40
SUAVE É O CORAÇÃO ENAMORADO

SUAVE É O CORAÇÃO ENAMORADO - Portal A&L - Para quem ... · de que o que vemos não é o ... que melhor expressa o seu lirismo e dá o passo sem perder o ... E essa é a sua tônica

  • Upload
    vuliem

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

SUAVE É O CORAÇÃO ENAMORADO

Antônio Naud Júnior

Itabuna / Bahia, 2009

SUAVE É O CORAÇÃOENAMORADO

1ª edição revista

RevisãoHenrique Wagner e Gustavo Atallah Haun

Projeto Gráfico, Diagramação e CapaMarcel Santos

IlustraçõesIgor Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha catalográfica : Elisabete Passos dos Santos CRB5/533

N291 Naud Júnior, Antônio. Suave é o Coração Enamorado / Antônio Naud Júnior. –1. ed. rev. – Itabuna : Via Litterarum, 2009. 172p.

ISBN: 978-85-98493-25-1

1. Poesia brasileira. I. Título. II Série. CDD – 869.91

Copyright 2009, Antônio Naud JúniorTodos os direitos desta edição reservados à

VIA LITTERARUM EDITORARua Rui Barbosa, 934 - Térreo - Centro

Itabuna - Bahia, Brasil - 45600-220Tel.: (73) 4141-0748 :: [email protected]

www.vleditora.com.br

para Hilda Hilst, musa visionária

“Não viste, acaso, no ar transparenteuma dália de dores e de alegrias

mandada pelo meu coração quente”

(Federico García Lorca,Sonetos do Amor Obscuro)

“Nenhum mal se perdeu,Nenhum bem foi em vão,

À luz clara tudo ardeMas não pode ser só isto.”

(Arsenii Tarkovskii)

O QUE VEMOS NÃO É O QUE SE VÊ

Antigos poetas das ilhas do mar Egeu costumavam imprimir seus poemas em folhas soltas para vendê-los pelas aldeias ou dis-tribuí-los a amigos e admiradores. O grego Konstantinos Kaváfis, um ideal lírico a ser perseguido, continuou tal tradição no início do século passado. Dessa lição fiz eco, multiplicando poemas através de cartas, e-mails e revistas literárias de diversas partes do mundo. Versos nascidos em Sintra, Tânger, Mondariz, Paris, Edimburgo, Havana, Londres, Úbeda etc. Neles, a experiência humana e es-piritual é vivida intensamente, de acordo com a minha convicção de que o que vemos não é o que se vê.

A condição de exilado voluntário reforçou o idealismo poético de um viajante que não se cansa de se surpreender, de se emocionar com o que encontra ao longo do caminho. Desse modo, mistu-rando países, línguas, costumes, angústias, alegrias e descobertas, insuflei frescura natural na alma inquieta, procurando o Graal dentro de mim mesmo e fugindo do confinamento claustrofóbico. Será um desperdício de vida? Talvez. Sei que me dá prazer estar no metrô inglês olhando rostos neuróticos tanto como mergulhar nas águas turquesa do mar caribenho. Afinal, como escreveu o chinês Zhang Kejiu: “Quando a imobilidade não é satisfatória, somos livres para viajar”.

Sempre a minha poesia foi aproximação ao viajante. Mas que significa essa aproximação? Uma aproximação ao que no mundo nos faz sentir em viagem: a leitura de um poema, a conversa in-teressada e interessante com o outro, o silêncio de certos olhares, as lágrimas de certas dores ou paixões, uma paisagem na qual nos projetamos outros, com outro tempo e lugar... e a música e o cinema e a pintura... Numa definição muito afim de um amigo

poeta, poesia será a preservação da árvore do real, sendo o real a raiz afetuosa em cuja matéria frutifica a arte poética, a visão do mundo de quem humanamente se vai mostrando. É que também a poesia tem para mim este não-sei-que de revelação nunca revelada, constituindo um mistério fascinante essa mesma raiz, essa mesma matéria, essa mesma arte; fascínio diante do qual ficamos à espera que um poema aconteça!

