalhes, que a faziam única, eu mesma tive que inventar. Meu mundo criando o mundo de Maria para finalmente um dia conhece-la. Certa feita, no salão da igreja lá na Bocca da Serra, um baile inventado por mim acontecia. Foi quando vi Maria de perto pela primeira vez. Ela me olhou por um instante, acenou com a cabeça e virou de costas. Continuei a olhar. Novamente ela olhou para trás, franzindo a sobrancelha, como se não estivesse entendendo minha insistência. Ela largou a taça de vinho em cima da mesa, pegou sua carteira e dirigiu-se até mim. Eu, enquanto isso, servi uma taça de underberg e acendi um cigarro. Estava nervosa com o que aconteceria a seguir. Ela chegou, escorando-se na

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cadeira que estava em minha frente, abriu um sorriso com ar de deboche, e disse:

Maria - Olá...Percebi que você tem me olhado bastante durante o baile. Nos conhecemos?

Tefa - Sim...Mais ou menos. Sei

quem você é, te observo há bastante tempo, mas nunca fomos apresentadas

Maria – Meu nome é Maria. E o seu?

Tefa – Eu

sei.......................................O meu é Tefa.

(Pausa. Um gole de underberg, uma tragada, desvio o olhar com vergonha. Maria se abaixa um pouco, procurando meu rosto)

Maria – Você disse que vem me observando...

Tefa – (Levantando os olhos vagamente)

Sim, sei de você quase o quanto sei de mim. De tanto inventá-la, acabei me inventando também.

(Maria se esquiva, surpresa. Parecia ter medo do que eu poderia falar)

Maria – É? E o quanto sabe de mim,

então?

Tefa – Nada. Absolutamente nada.

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Maria - Como assim? Acabou de dizer que sabe de mim quase quanto sabe de si mesma.

Tefa - Então? Não é um barato?

.

.

.

O café já está pronto. Sirvo uma xícara grande, porque não é qualquer coisa que engana este frio. As pontas dos meus dedos estão vermelhas e geladas de tanto escrever...e apagar....e escrever.....Penso nos meus segredos e fico na dúvida do que posso contar, porque aprendi que existem coisas que devem ser guardadas apenas para mim...talvez porque minha família acredite que eu deva criar e preservar alguma imagem de mim mesma para os outros.....................................eu prefiro pensar que meus segredos são presentes que me dou........são preciosidades.

.

.

Porém, agora que sinto você e eu um pouco mais próximas, um pouco mais familiarizadas, acho que podemos aprofundar nossas confidências. Não entregarei todo o ouro, mas desenharemos juntas o pergaminho.

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“O eu é constituído pela imagem do outro e pela fantasia”

(Antonio Quinet)

1 O ESPELHO DE VÊNUS – Buscando Maria Scariot

1.1 Eu refletindo a imagem da outra

Buscando inspiração para iniciar o processo de escrita do trabalho, resolvi pesquisar imagens, mitologias, e histórias que trouxessem discussões e referências acerca do feminino. Nesta pesquisa, deparei-me com o livro Um Olhar a Mais (2002), do filósofo Antonio Quinet, que se propõe a analisar a partir da mitologia de Narciso, a questão do olhar: o olhar sobre si, o olhar sobre o outro, o olhar sobre o mundo. O autor utiliza vários exemplos para abordar a discussão, versando sobre literatura, mitologias e artes visuais, e dentre estes exemplos, um em específico me chamou a atenção: o olhar do espectador/observador na obra Toalete de Vênus, de Peter Paul Rubens. Vênus, a deusa latina da beleza e do amor, está nua, com as costas viradas para o espectador e de frente para o espelho, observando-se. Para o espectador conhecer o rosto de Vênus, ele tem de olhar para o espelho. Neste momento, segundo Quinet, o sujeito projeta-se para dentro do espelho, como se estivesse observando-se ao mesmo tempo em que conhece o outro :

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É a partir dessa imagem que se constitui o eu. Isto, na verdade, é articulado à fantasia. A constituição do eu no espelho do Outro é sustentada pela resposta fantasística que o sujeito dá à questão sobre o desejo do Outro. (QUINET, 2002, p.179).

Refletindo sobre a questão do olhar, trazida

por Quinet, do observador que se reconstitui a partir daquilo que observa, a cada reelaboração do sujeito, existe atrelado um processo de reconhecimento e identificação. Neste sentido, o espelho do Outro poderia ser o meu espelho, e a projeção da imagem do Outro poderia ser meu próprio reflexo?

.

.

. Luciana Lyra, pesquisadora teatral,

encenadora e atriz Luciana Lyra, em sua tese Guerreiras e heroínas em performance: da Artetnografia à Mitodologia em Artes Cênicas (2010), fala sobre o espaço de reconhecimento do indivíduo a partir do mito, e o quanto a mitologia passa a ser construída por aquele que percebe o mito.

Um processo mítico que se manifesta pela redundância imitativa de um modelo arquetípico e pela substituição do tempo profano por um tempo sagrado: o illud tempus da narrativa ou ato ritual (tempo-espaço dilatados). Para Eliade, o mito é a experiência existencial do homem que lhe permite encontra-se e compreender-se. A atividade criadora do espírito humano

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lida com toda a experiência humana. (LYRA, 2010, p 300)

Se a função do mito é ensinar e servir como exemplo a quem compartilha de sua experiência, a quem se identifica com ele, Maria Scariot também pode ser um mito. Eu buscando Maria, e me projetando nela para construí-la, num processo chamado por Lyra de Mitodologia, que segundo ela “ [...] lida com forças pessoais que movem o atuante na relação consigo mesmo e com o campo artetnografado, transitando do eu à alteridade, num processo contínuo de retroalimentação.” (2010, p.322). Eu passo a me reconhecer a partir da minha tentativa de criação de Maria.

Renato Cohen, no livro A performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de observação (2002), fala de dois tipos de relação existentes entre o performer e a obra: o primeiro refere-se ao modelo estético, no qual o atuante representa o personagem, diferenciando-se, afastando-se enquanto sujeito de sua criação; e o modelo mítico, no qual o atuante se funde ao papel, vivendo a situação e não representando.

É interessante que esta postura “estética” em relação à obra vale também para o atuante. Fica claro para o atuante que ele “representa” a personagem, que ele não “é” a personagem (existe portanto o distanciamento). Na relação mítica, este distanciamento não é claro; - eu entro na obra, eu faço parte dela – isto sendo válido tanto para o espectador que fica na situação de participante do rito e não mero

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assistente (não sendo bom, portanto, o termo ‘espectador”) quanto para o atuante que “vive”o papel e não ‘representa”. Podemos dizer que na relação estética existe uma representação do real e na relação mítica uma vivência do real. (COHEN, 2002, p 122)

É a partir da perspectiva mítica que Lyra e

Cohen falam, que passo a encarar Maria, construindo-a como a mim mesma: Eu-Maria.

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Para problematizar o conceito do Outro, trago Stuart Hall, e sua obra A identidade cultural na pós-modernidade (2006). O autor trabalha sobre conceitos de sujeito e identidade, colocando questões referentes à crise de identidade destes sujeitos desde a modernidade até à pós-modernidade. Segundo Hall, existem três formas principais de concepções acerca da identidade, que resumidamente são: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico, e o sujeito pós-moderno. A primeira concepção trata de um sujeito individualista, centrado em suas ações, em seus preceitos e sua

Figura 2. Toalete de Vênus

Pintura de Peter Paul Rubens (1694)

Liechtenstein Museum, Viena, Áustria

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própria razão, independente do que acontece em seu entorno; a segunda forma trata ainda de uma identidade situada no indivíduo mas que dialoga com o mundo externo, e que se deixa influenciar por símbolos e informações que estão fora deste centro, dividindo os espaços de seu mundo pessoal e o mundo público; e a terceira, em que o sujeito atual está multifacetado, sem uma identidade específica mas composto por várias identidades e relações constantes de transformação, sem divisão entre mundos internos ou externos, e com um processo de identificação modulável e efêmero. Podemos dizer, então, que identidade passa por construções e desconstruções decorrentes do contato entre indivíduos, ambientes e, principalmente, a globalização dos meios representacionais a qual está submetido. Segundo as palavras de Hall,

O que é importante para nosso argumento quanto ao impacto da globalização sobre a identidade é que o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Todo meio de representação — escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte on dos sistemas de telecomunicação — deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais. Assim, a narrativa traduz os eventos numa seqüência temporal "começo-meio-fim"; os sistemas visuais de representação traduzem objetos tridimensionais em duas dimensões. Diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo. (HALL, 2006, p.102)

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Para constituir nossa identidade, tomamos por referência aspectos que nos representam, aos quais nos identificamos, e aqueles que divergem, ignoramos. A diferença, neste sentido, também faz parte da formulação de uma identidade, pois no momento em que digo o que não sou, acabo reafirmando o que sou. Assim o Outro, mesmo que eu o refute, auxilia em minha construção de

identidade e de sujeita. Este foi um dos pilares do espetáculo Due Lati

della Campana, desenvolvido durante o meu mestrado em Teatro, na UDESC. Trabalhar sobre a história do outro – neste caso “da outra”- é também trabalhar sobre minha história. A Outra, neste trabalho, é Maria Scariot, minha tataravó, avó de meu avô, filha de imigrantes italianos, que teve sua história invisibilizada por parte da família, a meu ver, devido à sua conduta sexual ser considerada

transgressora para seu contexto. Pesquisando sobre

sua história, pergunto-me constantemente sobre tantas mulheres que, por diferentes motivos, tiveram e ainda tem suas histórias escondidas por não condizerem com as práticas regulares dos contextos onde se inseriam e se inserem. Sobre abortar, prostituir-se, ser mãe-solteira, ser homossexual, relacionar-se com diversas pessoas e não constituir família, a cada um desses exemplos conheço pelo menos um caso que poderia ilustrar a questão levantada acima. Em outros casos, aquelas mulheres que não têm suas histórias refutadas tornam-se redutos de preconceito, ainda que velado, e constantemente escutam frases como : “É lésbica mas é uma grande profissional!”, “Abortou mas Deus

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deu outra oportunidade e ela engravidou novamente.”, “É prostituta mas sustenta a mãe dela”. Para desviar os olhares arbitrários muitas vezes se defende as escolhas consideradas erradas dessas mulheres enaltecendo outros aspectos socialmente permitidos. O ponto em que me identifico com todas elas e as relaciono com Maria Scariot reside exatamente nisso: no abafamento que suas vidas ganham em suas famílias e nas compensações que estas mulheres devem mostrar por suas escolhas serem encaradas como inapropriadas para suas conjunturas. No que concerne ao ato de identificar-se

e de como a empatia pode ser ferramenta potente

para amenizar ou até mesmo erradicar a violência e a brutalidade das relações, que muitas vezes são instigadas pelos preconceitos, lembro do livro Educação e Emancipação, de Theodor Adorno (1995), no subcapítulo Educação após Auschwitz, quando o autor afirma:

[...] se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração atual --- e provavelmente há milênios — a sociedade não repousa em atração, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se sedimentou do modo mais profundo

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no caráter das pessoas. (ADORNO, 1995, p.133)

Aproximar de nós mesmos questões como a exclusão, e tentar entender os motivos e o lugar de onde vem esta prática, pode ser uma maneira eficaz de trabalharmos a construção de uma sociedade mais democrática e justa. Eu, enquanto atriz, cidadã e mulher militante e participante da Marcha Mundial de Mulheres , me sinto na obrigação de pensar e repensar ações para contribuir com os espaços por onde vivo e circulo, como as cidades de Caxias do Sul, Porto Alegre ou Florianópolis. Foi por isso que optei trabalhar sob o mote de um olhar feminista para a poética da cena, intuindo elaborar um espetáculo que integre o repertório da Cia Sopro, de Caxias do Sul, a qual faço parte.

Falando em Caxias do Sul...

.

.

.

No meu baú das lembranças escondidas encontrei um pergaminho5 sobre minhas impressões acerca da

5 Este pergaminho foi criado a partir das considerações de

Luciana Lyra acerca do meu material entregue na qualificação. Ao questionar-me sobre o lugar onde a história de Maria Scariot se desenrola, sugeriu que inserisse informações ao leitor sobre minhas impressões referentes à cidade de Caxias do Sul. Geralmente, ao buscar minhas memórias, antes de serem

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cidade onde a história de Due Lati della Campana acontece. Maria Scariot e eu estamos por lá. Não nos orgulhamos nem nos envergonhamos disso,

apenas nos identificamos com ela...

...seja reafirmando certos valores...seja negando-os...

.

.

.

traduzidas em palavras, elas chegam como imagens, sons, cheiros. Conforme propõe Luciana Lyra (2010, p.293), “O termo imagem reenvia frequentemente, espontaneamente, à objetivação de algum conteúdo sensível sobre o suporte material (retrato, desenho, fotografia), mas toda imagem artificialmente produzida supõe a pré-existência mental de sua representação.”. Peguei uma caneta, uma folha de ofício, e como num brainstorm comecei a desenhar.

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1.2 Maria, a mulher invisível – Descobrindo Maria

1.2.1 Primeira visita a Agostinho Scariot

Era dezembro de 2014, e ainda não sabia sobre qual seria o tema de minha dissertação. Nesta época eu já estava na casa de minha família, em Caxias do Sul, passando dias de recesso entre os feriados de Natal e Ano Novo. Entre leituras e pesquisas de textos clássicos da tragédia grega e algumas dramaturgias feministas, certa tarde, para espairecer, fui à casa de meu avô fazer-lhe uma visita e “matear” um pouco. Mate ou chimarrão é como chamamos a bebida feita com erva-mate e água quente servida geralmente em casca de porongos. Em minha casa temos o costume de tomar chimarrão enquanto conversamos. Meu avô adora contar histórias e “causos”, principalmente aqueles que tratam dos tempos em que ele morava no campo, da época em que ainda era solteiro. São as mesmas histórias que escuto desde criança, os mesmos personagens e os mesmos detalhes, mas nunca me canso porque acho bonito ver como ele revive cada história ao narra-las. Quando o vejo, percebo as transformações pelas quais seu corpo passou ao longo dos 30 anos em que escuto suas histórias: um pouco menos de agilidade, a respiração pouco mais ofegante, o cabelo esbranquiçado, mas que vibra da mesma forma ao lembrar do que passou. Prestando atenção a cada detalhe, percebi naquele momento que em suas histórias não havia espaço para a sua avó, Maria Scariot, mãe de seu

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pai. Durante 30 anos eu jamais havia me dado conta daquilo. Ao questioná-lo sobre suas avós, ele me disse: “Eu conheci só a minha avó por parte de mãe, que era um doce, uma mulher muito boa. A mãe do meu pai eu nunca soube muita coisa, porque meu pai não gostava que perguntássemos dela para ele”. Naquele instante retomei prontamente a reflexão sobre o mote do espetáculo, e pensei que poderia haver uma história interessante para abordar. Pedi permissão a ele, então, para que gravássemos a conversa no meu celular, e ele aceitou.

Tefa – Qual o nome da avó do senhor, mãe do seu pai?

Agostinho – Maria Scariot, mas eu não sei muito dela porque o meu pai não gostava de falar dela.

Tefa – Por que ele não gostava?

Agostinho – Ah, porque ela era “da vida”, era meio prostituta.

Tefa – Prostituta?

Tipo...Essa era a profissão dela?

Agostinho – Não. Ela não cobrava. (risos)

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Tefa – Então ela não era prostituta? Era...digamos...mais livre?

Agostinho – Livre? É...não...ela não era casada e teve uns três ou quatro homens, e com cada um teve um filho. O meu pai não gostava dela porque ela deu ele pro pai dela cuidar, e ele cresceu meio sozinho. Com oito anos ele tava sozinho no mundo.

Este trecho da conversa chamou muito minha atenção, justamente por ter em minha família uma mulher cuja história fora invisibilizada, e ao que me parece, por motivos de ter sua sexualidade descontextualizada do que seria o ideal da sexualidade feminina de sua época e seu possível descaso com a maternidade. Estas três questões atreladas – a sexualidade feminina, a maternidade e invisibilidade de sua história – pareceram interessantes como possíveis motes para o espetáculo da Cia Sopro, por representarem pautas ainda atuais discutidas dentro do movimento feminista. Jaqueline Pitanguy e Branca Alves abordam no livro O que é feminismo?(1986) a ideia de que o feminismo existe antes e para além do feminismo organizado enquanto movimento, sendo um processo evolutivo, constante, e inclusive cíclico. Quando falamos em movimento feminista, geralmente nos remetemos às suas ondas, ou seja, momentos separados por diferentes pautas. A primeira onda é marcada pelo sufrágio feminino, que compreende final do sec XIX e se estende até início

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do sec XX; a segunda onda, por volta de 1970, teve como pautas a luta pela inserção das mulheres no mercado de trabalho, pela valorização doméstica como pauta de discussão política, pelo direito da mulher ao prazer, contra a violência sexual e contra a ditadura militar; e a terceira onda seria embasada por ideais construtivistas, questionando a generalização da categoria política das mulheres a partir dos padrões da classe média branca. Porém, vemos que as pautas são atualizadas de acordo com nosso tempo presente. Por exemplo, este ano na Marcha Mundial das Mulheres, a pauta do encontro latinoamericano é Primavera pelo Direito ao Corpo e à Vida das Mulheres, tratando de assuntos como aborto e autonomia da mulher sobre seu próprio corpo - exatamente aquilo que era discutido na segunda onda do movimento.

Decidi, então, ser observadora e contadora da história de Maria, pois falando de Maria também falo de muitas outras mulheres que tiveram suas vidas abafadas por transgredirem condutas esperadas ou estereotipadas ditadas por seus contextos e suas culturas. O espelho de Maria Scariot reflete a minha imagem também, e meu “eu” se constitui em seu reflexo, em sua história.

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Figura 3 - Ilustração de Helena Zelic para divulgação da IV Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres

Figura 4 - Divulgação da IV Ação Internacional da Marcha Mundial das

Mulheres

Ilustração de Helena Zelic (2015)

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1.3 Descobrindo Eu - Maria: quem somos?

1.3.1 Segunda visita a Agostinho Scariot

Visito pela segunda vez meu avô para

conhecer um pouco mais de Maria. Converso, indago e procuro compreender sua fala considerando o universo ao qual ele pertence, identificando os aspectos que utiliza para construir sua perspectiva das histórias.

Chegando a sua casa, toco a campainha e aguardo que ele ou a esposa, Liani, atendam a porta. A casa está toda fechada, trancada, como se ninguém estivesse lá dentro.

Tefa - (Enquanto aguardo que me atendam, falarei um pouco do segundo casamento de meu avô...) Minha avó, Laurinda, faleceu há 13 anos, quando eu ainda estava no colégio. Meu avô durante dois anos permaneceu sozinho, mas frequentemente era abordado por mulheres do bairro onde mora. Ele era categórico em dizer: “Quero alguém que seja magra, que não fume e que seja religiosa”, eu mesma dizia a ele que ficaria sozinho se continuasse esperando estes três atributos numa só mulher. Certo dia, no grupo de liturgia

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da igreja, eles se conheceram. Liani apareceu em sua casa para vender algumas panelas esmaltadas. Começaram a conversar, a se conhecer. Um ano depois se casaram. Liani é bastante religiosa, na juventude foi freira, e abandonou o convento na cidade de Santa Cruz para morar em Caxias do Sul. Meu avô se identifica muito com ela em vários aspectos, como a crença na religião católica, os cuidados com a saúde, com o meio ambiente e a disponibilidade em ajudar aos outros. Ela é quem cuida da casa, da limpeza, da organização e da decoração.

Escuto barulhos de alguém se aproximando. A basculante é aberta pelo meu avô, que espia, sorri e fala: “Oh, Tefinha, é tu. Só um minuto”. Abre o portão, a porta, e logo ao entrar deparo-me com a Bíblia posta no centro da mesa da sala, aberta, como se estivesse viva, olhando, protegendo a casa. Vou até à cozinha, e o chimarrão está preparado. Em cima da mesa da cozinha está o jornal da paróquia de Lourdes, também aberto. Era o “horário de leitura” de meu avô. Na parede, há um quadro da Santa Ceia talhado em madeira, na outra parede uma pequena placa escrita “Deus te ama”, no armário uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes, e no pano de pratos um bordado escrito “Se Deus está por nós, quem

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estará contra?”. Estas observações me fizeram retomar a obra de Michelle Perrot História da Vida privada Vol. 4 – Da Revolução à I Guerra – na qual ela retrata a história francesa do período indicado no título a partir do viés privado, e de quanto isso repercute nas relações sociais públicas. Em dado momento, a autora comenta

Os objetos do espaço privado não foram esquecidos. Os mais íntimos objetos trazem a marca do ardor revolucionário. Na resistência dos patriotas abastados, encontram-se “camas estilo Revolução”, ou “estilo Federação”. As porcelanas e faianças são enfeitadas com divisas ou vinhetas republicanas. As tabaqueiras, os estojos de barba, os espelhos, os cofres e até os jarrosde lavatório são decorados com cenas das jornadas revolucionárias ou com alegorias. A Liberdade, a Igualdade , a Fraternidade, a Vitória, sob a forma de jovens deusas encantadoras,enfeitam os espaços privados da burguesia republicana. (PERROT, 2009, p.24)

Se “o pessoal é político”, conforme palavras de Carol Hanisch comentadas na introdução, as informações e descrições como estas podem ser importantes contribuições para o meu entendimento sobre o universo de meu avô, sobre o lugar donde ele fala, e assim para a construção da imagem de Maria Scariot em mim.

Meu avô sempre contou, desde quando eu era criança, que sua família era muito devota, e sua fé foi trabalhada desde cedo. Aos 09 anos, por falta

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de condições financeiras para sustentar os 5 filhos, sua mãe e seu pai o mandaram para o seminário, onde permaneceu até os 13 anos. Segundo as palavras de meu avô, “Foi lá que eu aprendi a ter disciplina e trabalhei meu caráter. Lá aprendi o que é certo e o que é errado”. Para mim fica evidente em seu discurso o quanto a religião católica foi importante para sua construção de sujeito, e o quanto ela está presente em sua vida ainda hoje. Os preceitos pelos quais ele analisa e julga dadas circunstâncias estão embasados na doutrina católica, e no caso de Maria Scariot, sua avó, não seria diferente. Os relatos de seu pai e o catolicismo são as duas principais referências – não necessariamente nesta ordem de importância - para a elaboração de seu discurso sobre Maria Scariot.

Tefa – Nono, o senhor sabe quais motivos fizeram a Maria Scariot deixar o Joaquim, pai do senhor, com o pai e a mãe dela? Agostinho – Meu pai dizia que era porque ela não prestava, que não tinha cuidado com os filhos. Tu vê...A Tia Beatriz foi dada pra família Romani, lá na Boca da Serra, a Tia Aurora pra outra família, que agora não lembro qual era, e meu pai pros avós dele. Tu acha que uma mãe que faz isso tá certa? Meu pai dizia que ela só queria saber de festa, de homens, por isso deu

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eles. Dizia ele que ela cada pouco tava com um homem diferente. Imagina...ela teve 4 filhos: a tia Beatriz era filha de um, meu pai filho de outro, e a tia Aurora e o tio Emílio filhos de outro. Uma mulher que tem cada filho com um homem diferente, ainda mais naquela época, não devia ser muito séria. Tefa – E o fato dela ter dado os filhos nada tinha a ver com ela não ter condições pra cria-los? Agostinho – (Pausa) Olha...Eu não sei te dizer. O pouco que sei foi o pouco que meu pai me contou, e o que ele me dizia era isso.

