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BLOGUEIRAS NEGRAS: “SOU MULHER!” “SOU PRETA!” FORMAS DE
SUBJETIVAÇÃO DA MULHER NEGRA CONTEMPORÂNEA
Viviane Inês Weschenfelder – UNISINOS1
Eli Terezinha Henn Fabris - UNISINOS2
Introdução
Faz muito tempo que gostaria de compartilhar um pouco da minha história,
que não é só minha, mas de várias outras mulheres negras. Uma história
cujos caminhos não foram fáceis, mas sim cruéis e dolorosos. [...] Antes que
eu comece, quero perguntar para você, mulher negra que está lendo agora:
quanto tempo levou para que você se reconhecesse como NEGRA?
(Blogueira Luma). 3
Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer o seu próprio
rosto perto do outro. (FOUCAULT, 2004, p. 156).
Este texto tem o objetivo de desenvolver uma análise das formas de subjetivação da
mulher negra contemporânea, a partir dos textos publicados no blog intitulado “Blogueiras
Negras”. O blog é tomado como um campo privilegiado em que podemos visibilizar como, na
Contemporaneidade, as mulheres negras relacionam-se consigo mesmas e com as outras,
produzindo novas subjetividades. O primeiro excerto é um exemplo de relato recorrente entre
os textos postados, em que mulheres negras abordam diferentes assuntos narrando suas
experiências pessoais. São produções muito significativas, escritos com o objetivo de
sensibilizar o leitor, especialmente as mulheres negras, público-alvo do blog. Por essa
potência, entendemos que esse espaço caracteriza-se como educativo, político e de resistência
para esses sujeitos4.
Ao se expressarem sobre as mais diversas questões, as mulheres negras (re)afirmam
suas identidades e produzem formas de se conduzirem diante das situações cotidian as, seja
1 Historiadora, mestre e doutoranda em Educação. Bolsista da CAPES. 2 Pedagoga, mestre e doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. 3 Para diferenciar os excertos do material analisado com as citações dos autores, optamos por colocá-los em
itálico. Além disso, como o “Blogueiras Negras” é um espaço público em que as autoras são identificadas
inclusive com perfil, os excertos aparecerão com o primeiro nome das blogueiras. Essa é uma opção política que
vai ao encontro tanto do escopo do blog quanto de nosso posicionamento enquanto estudiosas da temática. 4 Resistência está sendo tomada como uma possibilidade de luta e de estratégia, não ocorre apenas entre
dominantes e dominados, mas de todas as formas advindas das relações de poder.
2
com relação ao corpo, à sexualidade, ao gênero ou ainda à negritude. Os textos publicados
permitem uma leitura bastante privilegiada dos caminhos que vêm sendo percorridos pelo
feminismo negro5. Por meio da escrita, as mulheres colocam em ação o pensamento sobre sua
própria conduta que, direcionada pelas verdades que as constituem, modificam a si mesmas e
as demais mulheres negras, num movimento que chamamos de subjetivação. Dentre as
publicações do ano de 2014, selecionamos alguns textos que trazem depoimentos de mulheres
que relatam como se tornaram negras.
Na primeira seção, apresentamos o conceito de blog e o “Blogueiras Negras”, que tem
características específicas importantes para a análise aqui pretendida. Na seção seguinte,
discorremos sobre os conceitos-ferramentas utilizados para desenvolver a análise dos textos
das Blogueiras. Por meio da articulação dos estudos foucaultianos com os estudos étnico-
raciais, posicionamos o campo da negritude brasileira na grade de inteligibilidade da
governamentalidade, para que possamos enxergar quais as formas de governamento
contemporâneas e como estão conduzindo e mobilizando os discursos que a compõem.
Na seção intitulada “Nasci negra depois dos 30”, desenvolvemos nossa análise
apresentando alguns excertos dos textos publicados no “Blogueiras Negras”. A recorrência
das narrativas em que as mulheres mostram como se tornaram negras, muitas vezes
associando a um novo nascimento, evidencia a potência do processo de subjetivação
vivenciado por essas blogueiras. Mostraremos também que esse movimento é evidenciado por
outras pesquisas desenvolvidas com mulheres negras ativistas, o que reforça a produtividade
do material analisado e fortalece nossa análise. Por fim, na medida em que esse texto se insere
em uma pesquisa que resultará em uma tese de doutorado no campo da Educação,
desenvolvida por uma das autoras, consideramos primordial pensarmos na contribuição dessa
análise para a educação das relações étnico-raciais.
