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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016 1 SUBJETIVAÇÕES POLÍTICAS DO “POVO DE AXÉ”: modos de existência afro-brasileiros no espaço público de Belo Horizonte 1 POLITICAL SUBJECTIVATIONS OF “THE ASHE’S PEOPLE”: Afro-Brazilian modes of existence at public space of Belo Horizonte Bárbara Regina Altivo 2 Resumo: O objetivo deste artigo é sondar as potências de subjetivação política efetuada por comunidades de terreiro de Belo Horizonte em sua ocupação ritual de espaços públicos. Buscamos pensar essa produção insurgente de si pelas religiões afro-brasileiras dentro de uma proposta cosmopolítica que alarga a democracia para nela coabitarem diferentes modos de existência. Em contraste com a privatização capitalística da subjetividade, consideramos que as operações de subjetivação das comunidades de umbanda e candomblé forjam resistências através do direito à diferença e à variação, instaurando dobras nas dimensões 1) do corpo intempestivo em transe e dos cuidados rituais de si e da relação com os mundos, 2) das agências humanas e não humanas e de uma temporalidade mítica, 3) da produção de novas coordenadas de enunciação sobre si, sobre a história da experiência da escravidão, que desafia as estratificações de saber e 4) de projeções potentes para o futuro através de contínuas transformações. Palavras-Chave: Subjetivação 1. Cosmopolítica 2. Religiões afro-brasileiras 3. Abstract: The objective of this article is to probe the potency of political subjectivity made by afro religions communities of Belo Horizonte in their ritual occupation of public spaces. We seek think this insurgent production of itself in accordance to a cosmopolitical proposal that extends democracy to different modes of existence. In contrast with the capitalistic privatization of subjectivity, we consider that the operations of subjectivity of Umbanda and Candomblé communities forge resistance through the right to difference and variation, introducing folds in the dimensions 1) of the untimely body in trance and the ritual cares, 2) of the human and non-human agencies and the mythic temporality, 3) of the production of new coordinates of statement about yourself, about the history of the experience of slavery, which challenges the stratifications of knowledge and 4) powerful projections for the future through continuous transformations. Keywords: Subjectivation 1. Cosmopolitics2. Afro-Brazilian religions 3. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutoranda em Comunicação Social (PPGCOM-UFMG), email: [email protected]

SUBJETIVAÇÕES POLÍTICAS DO “POVO DE AXÉ”: modos de ...ticasdopovodeaxen… · PEOPLE”: Afro-Brazilian modes of existence at public space of Belo Horizonte Bárbara Regina

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XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016

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SUBJETIVAÇÕES POLÍTICAS DO “POVO DE AXÉ”: modos de existência afro-brasileiros no espaço público de Belo

Horizonte1 POLITICAL SUBJECTIVATIONS OF “THE ASHE’S

PEOPLE”: Afro-Brazilian modes of existence at public space of Belo Horizonte

Bárbara Regina Altivo 2

Resumo: O objetivo deste artigo é sondar as potências de subjetivação política

efetuada por comunidades de terreiro de Belo Horizonte em sua ocupação ritual de

espaços públicos. Buscamos pensar essa produção insurgente de si pelas religiões

afro-brasileiras dentro de uma proposta cosmopolítica que alarga a democracia

para nela coabitarem diferentes modos de existência. Em contraste com a

privatização capitalística da subjetividade, consideramos que as operações de

subjetivação das comunidades de umbanda e candomblé forjam resistências através

do direito à diferença e à variação, instaurando dobras nas dimensões 1) do corpo

intempestivo em transe e dos cuidados rituais de si e da relação com os mundos, 2)

das agências humanas e não humanas e de uma temporalidade mítica, 3) da

produção de novas coordenadas de enunciação sobre si, sobre a história da

experiência da escravidão, que desafia as estratificações de saber e 4) de projeções

potentes para o futuro através de contínuas transformações.

Palavras-Chave: Subjetivação 1. Cosmopolítica 2. Religiões afro-brasileiras 3.

Abstract: The objective of this article is to probe the potency of political subjectivity

made by afro religions communities of Belo Horizonte in their ritual occupation of

public spaces. We seek think this insurgent production of itself in accordance to a

cosmopolitical proposal that extends democracy to different modes of existence. In

contrast with the capitalistic privatization of subjectivity, we consider that the

operations of subjectivity of Umbanda and Candomblé communities forge

resistance through the right to difference and variation, introducing folds in the

dimensions 1) of the untimely body in trance and the ritual cares, 2) of the human

and non-human agencies and the mythic temporality, 3) of the production of new

coordinates of statement about yourself, about the history of the experience of

slavery, which challenges the stratifications of knowledge and 4) powerful

projections for the future through continuous transformations.