A partir dos relatos de meu avô passei a me

questionar sobre as funções de maternidade

exercidas por Maria Scariot e o atrelamento destas à

sua sexualidade. No caso de minha tataravó, o

julgamento da família perpassa questões sobre seus cuidados com os filhos, mas reside principalmente no fato dela ter cada filho com um homem diferente. Exercer sua sexualidade de forma contrária ao que orienta a monogamia - proposta também pela igreja católica - parece ser o principal motivo pelo qual a história de minha tataravó é refutada por parte da família. Referente à vinculação entre sexualidade e catolicismo, e a forma como tal instituição religiosa

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aborda o assunto, encontrei na dissertação de mestrado Prazeres Velados e Silêncios Suspirados: Sexualidade e Contravenções na Região Colonial Italiana (1920-1950), da historiadora Aline Karen Matté (2008), o seguinte trecho:

Um dos valores do discurso católico sempre foi a sexualidade, desde o Velho Testamento, onde se descreve o pecado original até a idéia de confissão da Igreja Moderna. Ao se preocupar com o estabelecimento fixo da família como valor de maior admiração, a Igreja sempre se dedicou a condenar a sexualidade fora desse espaço, considerando o prazer sexual como pecado intenso. (MATTÉ, 2008, p39)

Maria Scariot era filha de imigrantes italianos

que vieram ao Brasil após importantes acordos entre o governo brasileiro de Dom Pedro VI e o governo italiano da época, em virtude da Itália sofrer grande crise econômica devido à precariedade agrícola e ao empobrecimento do solo, e o interesse do Brasil em trocar a forma escravista de produção pela assalariada, substituindo assim a mão-de-obra negra pela branca. Nas palavras da historiadora Inês Maria Vendrame:

A imigração italiana para os núcleos coloniais no Sul do Brasil, a partir de 1875, era composta, na sua maior parte, por famílias camponesas que procuravam adquirir sua própria terra, concretizando, assim, a vontade de se

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tornarem proprietários. (VENDRAME, 2011, p.70)

Segundo meu avô, a vinda de sua família para o Brasil não foi fácil.

Agostinho - Eles passaram fome. Viajaram dois meses em barquinhos pequenos, sem muita estrutura, tendo que regular comida e bebida, vendo muita gente morrer e ser jogada no mar. Chegaram aqui e não tinha nada, era tudo mato, verde, tiveram que começar do zero. Imagina tu chegar cansado, sujo, morrendo de fome, com esperança de encontrar um lugar tranquilo, e não ter nada, nenhum lugar pra se abrigar e pra comer? Os coitados sofreram muito. Tefa - Mas eles não tinham apoio nenhum do governo brasileiro? Porque até onde já estudei, o governo brasileiro contatou o governo italiano para parcerias: a Itália mandava a população para cá porque já não tinha como sustenta-la, e o governo brasileiro a recebia porque tinha interesse em branquear a raça e povoar as terras devolutas.

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Agostinho – Isso foi o que o governo brasileiro falou pro italiano, era tudo mentira. Prometiam o paraíso, e os coitados chegavam aqui e viam o inferno.

Acontece que o império brasileiro viu na Itália uma forte oportunidade para estabelecer seus desejos de reestruturação econômica, pois como comentei na conversa com meu avô, Dom Pedro II pretendia branquear a raça – já que a escravidão negra havia sido abolida – trocando a mão de obra escrava pela assalariada, objetivando povoar as terras que já não conseguiam sustentar após a Guerra contra o Paraguai, que aconteceu de 1864 a 1870 .

A cisão ideológica entre o estado italiano e a igreja, durante a unificação italiana, dividiu a população em "católica" e "italiana". Os imigrantes que chegavam às colônias do Sul do Brasil eram em sua maioria católicos, e ao falarem de suas vidas no outro continente normalmente se referiam às regiões de onde vinham, e não ao país de origem: "sou de Vêneto, não da Itália”. Esta realidade de convicção e crença na religião abriu espaço para que a Igreja Católica reportasse sacerdotes às novas terras, a fim de acompanhar o estabelecimento de seus seguidores. Segundo o historiador Ismael Antônio Vannini:

Em torno das capelas, originaram-se as comunidades e as bases para o desenvolvimento econômico e político. Aliado a isto, ainda estava o

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fator espiritual. No relativo isolamento das colônias, a religião foi elemento estabilizador e normatizador do grupo em questão. Desta maneira, desfrutando de grande prestígio, a igreja tornou-se uma referência de poder entre italianos e descendentes e, junto à jurisprudência do Estado, tutelou, sobretudo, os aspectos morais da vida colonial. (VANNINI, 2010, p.3)

É fácil identificar em minha família o que propõe Vannini, sobre a importância do catolicismo na formação do núcleo familiar. Meu avô e sua esposa, Liani, são bastante ativos na paróquia do bairro Petrópolis, e frequentemente levam lá em casa objetos ungidos: pães, água, flores, como forma de querer abençoar e guardar a nossa casa.

1.4 Maria do Ventre Livre!

A Imagem que criei de Maria Scariot a partir do que meu avô me contou, parece destoar dessa realidade de imigração, pois ao engravidar de homens diferentes, Maria parecia não demonstrar interesse em casar-se, e também não pensar em contribuir para a criação de nenhum patrimônio familiar. Ou talvez Maria tivesse interesse em participar dessa estrutura, mas em virtude de suas escolhas fora rejeitada por não atender as expectativas do seu contexto. De um modo ou de outro, fica em mim a impressão de que Maria estava à parte ao seu local de convívio, como uma

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passante.... uma andarilha...que não parava em lugar nenhum, mas pertencia ao todo ao mesmo tempo.

Durante o processo de construção do espetáculo a apelidei de “Maria do ventre livre”, provavelmente um pouco romantizado, idealizado, mas foi assim que a construí em meu imaginário. A metáfora “a terra é semeada”, utilizada muitas vezes pelos meus conterrâneos para explicar aos mais jovens a função das sexualidade feminina, parece colocar a mulher num espaço de submissão, em que ela aguarda para ser fecundada, restringindo-a a essa ação de espera, como se não houvesse outras possibilidades para si, outras escolhas, como se sua sexualidade estivesse relacionada unicamente ao ato de gerar filhos. Além disso, objetificar a mulher tornando-a “terra”, abre lacunas para relacioná-la a termos como “invasão”, “ocupação”, “aquisição”, “uso capião”, construindo caminhos para justificar sua aquisição por um dono.

Uma das pautas do movimento feminista refere-se justamente à luta por segregar os direitos reprodutivos dos direitos sexuais, ou seja, tratar sexualidade e reprodução como duas instâncias diferentes. Defender o direito das mulheres à sexualidade livre permite que nosso exercício não finde obrigatoriamente na função de mãe, propondo assim maiores discussões acerca de nossa cidadania, e contribuindo para uma sociedade mais democrática. A antropóloga Maria Betânia Ávila, em artigo à revista Cadernos de Saúde Pública, aborda a importância de discernirmos os direitos sexuais dos direitos reprodutivos, a fim de garantir mais direitos às mulheres por seus próprios corpos. Em suas palavras:

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É também um reconhecimento das razões históricas que levaram o feminismo a defender a liberdade sexual das mulheres como diretamente relacionadas à sua autonomia de decisão na vida reprodutiva. A luta no campo ideológico para romper com a moral conservadora, que prescrevia para as mulheres a submissão da sexualidade à reprodução, teve um significado muito forte na história da prática política e do pensamento feminista. E

continua tendo. (ÁVILA, 2003, p. 466)

A questão de a sexualidade feminina estar

atrelada ao poder econômico familiar e aos incentivos estatais para povoamento das terras devolutas brasileiras são pontos fortes a serem considerados na história de Maria Scariot, e a partir daí iniciei a pesquisa sobre a primeira cena do espetáculo.

1.5 Eu – Maria: Aportar e Parir

Comecei o trabalho construindo imagens referentes ao que será o momento inicial do espetáculo, intitulado como Aportar e parir. Essa ideia foi elaborada ainda quando estava em casa, pesquisando sobre a história da imigração italiana em Caxias do Sul, e escutando a gravação das conversas que tive com meu avô. Antes de chegar ao local do ensaio, passei numa ferragem e comprei algumas ferramentas semelhantes às que vi durante toda minha vida na casa de meu avô, e que de alguma forma pareciam estar relacionadas à

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produção da terra e ao sustento familiar, questões presentes na história da construção da região donde venho, e principalmente à história de minha família. Atividades como “plantar uva”, “amassar pão”, “serrar árvores”, “fundir metal” aparecem constantemente nos causos que escuto desde criança, assim, julguei importante para a construção da primeira cena um martelo, uma chave-de-fenda, uma colher de pau, um alicate, uma espátula e um serrote.

Buscando possibilidades e formas de trabalhar a não-identidade dessas mulheres imigrantes que eram encaradas como máquinas (re)produtivas antes de sujeitas6, seja a partir de suas mãos na terra ou de seus úteros, começo

6 Segundo Touraine, na obra Um novo paradigma para

compreender o mundo hoje (2006), sujeito é a pessoa consciente de si, que se constrói e reconstrói individualmente e cria um sentido para sua existência, que reflete sobre seu papel social configurando uma parte individual de um todo. Neste sentido, é um ser que existe por sua luta, por suas reivindicações, e não por um ser divino ou constituído coletivamente. Dos combates com uma ordem coletiva nasce o sujeito. Nas palavras de Touraine: “O sujeito não é um puro exercício de consciência, ele tem a necessidade do conflito para que ocorra a ação coletiva” (Touraine, 2006, p. 130). Em contraponto, Touraine coloca o conceito de indivíduo como parte que representa a fácil comunhão com o todo, que aceita as regras sociais facilmente, questionando-as ou não. É quase impossível estarmos a todo o tempo combatendo e nos impondo com o que não concordamos, e por isso muitas vezes aceitamos regras impostas, para um convívio social mais ameno e sem tantas indisposições. Para ilustrar o conceito, Touraine utiliza da metáfora de “uma tela pela qual se projetam desejos, necessidades, mundos imaginários fabricados pelas novas indústrias da comunicação.“(Touraine, 2006, p. 119). Assim, segundo Touraine, passamos a vida alternando entre o ser indivíduo e o ser sujeito.

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cobrindo todo o corpo com tecidos, tentando deixa-lo o mais amorfo possível. Experimentando diversas formas de me colocar no espaço com os panos, percebi que cobrindo o rosto já conseguia trazer a ideia de uma visão borrada, sem traços, sem características7.

7 Esta imagem foi gerada em meu quarto, na noite que seguiu o

ensaio. Depois de experimentar formas diferentes de colocar o pano no rosto, encontrei esta que ainda mantinha a silhueta da face, mesmo sem mostrar suas especificidades. A flor amarela no cabelo foi colocada para deixar a imagem um pouco mais vibrante, com mais vivacidade, pois a Maria Scariot que imagino não é monocromática ou pálida.

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Coloco-me em cima de duas cadeiras, e começo a trabalhar movimentos relacionados à navegação, à viagem, a um translado, aludindo as embarcações que chegavam ao Brasil. Por mais que Maria Scariot fosse brasileira, seus pais eram italianos, e ao aportarem no “Novo Mundo”

Figura 5 – Tefa Polidoro em Eu-Mulher: Um rosto amorfo

Registro meu (2015)

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trouxeram em suas bagagens crenças e culturas do “Velho Mundo”. Essa mulher de rosto amorfo, em cima de duas cadeiras, era então a imagem inicial do espetáculo, um ponto de partida identificado por mim referente ao início da história de Maria Scariot.

Convidei Gabriela Vianna, minha aluna de teatro, para acompanhar este dia de ensaio e registrar minhas improvisações. Gabriela participa dos cursos de teatro que ministro no colégio Madre Imilda e no Teatro do Encontro há 04 anos. Neste período começou a interessar-se pelas discussões de gênero e feminismo, e desde então trocamos referências e bibliografias acerca dos assuntos. A ideia era que sua participação fosse esporádica no processo, mas foi tão importante sua presença neste ensaio que ela concordou em permanecer comigo ate o final. Eu me colocava na sala de ensaio e Gabriela ligava a câmera. Eu permanecia por alguns minutos improvisando ações, movimentos e músicas que me remetiam à ideia da navegação8, da mulher que não consegue descobrir-se em virtude da pressão externa sobre o que aquele ambiente espera dela, e sobre sua obrigação de contribuir com o povoamento das terras, mesmo que não fosse de seu interesse. Quando falo em “descobrir-se” refiro-me, além do processo de encontrar-se, também ao sentido de livrar-se do que a cobre, da luta por tirar o pano que esconde seu rosto, sua identidade. Assim como ela, muitas outras mulheres sofrem estas obrigações. Após vários vídeos registrados, sentei para analisar o material produzido. Remeto-me novamente às palavras de Oddey (1994), referente

8 Referente à imagem 6, que seguena página 78.

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ao processo do Devised Theatre e suas possibilidades de descobertas para a cena:

Existe uma liberdade entre os envolvidos no que se refere ao descobrimento; a ênfase está numa maneira de trabalho que se baseia na intuição, espontaneidade, e acúmulo de ideias. O processo do devising é sobre a experiência fragmentada do entendimento de si, da sua cultura, e

do mundo que eles habitam. (ODDEY, 1994, p.1)

9

De um material de 2 horas, selecionei como

matriz para a cena inicial o momento em que cantei uma música do folclore colombiano chamada YO NO SÉ DÓNDE NACÍ, enquanto executava movimentos com base nos verbos “procurar” e “desfazer”. A letra da canção segue abaixo:

Yo no sé donde nací

Ni sé tampoco quién soy Nó sé de dónde he venido Ni sé tampoco quién soy

Soy ramo del árbol cahido Que no sé donde caio

Donde estarán mis raices De que arbol soy rama yo?

9 “There is a freedom of possibilities for all those involved to

discover; an emphasis on a way of working that supports intuition, spontaneity, and accumulation of ideas. The process of devising is about the fragmentary experience of understanding ourselves, our culture, and the world we inhabit.”(Tradução minha)

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Esta música foi escolhida por trazer a ideia do não- reconhecimento daquela que canta, do desconhecimento de sua história, de sua identidade. Depois de cantar, olho para os lados em busca de alguém, e no “Bom Giorno!” gritado, a voz ecoa no espaço. É o vazio, a solidão e a magnitude do lugar onde se está e do que se é. Para produzir e fazer crescer vida, improvisei o parto de seis ferramentas, amarradas por um pano branco, e posteriormente coloquei-as em volta do pescoço, nomeando a todas: um martelo (Bibo) , uma chave-de-fenda (Dêde) , um pau de cozinha (Ana), uma alicate (Bibo), uma espátula (Cali) e um serrote (Fêfe). Destes filhos percebo a falta de uma: Maria Beatrice10.

Acabei o ensaio um tanto insatisfeita por novamente estar inserida num processo solitário de trabalho. Já havia trabalhado dessa forma no meu trabalho de conclusão da graduação e queria experimentar outras possibilidades, como uma maneira de trabalhar esta história biográfica de minha família, a partir de uma visão feminista, tendo como companheiro de trabalho um homem. Foi então que pensei em convidar uma pessoa para dividir a cena comigo no Due Lati...Conversei com Márcio Ramos, amigo e colega da Cia Sopro – companhia a qual faço parte em Caxias do Sul. Conheço Márcio há mais de 15 anos, e nosso primeiro contato com teatro se deu no mesmo curso. Fomos colegas de oficinas regulares de teatro durante 5 anos consecutivos, integrantes da Cia Atores Reunidos durante 08 anos, e parceiros de trabalhos independentes até hoje. Para mim não havia possibilidade de convidar outra pessoa para

10

Referente à imagem 7, que segue na página 79.

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este processo, tinha que ser o Márcio, e ele prontamente aceitou.

Figura 6 – Tefa Polidoro em Da imigração.

Registro de Gabriela Viana Mello (2015)

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Figura 7 – Tefa Polidoro em Do Parto

Registro de Gabriela Viana Mello / 2015

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1.6 Nós-Maria

1.6.1 Os retratos borrados - Terceira visita a Agostinho

Márcio nasceu em Caxias do Sul, mas ainda criança mudou-se com a família para Curitiba, onde permaneceu por 10 anos. É descendente de portugueses e ele brinca ao dizer que: “a pouca familiaridade que tenho com a cultura ítalo-brasileira vem de ti”. Assim, para iniciar o processo do espetáculo com Márcio achei necessário angariar outros materiais que pudessem auxiliar na construção de um imaginário mais complexo acerca da proposta. Combinei uma nova visita ao meu avô, mas Márcio não pôde ir comigo. Como de costume, ao chegar deparei-me com a bíblia aberta na sala, os dizeres e imagens religiosas nas paredes da cozinha, e o chimarrão posto à mesa. Na outra ponta da mesma mesa estavam 4 caixas de sapato cheias de fotografias antigas. Aquele cheiro de papel envelhecido, amarelado, guardado ao fundo do guarda-roupa, como se nunca mais tivessem sido expostos a qualquer luz. As fotos amassadas, rasgadas, com alguns rostos já deformados pelas manchas de umidade, dificultando que meu avô reconhecesse algumas pessoas registradas. Entre um gole e outro de chimarrão, meu avô tenta desvendar uma foto de criança e diz: “olha, eu não tenho certeza, mas essa deve ser a filha do Nelson”. O tempo parece querer borrar tudo o que já é passado. Assim é com as imagens que construo em minha mente sobre momentos que gostaria que se

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tornassem inesquecíveis, assim é também com as imagens impressas em papel, em filme. Talvez o tempo queira abrir espaço a novas histórias, talvez queira mostrar que o presente é um passado atualizado, ou talvez não queira nada a não ser passar. Essa imagem de um tempo que vai e volta se concretizou com grande ênfase em mim, e senti que meu elo com Maria Scariot talvez não fosse o passado, mas justamente o presente: o presente dela e o meu presente. Depois de vasculhar vários retratos, encontramos alguns da Tia Beatriz, tia de meu avô, filha de Maria Scariot. Aparentava ser uma mulher muito elegante, sempre vestida com roupas alinhadas, e penteados impecáveis. É claro que na época das fotos em questão, registradas entre 1915 a 1960, era raro que as pessoas tivessem em suas casas máquinas fotográficas. Assim, cada foto significava um evento especial. Segundo meu avô, por falta de ferramentas tecnológicas para comunicação, as pessoas se presenteavam com fotografias, porque “era uma forma de matar a saudade de quem estava longe, por isso estavam sempre muito bem arrumadas nas fotos”. Conversando sobre a tia Beatriz, ele lembra:

Agostinho – A Tia Beatriz era estranha, ninguém gostava dela. Quando ela morreu não tinha quase ninguém no velório porque ela era ruim. Tava sempre gritando, brigando, o oposto da Tia Aurora. A Tia Beatriz e a Tia Aurora dá pra dizer que são o Diabo e Deus. A Tia Aurora é um doce, fala

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baixinho, trata todo mundo bem. Por que tu não faz a peça da história da tia Aurora? Bah, a Tia Aurora!!! De repente seria bom tu falar com a Isaura e marcar de falar com ela e com a Tia Aurora, elas que sabem da minha nona. Tefa – Nossa, seria ótimo!!! O senhor tem o telefone delas? Agotinho – Pera aí que eu ligo agora e já marco.

Meu avô parece tão interessado nesta pesquisa quanto eu. A ideia de tratar da história de sua família o inspirou a procurar informações por vontade própria. Depois de agendar uma visita nossa à Tia Aurora e sua filha, Isaura, para o dia seguinte, ele me levou ao porão da casa, onde guarda lenha, madeira para reutilização, ferramentas velhas de trabalho e para minha surpresa, as recordações e memórias da Tia Beatriz:

Agostinho – Quando ela morreu tudo isso ía fora. Como tu sempre gostou de história, achei que tu podia gostar de ter isso e peguei. Tem o quadro da Cruz Vermelha que ela e a Tia Aurora fizeram parte, tem umas cartas que ela se correspondia com umas amigas, tem fotos antigas, carteira de trabalho, atestado de óbito...Ih, tem um monte de

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coisa. Tinha o uniforme de quando ela era enfermeira também, mas a Liane colocou junto com as roupas pra doação e foi junto. Ela chegou a ir pro RJ para servir na II Guerra Mundial como voluntária, mas quando tavam saindo do Brasil receberam a notícia de que a guerra tinha terminado, aí ela voltou.

Eu me emocionei demais com todo aquele material de meu avô, principalmente por ele ter reconhecido o valor histórico de tudo aquilo. É comum na região de Caxias do Sul as pessoas desfazerem-se de suas lembranças, porque a memória muitas vezes é colocada ao lado do que é velho, e o que é velho não serve mais, vai para o lixo. Tomamos mais um chimarrão e decidi ir para casa. Juntei as três sacolas cheias de informações, e ao atravessar o portão de sua casa, escutei sua voz lá de dentro:

Agostinho – Viu!!! Tu vem aqui amanhã que eu te levo na Tia Aurora. Tefa – Mas nono, não precisa se incomodar, eu vou sozinha. Agostinho – É que aí já aproveito e faço também uma

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visita pra tia. Faz tempo que não a vejo.

Tive a impressão de que seu interesse, além na visita, também era em contribuir para o resgate da história de sua família, e principalmente entender um pouco mais sobre sua avó. Ao chegar em minha casa selecionei o material que julguei interessante para mostrar ao Márcio e à Gabriela: fotografias de festas e bailes, uma carta de 1932, um quadro da Cruz Vermelha11, um quadro pintado com os rostos de Jesus e Maria, e a carteira de trabalho de Beatriz. Estes materiais, para mim, representavam momentos de trabalho e lazer de sua época em contextos mais urbanos, tanto de homens como de mulheres. Pareciam importantes estas informações, porque nos relatos de meu avô o cenário, na maioria das vezes, era bucólico, como se sua família apenas tivesse vivido no campo.

11

Referente à imagem 8, que segue na página 85.

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No dia seguinte encontrei-me com Márcio e Gabriela apenas para mostrar este material produzido e conversar sobre a proposta do espetáculo.

1.6.2 Maria Scariot por Aurora, sua filha.

Meu avô e eu nos encontramos para ir à casa da Tia Aurora. Ao chegarmos, enquanto aguardávamos Isaura abrir o portão, vimos a tia na

Figura 8 - Registro da I Turma da Cruz Vermelha de Caxias do Sul

Aurora marcada com círculo vermelho, e Beatriz com o círculo azul.

Arquivo pessoal de meu avô. Foto que data mais ou menos 1930.