Este livro de poemas – imperfeitos, ambíguos, rendilhados, desafiando sempre o leitor a procurar um sentido do sentido – res-ponde, por assim dizer, a poemas de vários poetas que fui lendo ao longo desses últimos anos. Neles, o lirismo dá as mãos ao mistério do insondável à luz do qual, na presença de um poema, somos por instantes a árvore do real tremendo por dentro, tomando registro do outro que há em nós. Para que a árvore seja agitada e os pássaros desse real se evadam, se libertem das amarras humanas, é preciso imaginar. O sentimento de evasão que esses poemas possam sus-citar justificam, quanto a mim, o grau de metaforização desse real viajado, vivido, desvivido, sonhado e pressentido à medida que fui escrevendo este Suave é o Coração Enamorado. Preservar o real ou, se quisermos, preservar a imaginação, eis o que está em causa. E compete à imaginação de cada um descobrir em si o que possa ser essa suavidade e de que enamoramento se trata.

Antônio Naud JúniorSalvador, Junho de 2006

GRITO BÁRBAROSOBRE OS TELHADOS DO MUNDO

Em Suave é o Coração Enamorado há um poeta andarilho, anunciando o mistério de sua existência e sua perplexidade diante de cada situação que se apresenta em sua caminhada. Seu lar é cada plaga deste planeta, cada cidade por onde tenha passado ou habitado. Assim, Barcelona, Cádiz, Colônia, Edimburgo, Hava-na, Florença, Ilhéus, Itabuna, Itacaré, Lisboa, Londres, Madri, Mondariz, Paris, Natal, Rio de Janeiro, Salvador, Santa Cruz de Graciosa, São Paulo, Sintra e Tânger são os pontos de partida de cada série de poemas deste livro.

Antônio Naud Júnior é um poeta do mundo, caminheiro dos quatro cantos, navegador dos sete mares. Para ele “nada é mais importante/ do que o caminho a seguir”, e compreende que esta escolha é uma busca solitária que pode conduzir a todas as partes, mas seu objetivo é outro:

“ah não me espereseja quem fornão sei aonde vounão sei se vou voltarcaminho sem rumonesta misteriosa estradapara dentro de mim”

Sua poesia não poderia ser de outra maneira, senão a vastidão dos versos livres soltos no mar da página, em busca da praia em que possam se estender. A sua forma – modo de nomear – não busca a contenção, porém dizer o tudo dos caminhos que vão surgindo:

“e eu passeio sem destino à cata da divina comédia.”. Uma poesia que flerta com a prosa, que observa com desprendimento a vida que passa, ao mesmo tempo em que descreve objetos, paisagens e ambientes.

Suave é o Coração Enamorado faz uma viagem dentro da vida do jovem escritor, reunindo poemas produzidos entre 1987 e 2005. Não se trata de um diário qualquer, mas uma espécie de ata de registros onde o autor imprime suas sensações sobre o que o movimenta: seus prazeres, delícias, angústias, viagens. Um caderno de anotações poético-existenciais cuja medida maior é a palavra:

“estou ausenteporém no castelo desta ausênciaespero o eterno retornoestou nas palavrasando sem destinomensageiro de poética contaminadade manuscritos perdidos e salmos piedosos”

Este poeta de coração enamorado, em um momento está em Madri à procura do amor. E o procura “na queda de são paulo ante a visão de cristo”, mas o amor é “um cântico do rei salomão”; noutro, em Salvador, onde faz uma oração ao seu santo protetor, e cada verso é um degrau para o delírio, cada verso é um mover de montanhas:

“foi são jorge que me tocou (...)sinto-me jasmimperfumando a escuridão (...)sou um poeta errante tocado pela luz de são jorgeo guerreiro de capadócia que venceu um grande dragãoé relâmpago no infinito”

O coração enamorado, que se apresenta suave, é, também, selvagem, como fica evidenciado em um dos mais belos poemas do livro, onde o autor homenageia suas referências e dá mostras de onde o seu lirismo pode alcançar:

“meu coração é selvagemdo meu chão brotam líriosminha boca plumagem de colibris

minha pele animal felinomeu sangue árabeminha poesia arrebatada

ave, gullar! ave, wally!

coleciono juventudes desperdiçadascacos de sensações

troco desânimo pulsando em vidapor força visionária para continuare continuar cícero e continuar cecime continuar hilst

troco amor por amorcom quem me ajuda a semear jasmins joão cabral e sabiás

troco o impulso de me jogar pela janelapor versos de leminski com vistas para o mar”

Às vezes, seus versos passam por um processo de fragmentação e, quase sempre, se expandem para o universo da prosa – tênue seara. Mas diferentemente de estar em cima do muro – sem se

decidir entre a prosa e a poesia –, Naud se equilibra na palavra que melhor expressa o seu lirismo e dá o passo sem perder o tom: “vou para dentro para dentro do enigma. (...) / porque nele reside o êxtase”.

