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1 BLOGUEIRAS NEGRAS: “SOU MULHER!” “SOU PRETA!” FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO DA MULHER NEGRA CONTEMPORÂNEA Viviane Inês Weschenfelder UNISINOS 1 Eli Terezinha Henn Fabris - UNISINOS 2 Introdução Faz muito tempo que gostaria de compartilhar um pouco da minha história, que não é só minha, mas de várias outras mulheres negras. Uma história cujos caminhos não foram fáceis, mas sim cruéis e dolorosos. [...] Antes que eu comece, quero perguntar para você, mulher negra que está lendo agora: quanto tempo levou para que você se reconhecesse como NEGRA? (Blogueira Luma). 3 Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer o seu próprio rosto perto do outro. (FOUCAULT, 2004, p. 156). Este texto tem o objetivo de desenvolver uma análise das formas de subjetivação da mulher negra contemporânea, a partir dos textos publicados no blog intitulado “Blogueiras Negras”. O blog é tomado como um campo privilegiado em que podemos visibilizar como, na Contemporaneidade, as mulheres negras relacionam-se consigo mesmas e com as outras, produzindo novas subjetividades. O primeiro excerto é um exemplo de relato recorrente entre os textos postados, em que mulheres negras abordam diferentes assuntos narrando suas experiências pessoais. São produções muito significativas, escritos com o objetivo de sensibilizar o leitor, especialmente as mulheres negras, público-alvo do blog. Por essa potência, entendemos que esse espaço caracteriza-se como educativo, político e de resistência para esses sujeitos 4 . Ao se expressarem sobre as mais diversas questões, as mulheres negras (re)afirmam suas identidades e produzem formas de se conduzirem diante das situações cotidian as, seja 1 Historiadora, mestre e doutoranda em Educação. Bolsista da CAPES. 2 Pedagoga, mestre e doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. 3 Para diferenciar os excertos do material analisado com as citações dos autores, optamos por colocá-los em itálico. Além disso, como o “Blogueiras Negras” é um espaço público em que as autoras são identificadas inclusive com perfil, os excertos aparecerão com o primeiro nome das blogueiras. Essa é uma opção política que vai ao encontro tanto do escopo do blog quanto de nosso posicionamento enquanto estudiosas da temática. 4 Resistência está sendo tomada como uma possibilidade de luta e de estratégia, não ocorre apenas entre dominantes e dominados, mas de todas as formas advindas das relações de poder.

SUBJETIVAÇÃO DA MULHER NEGRA … entrevista cedida em 1982, Foucault concorda que a identidade é útil e importante, mas na ,

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BLOGUEIRAS NEGRAS: “SOU MULHER!” “SOU PRETA!” FORMAS DE

SUBJETIVAÇÃO DA MULHER NEGRA CONTEMPORÂNEA

Viviane Inês Weschenfelder – UNISINOS1

Eli Terezinha Henn Fabris - UNISINOS2

Introdução

Faz muito tempo que gostaria de compartilhar um pouco da minha história,

que não é só minha, mas de várias outras mulheres negras. Uma história

cujos caminhos não foram fáceis, mas sim cruéis e dolorosos. [...] Antes que

eu comece, quero perguntar para você, mulher negra que está lendo agora:

quanto tempo levou para que você se reconhecesse como NEGRA?

(Blogueira Luma). 3

Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer o seu próprio

rosto perto do outro. (FOUCAULT, 2004, p. 156).

Este texto tem o objetivo de desenvolver uma análise das formas de subjetivação da

mulher negra contemporânea, a partir dos textos publicados no blog intitulado “Blogueiras

Negras”. O blog é tomado como um campo privilegiado em que podemos visibilizar como, na

Contemporaneidade, as mulheres negras relacionam-se consigo mesmas e com as outras,

produzindo novas subjetividades. O primeiro excerto é um exemplo de relato recorrente entre

os textos postados, em que mulheres negras abordam diferentes assuntos narrando suas

experiências pessoais. São produções muito significativas, escritos com o objetivo de

sensibilizar o leitor, especialmente as mulheres negras, público-alvo do blog. Por essa

potência, entendemos que esse espaço caracteriza-se como educativo, político e de resistência

para esses sujeitos4.