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porta da sacada, dentro de seu apartamento: baixinha, com cabelo curto e branco como geada, e a pele bem branca, mirando a rua, aguardando nossa visita. Tia Aurora mora com sua filha, Isaura, e devido à sua memória e seus reflexos estarem um pouco debilitados, ela não sai de casa sozinha. Naquele dia como soube que outras pessoas a visitariam, tia Aurora vestiu-se com uma de suas melhores roupas, colocou suas melhores bijuterias, maquiou-se e perfumou-se, pois queria estar bem apresentável para quem chegasse. Quando entramos ela já havia se colocado sentada em sua poltrona assistindo a um desses programas gravados dentro de igrejas e transmitidos pela televisão. Junto dela estavam seus gatos dentro de cestinhos ao canto da sala. Segundo ela, seu amor por gatos veio de sua mãe, Maria Scariot, que teve gatos durante toda sua vida:

Tia Aurora- Minha mãe adorava

gatos, e ela dizia que quando eu era

pequena e começava a

choramingar, ela colocava nossa

gata preta dentro do meu bercinho.

Era a única coisa que me acalmava,

aí eu parava de chorar.

Tefa – (Meus olhos embaçam. Silêncio.) A senhora chegou a morar com a mãe da senhora? O nono falou que a senhora e os irmãos da senhora foram doados quando eram pequenos.

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Tia Aurora- Sim, ela me entregou

para os Fedrizzi me cuidarem, mas

quando eu tinha 13 anos eu voltei a

morar com ela.

Tefa – Por que a senhora quis voltar? Tia Aurora - Porque eu preferia

ficar com ela, era minha mãe, eu

gostava dela.

Esse foi um dos poucos momentos que consegui informações importantes vindas diretamente da tia porque, como comentei anteriormente, sua memória apresenta algumas falhas. Quem muito auxiliou nesta conversa foi Isaura. Ao falarmos sobre a adoção da tia por parte da família Fedrizzi, Isaura continuou:

Isaura – Acontece que a Maria tinha

dois filhos, o Joaquim e a Beatriz. Aí

o pai da minha mãe era árabe, se

chamava Abrão, veio pra Caxias e

casou com ela. Acho que ele não era

habituado com os costumes daqui e

não se importava da Maria ter dois

filhos. Ele era um homem de posses.

Aí tiveram a minha mãe e o tio

Emílio, só que logo depois ele faliu e

veio a falecer, e a Maria não tinha

condições de sustentar todos os

filhos sozinha, e por isso teve que

dar. Ela deu a tia Beatriz para a

família Romani, o Joaquim pros pais

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dela, a minha mãe pros Fedrizzi e o

tio Emílio...não lembro qual era a

família dele. Tefa – E ela trabalhava? O que ela fazia?

Isaura – Ela plantava alface e lavava

roupa para fora. Tia Aurora – Ainda hoje quando

sinto cheiro de alface eu sinto

saudades da minha mãe. (Fez-se silêncio na sala e os olhos da tia desfocaram, como se ela tivesse sido remetida a outro lugar. Não aguentei segurar, e meus olhos transbordaram)

Isaura – A mãe saiu da casa dos

Fedrizzi, e voltou a morar com a

Maria aos 13 anos, e ficou com ela

até ela morrer.

Neste momento percebi que a relação da tia Aurora com sua mãe era diferente do que meu avô relatou sobre a relação de seu pai com Maria. Tia Aurora não parecia ter mágoas em relação à sua mãe, e pareceu compreender bem os motivos pelos quais foi doada ainda pequena. Para ela, Maria era visível, Maria existia. Pergunto à ela como era sua vida com sua mãe, e ela, com a voz baixinha, responde:

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Tia Aurora – Era boa. A gente

morava numa casinha de madeira,

só nós duas e os gatos. O Emílio,

meu irmão, já morava em

Gramado, o Joaquim nunca mais

foi lá em casa...acho que nem no

velório da mãe ele foi...e a Beatriz

foi uma ou duas vezes lá. A mãe

trabalhava durante o dia, e eu

ajudava ela, depois ela bebia, e

depois ía rezar. Ela gostava dumas

festas no sábado, duns bailes.

Lembro ainda hoje do dia que ela

morreu. Eu tava sozinha em casa

com ela. Chamei os vizinhos pra

eles ajudarem quando ela gritou,

mas não deu tempo de fazer nada.

Depois que ela morreu eu fui pra

Gramado morar com meu irmão.

Lá eu conheci o pai da Isaura, aí

voltei para Caxias.

Continuamos conversando sobre vários assuntos, mas a tia parecia estar distante do que falávamos. Ora lembrava de tudo lucidamente, ora confundia as informações. Eu havia levado as sacolas de fotos e documentos da tia Beatriz que meu avô havia me dado. Tia Aurora começou a olhar tudo calmamente, e ficava orgulhosa se reconhecendo:

Tia Aurora – Olha, essa sou. Eu fui

da primeira turma de enfermeiras

da Cruz Vermelha de Caxias. A

Isaura era pequeninha, e aqui em

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Caxias era tudo mato. Às vezes me

chamavam nas madrugadas geladas

para atender alguém doente, aí eu

pegava a Isaura, botava na minha

garupa, e ía a cavalo sozinha,

passando por banhado, geada,

chuva. (Olha por instantes a fotografia

da turma da Cruz Vermelha e

comenta) Dessa aqui eu

lembro...essa também...essa faz

toda a vida que não vejo...essa

também nunca mais vi...(silêncio)

Sabe-se lá quantos aqui já

morreram e a gente nem sabe.

Essa frase marcou demais aquela tarde: “sabe-se lá quantos aqui já morreram e a gente nem sabe”. Novamente reflexões sobre o tempo e sobre a efemeridade das relações se fazendo presente. Estar com a tia Aurora naquele momento era como estar próxima à Maria. Até então eu só havia escutado relatos do meu avô sobre ela, e meu avô também só a conhecia por histórias, pelo pouco que seu pai contava. Ou seja, Maria era quase um personagem fictício para mim. Tia Aurora trouxe um cuidado especial, um carinho, uma saudade ao falar de Maria, tornando-a colorida, viva, para além de um estereótipo. Este foi um dia muito especial por estar de frente com o passado vivo de Maria Scariot, porém dois dos momentos mais preciosos foram: o primeiro, ao sairmos da casa da tia Aurora, e Isaura disse:

“Acho que tu tem razão, Tefa. A Maria, de repente, era uma

mulher a frente do seu tempo, porque tudo o que ela fez lá

atrás é o que se faz hoje, ela só tava descontextualizada.

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Pega meu e-mail, no que eu puder te ajudar mais com o

trabalho me avisa. Também tenho interesse em saber mais

da Maria”; e o segundo, ao entrar no carro de meu

avô, ele me olha e diz: “ tu vê, né...passei a vida pensando que a minha avó era isso e aquilo...mas pelo que a tia Aurora falou ela não era uma má pessoa”. 12Ao escutar essas

palavras de Isaura e de meu avô, foi que me dei conta do quanto este trabalho pode ser importante para a reconstrução histórica da minha família, para além da pesquisa cênica ou elaboração do espetáculo. Nas palavras de Betty Friedan, na obra Mística Feminina (1979, p.76) “Correndo como um fio brilhante pela história do movimento feminista a ideia de que a igualdade entre os sexos era necessária a fim de libertar tanto o homem como a mulher”. Observação semelhante a esta foi a que fiz neste período do trabalho: ao falar de Maria, falo de muitas mulheres mas também de muitos homens, como de meu avô.

.

.

. (Na próxima página consta a imagem de Tia Aurora e meu avô Agostinho, registrada no aniversário de 76 anos de meu avô, pela minha amiga Gabriela Demore, no ano de 2015. Este foi o momento em que tia Aurora foi felicita-lo.)

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Figura 9– Tia Aurora e meu avô Agostinho

Registro de Gabriela Demore (2015) – Aniversário de 76 anos de

meu avô

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“A Morte é uma construção que se dá em vida”

(Affonso Romano)

2 DOS CAMINHOS QUE PERCORREMOS – Nossos estímulos

2.1 Auflösung = A morte não como o fim

Certa vez, quando criança, eu devia ter uns 4 anos de idade, passei uma tarde na casa de minha tia-avó Adélia Polidoro, tia do meu pai. Ela tinha o costume de fazer comidas muito gostosas, com ingredientes bem caseiros - até mesmo o leite condensado que ela usava na elaboração de pudins era feito por ela. Ela era uma senhora bem baixinha, patusca, meio sardenta, e tinha a voz meio nasalada. Sua casa era grande e tinha um cheiro de baunilha, parecia até uma confeitaria. Enquanto eu comia uma fatia de pão com manteiga, e bebia chá gelado de camomila, assistíamos a uma missa pela televisão – sim, ela também tinha sua personalidade construída com fortes referências católicas. Lembro que o padre falava sobre morte. Eu não entendia muito bem o que a palavra significava, e confundia constantemente o significado com a palavra velório, e fazia perguntas como: “Tia, a senhora foi hoje na morte da dona Maria?”. Tentei prestar atenção na explicação que escutava da televisão, mas o padre usava expressões muito complicadas, que hoje não recordo. Perguntei à tia Adélia:

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Tefa - Tia, o que é a morte?

Ela pensou um pouco e, depois de uma curta pausa, respondeu:

Tia - Morte é como quando estamos com uma roupa suja, tiramos, e colocamos para lavar. Quando a gente morre, a gente apenas troca de roupa.

Morte, para ela, significava troca, transformação, processo ou evolução. Particularmente eu ainda não sei como interpreto a morte. Sempre tive minhas dúvidas e acho um assunto complexo justamente por ser talvez uma das únicas coisas comuns a todos os seres vivos. Até onde sei, todo o ser vivo que nasce vai morrer, e isso me parece simples. Eu poderia até dizer que a morte é democrática, é para todos, e a admiro por isso. Acho bonita, cruel, perversa, necessária, e nesta perspectiva também a vejo como transformadora. Acredito que a morte de um corpo transforma, além dele próprio, o seu entorno: a terra que é alimentada com os dejetos das bactérias que devoram o corpo e fica mais fértil, o ar que recebe mais gás carbônico com a decomposição do corpo e contribui para a vida das plantas que permanecem vivas, o filhote que fica órfão durante uma caçada e busca outra família para crescer, a mãe que perde o filho e tem que aprender a lidar com a falta. Eu ainda não entendi se a morte é boa ou ruim, o que sei é que exige de mim

desapego. Ao mesmo tempo em que é bom recordar

momentos, cheiros, sabores, e que muitas vezes gostaria de me prender perpetuamente a certos

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passados, preciso de uma boa dose de desapego para seguir sem a concretude, a materialidade dessas coisas no futuro. Transformação e desapego, a morte me move dessa forma. Morte. Muoóaéeirte. O caminho das vogais nos aquecimentos vocais, que geralmente iniciam com bocca chiusa: MMMMMM U, O, Ó, A, É, E, I - RTE. Neste caminho também encontro a palavra ARTE. MMMMM U, O, Ó, A, É, E, I – rte. Parecem caminhos semelhantes, e não apenas para as vogais. Lembro no início deste ano, uma noite quente de verão em Porto Alegre, meu companheiro, Rafael Salib e eu discutíamos sobre vários assuntos ao mesmo tempo, entre uma cerveja e outra, e de forma randômica, vários deles se misturavam. Rafael é graduado em música e neste dia em questão estava terminando sua dissertação em Etnomusicologia pela UDESC. Temos o hábito de discutir questões relacionadas à arte, à cultura e à política. Não recordo bem como, nem em que momento, mas ele chegou ao nome de Umberto Eco. Tentávamos lembrar, durante a tontura da bebida, a forma como o autor definia a palavra morte. Arriscamos várias definições com preguiça de pesquisar, mas por nenhuma das respostas nos satisfazer, fomos, então, até à obra Definição da Arte (1972). Lá estava o polígrafo do livro sublinhado, com dois olhos desenhados apontados para o parágrafo: “tomando a palavra morte não no seu significado comum de fim, termo último, mas no significado dialético de Auflösung (dissolução-resolução)”. (ECO, 1972, p.125). Umberto Eco estava justamente comparando a palavra morte à poética da arte, à arte. Essa analogia de morte e arte é dele, e nela hoje percebo o processo de Due Lati della Campana. Desapego, transformação, dúvidas,

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reinvenção, “Não nos darmos migalhas”, como dizia a professora Ana Cecília Heckziegel13 durante minha graduação. Um processo vivo, pulsante. A cada encontro muitas cenas e construções, que no dia anterior pareciam soluções interessantes, eram reestruturadas. Mortes trabalhosas, difíceis, necessárias e que traziam um cheiro delicioso de roupa limpa.

2.2 Sonhando com os pés no chão...e descalços.

Desde que iniciei a pesquisa sobre a história de Maria Scariot, venho me interessando sobre cantigas, folclores e danças típicas italianas, acho que pela intenção de me aproximar do contexto da imigração e entender melhor o mundo no qual as mulheres viviam. Minha cunhada Kátia Salib, docente em dança pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), certa vez comentou comigo sobre a origem da dança tarantela. Segundo ela, a palavra tarantella tem origem na palavra tarântula, a aranha, e refere-se à lenda das jovens colhedoras de ervas que, durante a lida, eventualmente eram picadas pelas aranhas. Buscando por mais informações a respeito da dança, encontrei na dissertação A flor da Pele, da artista

13

Professora da disciplina de Atuação III, no Departamento de arte Dramática da UFRGS. Sempre ao realizarmos exercícios ela gritava esta frase, ao som do pandeiro que tocava, como forma de estimular-nos a buscar resultados melhores.

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visual Maria Angela Di Sessa, a explicação do mito que a sustenta:

0 sul da Itália a era o lugar favorito de Dionisio. Especialmente em Taranto, os ritos chamados Bacchanalia continuaram a existir e toda a cidade participava dele em estado de euforia. Este ritual se tomou mais popular na Idade Media como uma dança de transe e purificação para curar mulheres afligidas pela mordida da aranha mítica. Este estado, conhecido como tarantismo incidia sobre mulheres camponesas, submetidas à repressão patriarcal, assim como a exploração sexual de senhores medievais. As mulheres sempre foram mordidas enquanto trabalhavam arduamente no campo, debaixo do sol quente. Alucinadas, elas realmente viam a aranha vir em sua direção, sentindo uma forte dor de estômago, fraqueza nas pernas e caindo no chão. A mulher mordida torna-se a "tarantata" e sua única possibilidade de cura era a dança chamada ''Pizzica Taranta", pela qual ela entra em contato com a "taranta". Na época de Solstício de Verão, vestidas de branco, elas dançavam freneticamente, por 3 dias, carregando fitas coloridas sob o som de rabecas e, principalmente, sob o ritmo de pandeiros tocados de forma muito veloz (ritmo 6/8), podendo girar em torno de uma árvores ou em uma corda atada ao teto da casa. Os músicos são tratados como médicos ou xamãs que durante o ritual têm que

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encontrar através do improviso uma melodia adequada e um acento especial que efetive a cura. No último dia, as tarantatas são curadas quando têm a visão de Sao Paulo. (SESSA, 2002, p5)

Interessei-me pela história, principalmente por ser uma dança que se refere às mulheres italianas, que resguarda um espaço em que apenas elas poderiam ocupar. O protagonismo é todo delas – mesmo que seja um tanto simbólico o fato delas dançarem até tirarem a febre, o calor do corpo. Kátia também me apresentou alguns videos da cantora e bailarina italiana Alessandra Belloni14, uma figura pela qual me apaixonei. Ela tem uma aparência que me remete aos ciganos, a um povo muito ligado à terra (enquanto elemento, não como propriedade), ao fogo, à força e à energia. Ela tem a pele cor de mate, cabelos longos, negros, baixa estatura, um corpo forte, e canta como se estivesse gritando sua vida aos ventos. Acredito que por lidar com a rigidez do ballet clássico ao longo da vida, em que tudo é impecavelmente organizado, desde a sapatilha que deve ter o nó das fitas escondido, até o coque sem um fio de cabelo fora do lugar, uma figura como Alessandra Belloni é libertadora. Sempre fui uma

14

BELLONI, Alessandra. Tarantata: Ritual Drumming & Dance.

https://www.youtube.com/watch?v=y6pF5A9IYek acessado em 12 de Agosto de 2015. BELLONI, Alessandra. Tarantella: Bite of the Spider. https://www.youtube.com/watch?v=oKbmO2c20fo acessado em 12 de agosto de 2015.

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amante dos desafios que colocavam meu corpo em teste. Subir cada vez mais a perna do arabesque, girar 2 voltas a mais na pirouette, acrescentar 2 segundos de equilíbrio numa atitude, representavam boa parte das minhas motivações em dançar. Cada conquista era resultado de muita labuta e repetição Os desafios, agora, seriam outros: Pés descalços, cabelos soltos, dançando com o quadril livre, é uma correnteza forte contra a maré na qual nadei dos 03 anos de idade até os 19. Sabe aquela pessoa que você vê e sente vontade de ser, pelo menos por alguns minutos? Pois é...Eu queria ser a Alessandra Belloni, e dançar, cantar e tocar pizzica como ela...e ser livre como ela aparenta ser pra mim, tal qual Maria. Quero que Maria seja como Alessandra Belloni.

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Figura 10 – Alessandra Belloni tocando pizzica

Registro buscado no site www.alessandrabelloni.com.

Não constam créditos da fotografia

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101

2.3 Os cafés de Stefanilasvki e Martchenko15

15

Com referência ao primeiro encontro entre Stanislavski e Dantchenko, num restaurante de Moscou, onde permaneceram por 18 horas conversando sobre suas pretensões quanto ao Teatro de Arte de Moscou. No livro Twentieth Centuring Actor Training, Sharon Marie Carnicke menciona o momento: “Their first meeting at a Moscow Restaurant lasted a legendary eighteen hours. Their conversation set into motion the company that would bring the latest European ideas in stage realism to Russia and news standards in acting to the world. “ (HODGE, 2000, P.12)

Figura 11 – Stefanislavski e Martchencko

Montagem da fotografia realizada pelo designer Breno Dallas,

com fotografias de Márcio e de Tefa.

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Antes do primeiro ensaio com Márcio, combinamos de tomar um café para conversarmos sobre o projeto do espetáculo. Somos integrantes da Cia Sopro, na cidade de Caxias do Sul, e por mais que a proposta do Due Lati...tenha sido feita por mim, conversamos sobre a ideia de trabalharmos para que ela seja parte do nosso repertório. Falamos sobre ideias iniciais acerca do argumento do espetáculo, e uma proposta desencadeava em outra. A cada café, mais ideias apareciam, mais empolgados ficávamos e mais café tomávamos. Em dado momento falei para o Márcio:

Tefa - Que bom este início de processo. Quem olha de fora nem percebe que estamos trabalhando.

Márcio - Como é bom se divertir

enquanto trabalha né?

Diferente daqueles processos

sisudos, mecânicos.

Tefa - Como assim sisudo?

Márcio -Sisudo...Frio...Sofrível.

Quando Márcio fala em maneira “sisuda...sofrível” de trabalho, acredito que ele esteja se referindo a alguns processos criativos pelos quais passamos ao longo de nossas carreiras, cuja disciplina era tão severa que o prazer da criação muitas vezes ficava em segundo plano: conversas não podiam acontecer durante o processo de criação, trocas de ideias entre o coordenador do

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processo e os atores também não, sem falar em risadas e momentos de descontração, porque poderiam tirar-nos do prumo do trabalho, desconcentrando a produção. Provavelmente eu tenha que levar em consideração também as relações estabelecidas entre nossas funções dentro destes processos: no Due lati della Campana somos co-autores, enquanto nos demais processos éramos ator e atriz que respondiam à uma coordenação. Na dissertação da pesquisadora e atriz Priscila Mesquita, intitulada Em busca de um teatro feminista: relatos e reflexões sobre o processo de criação do texto e espetáculo “Jardim de Joana”, ao tratar da construção do espetáculo a partir do método devised theatre, a autora coloca:

Os procedimentos do grupo demonstram uma forma de trabalhar que busca a democracia, a divisão de tarefas, estimula a capacidade de decisão, encoraja a colocação individual de ideias, proporcionando um crescimento para nossas vidas pessoais e profissionais. Trata-se de um processo muitas vezes problemático, pois requer momentos de negociações, acordos, debates. Mas são estes percalços encontrados no caminho, estes embates, desejos opostos, que nos tornam sujeitos mais empoderados, ao aprender a negociar as decisões em grupo, de forma horizontal, sem que essa decisão venha de cima para baixo como acontece em grupos organizados

hierarquicamente. (MESQUITA, 2012,

p.63)

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Essa é uma das buscas que temos em comum, Márcio e eu: o respeito pelas diferenças, aprimorando a capacidade de diálogo com o que não é nosso par. Algumas pessoas poderiam dizer que dispender 10 minutos do dia para decidir se vamos tomar café ou iniciar o ensaio logo que chegamos é perda de tempo...Nós achamos que é investimento. Investimento na relação...No aguçamento de nossa escuta...Do nosso olhar...Enfim decidimos: pode fazer parte da nossa disciplina, ou seja, do nosso compromisso com o trabalho, um momento para um café, antes de nos colocarmos dentro da sala de ensaio, para conversarmos sobre quaisquer coisas: ideias, como passamos o final de semana, o que aconteceu de um dia para o outro, notícias acerca da política brasileira, indicações de referências bibliográficas sobre feminismo e gênero...Tudo isso parecia nos aproximar enquanto sujeitos e criava um ambiente de maior intimidade e troca para o início do trabalho prático. A “hora do cafezinho” passou a fazer parte de todos nossos encontros, sem que a estipulássemos como uma atividade obrigatória - embora dedicássemos 1 hora por dia para ela. Apenas tomar um café, conversar e também estipularmos o roteiro do ensaio que viria a seguir. (Sirvo uma xícara de café forte, pego uma colher de creme de avelã, volto à página anterior e retomo o primeiro dia de encontro com Márcio, quando aconteceu a primeira “hora do cafezinho”.)

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2.4 “Um cafezinho antes do ensaio é muito bom pra ficar pensando melhor”16

(Na primeira “hora do cafezinho”, Márcio e eu conversamos e estruturamos algumas ideias do que será o espetáculo Due lati della Campana)

Márcio – Tá, mas vamos ver se

eu entendi...tu quer tratar da

história da tua tataravó da

forma mais real possível, ou tu

quer usar esta história como

base para criação de outra

história?

Tefa – Eu pretendia a segunda opção. Não tenho interesse em mostrar que ela foi casada com um árabe, mas acho interessante mostrar que ele era alguém diferente do lugar de onde ela vinha, e essa diferença foi importante para ele relevar certas condutas ou modos de vida dela, que para o contexto onde ela morava eram determinantes para sua inserção ou rechaço. Também não sei se necessariamente o

16

Referência à música A Praieira, da banda Nação Zumbi, do

álbum Da Lama ao Caos. 1994.

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pai dela necessita falar italiano, sabe?

Márcio- Pois é...Eu também

tenho dúvidas sobre isso. Acho

que ele podia se construir a

partir dos modos dele relatados

pelo teu avô, pela tua tia, mais

do que entrar na coisa do

sotaque, do estereótipo

italiano.

Tefa – Isso, beleza....aí já temos dois personagens masculinos: o pai da Maria e o marido dela. Tu acha que a gente precisa mostrar “todos” os homens que ela teve?

Márcio – Hmmm...Não sei.

Quem faria estes personagens

masculinos? Eu faria todos?