Os blogs e as “Blogueiras Negras”
5 “O feminismo negro se formou a partir das relações entre as militantes negras e os movimentos feminista e
negro”. Articulado entre as décadas de 1980 e 1990, surge como movimento quando a supremacia branca do
Feminismo começa a ser questionada. Da mesma forma, a ausência de discussões de gênero no Movimento
Negro e o papel secundário das mulheres negras nesse espaço torna-se motivo de discussão. (DAMASCO;
MAIO; MONTEIRO, 2012, p. 133, 135).
3
O termo blog significa uma junção de rede (web) com diário de bordo ou registro
sistemático (log). Diário online, portanto, parece ser a tradução mais adequada na Língua
Portuguesa para web log. Denise Schittine (2004) faz uso da expressão “diário íntimo na
internet” para substituir o termo blog. Segundo a autora, o que “o blog possibilita é a
cumplicidade com um sentimento novo, de pessoas desconhecidas que têm sentimentos e
segredos parecidos com os do diarista, mas que ele nunca conheceria se não se expusesse pela
internet”. (SCHITTINE, 2004, p. 71). A fala a seguir reforça essa cumplicidade:
O contato com outras mulheres negras e suas vivências, assim como o
processo de construção de suas identidades, mostrou-me que eu era
possível. E eu percebi que havia chegado a hora de viver plenamente a
minha identidade, completa em suas raízes e em contínuo desenvolvimento,
como uma árvore frondosa e firme. Poder declarar-me mulher negra, é fazer
visível o laço invisível da minha ancestralidade, identidade legítima e que
me aceita, esfera onde eu deixo de ser bastarda. (Blogueira Aline.
Entre algumas características dos blogs, estão as possíbilidades de “seguir” e “deixar
de seguir”, e de vincular o blog às redes sociais. A organização da página, como layout, fica a
cargo do administrador do blog. No caso das Blogueiras Negras, há uma Equipe de
Facilitadoras, responsáveis por escolher os textos, realizar a revisão editorial e alimentar o
blog, além de mediar as discussões no grupo específico para esse fim. Os textos podem ser
compartilhados pelo facebook e o internauta tem ainda a opção de assinar o blog por e-mail,
de modo que o assinante receba uma notificação a cada nova postagem.
As administradoras descrevem o “Blogueiras Negras” como “um instrumento de
publicação que tem como principal objetivo aumentar a visibilidade da produção de
blogueiras negras”. São inúmeros artigos disponíveis, já que as postagens são praticamente
diárias. Os primeiros textos publicados são de março de 2013, e podem ser consultados por
mês e por categorias, divididas por palavras-chave, que somam 44 opções. Há uma política de
organização do blog, chamado de “Manual da Blogueira Negra”, com orientações sobre o que
escrever, como escrever e quem pode publicar. É importante registrar que o blog é um espaço
exclusivo para mulheres negras. Salvo essa restrição, existe uma diversidade de autoras com
diferentes profissões, diferentes faixas etárias e diferentes orientações sexuais, além de
residirem em diferentes estados do Brasil. Essa diversidade não impede, no entanto, que
possamos criar um “perfil comum” das autoras, especialmente com relação à sua escolaridade
(nível superior) e atuação política. Olhando para esse blog como um importante espaço
4
educativo e produtor de subjetividades, passamos agora ao próximo ítem deste texto, onde
apresentamos a grade conceitual que selecionamos para análise do blog.
Governamentalidade, negritude e subjetivação - articulações
Através do pertencimento étnico-racial, o sujeito6 negro constroi novas relações tanto
com os quais se identifica, quanto com aqueles que estabelecem diferenciações, produzindo
espaços entre nós e eles. Essa diferenciação entre nós e eles, brancos e negros tem se
complexificado. Uma vez estando comprovada a existência de apenas uma raça, que é a da
espécie humana, é necessário que se demande esforços para explicar por que as práticas
discriminatórias não só permaneçam, mas acabem se renovando. Wieviorka (2007) aborda
sobre o que alguns autores têm chamado de novo racismo, ou neo-racismo. Essa e outras
discussões, como as que envolvem as políticas afirmativas e as narrativas identitárias estão
compreendidas naquilo que, inspiradas em Gadea (2013), chamamos de espaço da negritude.