Ao se expressarem sobre as mais diversas questões, as mulheres negras (re)afirmam

suas identidades e produzem formas de se conduzirem diante das situações cotidian as, seja

1 Historiadora, mestre e doutoranda em Educação. Bolsista da CAPES. 2 Pedagoga, mestre e doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. 3 Para diferenciar os excertos do material analisado com as citações dos autores, optamos por colocá-los em

itálico. Além disso, como o “Blogueiras Negras” é um espaço público em que as autoras são identificadas

inclusive com perfil, os excertos aparecerão com o primeiro nome das blogueiras. Essa é uma opção política que

vai ao encontro tanto do escopo do blog quanto de nosso posicionamento enquanto estudiosas da temática. 4 Resistência está sendo tomada como uma possibilidade de luta e de estratégia, não ocorre apenas entre

dominantes e dominados, mas de todas as formas advindas das relações de poder.

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com relação ao corpo, à sexualidade, ao gênero ou ainda à negritude. Os textos publicados

permitem uma leitura bastante privilegiada dos caminhos que vêm sendo percorridos pelo

feminismo negro5. Por meio da escrita, as mulheres colocam em ação o pensamento sobre sua

própria conduta que, direcionada pelas verdades que as constituem, modificam a si mesmas e

as demais mulheres negras, num movimento que chamamos de subjetivação. Dentre as

publicações do ano de 2014, selecionamos alguns textos que trazem depoimentos de mulheres

que relatam como se tornaram negras.

Na primeira seção, apresentamos o conceito de blog e o “Blogueiras Negras”, que tem

características específicas importantes para a análise aqui pretendida. Na seção seguinte,

discorremos sobre os conceitos-ferramentas utilizados para desenvolver a análise dos textos

das Blogueiras. Por meio da articulação dos estudos foucaultianos com os estudos étnico-

raciais, posicionamos o campo da negritude brasileira na grade de inteligibilidade da

governamentalidade, para que possamos enxergar quais as formas de governamento

contemporâneas e como estão conduzindo e mobilizando os discursos que a compõem.

Na seção intitulada “Nasci negra depois dos 30”, desenvolvemos nossa análise

apresentando alguns excertos dos textos publicados no “Blogueiras Negras”. A recorrência

das narrativas em que as mulheres mostram como se tornaram negras, muitas vezes

associando a um novo nascimento, evidencia a potência do processo de subjetivação

vivenciado por essas blogueiras. Mostraremos também que esse movimento é evidenciado por

outras pesquisas desenvolvidas com mulheres negras ativistas, o que reforça a produtividade

do material analisado e fortalece nossa análise. Por fim, na medida em que esse texto se insere

em uma pesquisa que resultará em uma tese de doutorado no campo da Educação,

desenvolvida por uma das autoras, consideramos primordial pensarmos na contribuição dessa

análise para a educação das relações étnico-raciais.

Os blogs e as “Blogueiras Negras”

5 “O feminismo negro se formou a partir das relações entre as militantes negras e os movimentos feminista e

negro”. Articulado entre as décadas de 1980 e 1990, surge como movimento quando a supremacia branca do

Feminismo começa a ser questionada. Da mesma forma, a ausência de discussões de gênero no Movimento

Negro e o papel secundário das mulheres negras nesse espaço torna-se motivo de discussão. (DAMASCO;

MAIO; MONTEIRO, 2012, p. 133, 135).

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O termo blog significa uma junção de rede (web) com diário de bordo ou registro

sistemático (log). Diário online, portanto, parece ser a tradução mais adequada na Língua

Portuguesa para web log. Denise Schittine (2004) faz uso da expressão “diário íntimo na

internet” para substituir o termo blog. Segundo a autora, o que “o blog possibilita é a

cumplicidade com um sentimento novo, de pessoas desconhecidas que têm sentimentos e

segredos parecidos com os do diarista, mas que ele nunca conheceria se não se expusesse pela

internet”. (SCHITTINE, 2004, p. 71). A fala a seguir reforça essa cumplicidade:

O contato com outras mulheres negras e suas vivências, assim como o

processo de construção de suas identidades, mostrou-me que eu era

possível. E eu percebi que havia chegado a hora de viver plenamente a

minha identidade, completa em suas raízes e em contínuo desenvolvimento,

como uma árvore frondosa e firme. Poder declarar-me mulher negra, é fazer

visível o laço invisível da minha ancestralidade, identidade legítima e que

me aceita, esfera onde eu deixo de ser bastarda. (Blogueira Aline.