Tefa – Acho que sim... Acho que seria uma forma de enfatizar o protagonismo dela, sabe? Imagino ela sendo interpretada de uma forma mais realista, tentando desmistificar a mulher puta, santa...e os homens de forma mais caricata, farsesca, a partir de características, tipo: o pai (mandão), amante (fanfarrão), marido (bonachão).E ela sendo uma única mulher passando por todas essas fases: guerreira

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(brigando com o pai, ora ganhando, ora perdendo), lasciva (seduzindo o fanfarrão), bondosa (conhecendo aquele que será seu marido)...entende? Não sei se exatamente isso...mas nessa onda.

Márcio – Aham, legal. Os

figurinos poderiam ser assim

também. Ela usando roupas

mais nudes, mais singelas,

fáceis de combinar com

qualquer cor, enquanto eles

podem usar casacos bem

espalhafatosos, cheios de

brilho, lantejoulas, cores

vibrantes... Os casacos podem

até ser elementos de

referências dos homens, e tu

pode jogar também com eles,

mesmo que eu não os esteja

vestindo, né?

Tefa – Isso...(Pausa) Seria legal se tivéssemos esses casacos hoje, para testarmos. Olha só: tem um brechó aqui perto. E se fôssemos pesquisar algumas roupas, nem que sejam só para ensaios, mas para já nos aproximarmos destes elementos e ver como podem funcionar em cena?

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Márcio – Sou parceiro.

Sobre as possibilidades de descobrir e optar por variadas formas para o início do trabalho, referencio-me nas palavras de Oddey (1994)17,

Devised Theatre demanda decisões sobre como e onde começa. Isso é diferente de teatros baseados em texto, no qual a escrita determina e define os parâmetros da performance e os conteúdos (ODDEY, 1994, p.7).

Foi assim que Márcio e eu iniciamos nosso trabalho, entre a cafeteria e o brechó.

(Pausa. Sirvo outra xícara de café forte, pego os primeiros diários de ensaio registrados, no qual consta a continuação deste dia, e sigo adiante nos relatos. A partir de agora entro na parte dos figurinos. Tim-tim.)

17

“Devised Theatre demands decisions about how and where to

begin. This is different from text –based theatre, where the play script defines and determines the parameters os the performance, homewer abstract the content might be.”(Tradução minha)

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2.5 Construindo as carapaças no brechó.

Conforme fala Eugênio Barba em A arte secreta do ator (1995), “No oriente, e às vezes também no ocidente, o princípio é usar o figurino como um parceiro vivo” (BARBA, 1995, p.219), por isso optamos por iniciar o processo a partir do brechó, porque lá podemos encontrar os parceiros que estarão jogando conosco desde o início. Márcio eu chegamos ao brechó, naquela tarde de calor insuportável. Os termômetros marcavam 38 graus, e o ar parecia não existir. O brechó tinha aquele cheiro de roupa velha, misturado com um cheiro horroroso de esgoto, que vinha do terreno ao lado. Não tínhamos a menor vontade de experimentar roupas, e quanto antes saíssemos de lá, mais nossa saúde poderia ser preservada. Ainda não sabíamos ao certo o que olhar, sabíamos apenas que procurávamos por casacos. Mexendo nas araras de roupas, encontrei uma regata roxa, com um tecido leve, maleável. Namorei a blusa por alguns instantes. Pensei se Alessandra Belloni usaria aquela blusa ou não, pensei também em como aquela blusa poderia dialogar com o espetáculo, já que o corte dela era bastante atual. Não que tivéssemos a pretensão de tratar de um tempo antigo, mas é uma blusa que podemos ver em qualquer pessoa na rua. “Talvez se fosse customizada”, pensei. Decidi levar, porque o que me chamou mesmo atenção nela foi sua cor roxa. O roxo é considerado a cor simbólica da classe política das mulheres a partir da década de 1960, durante a segunda onda do feminismo. Segundo a edição 5

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dos Cadernos do NPC 100 anos do Dia da Mulher 1911-2011,

A cor roxa já havia ensaiado seus primeiros passos nas lutas das mulheres, na Inglaterra dos anos 1914-18. Eram as bandeiras das sufragistas. As socialistas e comunistas continuavam com a cor vermelha. Hoje, a nova cor, o roxo é a marca tanto das mulheres socialistas quanto daquelas que defendem o capitalismo, mas lutam com garra contra a opressão e a dominação das mulheres. (NPC, 2011, p 12)

Assim, mulheres comunistas e de demais ideologias se reuniam em prol da luta comum contra o machismo. Gostei do roxo.

Tefa – Marcinho, o que tu acha dessa blusa roxa?

Márcio – (Pausa, analisando a blusa) Hmmm...Não é muito

atual?

Tefa – Pois é...também pensei nisso...mas é que na real eu curti a cor.

Márcio – A cor é boa...Escolhi

alguns casacos pra provar, mas

acho que podemos partir das

cores também. Já ajuda, assim

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não preciso provar tanto

casaco neste calor. Sabe que eu

fiz uma disciplina na faculdade

neste semestre e na disciplina

de Linguagens Visuais

aprendemos algumas técnicas

utilizadas por artistas para

causar tensões ou relaxamento

no público. Por exemplo,o

amarelo tenciona com o roxo, e

o roxo, por sua vez, entra em

harmonia com cores como

vermelho e branco, porque o

roxo se utiliza de duas cores

primárias, vermelho e azul, e o

amarelo não. Ao passo que o

roxo é parte do vermelho, e o

branco uma junção de todas as

cores, contemplando inclusive o

roxo...Então a gente podia fazer

assim: o amarelo podia

representar o pai, pelos

momentos de tensão com a

filha; o vermelho podia

representar a paixão do amante

com Maria; e o branco podia

ser “a paz” do

casamento...hahahahaha. O que

tu acha?

Tefa – Nossa! Massa! Não sabia dessas coisas... Beleza. Prova estes casacos e vê o que tu acha, se te servir, levamos. E na parte de baixo o que vamos usar? Podia ser algo da mesma

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cor para os dois. Tipo preto...Pra ti uma calça semelhante à social, mas com mais maleabilidade para se movimentar, e para mim uma saia.

Todos os vídeos que assisti, a partir da Alessandra Belloni, sobre danças e músicas folclóricas, as mulheres usavam saias compridas, com pontas e cortes assimétricos. Talvez para Maria fosse interessante algo neste sentido, algo desordenado, desestruturado. Para decidir o que Márcio usaria partimos das imagens e fotografias das fotos antigas de minha família. Os homens usavam calças neutras, geralmente escuras, compridas e de tecidos que pareciam linho.

Márcio – Encontrei esta calça

aqui bem confortável...e de

longe parece social. O que tu

acha?

Tefa – Acho que para o momento está boa. Quer ficar com ela?

Márcio – Acho que sim...Mais

adiante, qualquer coisa,

mudamos. Tu já encontrou algo

pra ti?

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Tefa – Não, ainda não. Me ajuda a procurar? Eu queria uma saia meio sem pontas, esvoaçante... uma saia que me desse movimento, que desse a impressão de que nunca está parada.

Márcio- hahahaha...Não quer

mais nada? Tá, vamos

procurar.

Encontramos a saia que eu queria. Parecia que ela tinha vida própria. Acho que a dona da saia cortou-a e customizou-a com as pontas. (Tive a impressão de entender e visualizar a moça modificando sua roupa). Exatamente como imagino que Maria faria: pegaria suas roupas alinhadas e desalinharia como forma de tentar fugir daqueles costumes, inclusive representados pela moda da época. Vou levar esta saia.

2.6 A segunda pele, o figurino

Depois que o espetáculo estava estruturado em roteiro e semi-pronto em cena, chamamos a figurinista Carine Panigaz para assistir a um ensaio, mas devido ao tempo escasso disponibilizado por nós naquele dia, concordamos que Carine teria seu primeiro contato a partir do vídeo gravado por Gabriela. Carine é atriz, figurinista e cenógrafa em

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Caxias do Sul, bastante requisitada principalmente para concepções de figurino para teatro e cinema. Trabalhamos juntas na Cia teatral Atores Reunidos, e também nas produções da Cia Sopro. Ela é muito conhecida por sua criatividade, agilidade na confecção e principalmente por fazer grandes figurinos com material reciclado e barato. Neste momento, sem financiamento ou apoio algum, apenas com algum recurso da companhia, é imprescindível a economia de verba.

Tefa – Então, Cá, o que tu achou do vídeo?

Márcio- É...o que tu captou do

espetáculo?

Carine – Eu achei muito legal, e

várias imagens vieram. A tua

saia, Tefa, podia ser cheia de

camadas, que a cada momento

ela se transforma. Tipo no

momento do parto, seria muito

massa que ela tivesse algum

lugar para esconder as

ferramentas, com alguma corda

que tu manipulasse de maneira

tranquila, sem precisar se

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abaixar para que elas

entrassem em cena. Imagina

que legal tu vir caminhando na

diagonal e largando as

ferramentas pelo caminho,

como se estivesse “parindo e

andando”...hahahahahaa...algo

casual.

Neste diálogo parece clara a maneira como o figurino pré-selecionado auxilia na criação de cenas; como esta cena pré-elaborada contribui para o desenvolvimento da concepção do figurino, e posteriormente como a cena pode ser modificada a partir do figurino oficial. No início da minha graduação em Teatro, no ano de 2007, participei da produção referente aos 50 anos do Departamento de Arte Dramática da UFRGS (DAD), chamada Yvonne, princesa da Borgonha, do dramaturgo polonês Witold Gombrowicz, dirigida pelo então docente do DAD Irion Nolasco. Irion é um dos diretores mais antigos de Porto Alegre, e na maioria de seus trabalhos ele conta com a figurinista Rô Cortinhas, também a mais antiga da cidade. Dos aprendizados que tive com ela, um dos mais importantes foi: “o figurino deve ser a segunda pele do ator, e a primeira pele do personagem”. Buscando sua dissertação de mestrado, encontrei o seguinte trecho:

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O figurino impulsiona a criação e materializa o personagem, amplia a expressividade do corpo e é quando a máscara se mostra, tudo aquilo que é dado ao ator portar em seu próprio corpo, um conceito marcado, determinado e estabelecido. O artifício externo oculta o ator num fenômeno de metamorfose. (CORTINHAS. 2010, p38)

Com Rô aprendi a valorizar o figurino como um objeto sensível que me modifica e pode ser modificado conforme o jogo que proponho. Pode servir como um estímulo para criação, como um alicerce, como algo que está comigo e integra o personagem. Mais do que vestir, ele pode significar.

(Voltando ao diálogo com Carine)

Tefa – Pois é...A gente pensou em fazer o figurino dela mais neutro e os dos personagens masculinos mais chamativos, coloridos.

Carine- Tua acha mesmo? Eu

acho o contrário, porque ela

tem que chamar a atenção da

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história, a mulher é a

protagonista de tudo isso. Os

homens apenas passam por

ela. Eu faria os homens todos

com cores mais escuras ou

nude, e ela toda exuberante, e

vibrante..

Tefa – Hmmm... É que pensei que o protagonismo dela estivesse justamente na subjetividade dela, no que ela é, e não no que aparenta. O jogo de poderes que ela faz é muito sutil. Por exemplo: o pai a coloca de castigo no quarto e na hora ela aceita, porém, quando todos dormem ela foge às escondidas para encontrar seu namorado. Por mais que o pai acredite estar impondo regras à filha, ela as burla, exercendo seu poder pelas fissuras que aparecem, entende?

Carine – É que eles são figuras

comuns na sociedade, que

seguem a neutralidade de

todos. Até pensei em cortes

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destes ternos que sejam bem

comuns pra eles, bem

padronizados. Ela, em

contraponto, é que se destaca

dos outros, porque é uma

mulher dona de si, do próprio

corpo, das próprias atitudes.

Ela é peculiar, vai contra a

regras, tem a vida colorida..

sabe?

Tefa – AAAhhh, legal, parece bem interessante isso. Seria bom termos essa saia o quanto antes para ensaiar, já que provavelmente ela modificará também questões de cena.

Solicitei à Carine que me enviasse, quando pudesse, algo escrito sobre suas reflexões acerca dos figurinos. Naquela mesma noite, ao chegar em casa, abri minha caixa de e-mails e lá estava o dela: “Figurinos Tefa”:

Para compor o figurino da

personagem protagonista do

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espetáculo e também da sua

vida, foram escolhidos símbolos

que delicadamente revelam

esta figura cheia de

personalidade. Como símbolo

de feminilidade, “Maria” usará

uma saia longa e vistosa, cheia

de camadas com duplos de cor

e tecidos, por fora cru, de

algodão forte e resistente em

oposição ao lado de dentro,

azul esverdeado de tecido leve

e semitransparente que além

do símbolo trará movimento e

volume. Esta saia terá um corte

“envelope” para que possa abrir

e fechar tornando-a reversível e

versátil, podendo tornar-se uma

capa para protegê-la quando é

expulsa de casa por exemplo.

Para o cinturão será utilizado o

crochê como referência à

cultura das italianas imigrantes

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que expunham nas suas casas

e nos filós seus artesanatos

com crochê e outros bordados,

prática esta muito comum entre

elas. Abaixo desta saia teremos

uma bombachinha de algodão

delicado e bordas de crochê

que ficará acima dos joelhos.

Para os pés polainas longas

que deixem os pés desnudos,

no chão. Na parte superior, será

utilizada uma regata simples,

semitransparente de tecido leve

que revele sutilmente a falta de

sutiã criando ao expectador

uma sensação de liberdade.

Além disso, utilizará um casaco

de cor neutra, com corte

semelhante ao da figura do pai,

criando um vinculo simbólico de

elementos para unir estas duas

figuras. Quando “Maria” é

expulsa de casa pelo pai, tira o

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casaco que simboliza sua

família e o abandona

juntamente com o seu nome de

batismo.

O personagem masculino

utilizará uma roupa base de

malha para facilitar a

movimentação do ator além de

denominar certa neutralidade

que se faz necessária para este

personagem. Entretanto, esta

roupa base de malha será

confeccionada com modelagem

de roupa social masculina como

camisa e calça além de um

suspensório largo que trará

formalidade a esta figura. Para

esta roupa será utilizado um

tom de azul cinzento

desbotado, que mantem a

neutralidade e supõe um ar de

frieza. Quando se transforma

em outros personagens, veste

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um casaco, com modelagem

masculina e particularidades de

cor para diferenciar.

O figurino passou a ser significado dessa forma, a partir das singularidades de Maria, como uma mulher deslocada de seu tempo. A água que encontra espaço para passar através das fissuras de um rochedo, com suas ondas e curvas. Para os personagens masculinos, os figurinos retratam a uniformidade, as normas do patriarcado, a classe política da linearidade e da ordem. O rochedo forte, imponente, que a olho nu parece intacto, mas que pressionado pela insistência da água acaba cedendo e sendo vencido pela sua sinuosidade. O jogo de poderes entre os gêneros mostrados a partir da relação entre os figurinos.

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Figura 12 – Figurino – a segunda pele

Registro meu, no quintal de minha casa (2015)

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2.7 Músicas para Maria dançar. Durante minha graduação, interessei-me muito pela forma como Arianne Mnouschkine trabalha com os atores de Theatre du Soleil18, partindo de improvisações em que os criadores dialogam com músicas e ritmos também improvisadas no momento. A música propõe, a meu ver, melodias, ritmos, variações de intensidade, de volume, se transformando num ponto comum pelo qual nós atores trabalhamos, como se estivéssemos utilizando de um mesmo alfabeto para escrever um texto colaborativo. No caso do Theatre du Soleil, o alfabeto também se modifica, porque a música é criada no instante com os atores, a partir do jogo que é proposto entre os atores. Segundo Picon-Vallin, no livro A arte do teatro entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea (2006),

Para Ariane, a música denuncia a ausência de pausa, pois se Jean-Jacques toca sobre o movimento e o ator fala ainda em movimento, nada mais funciona. (...) A música impõe uma limpeza do movimento, do deslocamento e do texto, que é essencial. Ela impede que se gagueje com os pés, com a boca, com os olhos e, sobretudo, com o coração (PICON-VALLIN, 2006, p.125)

18

Grupo teatral francês criado em 1970 na França, e que tem

seus processos criativos baseados no trabalho coletivo e colaborativo.

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Por impossibilidade de ter um Jean-Jacques Lemâitre acompanhando todos os ensaios, e criando as músicas e cenas conosco, tivemos que recorrer a músicas já gravadas e registradas. No início do trabalho, antes mesmo de iniciar o processo em sala, pesquisei algumas músicas italianas com base naquelas que Alessandra Belloni tocava em sua pizzica, pois achava interessante ter referências sonoras do universo que queria pesquisar, como estimulos para criação cênica. Inseria as palavras pizzica, tamurriata, tarantella, Alessandra Belloni no youtube, e algumas opções eram oferecidas, dentre elas o grupo italiano formado em 1970 Nuova Compagnia de Canto Popolare19. Este grupo trabalha com músicas folclóricas italianas e músicas medievais em dialeto Napolitano, e me chamou a atenção, principalmente nos vídeos da época de sua formação, pela performance cênica dos intérpretes, que no período deviam ter entre 20 e 30 anos, e me

remetia aos hippies e toda a liberdade que eles propunham. Alessandra Belloni e Nuova Compagnia de Canto Popolare foram as principais referências sonoras para o processo inicial do trabalho, e serviram como pontos de partida para improvisações de cena e para os momentos de pré-cena e aquecimento, momentos e que relatarei no capítulo a seguir. Mesmo criando um forte vínculo com a sonoridade das músicas e com o universo que elas ajudavam a criar, não era opção mantê-las até o fim do processo do espetáculo. A questão da autoria 19

NUOVA Compagnia de Canto Popolare. Tamurriata Nera. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=eDjBF_24Ojw. Acesso em: 15 de outubro de 2015.

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para este trabalho era um aspecto bastante importante para Márcio e para mim, e sentíamos necessidade de levá-la para todos os elementos de cena, desde a dramaturgia até a trilha e sonoplastia. Conversei com Rafael Salib, meu companheiro, sobre a possibilidade dele criar as músicas para este trabalho, e ele aceitou. Conheci Rafael durante a montagem do espetáculo de 50 anos do DAD, Yvonne Princesa da Borgonha (comentado anteriormente), cuja criação da trilha estava sob sua responsabilidade. Mais tarde trabalhamos juntos na pesquisa de mestrado Oo de casa!, de sua irmã Kátia Salib, e dois anos depois ele compôs as músicas do meu espetáculo de graduação (E)terno.

Tefa – Rafa, e aí, tu aceita trabalhar na trilha do Due Lati?

Rafa – Claro que sim, mas terá que ser depois de julho, porque até maio tenho que entregar minha dissertação final à UDESC e organizar as aulas que não dei por conta da escrita. Só se puder ficar para o segundo semestre.

Tefa – Não tem problema, por enquanto vamos criando com as músicas que já temos.

Rafa – Que músicas vocês estão utilizando? É

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aquela Tamurriata que tu escuta direto?

Tefa – Aquela é uma delas, mas tem muitas outras.

Rafa – Vou fazer uma pasta no dropbox e ai tu me envia todas elas. Posso partir delas para criar as músicas, assim vocês não precisam mudar todo o espetáculo para a entrada da trilha.

Essa também foi a forma como trabalhamos no (E)terno: eu buscava referências de sonoridades para criar as cenas, depois mostrava as gravações dos ensaios à Rafael, e ele compunha e organizava as músicas a partir do material que ele via e escutava.

Tefa – Rafa, aí te peço para que, quando tu começar a desenvolver a concepção das músicas, me mande um texto falando sobre tuas ideias e de onde tu partiu, para eu inserir na dissertácão.

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Rafa – Mando sim. Uma coisa que já tenho em mente é que a trilha seja interpretada por mulheres, já que teu trabalho fala sobre o protagonismo da mulher sobre a própria história. Vou falar com minhas ex-colegas de mestrado, a Safi, a Ana...seria massa a Isabella também.

Tefa – Tu acha que a mulher intérprete pode ser protagonista numa trilha em que será composta por um homem? Agora tu me fez pensar que seria interessante uma mulher compor a trilha...hehehee...Porque parece algo do tipo: “eu crio, mas darei oportunidade às mulheres para interpretarem, porque o trabalho é sobre isso”. Não?

Rafa- Olha...na minha visão o autor cumpre apenas uma função que é tão importante quanto do intérprete, tu que está colocando uma hierarquia

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aí. Não me vejo em um patamar acima nem enquanto homem, nem enquanto autor. Imaginei uma estrutura de trabalho de composição colaborativa, na qual o intérprete...

Tefa – As intérpretes...

Rafa- Oi?

Tefa – Fala no feminino...São AS intérpretes.

Rafa – Tá...AS intérpretes

também são propositivas, à medida em que elas negociam comigo e eu com elas o resultado expressivo sonoro.

Tefa – Tá...o que tu está querendo dizer é que elas também inserem a subjetividade delas ao interpretarem e que por isso ajudam a criar a trilha. Isso?

Rafa - Não, porque elas não “inserem subjetividade”, elas negociam o resultado e

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constróem sonoro. Porque esta subjetividade que tu está falando é óbvia, acontece em todos os processos composicionais. Eu estou falando de processo composicional colaborativo.

Tefa – E tu acha que a subjetividade por ser “óbvia” não é importante num processo colaborativo?

Rafa – Claro que é, mas não é sobre isso que estou falando.

A discussão se estendeu por duas térmicas de chimarrão, cada um tentando compreender como o outro pensava a questão da autoria. Fui até o livro Palavra da crítica (1992), de João Adolfo Hansen, buscar o conceito de “autor”, a partir de sua etimologia. Segundo Hansen, “autor” tem origem no latim, mas está ligada a “autor”, e aproxima-se do significado de mestre, aquele que faz surgir, fundador, líder. Neste sentido, a meu ver, se cada um/uma fará surgir ou liderar sua própria interpretação ou função dentro da trilha, todos estarão sendo protagonistas na criação da trilha. Isso tem a ver com a forma como Rafael se referia à questão do processo composicional horizontal, em relação à estrutura organizacional do trabalho, e

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também à maneira como me refiro ao trabalho da intérprete, enquanto sujeita que (re)cria a obra ao interpretá-la.

Rafa - Tu acha, Tefa, que se tu substituísse o Márcio por uma atriz e a mim por uma autora, o teu trabalho seria mais feminista?

Tefa – Depende...depende da forma como se trabalharia, das discussões que aconteceriam e das opiniões.

Rafa – Então?

Tefa- Eu que te pergunto...então? Então por que tu escolheu mulheres para colaborarem com a trilha? Tu podia ter escolhido só homens, também.

Rafa – Trabalhando nestes anos em que já trabalho com música...uns 17 anos...tenho notado uma predominância da figura masculina, e notei esta predominância a partir

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das nossas conversas cotidianas...inclusive foi um aspecto notado na minha dissertação sobre músicos de blues no Brasil. Neste sentido, não só como autor/colaborador da trilha, como de outros trabalhos, tenho pensado sobre isso também.