Para esse autor,
assumir a negritude como “espaço” representa compreender,
fundamentalmente, que toda e qualquer identificação racial tem a sua
performance atravessada por movimentos de filiação e oscilação segundo os
interesses práticos e as condições de que partem os grupos implicados numa
relação racial, e social em geral. (GADEA, 2013, p. 23).
O termo espaço da negritude, portanto, pretende abarcar os tensionamentos presentes
nas relações étnico-raciais, nas narrativas assumidas pelos indivíduos que se reconhecem
como negros, nas dinâmicas presentes nas práticas discriminatórias e nas políticas
antirracismo. (GADEA, 2013). Para visualizarmos as múltiplas relações de poder e de
resistência que estão presentes neste espaço e entendermos de que modo estão sendo
produzidas subjetividades nos/pelos sujeitos negros, utilizamos a governamentalidade. Esse
conceito foi apresentado por Foucault nos cursos do final da década de 1970, e posteriormente
6 Para o termo sujeito, atribuímos o mesmo significado dado por Foucault, em seu clássico texto “O sujeito e o
poder”. Para o filósofo (FOUCAULT, 1995, p. 235), “há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a
alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento.
Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a”.
5
retomado pelo filósofo já nos anos 1980 como “o encontro entre as técnicas de dominação
exercidas sobre os outros e as técnicas de si”. (FOUCAULT, 1994, p. 785).
Essa compreensão não seria possível se a governamentalidade fosse um conceito
estático, e por isso a posicionamos como uma grade de inteligibilidade que nos permite
enxergar as formas de governamento7 dos sujeitos negros, especialmente o regime de
verdades articulado a partir da década de 1970. Nas palavras de Foucault (2010, p. 67), “por
regimes de verdade eu gostaria de entender aquilo que constrange os indivíduos a um certo
número de atos de verdade”. Um ato de verdade, por sua vez, indica “um procedimento de
manifestação da verdade e o sujeito pode ser agente ativo graças ao qual a verdade emerge”
(FOUCAULT, 2010, p. 65).
Um dos primeiros movimentos do conjunto de mudanças ocorridos a partir da década
de 1970 foi a publicação de estudos que permitiram reconhecer a existência do racismo no
Brasil. Em 1978, a articulação do Movimento Negro Unificado foi um passo importante no
rumo da luta antirrascimo. Somente na década de 1990, o Brasil é oficialmente reconhecido
como um país racista, passando a assumir a necessidade de políticas afirmativas voltadas à
população negra no Brasil. (GUIMARÃES, 2008). No entanto, essas políticas só se tornam
ações concretas a partir de 2000, no governo Lula8. Além da criação da Secretaria Especial
da Promoção da Igualdade Racial – SEPIR tivemos a implantação da política de cotas para
negros nas universidades (hoje regulamentada pela Lei 12. 711 de 2012) e a inclusão do
ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino do país (Lei
nº. 10.639 de 2003). Em 2010, por fim, tivemos a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial,
importante documento que regulamenta ações sistemáticas em relação à população negra.
Como podemos verificar, foram importantes avanços no campo da negritude
brasileira. Um dos aspectos mais relevantes, nessa conjuntura, é o direcionamento para que a
população se autodeclare negra. A afirmação identitária, uma vez sendo necessária para os
indivíduos acessarem as políticas afirmativas, é interessante para o Estado, que exerce o
controle biopolítico da população que governa. No caso do Brasil, a definição de fronteiras
por meio da criação de dois polos (brancos e negros) contribui para o fortalecimento das
narrativas identitárias e, consequentemente, para o acirramento das diferenças. Em uma
7 Utilizaremos o termo governamento sempre que estivermos nos referindo à ação de governar. (VEIGA-NETO,
2002). 8 O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve a duração de dois mandatos: 2003-2006, 2007-2010.
6
entrevista cedida em 1982, Foucault concorda que a identidade é útil e importante, mas na
medida em que ela é “apenas um jogo, apenas um procedimento para favorecer relações”. A
identidade torna-se problemática quando torna-se “a lei, o princípio, o código de existência”,
pois ela sugere que sejamos os mesmos e de certo modo nos aprisiona. (FOUCAULT, 2004,
p. 265). A fala a seguir mostra o quanto a questão identitária é elemento importante na vida
das blogueiras negras:
A construção da identidade negra não é fácil. Construir, neste caso é, antes
de tudo, desconstruir. Desconstruir preconceitos de si mesmo, desconstruir
ideias que estão há muito tempo enraizadas, desconstruir sua história e até
sua família. É principalmente, tomar consciência dos preconceitos que
sofreu, e que sofre, sem tentar justificá-los. (Blogueira Gabriela).