Entre algumas características dos blogs, estão as possíbilidades de “seguir” e “deixar

de seguir”, e de vincular o blog às redes sociais. A organização da página, como layout, fica a

cargo do administrador do blog. No caso das Blogueiras Negras, há uma Equipe de

Facilitadoras, responsáveis por escolher os textos, realizar a revisão editorial e alimentar o

blog, além de mediar as discussões no grupo específico para esse fim. Os textos podem ser

compartilhados pelo facebook e o internauta tem ainda a opção de assinar o blog por e-mail,

de modo que o assinante receba uma notificação a cada nova postagem.

As administradoras descrevem o “Blogueiras Negras” como “um instrumento de

publicação que tem como principal objetivo aumentar a visibilidade da produção de

blogueiras negras”. São inúmeros artigos disponíveis, já que as postagens são praticamente

diárias. Os primeiros textos publicados são de março de 2013, e podem ser consultados por

mês e por categorias, divididas por palavras-chave, que somam 44 opções. Há uma política de

organização do blog, chamado de “Manual da Blogueira Negra”, com orientações sobre o que

escrever, como escrever e quem pode publicar. É importante registrar que o blog é um espaço

exclusivo para mulheres negras. Salvo essa restrição, existe uma diversidade de autoras com

diferentes profissões, diferentes faixas etárias e diferentes orientações sexuais, além de

residirem em diferentes estados do Brasil. Essa diversidade não impede, no entanto, que

possamos criar um “perfil comum” das autoras, especialmente com relação à sua escolaridade

(nível superior) e atuação política. Olhando para esse blog como um importante espaço

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educativo e produtor de subjetividades, passamos agora ao próximo ítem deste texto, onde

apresentamos a grade conceitual que selecionamos para análise do blog.

Governamentalidade, negritude e subjetivação - articulações

Através do pertencimento étnico-racial, o sujeito6 negro constroi novas relações tanto

com os quais se identifica, quanto com aqueles que estabelecem diferenciações, produzindo

espaços entre nós e eles. Essa diferenciação entre nós e eles, brancos e negros tem se

complexificado. Uma vez estando comprovada a existência de apenas uma raça, que é a da

espécie humana, é necessário que se demande esforços para explicar por que as práticas

discriminatórias não só permaneçam, mas acabem se renovando. Wieviorka (2007) aborda

sobre o que alguns autores têm chamado de novo racismo, ou neo-racismo. Essa e outras

discussões, como as que envolvem as políticas afirmativas e as narrativas identitárias estão

compreendidas naquilo que, inspiradas em Gadea (2013), chamamos de espaço da negritude.

Para esse autor,

assumir a negritude como “espaço” representa compreender,

fundamentalmente, que toda e qualquer identificação racial tem a sua

performance atravessada por movimentos de filiação e oscilação segundo os

interesses práticos e as condições de que partem os grupos implicados numa

relação racial, e social em geral. (GADEA, 2013, p. 23).

O termo espaço da negritude, portanto, pretende abarcar os tensionamentos presentes

nas relações étnico-raciais, nas narrativas assumidas pelos indivíduos que se reconhecem

como negros, nas dinâmicas presentes nas práticas discriminatórias e nas políticas

antirracismo. (GADEA, 2013). Para visualizarmos as múltiplas relações de poder e de

resistência que estão presentes neste espaço e entendermos de que modo estão sendo

produzidas subjetividades nos/pelos sujeitos negros, utilizamos a governamentalidade. Esse

conceito foi apresentado por Foucault nos cursos do final da década de 1970, e posteriormente

6 Para o termo sujeito, atribuímos o mesmo significado dado por Foucault, em seu clássico texto “O sujeito e o

poder”. Para o filósofo (FOUCAULT, 1995, p. 235), “há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a

alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento.

Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a”.