As músicas não ficaram prontas a tempo da gravação do espetáculo, porque segundo Rafael, estava em final de semestre da faculdade onde é docente, e tinha muitas provas e trabalhos para corrigir, e notas para entregar. A trilha demandaria vários dias, talvez meses, para ficar pronta, porque necessitaria reunir todas as musicistas num só estúdio, trabalhar sobre a criação com elas, editar o material, para que posteriormente Márcio e eu pudéssemos retomar o processo e nos apropriarmos do que havíamos recebido. Assim, Márcio e eu preferimos manter as músicas antigas por enquanto...apenas POR ENQUANTO...

Tefa – Certo, Rafael?

Rafael – Certo, Tefa.

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Segue abaixo o relato de Rafael sobre suas concepções para a criação da trilha.

A composição da trilha para Due Lati Della Campana tem seu estímulo composicional fundamentado na interação dialógica com a cena, participando da construção desta. Tal processo é diferente de uma composição musical – ou evento sonoro - a qual o autor compõe a partir das intenções, individuais ou coletivas, cujo fim está numa experiência humana conduzida por tal evento sonoro - composição musical - inicialmente. A direção da Tefa conduz e adéqua a interação entre a cena e a trilha. Neste sentido, a composição da trilha e seu fim estão na contribuição desta mútua construção, dirigida por Tefa, em função da intencionalidade da cena e sua narratividade num

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âmbito geral, das suas variações de dinâmica, dos recursos de transição entre as sessões da peça teatral etc. Obviamente, a trilha sonora de Due Lati Della Campana pode ser apreciada de maneira isolada da cena, mas seu sentido fundamental está no convívio da interação/construção da peça teatral. Primeiramente, buscarei como inspiração as slave tracks utilizadas por Tefa nos seus ensaios para definir o caráter sonoro de cada parte da peça. Em seguida, comporei três temas que servirão de mote para improvisações conduzidas por mim e interpretadas por Camila Durães (violoncelo), Ana Zömmer (violino) e ana sant’anna (voz). O três temas serão interpretados e gravados em vários takes com a

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proposta de caracterizar cada take, buscando variações na dinâmica, expressão, andamento, tessitura, instrumentação (neste caso violoncelo e violino em duo ou solo – a voz será gravada individualmente), e gravando takes de interpretações dos três temas totalmente livres. Utilizarei, então, os áudios coletados como material sonoro para a composição da trilha, às vezes sobrepondo-os, às vezes editando suas características a partir de interfaces de manipulação de áudio ou softwares de efeito como delay, tremollo ou reverb, as vezes simplesmente aproveitando as “sobras” dos ruídos peculiares ao processo de gravação em si. A trilha original da

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peça será incluída de fato em 2016.

2.8 A luz em Maria Scariot

Durante o processo de criação não tivemos ninguém com conhecimentos técnicos sobre iluminação acompanhando nossos ensaios, e como desenvolvemos o espetáculo em menos de 6 meses (porque me organizei para primeiramente trabalharmos sobre a cena para depois eu iniciar a dissertação), não tivemos tempo para pensar na luz. Próximo às apresentações da Semana Performática da UDESC20, que aconteceu no mês de setembro, Márcio e eu sentamos para conversar:

Márcio – E como será a questão

da iluminação? Mandaremos

um mapa de luz para a UDESC?

Terá alguém para operar a

mesa? Mantemos a ideia que

temos trabalhado até agora?

Como funciona?

20

Evento organizando anualmente pelo Programa de Extensão

Laboratório de Performance com objetivo de refletir sobre o treinamento, a criação e pesquisa contemporânea em performance em seus imbricamentos com as diversas linguagens artísticas.

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Tefa – Olha, eu falei com o Rafa Schizzi para ver da possibilidade de acompanhar nossos ensaios durante este mês, e criar algum esboço para a concepção de luz, para encaminharmos à produção da UDESC, mas ele está muito atarefado com o espetáculo de rua dele e não conseguirá estar com a gente nessa...pelo menos por enquanto.

Rafa Schizzi é iluminador na cidade de Caxias do Sul, e trabalha em todos os espetáculos da Cia Sopro: (E)terno, Fauno e Os por fora da cousa. Logo pensamos nele como criador da iluminação e operador da luz, mas conforme fomos ensaiando, descobrimos maneiras de utilizar os materiais disponíveis nos espaços onde nos encontrávamos, operando nossa própria luz. Ainda não conseguimos que Rafa esteja presente nos ensaios, e por ora continuamos a seguir com o trabalho de acordo com nossas limitações. Durante a Mostra de Processos, realizada em fevereiro de 2015, na cidade de Caxias do Sul, organizada pela ACAT (Associação Caxiense de Teatro), apresentamos parte do processo do Due Lati...O espaço no qual apresentamos oferecia apenas alguns spots para iluminação, mas não oferecia opções de gelatinas. Estruturamos, então, o espaço cênico a partir das seguintes condições: a área central era iluminada com uma luz geral branca, tendo apenas sua intensidade modificada, e

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convencionamos sem luz os corredores nas laterais e no fundo do palco, onde ficavam os materiais para troca de cena, mesa para o som e a mesa de luz. Uma espécie de “tapete de Peter Brook”21, que denotava o espaço de jogo entre atores, e o que está fora dela espaço para resoluções técnicas. Na cena inicial, por exemplo, o público entra em completo escuro. Aos poucos inicio cantando Yo no sé donde naci. Conforme avanço na melodia, a luz central vai abrindo, lentamente, desenhando minha silhueta no espaço, para apenas ao final da música mostrar-me com o rosto amorfo. Como se alguém abrisse um baú escuro que conforme entra a luminosidade, vai dando vasão a recordações abandonadas. Na cena Deserdada, quando Márcio e eu cruzamos o palco, um de cada vez, fazendo referência à passagem do tempo, o que nos sugere o tempo, a tensão e o ritmo da caminhada é a cor amarela. Quando meu pé toca o fim do limite da luz, sei que atrás de mim, no outro extremo do palco, Márcio já iniciou seu trajeto, então desconfiguro minha caminhada e adoto outra para percorrer o corredor escuro, de forma a diminuir o foco sobre mim.

21

Os Espetáculos do tapete (Carpet Shows) eram apresentados

numa área cênica delimitada pelo tapete, sugerindo que um espetáculo teatral não necessariamente deveria ser apresentado num edifício teatral, mas em qualquer lugar, inclusive num tapete. O objeto era utilizado para trabalhar a quebra de perspectiva: quando o ator estava em cima do tapete, estava em estado de jogo, e quando estava fora dele, retomava sua postura cotidiana. Segundo a pesquisadora da UFRJ Larissa Elias: “[...] os tapetes definindo a área de representação; um teatro narrativo – contador de histórias; os atores como contadores – agentes e peças do jogo teatral; e a brincadeira como estrutura deste jogo.” (ELIAS, 2012, p3)

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O público se colocou em volta dos corredores delimitados pela penumbra, em semi-arena, aproximando seus olhares da área de atuação, estabelecendo uma relação diferente daquela projetada por nós no início do processo, sobre a concepção de realizar o espetáculo em palco italiano. Neste sentido, a luz participou da cena para nos ajudar quanto às convenções espaciais do que propriamente criar alguma sensação a quem assiste. Nos agradou a experiência e a praticidade para sua operação, então acabamos por mantê-la neste formato...Por enquanto. Das nossas pretensões para o futuro, está a questão de trabalhar as potencialidades da iluminação para o espetáculo.

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Figura 13 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro em Cena do Baile.

Registro de José Selbach

Disposição do público em semi-arena.

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Figura 14 - Márcio Ramos e Tefa Polidoro na cena A Doma da

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Registro de José Selbach / 2015

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142 “O mais importante do bordado é o avesso”

22

(Bordadeira Angela Dumont)

3 BORDANDO A HISTÓRIA NO TECIDO BRANCO – O que levo para mim de Due lati della Campana

3.1 Das laterais do pano ao desenho: optar para ser livre...ser livre para criar (Aquecimento e

momento de pré-cena)

O pano branco está pronto para ser bordado. As cores das linhas já foram escolhidas, no entanto existem muitas possibilidade para os desenhos, para os pontos, e ainda não sei por onde começar. Quando era criança e via minha avó Laura começar a se preparar para bordar alguma toalha, geralmente chegava próxima a ela e perguntava:

Tefa – Vó, o que a senhora vai desenhar hoje no pano?

Laura – Sabe que eu ainda não

sei? Eu começo sempre pela

barra do pano, assim, enquanto

me concentro para fazer as

22

Frase da bordadeira Angela Dumont, que compõe a música O

que eu não conheço, interpretada por Maria Bethânia. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zx_ghELTi78. Acesso em: 20 de outubro de 2015.

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bordas, vou tendo ideias do

desenho que posso bordar no

meio.

Assim eram os trabalhos de minha avó. A partir dos pontos de bordado aprendidos com sua mãe, avós, tias, comadres dos tempos do campo, ela imprimia nos panos brancos imagens que lhe surgiam enquanto realizava a parte mecânica do trabalho, os bordados das laterais do pano. Sua técnica de bordar era bastante precisa e organizada, o que lhe garantia certa segurança para criar novos desenhos, porém, lembro dela ter dificuldades em imaginar o que bordar quando ainda não tinha lavado toda a louça, ou quando estava prestes a receber visitas, ou quando ainda não tinha limpado a casa. Acredito que, apesar de sua técnica apurada para manipular as agulhas e o pano, sua atenção não estava plena em sua ação, não estava focada no seu propósito. Assim, a criação do desenho no pano só era feita quando ela não precisava dividir sua atenção com outras atividades. Quando sua mente estava lotada de compromissos e havia algum tempo sobrando para ela – esperar a roupa secar antes de dobrar, esperar meu avô chegar para preparar a janta, ou aguardar na sala de espera para algum atendimento médico - ela apenas bordava as laterais do pano. Assim como minha avó Laura, também construí meus bordados a partir das laterais. Eu-agulha, eu- manipuladora, meu corpo enquanto instrumento que eu mesma manipulo a partir das relações criadas com Márcio, com o espaço, com as músicas, com o chão, com as cores. Dona do meu corpo, da minha criação, das minhas escolhas. Meu

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feminismo em cena começa por este reconhecimento. No momento inicial do ensaios, das danças Tarantellas e Pizzicas, atravessava a sala de um canto ao outro em quatro passadas de pés. Lá fora os termômetros marcavam 35 graus. Meu corpo suava, estreitando a proximidade dele com a roupa. A blusa grudava em meu peito, os cabelos soltos e compridos pareciam sufocar quando fixavam em meu rosto, a saia longa preta que mostrava resquícios de momentos passados (eu me balançava para a esquerda mas ela continuava na direita; eu ía para frente e ela ainda estava na esquerda) e dificultava minha locomoção. Tinha que amarrá-la e segurar suas laterais nas mãos. Não era o momento de eu me apegar ao passado, eu sabia que ele estava lá, eu só queria dançar buscando o momento, o presente. Minhas limitações não podiam me aprisionar. Pensava em minha tataravó me dizendo:

Maria – Ora, menina, eu plantava alface com este calor, embaixo do sol, sem protetor solar ou guarda-sol. Esse era meu ganha-pão. Sem plantar, nada de colheita. Sem colheita, nada de dinheiro. Como sustentaria teus tios? Você aí jovem, se diz forte, vai reclamar de dançar por causa do calor?

Não era o cansaço que me faria parar, nem os milhares de fios de cabelo brincando de bater nos olhos, na boca, no nariz que iriam me impedir de dançar. Também não queria prender o cabelo porque

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a Maria que imagino provavelmente o mantivesse solto. Por outro lado, queria que Maria viesse em minha direção também, e não apenas eu à ela.

Tefa – Maria, com licença, mas vou prender meu cabelo. Maria – Tefa, o que você faz com seu cabelo é problema seu. Você mesma disse: “Seu corpo, suas regras”.

Fiz um coque, como bailarina que já fui. Maria sorriu. Quanto mais úmida e vermelha minha pele ficava, quanto mais eu resistia às dificuldades, mais purificada eu me sentia. Talvez fosse herança da disciplina do ballet clássico.

. (Bebo um gole de café, paro por alguns segundos de

bordar, e fixo meus olhos num aparente nada, lembrando...)

Kulubek Ishienayev, ensaiador russo do Kirov Ballet, com o qual trabalhei no período em que dancei no México, durante um ensaio de La Hada de la Fuente, gritou palavras bruscas para mim, em espanhol, numa sala de ensaio com mais de 50 pessoas:

- Cierra tus piernas en el “currú”, niña...Pareces

uns vaca ranchera! Essa frase foi gritada enquanto eu ensaiava. Não tinha tempo para escutar, parar, pensar, ensaiar e mostrar novamente a coreografia a ele. O

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aprimoramento tinha que ser na hora, naquele instante. Eu marejei os olhos, senti vontade de sair da sala, de largar tudo...queria ver minha mãe. Eu tinha apenas 13 anos, o tempo parecia passar com uma velocidade menor que hoje, e os xingamentos pareciam ter 30kg a mais. Tudo era muito intenso para mim. Depois do ensaio, Kulubek me chamou para almoçar. Pensei que iríamos ao refeitório da Escuela Nacional de Danza Y Música de Monterrey, onde eu estava estudando, mas ele me levou a um restaurante bastante requintado próximo à escola. Percebi que ele tinha carinho por mim, e que aquela era sua forma de trabalhar. Durante o almoço ele disse: “Bailarina boa é bailarina que sofre, e que esconde

suas angústias. Seu travesseiro deve ser seu melhor amigo.

Guarde suas lágrimas para ele, não demonstre na frente do

seu professor.” Hoje em dia questiono o fato de pensar no prazer a partir da dor e do sofrimento. Essa forma de entender a vida como uma recompensa depois da amargura, me remete à visão de paraíso e inferno abordada pela igreja católica - instituição a qual busco distância pelos motivos comentados anteriormente aqui. Gandhi, certa vez, falou que “Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.”. É nesta frase que prefiro me apoiar – muito embora, frequentemente, a minha construção de bailarina se mostre e embase meu trabalho. É um longo caminho de ir e vir sobre mim mesma... (O café acabou e o sol já deixou de bater na janela. Volto para a sala de ensaio e retomo meus bordados.)

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Era uma sensação libertadora. Era como se estivesse me fortificando para acertar as contas por Maria. Olhava para o Márcio, com seus olhos gigantes, verdes, e generosos, via meu parceiro de dança, mas também às vezes via os homens que fizeram Maria dançar. E se ela também os achasse generosos por alguma inocência, e assim fosse abusada? E se ela achasse normal o homem conduzir a dança? E se ela não quisesse dançar daquele jeito? Por Maria (e por mim!) várias vezes quis conduzir a dança, e algumas vezes, por conta dessa investida, o embate cênico aconteceu. Pronto! Lá se presentificava a relação de forças entre gêneros, entre Márcio e eu, entre a sociedade patriarcal e Maria: a dança- do -ventre-livre, a dança do acasalamento, a dança da violência. Eu queria ir por cima também, queria segurar Márcio no colo, queria girá-lo enquanto eu servia de base segura para ele, queria exercer um papel que me foi negado no ballet clássico. Queria ser a fortaleza além da sílfide, o grotesco além da harmonia. Queria todas as possibilidades para mim.... e neste sentido desejava o mesmo para Márcio. Que ele fosse a sílfide e a harmonia também. Experiências variadas que se completassem, que problematizassem as limitações das convenções culturais. Nosso espetáculo se constituiu assim. Por mais que tenhamos designado os papéis masculinos da história a Márcio, e o de Maria a mim, as rachaduras que Maria provocou na estrutura construída por seu pai e seus amantes estavam lá. Ela saltou, girou, montou, apanhou, bateu...num jogo dinâmico de aprisionamento e liberdade.

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Maria – Engraçado... Tefa – O que foi? Maria – Eu não fazia as coisas pensando em liberdade. Fazia porque estava afim. Nunca liguei muito para esta estrutura patriarcal que tu fala. Tu já pensou que tu pode estar vendo tanta liberdade em mim porque talvez esteja presa? Tefa- ................................................ Mas liberdade pode deixar de ser liberdade quando não se considera a opressão? Se não houvesse opressão talvez não existisse a necessidade de liberdade. Leonardo Boff, teólogo, ambientalista e filósofo, numa aula pública que assisti há pouco tempo em Caxias do Sul, disse que em algumas comunidades andinas não existe a palavra pobreza, porque pobre está em relação ao rico, e num lugar onde todos são iguais não existe excluído. Porém, se opressão existe e tu não percebe, tu pode ser livre?

Segundo a filósofa brasileira Márcia Tiburri, em texto publicado na revista De Mulher para Mulher, a liberdade é “ mais do que algo que se tem ou não se tem, que se sabe ou não se sabe usar. Ela é uma

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capacidade de pensar na própria vida e de optar de modo responsável pelas próprias escolhas”23. Saber optar de forma responsável pelas próprias escolhas....Saber optar de forma responsável pelas próprias escolhas...Talvez ela esteja se referindo a fissuras semelhantes às de Maria Scariot, às minhas próprias fissuras. Optar por conduzir a dança, optar por arriscar, optar por corromper normas. Talvez isso me leve à liberdade. Para optar tenho que ter ciência das condições com as quais convivo. Para escolher guiar Márcio na tarantella eu preciso entender que até agora foi ele quem me guiou, e refletir sobre os motivos de não dividirmos a tarefa. Talvez Maria não classificasse suas ações como feministas ou ativistas, ou não se percebesse como uma mulher que lutava por sua própria liberdade, mas certamente ela fez escolhas conscientes e optou por sua vida. Maria é livre. Se liberdade tem a ver com as opções conscientes que se faz sobre ou em relação a algo, eu mesma enquanto atriz e sujeita posso me libertar ou me aprisionar.24 Durante as danças, num dos ensaios, quando eu já não aguentava, a fadiga tratava de buscar auxílio em outro lugar que não no meu corpo. Dei-me conta que uma das janelas estava aberta, e por ela uma brisa fresca de vez em

23

TIBURRI, Márcia. De Mulher para Mulher. Disponível em

http://www.marciatiburi.com.br/textos/quadro_somoslivre.htm . Acesso em: 21 de dezembro de 2015. 24

Discordo um pouco de Sartre, neste caso, quando ele

trabalha no texto Entre Quatro Paredes a ideia de que “o inferno está nos outros”. Às vezes não são os outros que me incomodam, mas eu que me incomodo com os outros; ou ainda: eu me incomodo comigo mesma. Nestes casos, eu sou minha própria carrasca, meu próprio inferno.

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quando entrava. Um corpo que já não respondia da mesma forma como no inicio da dança, colocava-se em frente ao vento e deixava que ele conduzisse. O suor que já não escorria, mas evaporava levando consigo a estafa da carne. Ficava o prazer de brincar. A cada sopro, um impulso, um ímpeto aparecia. Movimentos, direções, tensões se modificavam, e junto de Márcio, em respirações equalizadas pelo ritmo do nosso contato, estava em troca com todo o ambiente. Maria, Márcio, eu, o vento, as músicas, dançando juntos, criando e sendo um único habitat. Preparando o pano para o bordado, preparando a terra para o plantio.

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Figura 15 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro Preparando o pano para ser bordado

Registro de Cristiano Prim na Semana Performática da UDESC / 2015

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(Neste momento em que escrevo, sinto meus olhos pesarem, e minhas mãos e pés frios devido ao tempo que estou sentada, sem me movimentar. Meu estômago dá sinais de fome. Olho pela janela aberta, sem grades, e vejo que o céu nublou. Começo a sentir o cheiro da chuva que se aproxima. Dou um gole no chimarrão, percebo o sabiá tomando banho na fonte, escuto um bem-te-vi cantar...Saio por instantes de mim...)

Figura 16 – Tefa Polidoro e Márcio Ramos Preparando a terra para o plantio...

Registro de Cristiano Prim na Semana Performática da UDESC/ 2015

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.

.

.Aprendi que posso me libertar de mim mesma a qualquer momento.

Aprendi que para criar é imprescindível que eu esteja livre25.

25

Retomando a noção de “liberdade” abordada por Márcia Tiburi (2015), no que concerne a possibilidade de escolhas. Para isso acredito que seja necessária uma mínima estrutura fisiológica, social e psíquica, considerando, por exemplo, a questão do aprendizado trazida por Paulo Freire na obra Pedagogia da Autonomia (1996), em que ele coloca como o princípio do aprendizado a alimentação do estudante, afirmando a necessidade de que esteja bem nutrido para que consiga se concentrar nos estudos. Fico me perguntando se uma criança que passa fome consegue optar por se libertar dessa situação, desviando sua atenção para outro lugar? ....Ou Como me questionou Brígida Miranda, minha orientadora: “É possível ser livre dentro das bordas de um pano engomado?”

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3.2 A cena do baile: bordar sem saber aonde vai...(Improvisações)

(Ao som da música Horizontes, de Almir Sater, retomo o diálogo com minha avó)

Figura 17 – “Para viajar no cosmos não precisa gasolina.” (Nei Lisboa)

Registro meu...entre uma página escrita e outra sendo pensada, na cozinha de casa.

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Porque será que o pensamento

Esse eterno viajante

Nos carrega a todo instante?

Sempre a procurar

Horizontes

Tefa – E agora, vó, a senhora já sabe o que vai desenhar?

Vó – Ainda não. (Pausa. Para de

bordar e me olha) Não precisa

ter pressa, Tefa. Antes de

qualquer coisa, eu bordo

porque gosto, porque me faz

bem, não tenho motivos para

atropelar todo o caminho. Eu

começo um desenho, aí vejo se

me agrada. Se eu não gosto,

desfaço e começo tudo de

novo. Eu não sei o que eu

quero, apenas o que não quero.

Tefa – É o que falei antes sobre o desapego...sobre a arte e a morte...sobre Umberto Ecco... Auflösung!

Vó – Como?

Tefa – Nada não, vó.

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Esta forma de minha avó perceber seu trabalho me remete aos ideais situacionistas26, no que refere a considerar mais o ladrilhar do que almejar uma chegada, interferir no espaço (neste caso, no pano) e deixar-se interferir por ele. Assim vejo também o processo de Due Lati ... que foi (e continua sendo) elaborado. A Cena do Baile tem que ser criada, mas não quero que seja apenas dançada...Tampouco quero que seja dialogada...Como ponto de partida sei que é o momento em que Maria Scariot e o seu amante irão se conhecer. Temos duas cadeiras em cena, que estão lado a lado. Olho por alguns segundos para elas, mexo, mudo de posição, as deito, separo, coloco uma em cima da outra...Quando decido parar de procurar alguma imagem com as cadeiras, me dou conta que uma flor amarela do pano havia caído bem em frente a elas. Uma flor do campo colhida por

26

Sou uma grande admiradora do Movimento Situacionista

Francês e de Guy Debord, no que refere à Teoria da Deriva. A Teoria da Deriva reside em tratar da geografia urbana para além de sua arquitetura, considerando também os sentimentos e as vidas que constroem os lugares. Andar sem rumo e deixar-se interferir pelo cenário, construindo-o e construindo-se. Nas palavras de Guy Debord, no livro Apologia à deriva: Escritos Situacionistas sobre a cidade, organizado por Paola Berestein Jacques (2003): “Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde. (DEBORD apud JACQUES, 2003, p87). Pensando nos bordados de minha avó, penso a deriva como uma forma de conversa constante entre ela, sua agulha e sua criação.