É nesse contexto de luta por significações culturais travadas no campo da negritude
que olhamos para os processos de subjetivação. Aqui, importa-nos pensar nas experiências
vivenciadas pelos sujeitos que assumem uma identidade e tornam-se algo diferente do que
eram antes, produzindo subjetividades. Para Foucault (2014) esse é um processo amplo e
complexo que envolve a objetivação e a subjetivação, se completando na produção de sujeitos
por meio da relação com os conhecimentos, saberes e da relação que o indivíduo desenvolve
com os outros e consigo mesmo. Tomando como ponto de partida essa compreensão acerca
do espaço da negritude, da governamentalidade e da subjetivação, passamos agora a
apresentar a análise propriamente dita dos textos das Blogueiras Negras.
“Nasci negra depois dos 30”: as formas de subjetivação da mulher negra contemporânea
2014 é o ano do meu nascimento. Durante três décadas, ou desde o que dia
em que tenho lembranças de quem fui ou tornei-me a ser, fui morena clara;,
morena e também achei-me branca. Mas, eu negra? Não,não; Ouvia frases
do tipo: “olha que morena mais bonitinha”. (Blogueira Shirlene).
Será possível identificarmos certas práticas contemporâneas como artes da existência,
tal qual entendeu Foucault, a partir de seu estudo das práticas da moral grega e cristã? Se
entendermos esse termo como “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens
não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-
se em seu singular e fazer da sua vida uma obra [...] que responda a certos critérios de estilos”
(FOUCAULT, 2014, p. 16), talvez possamos olhar para os processos de subjetivação
7
vivenciados pelas mulheres negras com esse propósito. Isso porque suas narrativas compõem
uma matriz de experiência, articulando os três eixos propostos por Foucault (2010): o eixo da
formação dos saberes, da normatividade dos comportamentos e da constituição do modo de
ser do sujeito.
Embora alguns depoimentos utilizem o termo “nascimento” para representar a
mudança que o posicionamento como mulher negra produziu na vida destes sujeitos, optamos
por entendê-la como uma subjetivação que ocorre por meio de um processo. Ao relacionar-se
com a moral, “o sujeito define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece
para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e para tal, age
sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se”.
(FOUCAULT, 2014, p. 36). O posicionamento das mulheres como negras, aqui tomado como
uma trans(formação), na maioria das vezes está associada à participação destes sujeitos nos
movimentos sociais, tanto negro como feminista. Vejamos alguns exemplos:
A minha identidade negra começou a ser construída, infelizmente, há
pouquíssimo tempo, mais ou menos há dois anos quando decidi prestar o
vestibular. [...] Na época, prestei ainda com um pouco de relutância, parte
por ter a sensação de estar tirando a oportunidade de outra pessoa que
precisasse mais do que eu, e parte (este com um peso maior) por não me
enxergar como negra. (Blogueira Gabriela).
Foi por meio do feminismo que me reconheci pela primeira vez como negra,
que não me bastou mais chamarem-me de “morena”, “mulata” ou “café
com leite” ; foi aí que eu aprendi a gritar, viver e resistir: SOU PRETA!
(Blogueira Kelly)
Esse nascimento da mulher negra é produzido pelos processos de subjetivação que
incidiram sobre ela em relação com os outros que habitam sua cultura e estabelecem com essa
mulher negra relações de poder e saber. Melo e Moita Lopes (2014) apresentam uma análise
da narrativa de uma blogueira que relata sua história no blog “Eu, Mulher Preta”. Essa
blogueira, da mesma forma que as Blogueiras Negras, associa a sua transformação como
mulher negra em um segundo nascimento. Existe um ponto de virada, para usar a expressão
de Moita Lopes (2002), que faz com a mulher narre sua história em dois momentos: antes e
depois de sua afirmação como negra. Relatos semelhantes apresenta Lima (2014), por meio da
análise de entrevistas realizadas com mulheres negras ativistas de São Luis-MA. A autora
trabalha com gênero e raça como categorias que se cruzam por meio de marcadores
8
identitários e chama a atenção, da mesma forma que Melo e Moita e Lopes (2014), para o
risco da essencialização.