Walt Whitman, bardo cósmico de Flores de Relva, no pre-fácio da primeira edição de sua obra essencial, afirma que “o jovem que arriscou sua vida tranquilamente e a perdeu fez um extremo bem para si mesmo, enquanto que o homem que não arriscou sua vida e a retém até a velhice na riqueza e no conforto provavelmente não conquistou nada para si que valha a pena mencionar”. Como o jovem de Whitman e ainda como Aquiles, na Ilíada, que escolheu a glória em detrimento de uma vida longa, cheia de filhos e regalos, Naud prefere correr todos os riscos, mas só percorre os caminhos do coração enamorado. E essa é a sua tônica. É aí que reside todo o seu encanto, todo o seu espanto.

Cabe ao leitor atento seguir o fio de Ariadne que conduz ao cerne da poética de Antônio Naud Júnior – Apolo Grapiúna antenado ao legado do Walt Whitman, que em Canção de mim Mesmo, do já citado Flores de Relva, predizia o brado desse Suave é o Coração Enamorado: “solto meu grito bárbaro sobre os telhados do mundo”.

José Inácio Vieira de MeloPoeta. Autor de A Terceira Romaria (2005).

SUMÁRIO

BARCELONA ......................................................................................................................... 15

CÁDIZ ...........................................................................................................................................23

COLÔNIA ................................................................................................................................. 29

EDIMBURGO .........................................................................................................................37

FLORENÇA ...............................................................................................................................43

HAVANA ..................................................................................................................................... 51

ILHÉUS ............................................................................................................................................57

ITABUNA .................................................................................................................................. 65

ITACARÉ ....................................................................................................................................... 71

LISBOA ......................................................................................................................................... 79

LONDRES ....................................................................................................................................87

MADRI ......................................................................................................................................... 95

MONDARIZ..........................................................................................................................101

NATAL .......................................................................................................................................109

PARIS ............................................................................................................................................. 115

RIO DE JANEIRO ............................................................................................................125

SALVADOR ............................................................................................................................133

SANTA CRUZ DE GRACIOSA ............................................................................141

SÃO PAULO ...........................................................................................................................147

SINTRA .......................................................................................................................................155

TÂNGER ................................................................................................................................... 163

“A hora é de Gaudí, de ruas retas e planas, de fileiras de plátanos, de luz

mediterrânea. Não há como me enga-nar, o trem da vida estacionou em Barcelona.

Penetro na poesia ardente de Federico García Lorca e no surrealismo cinematográfico de Buñuel,

pintando o coração de cores concentradas, variadas (...) Ao espelho, após seis dias de jejum e meditação. Quando

um homem vê o seu rosto no espelho, ele objetivamente enxerga em que estado a vida o deixou. O que vejo? Perene inquietude. De onde deriva o impetuoso desejo de justificar nossa existência? Tem origem na consciência de nossa própria

imperfeição. Pois seja! Escrevo versos, leio, entrevisto gabolas, fotografo o desatino humano e cidades delirantes, não permitindo o falecimento do coração. Segundo Camus é preciso não aceitar este horrível silêncio que se instala, por vezes, no mesmo lugar do grito. Que extraordinário são os mecanismos da razão. Reduzem-se ao chamamento mais íntimo. A partir de uma certa idade escolhe-se o caminho e não há retorno. Escolhi a literatura, viagens, noites de lua, harmonia, flor da alma, Barcelona. Viver aqui é muito inspirador. Sem dúvida, uma das cidades mais lindas do mundo. Eu me apaixonei por ela. Será um amor para a vida toda”

(Abril de 2000)