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retomado pelo filósofo já nos anos 1980 como “o encontro entre as técnicas de dominação

exercidas sobre os outros e as técnicas de si”. (FOUCAULT, 1994, p. 785).

Essa compreensão não seria possível se a governamentalidade fosse um conceito

estático, e por isso a posicionamos como uma grade de inteligibilidade que nos permite

enxergar as formas de governamento7 dos sujeitos negros, especialmente o regime de

verdades articulado a partir da década de 1970. Nas palavras de Foucault (2010, p. 67), “por

regimes de verdade eu gostaria de entender aquilo que constrange os indivíduos a um certo

número de atos de verdade”. Um ato de verdade, por sua vez, indica “um procedimento de

manifestação da verdade e o sujeito pode ser agente ativo graças ao qual a verdade emerge”

(FOUCAULT, 2010, p. 65).

Um dos primeiros movimentos do conjunto de mudanças ocorridos a partir da década

de 1970 foi a publicação de estudos que permitiram reconhecer a existência do racismo no

Brasil. Em 1978, a articulação do Movimento Negro Unificado foi um passo importante no

rumo da luta antirrascimo. Somente na década de 1990, o Brasil é oficialmente reconhecido

como um país racista, passando a assumir a necessidade de políticas afirmativas voltadas à

população negra no Brasil. (GUIMARÃES, 2008). No entanto, essas políticas só se tornam

ações concretas a partir de 2000, no governo Lula8. Além da criação da Secretaria Especial

da Promoção da Igualdade Racial – SEPIR tivemos a implantação da política de cotas para

negros nas universidades (hoje regulamentada pela Lei 12. 711 de 2012) e a inclusão do

ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino do país (Lei

nº. 10.639 de 2003). Em 2010, por fim, tivemos a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial,

importante documento que regulamenta ações sistemáticas em relação à população negra.

Como podemos verificar, foram importantes avanços no campo da negritude

brasileira. Um dos aspectos mais relevantes, nessa conjuntura, é o direcionamento para que a

população se autodeclare negra. A afirmação identitária, uma vez sendo necessária para os

indivíduos acessarem as políticas afirmativas, é interessante para o Estado, que exerce o

controle biopolítico da população que governa. No caso do Brasil, a definição de fronteiras

por meio da criação de dois polos (brancos e negros) contribui para o fortalecimento das

narrativas identitárias e, consequentemente, para o acirramento das diferenças. Em uma

7 Utilizaremos o termo governamento sempre que estivermos nos referindo à ação de governar. (VEIGA-NETO,

2002). 8 O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve a duração de dois mandatos: 2003-2006, 2007-2010.

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entrevista cedida em 1982, Foucault concorda que a identidade é útil e importante, mas na

medida em que ela é “apenas um jogo, apenas um procedimento para favorecer relações”. A

identidade torna-se problemática quando torna-se “a lei, o princípio, o código de existência”,

pois ela sugere que sejamos os mesmos e de certo modo nos aprisiona. (FOUCAULT, 2004,

p. 265). A fala a seguir mostra o quanto a questão identitária é elemento importante na vida

das blogueiras negras:

A construção da identidade negra não é fácil. Construir, neste caso é, antes

de tudo, desconstruir. Desconstruir preconceitos de si mesmo, desconstruir

ideias que estão há muito tempo enraizadas, desconstruir sua história e até

sua família. É principalmente, tomar consciência dos preconceitos que

sofreu, e que sofre, sem tentar justificá-los. (Blogueira Gabriela).

É nesse contexto de luta por significações culturais travadas no campo da negritude

que olhamos para os processos de subjetivação. Aqui, importa-nos pensar nas experiências

vivenciadas pelos sujeitos que assumem uma identidade e tornam-se algo diferente do que

eram antes, produzindo subjetividades. Para Foucault (2014) esse é um processo amplo e

complexo que envolve a objetivação e a subjetivação, se completando na produção de sujeitos

por meio da relação com os conhecimentos, saberes e da relação que o indivíduo desenvolve

com os outros e consigo mesmo. Tomando como ponto de partida essa compreensão acerca

do espaço da negritude, da governamentalidade e da subjetivação, passamos agora a

apresentar a análise propriamente dita dos textos das Blogueiras Negras.