Nos textos que analisamos, é frequente a presença de enunciações que apontam para
um modo essencializado de ser mulher negra. O questionamento da blogueira Gabriela
exemplifica essa tentativa de identificação com o conjunto de características que remetem a
um universo negro: Será que eu era negra o suficiente? [...] Olho quase todos os dias para
meu rosto no espelho, ou para fotos antigas, procurando os traços que comprovam a minha
negritude. (Blogueira Gabriela). O fragmento seguinte vai ao encontro do que diz Gabriela:
Fui compreendendo que o meu universo negro, com o qual eu me
identificava e que me dizia quem eu era, era um universo clandestino,
negado à partir do momento em que um branco entrava em cena. (Blogueira
Aline)
É preciso considerar que, no bojo dessa busca por uma essencialização, existe um
movimento de luta por reconhecimento social que é muito importante, já que ao longo da
história do Brasil mulheres negras vivenciaram diversas formas de exclusão e violência.
Mesmo que haja esse risco de essencializar, em algum momento a identificação com traços
corporais e culturais tipicamente negros colaboram para a criação e a fortalecimento de um
espaço de luta. Não estamos, com isso, de modo algum defendendo a essencialização da
cultura, mas acreditamos que é preciso ir além deste posicionamento, procurando entender o
que se produz nessa representação de um universo negro, como menciona a blogueira Aline.
São vidas que se transformam, são mulheres que passam a olhar para suas vivências dando a
elas novos significados, se arriscando por novos espaços, se autorizando a dizer coisas antes
impensáveis. Produz-se então uma subjetividade que, mesmo com o risco de fixar-se em uma
identidade, é poderosa e transformadora para aquele sujeito, que vivencia intensos
movimentos de in/exlusão9.
Outro trabalho interessante e que nos auxilia na análise dos textos das Blogueiras
Negras é o desenvolvido por Pacheco (2013), sobre a solidão das mulheres negras. Em todas
as narrativas das ativistas, a participação nos movimentos sociais foram fundamentais para se
perceberem-se como negras. No mesmo ano, foi publicado pela Secretaria de Políticas para as
9 Esse conceito foi desenvolvido e vem sendo amplamente utilizado pelas pesquisas que se articulam ao Grupo
de Pesquisa em Exclusão – GEPI, sediado na UNISINOS. No caso deste trabalho, toda a reflexão aqui
desenvolvida muito deve-se às discussões realizadas neste Grupo.
9
Mulheres um livro com o título “Mulheres negras contam sua história”, resultado de um
concurso com o mesmo nome. O objetivo do projeto foi dar visibilidade às mulheres negras
brasileiras, ressaltando sua importância para o passado e o presente do país.
Verifica-se, portanto, um conjunto de esforços para valorizar essa significativa parcela
da população (aproximadamente 25%) que é a que mais sofre com as desigualdades de raça e
gênero (segundo dados do IPEA10). Da mesma forma, são diversas as pesquisas que têm se
dedicado à essa temática, grande parte realizadas por pesquisadoras engajadas nos
movimentos negros e feministas e fazendo uso metodológico de entrevistas. Para nós, essa
proliferação discursiva é interessante para pensar não apenas as características de uma época,
mas as condições que possibilitaram que a mulher negra estivesse na ordem do discurso. As
subjetividades, portanto, podem ser tomadas como efeitos das mudanças
sociais/culturais/econômicas/políticas nos sujeitos, aliados ao processo de condução de suas
próprias condutas.
Argumentamos que esse processo de “tornar-se negra” é produzido pela matriz de
experiência do ser mulher negra, mas é especialmente o terceiro eixo, da ética, que possibilita
a essas mulheres tomar as relações que as atravessaram no eixo dos saberes e dos poderes e
atuar sobre elas. (FOUCAULT, 2010). Ser produzida como mulher negra no eixo da ética é
criar possibilidade para dobrar-se ou não sobre essas verdades. Esse nos parece ser a
produtividade do blog como espaço educativo e político, mas também o perigo, se tomado
como espaço de uma resistência binária em que as mulheres negras, pela força identitária da
raça/etnia negra, passem a essencializar suas práticas.
Por fim, destacamos a importância do exercício de escrita desenvolvido pelas
Blogueiras Negras. Segundo Foucault (2004, p 155), “a escrita ajuda o destinatário e arma
aquele que escreve – e eventualmente terceiros que a leiam”. A escrita, produzida para si e
para o outro, envolve tanto os processos de objetivação quanto de subjetivação. Na medida
em que o sujeito mulher negra compartilha com a outra suas visões de mundo, suas
prescrições de como relacionar-se consigo mesma e a convida para fazer parte de seu
universo, ao mesmo tempo há um processo de (re)elaboração que o ato de escrever (mais do
que de falar) proporciona. (OLIVEIRA, 2015). Trazer para a linguagem é produzir
10 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_retradodesigualdade_ed4.pdf. Acesso em:
9 abr. 2015.