Barcelona - Suave é o Coração Enamorado 15

fixei-me bem em teus olhossem murmurar qualquer palavrasolto no desconhecidodando-me conta de que não sabiao caminho para chegar ao fundo de mim

fixei-me bem em teu cheirologo me acostumando às pétalasperdido em um jardim invisívelassim abelha insaciávelvoando em busca da flor mais formosa

fixei-me bem no desejonão tardando em perceberser estrangeironum bosque de delíciasembriagado de filtros de amor

há a possibilidade de ir aonde queroe não importa o que vejo além de tisei que me fixei bem em teu olharem tua pele brancaem teus pelos cor de melbeijando todo o teu sercomo um amante acostumadoa misteriosas delicadezas

1

Barcelona - Suave é o Coração Enamorado 17

não é para sempre habitarei a gélida montanhaamando a relva ao vento lendo dia após dia o mesmo livro– a natureza em transe –se a melancolia me assediarse o vazio contemporâneoencontrar o tal refúgionum urro de animal furiososubirei na árvore mais altatocando as nuvense esquecendo a língua dos homens

2

Barcelona - Suave é o Coração Enamorado18

3

nos álbuns de fotografiasda infância perdidadesfilam rostos sem nomesorrisos perpétuoscrianças que fomoscriaturas de planetas inimigosemitindo códigos de espionagemcaptados por satélites russos

nos álbuns de fotografiasa melancolia é tal qual a claridade anil do olhar de peter pan

Barcelona - Suave é o Coração Enamorado 19

outra vez os gestostalvez a maneira de pousar a mãode sorrir com o canto dos olhosos gestos a cada momento– a imortalidade do gesto –como ramalhetes de alfazemacomo quando ameinuma estação de chuvasapertando o corpo latinocontra o muro de pedradentada a dentadade gemidos e candurade gestos jamais captados em versos

4

Barcelona - Suave é o Coração Enamorado20

não me culpe por derrotasnem ofenda o público perturbadocom o drama baratoo silêncio é o melhor dos vícioso jardim seca a olhos vistosmesmo regado diariamentesem faltasonho todas as manhãse um dia farei leilão delesnão toco o seu corpo por não encontrá-loe dificilmente compreendereimerecer tal solidão

5

Barcelona - Suave é o Coração Enamorado 21

“Na pequena praia à beira de uma fortale-za, um casal alemão surge repentinamente,

cata algumas pedrinhas e some atrás das ro-chas. Eufóricas gaivotas dão voltas perto de mim,

lembrando o suspense de Hitchcock. O sol forte; os ventos violentos. Sou um cigano, de cidade em cidade, de

experiência em experiência, conversando pouco, observando, lendo vorazmente. Ontem participei de uma coletiva de im-prensa em torno do diretor teatral norte-americano Bob Wil-son, que está na Espanha montando uma peça sobre Perséfone,

a filha de Ceres e Júpiter, raptada por Plutão, aquela que vaga entre o mundo dos vivos e dos mortos. Em Cádiz anoitece tarde, por volta das 22 horas, e as asas da noite são vibrantes, impetuosas. Nela, os andaluzes enchem a cara de vinho e fumam como uns condenados. Amo essa gente rude, animada e amigável. Cádiz está bem preservada. A arquitetura é magnífica. Apenas estar nela é uma dádiva. Muito intrigante”

(Junho de 2004)

Cádiz - Suave é o Coração Enamorado 23

Cádiz - Suave é o Coração Enamorado24

sou um homem de olhos abertos de volta à espanha colorida de almodóvar olho ruas que não são minhas beijo a história e o seu silêncio sofrido penso em coisas surgidas ao acaso acende-me o coração ver rudes ciganos consola-me o espírito acariciar o mar sou um homem de olhos abertos de volta à espanha flamenca nada é mais importante do que o caminho a seguir– estrada de descobertas – nada consola os fantasmas do general franco perdidos em noites antigas sou um homem de olhos abertos de volta à espanha sedutora de carmen

1

Cádiz - Suave é o Coração Enamorado 25

na véspera da chegada é confuso o que sinto morre a tarde azul e não sei se morro ao recomeçar que angústia sentida aqui neste tremcom a possibilidade de nunca mais voltar toda a saudade agora se amplia e ao crescer confunde-se e confunde-me com a inevitável luz da manhã embora vá e aonde vá sou este cigano maduro não se encontrando em nenhum lugar sentir-se jovem não é ser jovem é só a ilusão de amanhecer e amanheço mas ao colocar o pé na estrada subitamente com que susto vejo a noite sem fim por vezes os meus olhos enxergam a flor da juventude ah não me espereseja quem fornão sei aonde vou não sei se vou voltarcaminho sem rumonesta misteriosa estradapara dentro de mim