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Maria Scariot que caiu do seu cesto ao passar em frente à igreja, que fica ao lado do salão onde acontece o baile. A flor que se perdeu após o baile. A flor que Maria trocou com seu amante após algumas garrafas de vinho.

Maria Scariot – Tefa, é importante lembrar que a flor foi colhida POR MIM, e fui EU quem decidiu presentear o rapaz com ela. Ela não foi perdida, foi dada, conscientemente. Ele está longe de ser o jardineiro que colheu, ou que cuidou, ou que roubou da roseira...Aliás, não sou roseira. Tefa – Desculpe, Maria...Obrigada pela correção.

A flor amarela deixada por Maria Scariot na casa do rapaz. As cadeiras estão no salão do baile, onde se conheceram, onde a flor conhece a garrafa de vinho. Ou melhor: onde Maria apresenta sua flor à garrafa de vinho do rapaz. (Melhor que ninguém seja objetificada nesta história). Começamos a improvisar jogos com a flor e a garrafa, estando Márcio e eu separados pela distância de duas cadeiras. Conforme dialogávamos com os objetos, aos poucos nos aproximávamos. Ele cheirou a flor, eu dei um gole na garrafa de vinho. Ele gostou do cheiro, ela gostou do gosto. Começamos a dançar.

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Márcio – Vamos colocar uma

música? Melhor dançar com

algum ritmo pulsando.

Tefa – Vamos de Tarantella de novo?

Começaram a conversar. Durante a dança os quadris se encontraram. A conversa mudou de assunto. Do salão foram para a casa dele. Márcio me segurou no colo, e eu o empurrei para o chão. Dancei em cima dele. O amante aceitou, Maria se deliciou. Eu sai de cena, Maria foi embora, Márcio ficou no meio da sala sozinho, enquanto o amante chamava por ela: “Ei, moça...qual seu nome?”. Improvisar a partir do jogo com a dança obrigou-nos a estar com a atenção voltada plenamente para o momento, tornando nossas reações ao espaço e às propostas do colega nossas próprias ações, num ciclo randômico de troca de energia - o que seria nas palavras de Grotowski, “a eliminação do lapso [espaço] de tempo entre impulso interior e reação exterior, de modo que o impulso se torna já uma reação exterior” (Grotowski, 1972, p14-15). Era exatamente o que eu precisava. Trabalhar a partir da negação, ao mesmo tempo em que às vezes parece me libertar - por dar a impressão de que existe apenas uma possibilidade que não aceito para tantas outras que me interessam - ao eleger o que não quero, racionalizo e impeço que muitas coisas possam se desenvolver. A música e a dança nos auxiliaram a construir o presente e improvisar o baile. Maria dançou. Algo aconteceu.

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Márcio – É isso que tu pensa

sobre esta cena?

Tefa – Não sei se é isso mesmo, mas acho que temos pistas de como continuar. Estamos no caminho.

Ao pararmos para assistir ao vídeo da cena improvisada, percebemos que a música com a qual improvisamos era bastante rápida, e que nossas ações, por conta disso, pareciam farsescas – talvez pelas acrobacias utilizadas, pelo exagero, ou pela fuga à verossimilhança do real. Tratar a cena do baile, na qual Maria Scariot e o amante transam, de forma cômica e grotesca, parecia contrapor as ideias romantizadas e essencialistas apontadas anteriormente referente “à mulher que aguarda para ser penetrada”, “à terra que é preparada para ser semeada”, “à sexualidade vista apenas para fins de procriação”. Lendo o livro Memórias de uma mulher impossível (2000), de Rose Maria Muraro, encontro o seguinte trecho: “O organismo, os órgãos sexuais, o inconsciente são dados biológicos, mas o corpo, a sexualidade e o imaginário são fabricados e servem ao sistema”.(MURARO, 2000, pg.258) Acredito que Maria – a que estou construindo- não tenha a pretensão de servir ao sistema. Se ela pretende ser livre e opta por desconstruir certos padrões sociais, sua sexualidade também deve ser repensada. Imagino que tenha que ser o oposto de lirica, harmoniosa e delicada, como a sexualidade de princesas e bailarinas clássicas estereotipadas, mas mostrar atos potentes, ferozes, quase animalescos, e que demonstrem uma luta por igualdade de forças.

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Decidimos, então, manter a cena do baile da forma como improvisamos.

(Estar aberta para todas as possibilidades: antes de firmar o pé naquilo que não desejo, aprendi a refletir e deixar-me experenciar, para depois decidir, optar. Os parâmetros passaram a me servir como guias, não mais como verdades a serem acatadas (ou rechaçadas). Assim vem sendo em Due Lati della Campana, assim passei a levar minha vida.)27 .

27

Bakhtin em A estética da criação verbal (2013), referente à

constituição do sujeito/sujeita a partir das relações estabelecidas com o outro/outra, e com outros elementos do meio em que ele/ela se insere. Na medida em que ele/ela se

Figura 18 – Márcio Ramos e Tefa Polidoro na Cena do Baile

Registro de Cristiano Prim na Semana Performática da UDESC/ 2015

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relaciona, ele/ela se recria, se modifica, torna seu processo de vida ativo. Se o/a artista e o sujeito/sujeita não tem suas funções separadas, conforme afirma Bakhtin, um passa a ser reverberação do outro, tendo suas responsabilidades atreladas. Desta forma, minha função de sujeita se responsabiliza pelas criações realizadas pela minha função de artista, e o contrário também: “Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos.” (BAKHTIN, 2013, p. 33)

Figura 19 – Tefa Polidoro em No rastro da lua cheia se chega em qualquer lugar!

(Almir Sater)

Registro meu / 2015

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3.3 Quantas cruzes são necessárias para compor um bordado? (Repetições)

A cruz é um dos pontos utilizados para compor os desenhos no bordado. Com a agulha, a bordadeira constrói seu rastro com várias cruzes, que a partir de suas disposições formam e preenchem um desenho. A repetição da cruz define a imagem num caminho que, depois de decidido o desenho, é percorrido com objetivo. O que escreve o pano, assim, é a intenção, o objetivo de minha avó, e a cruz aparece como uma possibilidade, uma ferramenta para sua composição. Assim percebo meu trabalho de atriz no processo do Due lati...: para eu alcançar meu objetivo necessito traçar um caminho cheio de repetições. Usando como exemplo novamente a cena do baile, depois de improvisada e assistida no vídeo, chega o momento de repensar como poderíamos aprimorá-la. Quando falo em repetição, refiro-me ao ato de reproduzir o que foi feito anteriormente, acrescentando ainda uma condição: a busca pela conscientização de como melhorar o que foi realizado anteriormente. Quais exercícios posso fazer para que minha perna chegue à altura que desejo? Quanto de força necessito empregar para conseguir as duas voltas na pirouette? Quais músculos necessito tensionar ou relaxar para conseguir tempo a mais no equilíbrio. Sou uma boa competidora de mim mesma, e dificilmente me contento com o que crio. Acredito que a cena do baile tenha sido a que mais me provocou e me fez pensar sobre minhas condições atuais de atriz.

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3.3.1 Sentindo o peso do corpo: na academia de ginástica

Durante um período de dois meses tivemos a circulação pela região sul do Brasil com outra produção da Cia Sopro, intitulada O Fauno – espetáculo solo de Márcio. Tivemos que parar com os ensaios do Due Lati della Campana para nos dedicar às viagens e à manutenção do espetáculo. Nesta época eu comecei a me aplicar mais à escrita do que às minhas práticas de atriz, e passava os dias sentada, lendo e escrevendo, e à noite, de vez em quando praticava alguns exercícios sozinha em casa: abdominais, flexões e alongamentos para manter o corpo acordado, para me manter ativa. Aos sábados, quando não era muito frio ou chuvoso, fazia algumas caminhadas pelo bairro. Numa delas percebi que meu fôlego já não era o mesmo, que o coração batera mais rápido numa das subidas do morro, e que minha velocidade havia diminuído. (Ah, sim, ainda tem um agravante na história: neste período também voltei a fumar. ) Fiquei preocupada. Na segunda-feira seguinte me matriculei numa academia de ginástica: nunca consegui passar mais de 02 semanas fazendo aqueles exercícios, porque os acho enfadonhos e solitários, porque tenho a impressão de que os exercícios feitos se bastarão por eles, nada virá a partir deles – diferente de treinar uma pirouette que será ferramenta para uma coreografia, que será realizada no momento de encontro entre eu e o público – mas eu precisava recuperar minhas condições físicas. Comecei a fazer aulas de jump e “circuito”, porque eram aulas coletivas, que me obrigavam a ter um cuidado com o

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todo: no jump eu precisava pular na cama elástica seguindo o ritmo da música, que era comum para todas as pessoas da sala; e no circuito tinha que estar em contato com o restante da turma para não deixar nenhum ponto de exercício vazio ou com espera. As duas primeiras semanas foram interessantes, mas logo depois perdeu a graça, porque percebi que esta busca por algo coletivo partia de mim e não das pessoas que lá estavam comigo. Cada uma estava preocupada com sua causa própria: malhar para emagrecer, para fortalecer seu coração, para adquirir resistência física, para enrijecer a musculatura, nada em grupo estava sendo criado. Sinalizo aqui uma constatação: minha busca por manter meu corpo hábil está para além de poder exercer atividades complexas, mas para ser local de troca com outros seres. Se sou meu corpo, só ele me propiciará estar em contato com o todo. Abandonei a academia.

3.3.2 Sentindo o peso do corpo: nas práticas com Márcio

Voltamos da circulação de O Fauno e retomamos os ensaios de Due lati della Campana, especificamente para o aprimoramento da cena do baile. Tentávamos reproduzir a cena que havíamos criado 02 meses antes mas era difícil: além de todas as questões comentadas anteriormente, referente à diminuição de minha resistência, eu ainda havia engordado 02kg. Pode parecer um detalhe sem importância, mas 02 kg, para quem foi educada a controlar o peso corpóreo rigorosamente, é muita coisa. Não preciso subir numa balança ou provar

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uma calça jeans para me certificar de que aumentei ou diminui meu volume, porque consigo sentir no momento em que levanto uma perna, ou na hora em que pulo. Aprendi a conhecer e controlar meu corpo desta forma porque, no ballet clássico, para executar certas tarefas ou movimentos, o corpo necessita estar totalmente preparado, em plena forma. O que não era o meu caso em Due Lati della Campana, já que eu não conseguia executar com a mesma facilidade os movimentos criados tempos antes. Como alguém competidora de si e de suas próprias capacidades poderia lidar com esta realidade? Essa questão me remete a uma frase de Grotowski que diz: “Todos os seres humanos são iguais, o que nos difere apenas são as convenções culturais”. Neste sentido, posso dizer que o teatro é uma arte democrática, e que pode existir para e em relação a corpos diferentes. Um corpo com 02 kg a mais que outro, e que vem se movimentando apenas cotidianamente, sem atribuir atividades que explorem diferentes capacidades, pode realizar a cena do baile proposta por um corpo treinado e em forma?

Tefa – Márcio, essa parte está complicada de fazer como antes. Estou sem pique. Márcio – Tu quer mudar

alguma coisa?

Tefa – Por cansaço não pretendo mudar, mas penso que se não temos tempo hábil para deixa-la como estava, talvez seja necessário fazermos algumas modificações para não

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comprometermos a cena. O que tu acha? Márcio - Acho que tu tem que

se sentir segura com o que está

fazendo. Mais do que

mostrarmos nossas

capacidades, acho que temos

que fazer algo honesto, que

coloque o público junto

conosco.

Tefa – Então acho que temos que pensar o que queremos com a cena, e se for o caso, substituir ações para estarmos tranquilos e seguros com o espetáculo, e assim aproveitarmos a cena.

Adequamos a cena do baile a este meu “novo corpo”, inserindo algumas ações que me deixavam mais segura, tirando outras que apenas me aprisionavam à técnica. Na primeira foto que segue abaixo, por exemplo, Márcio e eu estamos realizando uma acrobacia, em que ele se deita no chão, eu me jogo sobre ele de costas, ele me sustenta por alguns segundos sobre seus pés, e depois me devolve ao chão. Esta ação foi substituída pela que é mostrada na segunda foto que segue, em que eu corro na diagonal, pulo sobre seu colo e aos poucos nos encaminhamos ao chão, até deitar. Entendi que esta cena pode ser feita por qualquer corpo, respeitando as limitações de cada um, porque o que importa é a intencionalidade que se emprega, para além da forma como é mostrada. Queremos retratar o sexo

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de forma farsesca, animalesca, independente da dificuldade das acrobacias. Acredito que as diferenças existem para serem exploradas, para enriquecerem o mundo, e não para serem excluídas ou invisibilizadas. Cada corpo carrega um indivíduo e todo o indivíduo tem que ter espaço onde quiser. Com a Grécia antiga nós, ocidentais, aprendemos que a democracia é para todos os cidadãos, mas esquecemos de perguntar: quem são os cidadãos gregos? Todos, menos mulheres, escravos, estrangeiros e artesãos. Se teatro é uma arte democrática, de todos, a concepção de um corpo ideal, a meu ver, não pode existir. Do contrário, quem são os atores? Homens e mulheres com visão, audição e fala impecáveis, e musculatura trabalhada?

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.(Já não me interessa mais o quão alto eu posso pular, o quanto eu consigo girar, ou por quanto

tempo eu consigo me equilibrar, o que interessa é o quanto de mim posso doar ao outro, e quanto dele

consigo sentir em doação a mim. As repetições serviram para mim no sentido de aperfeiçoar as

relações com Márcio, com o público, mais do que aprimorar a precisão ou a complexidade dos

movimentos).

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Figura 20: Tefa Polidoro e Márcio Ramos na Cena do Baile antes da parada

Registro de Gabriela Viana Mello / Janeiro de 2015

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Figura 21 – Tefa Polidoro e Márcio Ramos na Cena do baile depois da parada

Registro de Cristiano Prim na Semana Performática da UDESC / 2015

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3.4 Organizando o enxoval: juntar as partes para construir uma dramaturgia

Minhas avós, Laura e Talita, sempre foram muito amigas. Trabalharam juntas como garçonetes, faziam limpeza nas casas de vizinhos, e se encontravam para tomar chimarrão, isso tudo muito antes de meu pai e minha mãe iniciarem o namoro. Elas tinham muitas coisas em comum: ambas moravam no campo antes de se mudarem para a cidade, fumavam, gostavam de dançar, tinham preocupação exacerbada com a limpeza da casa, e gostavam muito de bordar. Porém, cada uma bordava com interesses diferentes: a avó Laura bordava panos, toalhas e guardanapos apenas para seu próprio uso, enquanto a avó Talita, ainda hoje, borda para vender e presentear. Fez dos bordados seu meio de ganhar dinheiro. Desde criança, na maioria das datas comemorativas, fosse aniversário, natal, dia das crianças, eu ganhava um conjunto de toalhas (sempre duas de rosto e duas de banho), ou lençóis, acompanhadas da seguinte frase:

Vó Talita – Nega (assim ela

me chama até hoje) isso é pro teu enxoval. Tefa – Mas vó, eu sou muito nova pra pensar nisso. Nem sei se quero casar...

Vó Talita – Mas nem que tu não pense agora...vai chegar um momento que tu vai te engatar em alguém.

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Acho linda a forma como ela organiza seus bordados. Confeccionando peça por peça, adequando os desenhos do conjunto ao tamanho dos tecidos, ela conta uma mesma história. Cada peça é singular, independente, mas faz todo o sentido quando arrumamos a cama e vemos as

fronhas juntas dos lençóis. A cama ganha o rosto da vó Talita. De forma semelhante, vejo o processo de construção da dramaturgia de Due Lati della Campana: depois do processo de pré-cena, de deixar-se livre para criar o desenho; do momento de improvisação, em que diluir a negação se faz importante; e de composição das cenas, em que a repetição vem como elemento central para aprimoramento das relações entre Márcio e eu – tudo devidamente registrado em vídeo – chegava o momento mais solitário do trabalho: a transcrição dos vídeos e a composição da escrita. O momento em que as peças bordadas foram unidas e formaram o enxoval.

3.4.1 O caleidoscópio: uma forma de vencer o cansaço

Todas as noites, depois dos ensaios, chegava à minha casa exausta, com partes do corpo doloridas, com fome, e algumas vezes com vontade de desligar meus pensamentos sobre o trabalho por tempo indeterminado. Sentia que às vezes a liberdade, condição que tanto prezo e luto, e que me motiva a dissertar, era vencida pelo contrato de 02 anos que havia feito com o PPGT, com a UDESC, com a

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CAPES, comigo mesma. Como se estivesse encarcerada em minhas próprias escolhas. Eu ainda não havia lido Márcia Tiburri, e ainda não sabia como construir minha liberdade. Achava que a liberdade dependia mais dos outros, do ambiente em que eu estava, do que de mim. Talvez ainda não me enxergasse como mulher capaz de transformação, como sujeita protagonista da própria vida. Em algumas noites, este trabalho quase se transformou num fantasma, num peso, num problema que eu tinha que carregar comigo. Não queria ouvir falar, ler, discutir feminismo, nem pensar no espetáculo, ou transcrever cenas. Queria apenas tomar um banho, jantar com minha família, apagar a luz do meu quarto e dormir profundamente até o dia seguinte. Acontece que eu não conseguia adormecer, porque ao encostar a cabeça no travesseiro, os momentos que eu havia vivenciado no dia vinham à tona, misturados e cheios de movimento, fazendo com que meu corpo respondesse às vezes com espasmos. Percebi, nestes momentos, que mais do que ater-se aos acontecimentos concretos, meu corpo havia registrado sensações. Então, fosse mais interessante, talvez, ao invés de transcrever as falas tais quais os vídeos mostravam, registrar as sensações que eram suscitadas a partir das minhas recordações. Por isso, concordo com Rose Maria Muraro, quando ela diz que “só o impossível abre o novo...só o impossível cria”. No momento em que nada mais eu tinha nas mãos, e que todas as minhas ferramentas não eram suficientes para construir o lugar em que eu pretendia habitar, percebia que era hora de encontrar novos meios para terminar o que havia começado. Neste caso a maneira encontrada para me aproximar do trabalho quando o cansaço

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nos afastava era de transcrever o ensaios a partir de analogias. O blackout, mais do que uma ausência total de luzes, podia ser um céu sem estrelas, ou um baú fechado e vazio. O lúdico me ajudava a pensar no trabalho de forma prazerosa, diluindo seu peso de tarefa e compromisso. Voltava a me apaixonar pelo Due lati..., pela dissertação e pelas reflexões que a pesquisa estava me trazendo. Começava a gostar mais de mim, ao mesmo tempo que também passava a me achar louca, devido à capacidade de criar subterfúgios para burlar a realidade maçante, cheia de prazos, à qual eu estava vivendo.

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. (Hoje percebo que talvez não estivesse burlando a realidade, porque os prazos e os compromissos continuavam a existir, mas optava por encará-los por outras perspectivas, outros ângulos. Um ponto a enxergar, porém com várias possibilidades quando visto através de um caleidoscópio.)

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3.5 Expondo o Enxoval

Depois de todo o trabalho realizado, chega a hora de coloca-lo à mostra. Deitar os bordados sobre as mesas, estendê-los sobre as camas, as paredes, os balcões, o chão, cobrindo toda a casa com a expressão do universo íntimo, que transborda pelas fronteiras do corpo, libertando as cores, as imagens, os desejos da bordadeira...da mulher. No caso de Due lati della Campana, chega o momento de compartilhar a história (.............as tantas histórias que o compõe................) com outros confidentes. Lendo e relendo o texto do espetáculo, deparando-me tantas vezes com indicações da voz de meu avô, Agostinho, lembrei de algumas das vezes em que sentei em sua caixa da lenha, tomamos chimarrão e escutei suas histórias...Pensei que a gravação de sua voz não seria o suficiente para presentificá-lo em cena...Ele esteve no processo tanto quanto Márcio, tanto quanto eu...Senti que ele precisaria estar conosco la, em cena, pulsando e contando junto o causo de Marieta..

Saí correndo do meu quarto e fui direto ao telefone, entusiasmada com a possibilidade. Primeiramente, telefonei ao Márcio, para saber se ele topava a investida:

Tefa – Márcio, tive uma ideia, mas não sei se tu vai aceitar. Talvez eu esteja muito imbuída com a dissertação, com o

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espetáculo, mas pensei que meu avô podia estar em cena conosco.

Márcio – Tefa...eu acho

lindo!!! Acho forte, acho

que é isso!

O Márcio é uma pessoa linda...Provavelmente deve ter ficado receoso com a ideia que trouxe, mas ele entendeu o quão importante parecia ser para mim aquela proposta. Desliguei o telefone, e sem coloca-lo no gancho, liguei diretamente para meu avô. Liani, sua esposa, atendeu:

Liani – Alô? Tefa – Alô...Liani? Oi, tudo bem? Aqui é a Tefa.

Liani – Oi, Tefa, tudo bem sim. Já sei, quer falar com o Agostinho. Tefa – Sim...ele esta por ai? Esta ocupado?

Liani – Ele está lá no porão, mexendo nas lenhas, fazendo uma prensa para achatar massas para pizzas. Tefa – (Risos) Como assim?

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Liani – Coisas do teu avô. Só um minutinho que vou chama-lo.

Cada segundo que eu esperava ao telefone

parecia uma infinidade de tempo. Eu estava ansiosa para saber se ele aceitaria o convite

ou não. Imaginei

cenas...momentos...como ele

falaria...Sabe uma criança que não consegue esperar 5 minutos para comer o bolo que está sendo preparado e passa o dedo na massa crua que sobrou na batedeira para matar

a vontade? Era assim que eu estava...Quando...

Nono – Alô? Tefa?

Tefa – Oi, nono, tudo bem? Olha só...eu queria saber se o senhor estará livre na próxima sexta à

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noite, lá pelas 20h? Nono – Eu tenho coral antes, mas às 20h estarei livre sim. Por que?

Tefa – Eu estava pensando agora...O senhor não gostaria de estar em cena comigo para apresentar o espetáculo da Marieta? O senhor participou de tudo comigo, conta causo como ninguém... Nono – Eu? Mas eu não sou ator? É capaz de eu estragar a peça de você.

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Tefa – Nono, como assim estragar? O senhor já tem experiência com cena...O senhor é do grupo de liturgia da igreja, declama versos e poesias para o público, conta histórias á beça para as visitas...Como assim? Experiência de cena o senhor tem... Nono – (Pausa) E como seria?

Tefa – Sabe aquele última conversa que gravamos aqui em casa? Eu transcrevi as falas do senhor e editei o áudio...Agora, ao invés de ter a voz do senhor em cena, teremos o senhor inteiro. (Risos) Eu posso mandar o texto transcrito, o senhor lê, e decora como quiser, com as palavras do senhor. Pode ser?

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Nono – Bom..a gente pode ensaiar e ver como fica. Caso não atrapalhe vocês eu participo sim. Quinta-feira eu tenho a tarde toda livre. Como fica para você?

Tefa – Perfeito, nono! Muito obrigada!!!

Neste momento eu senti um calor bom no corpo, como um abraço, um carinho. Fui ao computador e mandei o texto por e-mail à Liani, para que ela imprimisse e ele pudesse ler.