“Nasci negra depois dos 30”: as formas de subjetivação da mulher negra contemporânea

2014 é o ano do meu nascimento. Durante três décadas, ou desde o que dia

em que tenho lembranças de quem fui ou tornei-me a ser, fui morena clara;,

morena e também achei-me branca. Mas, eu negra? Não,não; Ouvia frases

do tipo: “olha que morena mais bonitinha”. (Blogueira Shirlene).

Será possível identificarmos certas práticas contemporâneas como artes da existência,

tal qual entendeu Foucault, a partir de seu estudo das práticas da moral grega e cristã? Se

entendermos esse termo como “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens

não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-

se em seu singular e fazer da sua vida uma obra [...] que responda a certos critérios de estilos”

(FOUCAULT, 2014, p. 16), talvez possamos olhar para os processos de subjetivação

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vivenciados pelas mulheres negras com esse propósito. Isso porque suas narrativas compõem

uma matriz de experiência, articulando os três eixos propostos por Foucault (2010): o eixo da

formação dos saberes, da normatividade dos comportamentos e da constituição do modo de

ser do sujeito.

Embora alguns depoimentos utilizem o termo “nascimento” para representar a

mudança que o posicionamento como mulher negra produziu na vida destes sujeitos, optamos

por entendê-la como uma subjetivação que ocorre por meio de um processo. Ao relacionar-se

com a moral, “o sujeito define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece

para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e para tal, age

sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se”.

(FOUCAULT, 2014, p. 36). O posicionamento das mulheres como negras, aqui tomado como

uma trans(formação), na maioria das vezes está associada à participação destes sujeitos nos

movimentos sociais, tanto negro como feminista. Vejamos alguns exemplos:

A minha identidade negra começou a ser construída, infelizmente, há

pouquíssimo tempo, mais ou menos há dois anos quando decidi prestar o

vestibular. [...] Na época, prestei ainda com um pouco de relutância, parte

por ter a sensação de estar tirando a oportunidade de outra pessoa que

precisasse mais do que eu, e parte (este com um peso maior) por não me

enxergar como negra. (Blogueira Gabriela).

Foi por meio do feminismo que me reconheci pela primeira vez como negra,

que não me bastou mais chamarem-me de “morena”, “mulata” ou “café

com leite” ; foi aí que eu aprendi a gritar, viver e resistir: SOU PRETA!

(Blogueira Kelly)

Esse nascimento da mulher negra é produzido pelos processos de subjetivação que

incidiram sobre ela em relação com os outros que habitam sua cultura e estabelecem com essa

mulher negra relações de poder e saber. Melo e Moita Lopes (2014) apresentam uma análise

da narrativa de uma blogueira que relata sua história no blog “Eu, Mulher Preta”. Essa

blogueira, da mesma forma que as Blogueiras Negras, associa a sua transformação como

mulher negra em um segundo nascimento. Existe um ponto de virada, para usar a expressão

de Moita Lopes (2002), que faz com a mulher narre sua história em dois momentos: antes e

depois de sua afirmação como negra. Relatos semelhantes apresenta Lima (2014), por meio da

análise de entrevistas realizadas com mulheres negras ativistas de São Luis-MA. A autora

trabalha com gênero e raça como categorias que se cruzam por meio de marcadores

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identitários e chama a atenção, da mesma forma que Melo e Moita e Lopes (2014), para o

risco da essencialização.

Nos textos que analisamos, é frequente a presença de enunciações que apontam para

um modo essencializado de ser mulher negra. O questionamento da blogueira Gabriela

exemplifica essa tentativa de identificação com o conjunto de características que remetem a

um universo negro: Será que eu era negra o suficiente? [...] Olho quase todos os dias para

meu rosto no espelho, ou para fotos antigas, procurando os traços que comprovam a minha

negritude. (Blogueira Gabriela). O fragmento seguinte vai ao encontro do que diz Gabriela:

Fui compreendendo que o meu universo negro, com o qual eu me

identificava e que me dizia quem eu era, era um universo clandestino,

negado à partir do momento em que um branco entrava em cena. (Blogueira

Aline)

É preciso considerar que, no bojo dessa busca por uma essencialização, existe um

movimento de luta por reconhecimento social que é muito importante, já que ao longo da

história do Brasil mulheres negras vivenciaram diversas formas de exclusão e violência.