2

3

Cádiz - Suave é o Coração Enamorado26

uma sedutora andaluzavestida de negroleque pássarobailava na festa da virgem de la luznaquele mês de setembromil olhos – minúsculas lanternas –perseguiam o seu encanto enfeitiçadosera uma dança de despedidaera uma dança de morteera uma dança de pele e gozoo cravo vermelho preso no véu douradorodopiavaela mariposa noturna bailava bailava bailavamil mãos máquinas masculinasagarravam mais uma taça de vinho de sessenta cêntimosde euro

carmen – ah a bela carmen! –bailava bailava bailavaera uma dança de despedidaera uma dança de morteera uma dança de pele e gozo

Cádiz - Suave é o Coração Enamorado 27

o silêncio se perguntao que será da vidacaso não encontreoutro silênciodisposto a acompanhá-lovida aforacontinuando sozinhono caminho que leva a lugar nenhum

no caminhoque levaa lugarnenhumum castelo e fantasmasum campo de girassóisuma arena de touros um cântico flamencoduastrês quatro taças de vinho tintoe a falta do calor de outra mãooutra mão (a sua mão?) todas as mãos soltassem ninguémcomediantes da inconstância

silêncio em todos os caminhoscruzando outros silênciossozinhos

castanholas aceleram-senuvens são levadas ao ventoo coração espera o que não existe

4

5

Cádiz - Suave é o Coração Enamorado28

tudo aromacanelacavalocigano

destinoimpossível distância

tudo carmimsol

tardequietudesilêncio

beijo não dado

tudo delíriodança

sereiasvinho

confissõesauréolas falsas

haxixe marroquinoluminária azul-turquesa

tudo raiostrovõesrelâmpagosfervordesejojasmimpatassanguebelezachamasmãos celestespaixões simuladas

tudo por um instante de amorpela pelepelo querer bempelo amanhecerpelo anoiteceraranhasasassombrasvagabundosventoslivros

tudo por palavras sonâmbulase suas notórias intenções

Colônia - Suave é o Coração Enamorado 29

COLÔNIA

“Viajando com visto de permanência europeu vencido, confio nas cartas de tarô que garantiram um caminho de descobertas

e alegrias. Hospedo-me no apartamento da amante de um amigo português, e vago por ruas

silenciosas e planas, povoadas por uma fauna humana variada (orientais, negros, gays, punks, hippies, góticos,

malucos etc.). A dificuldade está no frio permanente e no idioma germânico. O céu cinzento, bicicletas. Diversas pontes cortando o rio Reno. O holocausto na consciência coletiva e em tijolos dourados nas calçadas, que levam gravados os nomes de

suas vítimas. Como em restaurantes árabes – os mais baratos – e varo as noites em um bar russo experimentando cervejas fortes. A chamada pobreza do leste alemão é uma falácia, suas cidades são prósperas e confortáveis. Campos de milho, cevada, trigo e girassóis desenham uma paisagem impactante. Os vilarejos limpos, tranquilos, com grandes casarões, jardins floridos e pomares. Nessa primeira viagem à Alemanha, saúdam-me os velhos amigos Hesse, Goethe, Rilke, Fassbinder, Marlene Dietrich. Ah, beleza de viver! Ah, triunfo de existir!”

(Julho de 2005)

Colônia - Suave é o Coração Enamorado 31

manteve os olhos fixosvendo altas árvorese a claridade solar entre os galhossabe como as coisas podem ser superficiais e como há intensidade para dar sentido à vidadesprotegido com a chuva interioro coração desejando viver neste lugar irradiantepor muito tempoum lugar em que cada silêncio emocionadoprovoca ecos azuisodores incríveismanteve os olhos fixosvendo altas árvorese a beleza dos olhos ternosde um estrangeiro

1

Colônia - Suave é o Coração Enamorado32

a primeira coisa que fezao entrar na florestafoi acender a luz do espíritocom um brilho benévolo nos olhosmurmurou “é belo aqui dentro”a chuva voltou a caircelebrando a vidao vento soprou sem fúriajá não era habitual o que sentia