10
significados. De acordo com Larossa (2002, p. 20-21), “as palavras produzem sentido, criam
realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no
poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e,
também, que as palavras fazem coisas conosco”.
Ser “negra em construção”: brechas que se abrem e perguntas que ficam...
A construção da identidade negra não é fácil. Construir, neste caso é, antes
de tudo, desconstruir. Desconstruir preconceitos de si mesmo, desconstruir
ideias que estão há muito tempo enraizadas, desconstruir sua história e até
sua família. (Blogueira Gabriela).
Ser negra em construção é de certa forma perceber-se como um sujeito em contínuo
processo de subjetivação. Essas duas palavras, processo e construção, remetem para a
instabilidade da história e para a possibilidade de sempre transformar-se. A partir desse
posicionamento, abre-se alternativas para pensar nas possíveis brechas que um espaço tão
importante de construção de identidade, mas também de contínua desconstrução - que é o
Blog aqui analisado - pode possibilitar. Seriam esses os espaços de criação referidos por
Foucault?
A diversidade de questões abordadas pelas Blogueiras Negras nos abre muitas
possbilidades de reflexão e análise. Uma vez escolhendo tratar das narrativas que destacam o
processo de subjetivação presente no movimento de tornar-se negra, preferimos pensar quais
as mudanças que permitiram essa subjetividade, além de entender quais são as características
que hoje estão implicadas em ser mulher negra. Por meio do espaço “exclusivo para mulheres
pretas”, o blog opera como uma importante tecnologia de subjetivação, imprimindo um jeito
de ser mulher negra: lutadora, (auto)valorizada, consciente, politicamente ativa. A mulher
negra blogueira, por meio do contato com os textos daquelas que aprende a considerar como
irmãs, passa a perceber sua história como uma trajetória de superação e isso eleva sua auto-
estima. O endereçamento dos textos é feito com esse objetivo, como podemos verificar no
excerto abaixo:
Como ter outras mulheres negras, na mesma condição que você, faz com
que o caminho fique mais suave. Compartilhamos as dores e alegrias
daquela instituição. Individualmente a minha história poderia ser mais uma,
porém, ela é o resultado do fruto de anos e anos da luta de meu povo.
(Blogueira Neiriele).
11
Em que medida os processos de subjetivação visibilizados nos textos das Blogueiras
Negras podem ser pensados como tecnologias de si? Em tempos de democracia liberal, “se
entendida como uma arte de governo e uma tecnologia de governar” (ROSE, 2011, p. 216),
essa política democrática envolve a possibilidade de dar a todos a capacidade de
manifestação, de articulação em torno da identidade, enfim, de ser livre para ser melhor
governado. Portanto, esse movimento de relação consigo mesmo é de certo modo o que se
espera de nós. É interessante para essa arte de governar que as mulheres negras brasileiras
criem espaços como o das Blogueiras Negras e, ao se fortecelecerem como grupo identitário,
movam-se na direção de sujeitos politicamente ativos e economicamente produtivos.
Ao finalizar este texto, sentimos necessidade de levantar mais algumas questões.
Entendendo as técnicas de si como possibilidades de criação e considerando o “Blogueiras
Negras” como um espaço em que estão presentes as técnicas de si, o blog estaria produzindo
mulheres negras que se abrem para a relação com o outro, ou mulheres que se fixam a uma
identidade que não permite a relação com a diferença do outro não negra(o)? Quais as
práticas que essas blogueiras negras articulam como possibilidade de vivermos juntos,
conforme nos sugere Sennet (2013)? Juntos como negros e não negros, mulheres e homens,
considerando diferentes gêneros, sexualidades, etnias, classe social, geração, idade e
corporeidade, ou caminhando para uma sociedade individualizada, cada vez mais intolerante
e sectária? São perguntas importantes que talvez nos auxilie a incluir novos elementos no
espaço da negritude e a pensar em possibilidades de para a educação não só das relações
étnico-raciais, mas das relações humanas.
REFERÊNCIAS
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http://blogueirasnegras.org/. Acesso em: 13 abr. 2015.
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12
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