Mesmo que haja esse risco de essencializar, em algum momento a identificação com traços

corporais e culturais tipicamente negros colaboram para a criação e a fortalecimento de um

espaço de luta. Não estamos, com isso, de modo algum defendendo a essencialização da

cultura, mas acreditamos que é preciso ir além deste posicionamento, procurando entender o

que se produz nessa representação de um universo negro, como menciona a blogueira Aline.

São vidas que se transformam, são mulheres que passam a olhar para suas vivências dando a

elas novos significados, se arriscando por novos espaços, se autorizando a dizer coisas antes

impensáveis. Produz-se então uma subjetividade que, mesmo com o risco de fixar-se em uma

identidade, é poderosa e transformadora para aquele sujeito, que vivencia intensos

movimentos de in/exlusão9.

Outro trabalho interessante e que nos auxilia na análise dos textos das Blogueiras

Negras é o desenvolvido por Pacheco (2013), sobre a solidão das mulheres negras. Em todas

as narrativas das ativistas, a participação nos movimentos sociais foram fundamentais para se

perceberem-se como negras. No mesmo ano, foi publicado pela Secretaria de Políticas para as

9 Esse conceito foi desenvolvido e vem sendo amplamente utilizado pelas pesquisas que se articulam ao Grupo

de Pesquisa em Exclusão – GEPI, sediado na UNISINOS. No caso deste trabalho, toda a reflexão aqui

desenvolvida muito deve-se às discussões realizadas neste Grupo.

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Mulheres um livro com o título “Mulheres negras contam sua história”, resultado de um

concurso com o mesmo nome. O objetivo do projeto foi dar visibilidade às mulheres negras

brasileiras, ressaltando sua importância para o passado e o presente do país.

Verifica-se, portanto, um conjunto de esforços para valorizar essa significativa parcela

da população (aproximadamente 25%) que é a que mais sofre com as desigualdades de raça e

gênero (segundo dados do IPEA10). Da mesma forma, são diversas as pesquisas que têm se

dedicado à essa temática, grande parte realizadas por pesquisadoras engajadas nos

movimentos negros e feministas e fazendo uso metodológico de entrevistas. Para nós, essa

proliferação discursiva é interessante para pensar não apenas as características de uma época,

mas as condições que possibilitaram que a mulher negra estivesse na ordem do discurso. As

subjetividades, portanto, podem ser tomadas como efeitos das mudanças

sociais/culturais/econômicas/políticas nos sujeitos, aliados ao processo de condução de suas

próprias condutas.

Argumentamos que esse processo de “tornar-se negra” é produzido pela matriz de

experiência do ser mulher negra, mas é especialmente o terceiro eixo, da ética, que possibilita

a essas mulheres tomar as relações que as atravessaram no eixo dos saberes e dos poderes e

atuar sobre elas. (FOUCAULT, 2010). Ser produzida como mulher negra no eixo da ética é

criar possibilidade para dobrar-se ou não sobre essas verdades. Esse nos parece ser a

produtividade do blog como espaço educativo e político, mas também o perigo, se tomado

como espaço de uma resistência binária em que as mulheres negras, pela força identitária da

raça/etnia negra, passem a essencializar suas práticas.

Por fim, destacamos a importância do exercício de escrita desenvolvido pelas

Blogueiras Negras. Segundo Foucault (2004, p 155), “a escrita ajuda o destinatário e arma

aquele que escreve – e eventualmente terceiros que a leiam”. A escrita, produzida para si e

para o outro, envolve tanto os processos de objetivação quanto de subjetivação. Na medida

em que o sujeito mulher negra compartilha com a outra suas visões de mundo, suas

prescrições de como relacionar-se consigo mesma e a convida para fazer parte de seu

universo, ao mesmo tempo há um processo de (re)elaboração que o ato de escrever (mais do

que de falar) proporciona. (OLIVEIRA, 2015). Trazer para a linguagem é produzir

10 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em:

http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_retradodesigualdade_ed4.pdf. Acesso em:

9 abr. 2015.