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3.5.1 Chegou a quinta-feira...

.

.

. Meu avô me buscou em casa. Dentro do seu carro tinha um pote com bolo, sua garrafinha de água mineral, erva para chimarrão e um pedaço de gengibre.

Tefa – Nono, para que tudo isso?

Nono – Bom...a água é para não deixar a garganta ressecar, para manter hidratada e ajudar na fala; a erva do chimarrão é porque todo o causo precisa dum chimarrão; o gengibre é porque nunca saio de casa sem comer um pedaço de gengibre...Gengibre é milagroso, mata qualquer vírus ou bactéria...e o bolinho é de iogurte...fizemos hoje de manhã, e to levando para caso nos dê fome. Ensaiar a tarde toda é puxado, né.

(Lembrei de todas as tardes de ensaio em que sobrevivemos apenas com água, e no máximo

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alguma maçã. A partir de hoje sempre levarei um bolinho) Chegamos lá e começamos a explicar ao meu avô como as cenas aconteceriam. Ele estava muito a vontade em cena, provavelmente por suas experiências comentadas acima, como as declamações na igreja, o coro, as liturgias, as “contações” de causos para a família. Além estar seguro, e com o texto decorado – inclusive as minhas partes. Algumas vezes ele me corrigiu:

Nono – Tefa...Nessa parte tu me chama, lembra? Pelo menos é o que está no texto que tu me entregou. Tefa – Verdade, nono...Tinha esquecido. Se eu esquecer de chamar o senhor, toca ficha. Pode me corrigir, ou ir adiante nas falas do senhor..............................................Ah, nono...O senhor pode ficar sentado aqui, tomando o chimarrão do senhor enquanto está em cena. Nono – Mas na hora de falar eu fico em pé, né? Não gosto de falar sentado. Parece que a voz não sai.

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( Sim, Stefanie...É óbvio. Tu que tanto gosta de estudar técnicas de atuação, não sabe que o diafragma precisa de espaço para trabalhar? )

Tefa – Com certeza, nono. O senhor fica bem à vontade. Aí assim: o senhor estará neste canto, na frente, e terá um foco só para o senhor. Será esta luz aqui, ó... Nono – Aham.....(Pausa) Mas assim.....................dá pra virar essa luz do chão um pouco para lá? É que não parece, mas a luz aquece demais...aí vou começar a suar. Tefa – Como o senhor preferir, nono.

Já estava mais do que evidente que eu não precisaria me preocupar com ele. Ele parecia já saber o que estava acontecendo...O que tinha que fazer. Mostramos, primeiramente, as marcações de cena para ele saber em quais momentos deveria interferir. Depois ensaiamos o espetáculo todo. Ao final, o Márcio perguntou para ele:

Márcio – E então, seu

Agostinho, o que o senhor

achou do espetáculo?

Nono – (Com os olhos marejados) Achei emocionante.

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Aquela parte que tu expulsa a Tefa...digo...a Maria de casa...lembrou também da minha irmã, a falecida Nair. Tefa – Da tia Nair? Por que? Nono – Porque ela também foi expulsa de casa quando engravidou. Ela não era casada e o pai pôs ela para fora de casa. Aí todos nós, os irmãos, nos reunimos para falar com o velho. Aí depois de um tempo ele aceitou ela de volta. Márcio – Agora que o senhor

falou...loucura isso...lembrei da

história de algumas mulheres

da minha família também...Elas

não chegaram a engravidar

antes do casamento, mas se

relacionaram com seus

namorados antes de casar...e

isso bastou para que seus pais

parassem de falar com elas

durante 6 anos. Conviviam

todos no mesmo lugar, mas não

se falavam.

Fico impressionada: como a história de uma

mulher puxa a história de outras mulheres..... Como a questão da sexualidade feminina é forte ainda nas famílias...e como foi naturalizada a ideia de expulsar uma filha de casa por ela ter engravidado antes do

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casamento...ou por ter exercido sua liberdade sexual sem um controle patriarcal.

.

. Minha vontade era de sentar no chão, puxar o

chimarrão para meu colo, e escutar Márcio e meu avô contando sobre outros causos...Quero sempre

saber mais...e mais...e mais... Saí do ensaio feliz com a formulação de meu avô, e com o resgate de Márcio sobre sua família. Maria

perpassa as fronteiras do terreno Scariot. Que bom! . .

3.5.2 ...e Chegou a sexta-feira... Hoje acordei, e como de praxe fui direto à cozinha cevar meu chimarrão. Além dele me ajudar a acordar, devido à sua erva ser amarga e conter cafeína, é uma boa companhia...a cada gole que dou, é como se eu estivesse tecendo comentário com alguém. Aprendi isso com um avô. Sento em frente ao computador para iniciar a escrita, e começo a lembrar do ensaio de ontem, e...bem...um turbilhão de informações, ideias e sensações chegam até mim:

...“meu avô”... ...“hoje é o dia em que finalizo cenicamente minha

pesquisa de 02 anos”... ...“olho para trás e, nem que eu quisesse, hoje não sou mais a mesma pessoa que entrou no PPGT”...

...“todas as pessoas que envolvi neste trabalho, mesmo que fosse uma proposta inicialmente só

minha: Márcio, meu avô, tia Aurora, Isaura, minha

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mãe, Rafael, Brígida, Carine, meus colegas de mestrado”

...“a história da familia”...

Parece que só agora entendi o quanto este trabalho significou e significa para mim. Parece que só agora comecei a entender o sentido de minha pesquisa...O choro é inevitável... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . ( Eu adoro chorar... Tenho apenas 1,5m de altura, sou muito pequena para carregar tanto peso...Carrego apenas aquilo que consigo...talvez um pouco mais...O resto deixo transbordar...) Hoje eu não almocei, não consegui. Comi algumas

frutas, tomei água, chimarrão e chá. Quando estou neste estado de ansiedade mal consigo engolir minha saliva. Cheguei à casa de meu avô

para busca-lo, e lá estava ele, me esperando na escada, com uma sacolinha nas mãos. Dentro dela, ele carregava uma garrafinha de água mineral, o chimarrão que ele vai tomar em cena, a garrafa térmica, e a camisa de cor azul que vestirá em cena.

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TEFA – Que lindo, nono...O senhor trouxe tudo organizadinho para a apresentação...Até o chimarrão já está feito. NONO – Sim...na verdade foi a Liani que arrumou a sacola...Ela pensa em tudo.

TEFA – Mas por que o senhor não cuidou disso?

NONO – Ah...ela gosta de fazer estas coisas. TEFA – Gosta mesmo, nono? Ou o senhor é quem gosta que ela cuide de tudo isso? (Risos) NONO – Um pouco dos dois. (Risos)

(Quantas vezes eu escutei na vida que mulher cuida dos filhos, lava, passa, cozinha, porque gosta?)

Chegamos ao Teatro Moinho da Estação, local da apresentação. Passamos a tarde ensaiando, arrumando os detalhes finais. Havíamos estipulado 30 pessoas para a sessão, mas 64 pessoas já haviam confirmado presença.

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TEFA – Nono, vai ter o dobro de pessoas assistindo hoje...Como o senhor está? NONO – Eu estou tranquilo...Quanto mais público, melhor.

(Que bom que alguém está tranquilo por aqui.)

Eram 19h30, e o ensaio aberto iniciava às 20h. O público começava a chegar. Márcio e eu iniciamos nosso aquecimento, e meu avô tentava espiar pela fresta da janela, para ver quais das pessoas lá fora ele conhecia. (Muito fiz isso quando dançava ballet. Passava os minutos finais, antes do inicio do espetáculo, buscando algum furo na cortina para ver se a minha família já estava lá pronta para me assistir.)

TEFA – Nono, o senhor que ficar lá no hall com o pessoal? Daqui a pouco a mãe, o João, e a Liani chegam...Precisamos do senhor aqui só às 20h. Fica bem à vontade. NONO – Olha, então acho que ficarei por lá. Quando for 20h em ponto eu entro aqui.

Assim era melhor para nos concentrarmos, do

contrário eu não pararia de pensar: será que o nono quer ir ao banheiro?

Será que quer tomar água?

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Será que está entediado de nos ver aquecer? Será que ele quer conversar com a gente e não

estamos interagindo?

Muito tive que me concentrar para controlar a emoção daquele momento:28 Inspirar em 4 segundos, segurar o ar mais 4

segundos e soltar em 8 segundos...Repetir

isso 4 vezes...Fazer o mesmo com o dobro de tempo e depois

com a metade.

. .

Manter os olhos fechados... alongando a coluna...aquecendo as articulações... sem esquecer da respiração...Abro levemente os olhos, vejo o Matheus

cinegrafista posicionando a câmera, o Lucas e o Maicon a seus postos para fotografar, o meu avô já colocado em sua cadeira, e o Márcio de pé, me

olhando.

MÁRCIO – Tefa, já são 20h05. Podemos

liberar o público?

TEFA – Que? 20h05? Já??? Acho que sim...

28

Lembrei de Diderot e da relação que ele traça entre imitação

intelectual e a sensibilidade do ator, em O paradoxo do Comediante (1773) referindo-se à diferença entre o ser e o representar, que li no livro The Player’s Passion: Studies in the Science of acting (2010), de Joseph R. Roach. Ao dizer que a atuação do comediante não deveria passar por sua subjetividade, o que ele pensaria ao me ver naquele estado momentos antes de entrar em cena?

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MÁRCIO – Merda!!! Boa

sorte, seu Agostinho!

TEFA – Merda, Marcinho!!!!! (Aproximo-me do Nono, abraço-o por alguns segundos e

explico) Nono, antes de entrar em cena no teatro, costumamos desejar aos colegas “merda”! É como se disséssemos “boa sorte”. Então muita merda para o senhor!!!! NONO – (Risos) Está certo. Merda, Tefinha...Merda, Márcio.

Recebemos o público num gesto de Acolhida - como meu avô costuma se referir ao ato de abrir as portas de sua casa para alguém – na porta da sala, com chimarrão. Depois que todo o público estava posicionado, meu avô se colocou sentado na cadeira, e Márcio e eu fomos para o centro da cena, dar inicio ao Due Lati della Campana. Logo no início, na introdução da cena com as pizzicas e tarantellas, olhei para Márcio e vi seus grandes olhos verdes nadarem em poças de águas claras. Eu tive a impressão de entender o que ele queria dizer...Não sei transcrever aqui exatamente o que era, mas acho que sentimos a mesma coisa. Nós estávamos juntos. Depois, ao olhar para meu avô, além de vê-lo como um colega de cena e um amigo, eu enxergava-o como o homem que me ensinou e me protegeu ao longo da vida, que tem inúmeras qualidades e

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algumas limitações, e que estava lá: aos 76 anos de vida, cheio de energia e vontade de me

ajudar, querendo falar de Maria. . .

Maria, que até o ano anterior era invisível para nós.

.

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Ao final do espetáculo fizemos um bate-papo com o público. Apenas um rapaz perguntou sobre a pesquisa, as demais pessoas deram depoimentos sobre casos semelhantes em suas famílias, de mulheres rechaçadas e invisibilizadas por motivos semelhantes aos de Maria Scariot. Frases como

Figura 22 – Ela rezava muito

Da esquerda para a direita: Agostinho, Tefa e Márcio.

Registro de Lucas Lemos no Ensaio Aberto realizado em janeiro de 2016

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“Minha avó começou a viver depois dos 69 anos, e ela morreu ano passado ao 74”;

(Disse uma moça, com idade próxima aos 20 anos, estudante de teatro)

. “Minha tia odiava meu tio”;

(Contou um senhor, mais ou menos 40 anos, historiador e ator)

. “Minha avó conta que a mãe dela ficou feliz quando o

marido dela morreu...”. (Ao final do debate, falou com a voz baixa e tímida para mim, uma menina de 25 anos, com os braços

tatuados e os olhos em pranto)

. Aquela situação me remeteu ao livro Mística Feminina (1971), da feminista estadunidense Betty Friedman, no trecho em que ela fala sobre a realidade das mulheres dos EUA, na sociedade do consumo:

Que espécie de criatura seria ela que não sentia essa misteriosa realização ao encerar o chão da cozinha? Envergonhava-se de tal modo de confessar sua insatisfação que jamais chegava a saber que outras também a experimentavam. Se tentasse explicar ao marido ele não entenderia, pois nem ela própria se compreendia. Durante mais de quinze anos a mulher americana achou mais difícil falar sobre este assunto que sobre sexo. Mesmo os psicanalistas não sabiam que nome lhe dar. Quando uma mulher corria para eles, em

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busca de ajuda, conforme faziam muitas, dizia: “Estou tão envergonhada. Devo ser totalmente neurótica”. “Não sei o que está acontecendo às mulheres de hoje”, dizia um psiquiatra, inquieto. “Sei que deve haver algo errado, porque a maioria dos meus clientes são mulheres. E seu problema não é de ordem sexual». As que tinham esse tipo de dificuldade não consultavam o psiquiatra. “Não há nada realmente errado — repetiam a si mesmas. — Não existe problema algum”. Mas, em certa manhã de abril de 1959, ouvi uma mãe de quatro filhos, tomando café com quatro outras mães, num bairro residencial a quinze milhas de Nova York, falar do ‘problema’ num tom de mudo desespero. As outras compreenderam tacitamente que ela não se referia ao marido, aos filhos, à casa e perceberam de súbito que partilhavam de um problema sem nome. E começaram, a princípio hesitantes, a falar no assunto. Mais tarde, depois de apanharem os filhos no jardim de infância e os deitarem para a sesta, choraram de puro alívio por saberem que não estavam sozinhas. (FRIEDMAN, 1971, p20)

Questiono-me sobre os modelos de “felicidade” que são vendidos às mulheres, como “a boa mãe”, “a boa esposa”, “a mulher séria”, “a mulher religiosa”, e o quanto estes modelos de felicidade são capazes de deixar-nos infelizes quando não são alcançados. Na região de Caxias do Sul, como falado anteriormente, existe uma imagem precisa sobre a mulher italiana (e descendente de italianos também),

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representada no Monumento ao Imigrante Italiano29, na entrada da cidade. Porém, no debate após o espetáculo, muitos relatos estiveram relacionados à categoria de mulheres reclusas por não condizerem com tal ideal. O resultado parece semelhante ao trazido por Friedman em 1971: mulheres infelizes ou deslocadas de seu tempo.

29

Obra do artista Antônio Caringi, inaugurada durante o

governo de Getúlio Vargas, em 1951, como forma de homenagear os imigrantes italianos que chegaram ao Brasil e ajudaram a construir Caxias do Sul.

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Figura 22 – Monumento ao Imigrante

Registro de Roni Rigon

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“O nó é feito quando termina o bordado, ou quando termina a linha,

e serve para não desmanchar o que foi feito”. (Cleusa Scariot, minha mãe)

4 UM PONTO SEM NÓ: impressões que ficam até

aqui

Ao escrever o título deste capítulo senti um frio na barriga, um formigamento nos ombros, na nuca, e meus olhos levemente se embaçaram. Uma mancha vermelha apareceu no meu pescoço (a velha mancha que só dá o ar da graça quando estou nervosa, apreensiva, ansiosa, mais sensível que o meu normal). Lembrei de alguns momentos da minha vida em que senti algo parecido:

...quando minha mãe me levou pela primeira vez à Escolinha Maternal Cinderela, aos 4 anos de idade, e entendi que passaria o dia todo sem minha família, e que apenas à noite encontraria a todos;

...quando saí da Escolinha Maternal Cinderela e passei a estudar no Caldas Jr, e entendi que eu já não era mais uma criança tão pequena, e que algumas responsabilidades a mais seriam delegadas a mim;

...quando saí do Caldas Jr para estudar no Madre Imilda, em virtude do colégio oferecer a quinta série apenas à tarde, justo nos horários das aulas de ballet. A escola que me abraçou, que me deu dois

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títulos de Miss Brotinho30, na qual dei meus primeiros passos na política estudantil, sendo representante de classe durante 4 anos e tesoureira do grêmio da escola..... Eu não faria mais parte daquilo;

....quando me despedi de meu avó e minha mãe aos 13 anos, para embarcar no avião em Porto Alegre em direção ao México, e me dei conta que passaria sozinha 1 mês em outro país, sem sentir o cheiro de minha mãe, sem escutar os causos do meu avô, sem comer a comida de minha avó ;

...quando troquei de escola, no ensino médio, saindo do Madre Imilda e indo para o CETEC (Centro de Estudos Tecnológicos) , e imaginei minhas manhãs sem estar com minha melhor amiga, Luciana, sem seus bilhetinhos, e sem dividir nossos lanches na hora do recreio;

... na festa de formatura do CETEC, quando percebi que em março do ano seguinte eu não estaria vestindo uniforme do colégio, mas uma roupa qualquer a caminho da faculdade;

...na festa de formatura de minha graduação em Teatro, quando percebi que a partir daquele dia, naquele janeiro, eu não estaria em férias, mas desempregada;

....recentemente na despedida de um dos meus melhores amigos, que foi morar nos EUA, e entendi que não seria a qualquer momento que poderíamos

30

hahaha...eu não sabia que no futuro me tornaria uma feminista abominadora de concursos de beleza, mas enfim,

essa história também é minha e me compõe enquanto Tefa.

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nos encontrar para tomar uma cerveja e conversar sobre nossas vidas.

Além da despedida, o que todos estes momentos têm em comum para mim é a esperança de uma transformação. Não é o fim de tudo, mas o ponto onde se inicia outra volta no círculo... Ciclones...Ondas...No mesmo pano algumas partes do bordado são desfiadas, outras remendadas, outras desfeitas, e outros tantos desenhos são traçados. A morte não como um fim...Novamente Umberto Ecco: Auflösung! Criar e dissertar sobre o Due lati della Campana foram dois exercícios intensos que me fizeram repensar sobre meu trabalho de atriz, criadora, artista, e também sobre minha construção de sujeita, de mulher. Ao me dedicar a estudar e entender a vida de Maria Scariot, passei a compreender melhor minha família, a refletir sobre ela, e com ela sobre mim. Compreendo agora como as práticas do Devised Theatre contribuíram para um fazer teatral feminista, e como aos ideais feministas este método foi importante. Segundo Oddey (1994),

A influencia do Movimento de Libertação das Mulheres e o feminismo dos anos 70 encorajou a mudança de atitudes, atribuindo às mulheres novas funções no teatro, e servindo de suporte para o desenvolvimento do teatro experimental, que explorava novas atitudes sócias e sexuais da sociedade (ODDEY, 1994, p.8)

31.

31

“The influence of the Women’s Libertation Movement and

feminism in the 1970s encouraged a change of attitudes , gave

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Neste sentido, acredito que o Due Lati della Campana tenha contribuído para meu próprio empoderamento, por ser um espaço que me propiciou reflexões sobre meu universo, sobre contextos nos quais estou inserida, e sobre as maneiras como os construo ou posso construir. No início das investigações, eu me colocava em relação à Maria Scariot como alguém que queria fazer justiça por ela, alguém que queria dar visibilidade a ela. No entanto, no decorrer do processo percebi que muitas das questões levantadas para trazer Maria eram minhas próprias questões, e que a invisibilidade da qual eu tratava era possivelmente mais minha do que dela. Foi quando entendi a frase de Lilla Watson que li no livro O espaço como obra: ações, coletivos artísticos e cidade (2012): “Se vem para me ajudar, não se dê ao trabalho, porém se vem porque sua libertação está vinculada à minha, então trabalhemos juntos”. (WATSON apud MUSSI, 2012, p 129). Eu me olhei no espelho de Vênus. Outro aspecto que chamou minha atenção foi sobre como as vivências católicas de meu avô contribuíram para a apresentação de Due lati... Suas experiências de cena, a partir do grupo de liturgia da paróquia e do coro ao qual faz parte, deram-lhe segurança suficiente para que estivesse em cena conosco, num espetáculo de teatro. Percebi meu avô e eu, com opiniões distintas acerca da referida religião, com formações distantes no que concerne à

women an improved position as theatre workers, and the supported the development of experimental theatre to explore the social and sexual attitudes of society”. (Tradução minha)

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200

performance artística, juntos contando o causo de Marieta. Ele não fez a dança-dos-ventos, nem dançou pizzica e tarantela, mas estava tão presente quanto Márcio e eu. Não fosse o tempo limitado do mestrado, eu gostaria de abordar esta relação. Por fim, penso que reverenciar o erro, a confusão, os caminhos curvilíneos bordados, pode ser uma tentativa de desnudar a objetividade “acertiva” e perfeita. Retomo, para finalizar, as palavras de Carol Hanisch, “O pessoal é político”: prezar pela minha subjetividade neste trabalho, - para além das questões práticas do que fiz ou deixei de fazer - e enfatizar as minhas sensações e percepções sobre cada passo dado, foram escolhas importantes que contribuíram para a libertação do meu corpo, para minha libertação pessoal...e para minha libertação política.

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201

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Pílula da Visibilidade: Maria Scariot e Tefa Polidoro presentes!

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202 Figura 23 – Tefa Polidoro - O pano cai desvelando-me...

Registro meu, em casa, pouco antes de dormir, logo após terminar

concluir o ponto sem nó.

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203

Já é noite... .

Veja! A temperatura já está beirando os 40 graus. Vou ligar o ventilador para amenizar este calor.

. Há quanto tempo estamos aqui? Os mosquitos estão

te incomodando tanto quanto a mim? .

Uma pena tu já ter que ir. Toma, leva esta música contigo, como um regalo por ter vindo. É uma de

minhas preferidas do Alceu Valença, chamada Eu sou Você

Pra entrar pela janela

Dos olhos de quem não vê Que eu sou eu e sou fulano

Sou sicrano sou você Eu sou você

Sustenta esse coro Eu sou você No pé da garganta Eu sou você A chuva chovendo Eu sou você

Poeira levanta Eu sou você Um sopro na rua Eu sou você Poeira levanta Eu sou você

Sustenta a pisada Eu sou você No pé da garganta Eu sou você

. Vem, vou te acompanhar até à

porta...Espera!Espera!Espera! Minha avó sempre dizia que para a visita voltar, é a anfitriã que deve

abrir e fechar a porta. Obrigada por ter vindo. Agora que você sabe onde

eu moro, pode vir me visitar mais vezes. .

Até breve.

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212

Bocca da Serra, 09 de janeiro de 2016.

Due lati della campana

Olá. Está escuro aqui, não? Não te vejo, mas posso

te sentir e escutar o sussurro da tua

respiração....Posso dizer que estamos distantes um

do outro.

.

.

.

Isso é um baú? Esta enorme caixa preta que poderia

lembrar o vazio. Veja!!! Um ponto pequeno lá ao

longe surge. Não sei se são meus olhos dançando

com Shiva ou se poderia mesmo tocá-lo. Conforme

remexo esta velha caixa de sapatos, cheias de

fotografias amareladas, o ponto se aproxima e

começa a tomar forma. ( Ou talvez eu esteja me

aproximando, não sei.). Uma voz masculina, um

pouco aerada, tranquila, toca meus ouvidos. Parece

meu avô, Agostinho, começando um de seus causos.