2

Colônia - Suave é o Coração Enamorado 33

o fogo das palavrassão brasas nos olhos do freak bem-intencionadode beleza rastafárienquanto sombras vivasalém fogueiradançam o apocalipseno mistério de nós mesmos

3

Colônia - Suave é o Coração Enamorado34

que temo eu na noite profunda?eu sou uma parte da febril fábulamuitas vezes contadaà beira da fogueiraeu sou uma parte da floresta encantadado reino da vertigemda terra de holderlinpouco a poucobrasas cogumelos faiasestrelas cadentes raios e trovõessão o alvo naturalo que vejo na escuridão?quem aguardo?o que espero?eu sou uma parte do suspiro dos invisíveis

cai a noite alucinógenanibelungos sopram profeciassussurros ao ventoo pássaro da lualoucorodopia no infinito três vezesmergulhando num voo cegona paisagem interiorque temo eu na noite profunda?

4

a chuva doravante não seráapenas a chuva molhando a terraa chuva e meus próprios pensamentoslâminas soltas ao acasoem qualquer estaçãoavançando recuandoà procura da virtudede um renascimento decidido

Colônia - Suave é o Coração Enamorado 35

5

Edimburgo - Suave é o Coração Enamorado 37

“Não planejei estar na terra dos homens de saia. A Escócia não fazia parte dos meus

propósitos de escritor viajante. Ao pensar nesse país, vinha-me à cabeça a infeliz Mary

Stuart, aventuras de Sir Walter Scott, épicos ruins da Metro, Robert Louis Stevenson, o lago Ness, castelos e

nevoeiros. Estava correto, tudo isso pode ser encontrado por aqui. Edimburgo, a capital romântica e sombria, famosa pelos festivais de teatro, cinema e música, abriga ruas largas, casarões de pedra e inúmeros museus, galerias, parques, teatros, bares e restaurantes. O castelo que guarda as joias do reino, situado

no alto de uma colina, é sóbrio, austero. O que mais me chamou atenção foi a The Stone of Destiny, a pedra onde os primeiros reis foram coroados, simbolizando a união do monarca, da terra e de sua gente. Roubada pela Inglaterra, permaneceu na Abadia de Westminster durante 700 anos até a sua histórica recuperação em 1996. As joias do reino – cetro, espada e coroa – são conhecidas como Honours of Scotland. Magníficas, cravejadas com pérolas, diamantes, ametistas e um enorme cristal de roca. (...) Não conhe-ço ninguém, circulo sem eira nem beira, bebendo malte escocês no Blue Moon Café e no CC Blooms, frequentando a Scottish National Gallery (enamorado de L’appel de la Nuit, de Paul Del-vaux) e escrevendo poemas na colina de Calton Hill, diante de uma vista admirável”

(Setembro de 1998)

existem noites de mau olhadonoites viscosas como cobras d’águanoites enigmáticasem que não me reconheço no espelhoe girafas atravessam lentamente o quartoincomodando ao mastigar flores de plásticoé quando creio que viver é perigosoe nessas horas de má sortea vida grita numa sensibilidade notável:“ponha-se de guarda!”

Edimburgo - Suave é o Coração Enamorado38

1

Edimburgo - Suave é o Coração Enamorado 39

de mistériosse nutre a enorme boca do tempo

no papel brancopenam poemas abortados o coração rema na maré tenebrosa gritando agudo ferido

o amante sorri na fotografia 3x4dentro do livro abandonado numa gaveta

2

doidos enxergam cores lisérgicassão crianças quando nevacultivam camélias nos cusnão dando importância às gravatasde homens importantes

doidos são poetas e vagabundosassobiam jazz em estações de metrôsonham com os mistérios do marguardam uma capa de orquídeas para festas no céu

doidos inventam a felicidadetremem como donzelas quando violadosmontam dragões nos jardins banhados pela lua cheiaapaixonam-se por querubins e demônios

doidos desconhecem portas e janelascortam-se ao fazer a barbaconversam com deusvoam dormindo

doidos são feitos de versosde líquidos sentimentos doidos

Edimburgo - Suave é o Coração Enamorado40

3