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significados. De acordo com Larossa (2002, p. 20-21), “as palavras produzem sentido, criam

realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no

poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e,

também, que as palavras fazem coisas conosco”.

Ser “negra em construção”: brechas que se abrem e perguntas que ficam...

A construção da identidade negra não é fácil. Construir, neste caso é, antes

de tudo, desconstruir. Desconstruir preconceitos de si mesmo, desconstruir

ideias que estão há muito tempo enraizadas, desconstruir sua história e até

sua família. (Blogueira Gabriela).

Ser negra em construção é de certa forma perceber-se como um sujeito em contínuo

processo de subjetivação. Essas duas palavras, processo e construção, remetem para a

instabilidade da história e para a possibilidade de sempre transformar-se. A partir desse

posicionamento, abre-se alternativas para pensar nas possíveis brechas que um espaço tão

importante de construção de identidade, mas também de contínua desconstrução - que é o

Blog aqui analisado - pode possibilitar. Seriam esses os espaços de criação referidos por

Foucault?

A diversidade de questões abordadas pelas Blogueiras Negras nos abre muitas

possbilidades de reflexão e análise. Uma vez escolhendo tratar das narrativas que destacam o

processo de subjetivação presente no movimento de tornar-se negra, preferimos pensar quais

as mudanças que permitiram essa subjetividade, além de entender quais são as características

que hoje estão implicadas em ser mulher negra. Por meio do espaço “exclusivo para mulheres

pretas”, o blog opera como uma importante tecnologia de subjetivação, imprimindo um jeito

de ser mulher negra: lutadora, (auto)valorizada, consciente, politicamente ativa. A mulher

negra blogueira, por meio do contato com os textos daquelas que aprende a considerar como

irmãs, passa a perceber sua história como uma trajetória de superação e isso eleva sua auto-

estima. O endereçamento dos textos é feito com esse objetivo, como podemos verificar no

excerto abaixo:

Como ter outras mulheres negras, na mesma condição que você, faz com

que o caminho fique mais suave. Compartilhamos as dores e alegrias

daquela instituição. Individualmente a minha história poderia ser mais uma,

porém, ela é o resultado do fruto de anos e anos da luta de meu povo.

(Blogueira Neiriele).

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Em que medida os processos de subjetivação visibilizados nos textos das Blogueiras

Negras podem ser pensados como tecnologias de si? Em tempos de democracia liberal, “se

entendida como uma arte de governo e uma tecnologia de governar” (ROSE, 2011, p. 216),

essa política democrática envolve a possibilidade de dar a todos a capacidade de

manifestação, de articulação em torno da identidade, enfim, de ser livre para ser melhor

governado. Portanto, esse movimento de relação consigo mesmo é de certo modo o que se

espera de nós. É interessante para essa arte de governar que as mulheres negras brasileiras

criem espaços como o das Blogueiras Negras e, ao se fortecelecerem como grupo identitário,

movam-se na direção de sujeitos politicamente ativos e economicamente produtivos.

Ao finalizar este texto, sentimos necessidade de levantar mais algumas questões.

Entendendo as técnicas de si como possibilidades de criação e considerando o “Blogueiras

Negras” como um espaço em que estão presentes as técnicas de si, o blog estaria produzindo

mulheres negras que se abrem para a relação com o outro, ou mulheres que se fixam a uma

identidade que não permite a relação com a diferença do outro não negra(o)? Quais as

práticas que essas blogueiras negras articulam como possibilidade de vivermos juntos,

conforme nos sugere Sennet (2013)? Juntos como negros e não negros, mulheres e homens,

considerando diferentes gêneros, sexualidades, etnias, classe social, geração, idade e

corporeidade, ou caminhando para uma sociedade individualizada, cada vez mais intolerante

e sectária? São perguntas importantes que talvez nos auxilie a incluir novos elementos no

espaço da negritude e a pensar em possibilidades de para a educação não só das relações

étnico-raciais, mas das relações humanas.

REFERÊNCIAS

BLOGUEIRAS NEGRAS. Informação para fazer a cabeça. Disponível em:

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