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213

Conheço todos eles: o Causo do Seu Venério, o

Causo da minha avó buscando o gado, O Causo do

meu avô tomando sopa no seminário.................mas

desta vez, ele começou diferente. Acho que este

causo eu não conheço.

.

.

.

Maria? Quem é Maria?

.

.

.

AGOSTINHO – Olha...o meu pai pouco falava da ...e

na verdade ele não gostava muito de falar da

mãe...eu não sei porque, mas ele procurava falar

pouco ...ele não tinha muito conhecimento da vida

dela porque ele saiu de casa muito novo...e pelo que

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214

eu via, e podia perceber do jeito dele, ele não

fechava muito com o jeito dela...ele não concordava

muito com certas atitudes dela...mas então a gente

não sabe lá muita coisa, né sobre a...sobre a

Marieta.

.

.

.

Vênus aparece primeiro, lançando uma pequena

claridade sobre aquilo que parece ser uma saia.

Depois Júpiter, alinhado a Vênus, ilumina um rosto.

Um rosto? Onde estão os traços? Vejo apenas uma

circunferência pálida e vazia. Parece assombração.

Escuto uma voz anuviada, engasgada, que canta

Yo nó sé donde nací

Ni sé tampoco quién soy

Nó sé de donde he venido

Ní sé tampoco quién soy

Soy ramo de árbol cahído

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215

Que no sé donde caio

Dónde estarán mis raices

De que árbol soy rama yo?

A voz vem daquele rosto amorfo, e a cada verso

pareço identificar as partes antes incógnitas. Tem

cabelo curto e desforme, mãos pequenas, e um

manto florido aos seus pés, lembrando o véu de uma

santa, ou a floreira de alguma janela. Ela grita:

Alô? Alô? Alô? Alô?Alô? Alô? Alô?

Buongiorno?

Buongiorno? Buongiorno?

Buongiorno? Buongiorno? Buongiorno? Buongiorno?

Ela acha que está sozinha e perdida, mas eu sei

onde ela está porque também estou aqui. Estamos

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216

juntas. (Perdidas?) Ela começa a tirar um lenço

branco de suas costas, cantarolando a música de

antes. Da distância em que estamos ele parece ser

leve, mas não posso afirmar porque seu peso não

está sobre mim. Ela fica em silêncio. Afasta uma

perna da outra, agacha-se sobre o rochedo, e tira de

dentro de si um serrote. Sim, um serrote. Neste lugar

parece comum as mulheres parirem ferramentas (no

plural.). Nasce o serrote e logo em seguida vem

uma chave de fenda. Depois uma colher de pau,

uma espátula e por último um alicate. Ela nomeia

cada um deles:

Ana (colher), Bibo (Serrote), Cali (Espátula), Dêde

(alicate), Enio (chave de fenda), Maria... (Parece não

encontrar um dos instrumentos) Maria? Dove si trova

Maria? Maria??? Maria Beatrice??? Maria Beatrice!!!

Venire qui, Maria Beatrice!!!

Quando pensei que a estivesse desvendando, ela

sumiu, como num passe de mágica. Um clarão

estoura e me cega, junto de uma Tamurriata que

preenche minha cabeça. O que aconteceu antes?

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217

Parecia saber onde estava, mas...a Tamurriata...do

que eu falava? Sim, a Tamurriata. Tinha alguém

antes aqui. Alguém que....Tamurriata...eu não sei.

.

.

.

Este pano florido parece véu de santa ou uma

floreira na janela...já o vi antes. Não, impressão

minha, é um arbusto. Tenho mania de olhar para

algo, estar em algum lugar, escutar uma música, e

me remeter a outras coisas, outros lugares, outras

músicas. Costume meu de viver buscando as

semelhanças em tudo. Acho que é o medo do que

não conheço. Enquanto devaneio, o monte de folhas

se agita animado. Quem está aí atrás? Sussurros e

risadas que silenciam quando escutam uma voz

masculina gritar:

VM – Maria Beatrice!!! Maria Beatrice!!!

Dove si trova Maria Beatrice???

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218

Finalmente, depois de tanto tempo, vejo pela

primeira vez Maria Beatrice, que sai de trás do

arbusto com um chapéu preto masculino. Ela dança

com ele, livre como uma ninfa que deleita-se ao

corpo do homem-deus. Isso, ela também deleita-se.

Ambos servem-se do prazer, mas apenas ele chega

ao gozo. Seu pai aparece e a interrompe. Maria

Beatrice leva três bofetadas na cara para aprender,

mas a violência da pele queimada à ferro pela cruz

não intimida o desejo transpirado pelos poros

daquela que vive nos campos elíseos. Maria

Beatrice continua dançando com o chapéu, agora

provocando seu pai a tentar tirá-lo de sua mão. O

pai agarra o braço de Maria Beatrice e

percebe algo nas pernas da menina. Um

líquido branco que corre delineando a parte

interna de sua coxa. Ele coloca a mão

no tornozelo de Maria Beatrice,

subindo para sua panturrilha,

caminhando com os dedos sobre o

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219

rastro deixado nas coxas, até

chegar na vagina, examinando-a e

descobrindo que já não é mais

virgem. Tira a mão com força,

mostra seus dedos úmidos. Ele a

agarra, gira e joga-a no

chão. Tira de sua calça um

cinto feito de pano branco.

Parece a textura do rosto

da miragem que vi antes,

do rosto pálido sem

traçado. O homem surra

Maria Beatrice com este

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pano, e ela tenta

esquivar-se. Ela cai.

Ele joga o pano

sobre o rosto de

Maria Beatrice,

obrigando-a a

usá-lo.

Ela usa

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Dancei os passos da violência com Maria, e caímos

abraçadas no caminho à Terra Prometida. Nosso

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223

silêncio foi rompido pela voz do meu avô, que

apareceu ecoando como um trovão:

AGOSTINHO – A vó, a Marieta, rezava muito...era

uma pessoa muito devota...acho que ela rezava

bastante...ela podia até não se comportar tão bem,

mas ela rezava muito.

EU – Como assim não se comportava muito?

AGOSTINHO – É...mas ela rezava muito.

.

.

.

Ajoelhada, vestida com o pano em seu rosto, coloca-

se ao canto da caixa de lembranças. O pai veste-se

com aquilo que já foi floreira e arbusto, e que agora

toma a forma do véu de um santo. Segura um

martelo em sua mão, afastado de seu tronco,

enaltecendo a ferramenta, apontando-a para o oeste,

onde o sol se pôs.

.

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Maria Beatrice canta para ele uma canção antiga

italiana, que aprendeu com sua avó.

Madonna nun è cchiù

Lu tiempo antico,

A chell'usanza

Ela, que agora ensina o canto, tem sua voz abafada

pela voz grave, e de volume estrondoso do pai. Ele

plana do altar em direção ao chão, marcha, e ela

segue atrás, pisando forte no chão, em mesmo ritmo.

Ela parece ter entendido como fazer. Ele se agradou.

Cantos singelos e delicados...pisadas firmes...”Assim

deve ser a mulher”, pensou ele.

Quase me decepcionei ao ver o aceite rápido de

Maria sobre a situação. “Achei que faríamos

diferente”, cochichei. Olhando para ela com meu

olhar torto, como quem tenta entender uma obra de

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Kandisnky, não fui surpreendida ao vê-la arrancar de

seu rosto o véu, que abafava sua voz e tornava sua

respiração ofegante, asfixiada. Avante, Maria!

Ela correu, pelas costas de seu pai, da igreja até o

salão do baile, com seus passos leves....“leves,

como leves plumas, muito leves, leve e .......pousa”

ao lado de um rapaz. Passando pelo campo, ela

encontrou uma flor amarela. Ele tem em suas mãos

uma garrafa de vinho, a bebida das bacantes. Ele

oferece-lhe um gole, e ela oferece sua flor amarela.

Eles dançam a tarantela....

.......... a pizzica.........

.......................a dança-do-ventre-livre.......

.............................................................do

acasalamento.

......Aaaaahhhhhhhh

hhhhhhh.....

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. Eles se satisfazem.

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Como uma taranta, uma viúva negra, ela o deixa na

manhã seguinte sem mesmo dizer seu nome. Não

era mais hora para apresentações...Já havia

passado o momento...”Já não nos interessa mais”,

pensamos.

.

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.

Cambaleantes pela falta de sono e sobra da ressaca,

atravessamos a colina, passo por passo, devagar,

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227

para evitar ruídos e solavancos na cabeça. Os

primeiros raios de sol lhe enjoavam. Nem mesmo o

cheiro do orvalho no mato aliviava aquela sensação

de calor, suador, calafrios e gosto de noite passada

na boca. Enquanto a vejo caminhar, sozinha,

pequena e pálida, naquela paisagem verde, que

parece não findar, tento entender os motivos de meu

avô pensar que Marieta não se comportava muito

bem.

EU –Por que o senhor acha que ela não se

comportava muito bem?

AGOSTINHO – O meu pai falava que achava ela

meio namoradeira...mas eu não sabia grande

coisa..........e também a gente não entrava muito

nesse assusto porque ele ficava

magoado.............Então procurava não fazer muita

pergunta porque ele ficava brabo, né...

Onde está Maria? Eu cá com meus pensamentos

acabei perdendo Maria de vista. Deve ter se

escondido de seu pai, que aparece no outro lado da

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paisagem: uma velha caricatura de homem

empreendedor, pai-de-família, de “fala grossa” (como

diria minha mãe), destratando os funcionários que

pausam seus trabalhos para respirar. Um homem

que só mostra reverência ao seu santo protetor, São

Pedro. Dizem por aí que ele só tira o chapéu para

rezar...........onde estiver.........na hora que

for...........Quando sua cabeça estiver descoberta

pode ter certeza de que está falando com seu

padroeiro.

Lá vem Maria......Maria!!!! Estou

aqui!!!! Ela parece não escutar....Está

pensativa...Introspectiva como eu jamais a havia

imaginado. O que houve Maria?Maria?

PAI – O que houve, Maria? Onde você estava? Você

está bem? De onde você vem chegando, que

apontou pela estrada grande?

Maria parece não querer falar, e durante o

interrogatório desvia seus olhos dos olhos de seu

pai.

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PAI – Fala, Maria!!!Eu te

ordeno que fale!

MÃE – Eu estou grávida, pai.

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PAI – Grávida? Então nós vamos agora buscar o

Padre Lourenço, junto do desgraçado que te

embuchou, e vamos fazer este casamento agora

mesmo.

MARIA – Mas eu não quero casar! Eu não preciso

casar!

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PAI –Você vai casar porque não quero que saiam

falando por ai que filha minha é vagabunda! Eu

sempre fiz tudo direito na minha vida, e não é por

causa de uma assanhada como tu que meu nome

vai ficar pipocando na língua do povo falador.

Maria!!! Eu exijo saber o nome

do pai da criança agora!

AGOSTINHO – Eu também gostaria de saber quem

é o meu pai, ele me falou. A minha mãe me falou que

de dois era um, mas não tinha certeza de quem era.

Por isso eu vou morrer revoltado sem saber quem

era meu pai.

PAI – Está vendo todas estas terras, Maria? Eu

trabalhei a vida inteira para deixar isso para você e

seus irmãos. Eu dei todo meu suor para construir

este império. A partir de hoje, nada disso mais te

pertence. A partir de hoje você morreu, Maria, e eu

mesmo vou me encarregar do teu velório.

Ele foi se afastando de Maria, proferindo palavras

duras que minha consciência silenciou. Vi a cidade

toda gritando aos quatro ventos, pelas costas de

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Maria, as mesmas palavras. Ela escutou a todos, e

amarrando sua saia como um chiripá, falou a toda

cidade em cima do rochedo, o mesmo rochedo

florido onde foi parida por sua mãe:

MARIA – Pois quem não quer mais fazer parte desta

família sou eu. Quem não quer mais carregar este

sobrenome sou eu. A partir de hoje deixo de ser

Maria Scariot e me torno apenas Maria. Apenas mais

uma Maria.

Eu-Maria – Ela enrola seus pertences em um pano

qualquer, e assim como sua mãe, inicia a navegação

em busca de novas terras, em busca da Terra

Prometida. Por mais que não tenha conseguido

aportar por lá, ela pôde em vida avistá-la ao longe.

Que bom saber que ela existe.

Yo no sé donde nací

Ni sé tampoco quién soy

No sé de donde he venido

Ni sé para donde voy

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Sou ramo de árbol cahido

Qué nó sé donde cahió

Donde estarán mis raíces

De que árbol soy, rama yo?

EU – Até o senhor conversar com a Tia Aurora

neste ano, o senhor não sabia da história dela?

AGOSTINHO – Não. Minha mãe dizia que ela era

diferente dos demais italianos. Uma frase que ela

usava muito era: “mi no me savare”, que traduzindo

para o português significava “Eu nem to!”.

EU – E o pai do senhor falava a frase: DUE LATI

DELLA CAMPANA, né?

AGOSTINHO - É preciso a gente prestar muito

atenção e não ir na primeira fervura... Tem que

escutar os dois lados do sino. Outra coisa que ele

dizia: quem n é visto, não é lembrado. Então foi

essas coisas que a gente aprendeu com ele, né...

.

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Começo a organizar o baú de lembranças, como

uma criança que guarda seus brinquedos de volta na

caixa. Cada recordação é colocada no seu devido

espaço, no seu devido lugar, no seu próprio tempo.

Eu me guardei junto por lá. Reviver a história de

Maria é como viver minha própria história, e mesmo

que pareçamos distantes em mundos e eras,

tornamo-nos apenas uma, aqui, diante de você. Os

segredos de Maria são meus segredos também e

depois de serem desvendados a ti, consigo enxergar

teu rosto e nossa distância parece ter diminuído.

Você se tornou nosso confidente.

Obrigada por nos ler e nos sentir. Nos despedimos

de ti com um acalentado abraço, e com o desejo de

que esta carta continue a navegar de porto em porto,

até que chegue à Terra Prometida.

Maria e Tefa.

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Algumas cartas recebidas

após o ensaio aberto de

Due Lati della Campana,

no dia 15/01/2016

.

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(Carta enviada por B. S, 21 anos, estudante de

teatro)

Oi Tefa!! Ontem acabei saindo no meio do bate papo

(infelizmente) então nem parabenizei vcs pela peça!

Parabéns! A peça é incrível, de uma sensibilidade.

Realmente, como mulher e filha e vinda de famílias

conservadoras, não tem como nao se identificar e não se

emocionar. Vou dizer uma coisa que me tocou muito, que

foi a minha interpretação. Talvez não tenha sido isso que

vocês tinham a intenção de passar, mas essa foi a minha

visão. A utilização de objetos "do lar" e de faxina como

objetos de opressão à personagem. O símbolo do pano,

aquele utilizado pra limpeza da casa, servir como o cinto

do pai que bate nela, e ele tapar o rosto dela com o pano.

Além da cena em que tu está cantando a música com o

pano na cara e "parindo" os objetos domésticos, que logo

depois são tidos como filhos daquela personagem. Na

minha visão, isso demonstrou como o trabalho doméstico

e a maternidade são utilizadas pelo homem para oprimir a

mulher. Realmente me arrepiou. Parabéns pelo trabalho

tão importante. E, como eu falei pro márcio, ver tu e a ele

em palco é lindo! A cumplicidade de vocês e a confiança

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fica clara, e isso faz a gente se sentir tão a vontade pra

viver tudo junto com vocês. Da pra sentir na pele cada

momento. Desculpa pelo textão, mas a peça realmente

pedia um feedback.

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(Enviada por M.C, 24 anos, ex-bailarina, atriz e

professora de história da rede municipal em Caxias

do Sul.)

A mulher, vítima das ditaduras das

culturas através da história - que sempre

pretenderam o seu sufocamento - é aqui

representada por uma imigrante. Há de

lembrarmos que juntamente com os

imigrantes que aqui chegaram, a moral

religiosa católica não ficou esquecida na

Itália. Nestas terras também encontrou

respaldo e ganhou força, sendo a principal

referência destas pessoas durante muitos

anos, frente à dura realidade que se

apresentou em forma de surpresa.

Infelizmente, todo o conservadorismo,

justificado pelo termo tradição, construído

a partir de ideias machistas, também se

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estrutura no Brasil junto a essa nova

configuração. Porém, Due Lati Della

Campana não dá continuidade a esta falsa

moral. Assume e revela a mulher herdeira

dessa cultura a partir da sua natureza,

também sexual. Explora a mulher que há

em todas nós, mas que é constantemente

forçada através de grande opressão a ser

domesticada.

Este trabalho possui uma importância

fundamental para a transformação do ideal

de mulher ainda muito presente na

sociedade brasileira, especialmente nas

regiões de imigração italiana. Nestas, o

estereótipo "mulher adorno" é reforçado

constantemente como ideal, onde a

mesma se apresenta através de fantasias

de princesas e rainhas puras e

tradicionais, sufocando, ainda nos dias de

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hoje, a mulher real. Reforça as regras e

padrões a serem seguidos, como se não

houvesse escolha ou outro caminho. Pois a

mulher tem de satisfazer os desejos de seu

pai, marido, filhos e de toda a comunidade

que lhe cerca. Mas está proibida de

satisfazer os próprios desejos. O que soa

quase como uma heresia.

Due Lati Della Campana pode tratar do

século passado, de um tempo em que a

sociedade atual veja até quase que

distante demais. Porém, é também uma

crítica à sociedade dos dias de hoje, que

sem analisar a própria conduta, continua

reproduzindo valores pautados no

patriarcado. Nesta obra, assistimos a uma

libertação. Um suprir de vontades.

Assistimos a um espetáculo de

sinceridades, que muito deverá incomodar,

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mas para transformar. Ao mesmo tempo,

fará com que muitas mulheres se

identifiquem e vibrem em favor do que

seria óbvio. A busca pela satisfação de nós

mesmas, por nós mesmas.

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(Enviada por F.P, 29 anos, psicóloga, mentaleira,

militante da Marcha Mundial de Mulheres)

Alguém viu Maria. Os causos do nono e sua

sabedoria, a rede de identificações que

independem do tempo e espaço, mas demarca

presença nas “coincidências” perpetuadas por

gerações, tornava encantadora a navegação por

estas águas novas. Uma temerosa personagem,

silenciada, que provavelmente “causou” em sua

época por representar aquilo que era discrepante

com a moral e os bons costumes da família

monogâmica patriarcal, fortemente enraizada na

serra gaúcha. Maria era uma louca, desviante.

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Do baú de memórias, lembro como Tefa

cantarolava com frequência a canção de Chico

Buarque, Geni e o Zeppelin:

“Joga pedra na Geni

Joga bosta na Geni

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni”

Acompanhar o encontro de Tefa e Maria

soou como poesia, chamego, abraço. Produziu

sentido. Pouco parecia que estava diante de uma

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dissertação de mestrado, pois seus relatos eram

permeados de afetividade, leveza. Vi olhos

marejados, voz “embasbacada”, desconforto,

inquietação, contradição. Era o desejo que a

levava a estes territórios. Até pensei que a

academia pode ser um lugar bacana. Por isso me

permiti escrever desta forma – essas duas

inspiram coragem.

Maria viu o pontinho de luz, que Tefa

percebeu como silhueta. A Geni, agora bendita,

que pode nos salvar, nos redimir, que dá pra

qualquer um, se desenha como um suspiro de

liberdade. Um novo lugar para esta mulher na

história da família Scariot, será possível contar.

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A narrativa não será mais a mesma. Nós,

Marias, em nome de todas que já passaram,

agradecemos.

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(Enviada por M. M, 27 anos, professora de inglês)

Tefa, emocionou a todos o teu trabalho. Parabéns por tua imensa dedicação,

parabéns ao elenco. (sem palavras). a conexão com a dança, com a música,

com o dito e o não dito, com os elementos cênicos. simplesmente LINDA. /

penso que a arte tem a função de questionar (há um papel social

extremamente fundamental) e quem a busca , sendo público do teatro ou

não, busca identificar-se , busca soltar um grito de sufoco por meio do ator

que está em prol de todos - oprimidos ou não, busca soltar a lágrima , o choro

engasgado e também a força que precisa ser revigorada. / Com toda certeza

estás realizando com destreza essa luz que traz sorrisos e também desperta

nossos "Eus" mais profundos e não ditos.

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247

(Enviada por W.F, 22 anos, psicólogo)

Fiquei me questionando sobre uma série de

estigmas e a insistência (ou necessidade?) do ser

humano de apontar e determinar o correto e

incorreto das situações. Isso também permitiu tentar

se colocar nesse outro lugar: o da pessoa julgada.

Uma das cenas finais, onde a personagem grita toda

a raiva que sente no momento em inúmeros “e a

partir de agora...”, é muito tocante.

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(Enviada por T.A, 45 anos, atriz, psicóloga,

coordenadora da ACAT)

Mas o que assistimos já nos dá a dimensão da

personalidade e da importância dessa mulher, que se

funde o tempo todo com Tefa também pela sua “não

atuação”. Todas as mulheres parecem estar em

Tefa: ela é a atriz, ela é a personagem, ela é a

mulher singular. E todas aparecem em cena.

Discorro sobre as minhas impressões, não

necessariamente sobre o que penso que a atriz

concebeu. O mesmo sobre a presença do ator

Márcio Ramos nos personagens que desfia. Longe

de ser secundária, é uma presença fundamental pra

impulsionar as cenas. A história pertence muito a ele

e a suas criações, pois são suas personas que criam

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essa Maria que conhecemos, seja na vida real, seja

no palco. O início da peça, que parte de um exercício

e adentra nos personagens pela ações próprias que

vão ganhando forma e conteúdo, já prenuncia um

espetáculo feito por uma atriz e um ator que se

desdobram em personagens dramáticos, fazem

breves narrativas, mas se desdobram ainda neles

mesmos. Um modo de encenação que funde papéis

e tempo passado e presente, o que requer muita

atenção de nós, espectadores, pois não é linear e

muito menos cômodo, visto que temos que construir

junto com eles o enredo. Enfim, não é apenas sentar

e assistir.

Tefa e Márcio se apresentaram pela primeira vez em

novembro de 2014, no Projeto Volta e ½ Giro Teatral,

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promovido pela Associação Caxiense de Teatro –

ACAT. Propuseram essa discussão sobre

dramaturgia autoral e deixaram muitos de nós a

pensar. Tive a oportunidade de assisti-los novamente

nesse ano, com o espetáculo mais definido e agora

com a presença do Nono, pra quem são destinadas

narrativas das memórias de Maria. Deixaram

novamente a pensar, muitas outras pessoas.

Não é fácil expor no palco uma história pessoal, mas

Tefa o fez. Fez da técnica uma ponte pra criar as

ações e o sentido. Criou rupturas para dar novos

impulsos na história de Maria, assim como na vida

de todas e todos, porque nada é só físico. Tornou

visível outras histórias e outras Marias, Ilianas,

Teresas... Provocou lágrima nos olhos e até choro.

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Com gestos e movimentos econômicos, precisos e

limpos, com canções e não muitas palavras ela

desenhou Maria. Márcio, igualmente, desenhou

Maria. Nono também. Nós, espectadores, também

desenhamos Maria. Com essa construção

dramatúrgica pouco convencional e sua temática

arrebatadora, Due Latti della Campana ainda vai dar

muito o que falar e transformar.