Keywords: Subjectivation 1. Cosmopolitics2. Afro-Brazilian religions 3.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXV Encontro Anual da

Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutoranda em Comunicação Social (PPGCOM-UFMG), email: [email protected]

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1. Introdução

Em suas elucubrações sobre as derradeiras reflexões de Foucault, Deleuze (1995,

1998) discorre sobre os processos de subjetivação, a constituição de territórios existenciais

em uma formação histórica. Neste âmbito dos diferentes modos de constituição da relação

consigo e com o mundo, Deleuze vislumbra o terceiro eixo do pensamento foucaltiano – a

condição do si - como dimensão que abre caminho para múltiplas operações inventivas que

escapam aos dispositivos de saber e poder (os dois primeiros eixos) construídos pelas práticas

sociais. A ideia de subjetivação não remonta, contudo, ao sujeito ou ao indivíduo, construto

das máquinas capitalísticas que envelopam os modos intensivos da criação de si

(GUATTARI e ROLNIK, 1986). Ao contrário, é no processo de produção de subjetividades

que reside o foco da resistência possível aos modos de fabricação seriada, normalizada e

individualizante do capitalismo, que totalizam e centralizam a subjetividade no indivíduo.

Resistir através da subjetivação diz, portanto, da capacidade de colocar a força em relações

não calculadas pelas estratégias que vigoram no campo político, inventando possibilidades de

existência a partir da articulação de forças inéditas. Através das práticas de si, Foucault

percebe a potencialidade subversiva das “artes da existência”, de compor-se a si mesmo, “se

transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer da sua vida uma obra” (FOUCAULT,

1984, p. 15).

Dentro de tal perspectiva, o objetivo deste artigo é sondar a resistência política dos

modos de subjetivação coletiva empreendidos por comunidades de terreiro de Belo Horizonte

em sua ocupação ritual de espaços públicos. Buscamos pensar essa produção insurgente de

uma relação consigo e com o mundo pelas religiões afro-brasileiras dentro de uma proposta

cosmopolítica (LATOUR, 2007; STENGERS, 2005) que alarga a democracia para nela

coexistirem diferentes mundos possíveis, agentes, tempos, espaços, corpos e narrativas. Em

contraste com a privatização da subjetividade encetada pela máquina capitalística,

consideramos que a produção de territórios de existência pelas comunidades de umbanda e

candomblé integra a luta por uma subjetividade moderna através do direito à diferença e à

variação (DELEUZE, 1995, p. 113), instaurando rupturas nas coordenadas de ação e

pensamento que ditam o ritmo da vida cotidiana na cidade.

Para isso, descrevemos e analisamos dois eventos realizados por comunidades de

candomblés e umbanda em espaços públicos de Belo Horizonte: a “Tarde de Liberdade”

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(15/04/2015), ação organizada por coletivos de terreiros na Praça da Liberdade para celebrar

a força e diversidade das tradições culturais de matriz afro-brasileira em resposta aos

crescentes ataques de intolerância religiosa; e a “2ª Noite de Libertação” (16/05/2015), festa

umbandista que ocorreu na Praça Treze de Maio, no bairro da Graça, em homenagem aos

pretos velhos3 e à abolição da escravatura. Trataremos dos dois eventos, experienciados

através de observação-participante, em sua força singularizante que emerge das vivências e

possibilidades dos corpos presentes nos eventos descritos, a sua expressividade e existência

em modos de dança, canto e transe que convocam e propiciam a presença de agentes não

humanos, modos de existência que instauram nas praças um mundo em tensão com as formas

capitalísticas de vida nos espaços públicos.

2. Subjetivações políticas contra a privatização capitalística da subjetividade

Deleuze nos lança uma questão que consubstancia um dos principais aspectos

intrigantes da obra de Michel Foucault: diante da força opressiva dos diagramas de poder e

das estratificações de saber, como resistir? Afinal, “se o poder é constitutivo de verdade,

como conceber um “poder da verdade” que não seja mais vontade de poder, uma verdade

decorrente das linhas transversais de resistência e não mais das linhas integrais de poder?”

(DELEUZE, 1995, p. 101). É nos últimos escritos de Foucault, a partir da “História da

Sexualidade 3: O cuidado de si” [1984], que Deleuze encontra as pistas para o entendimento

de uma dimensão do existir que resiste aos códigos e aos poderes: a subjetivação.

De acordo com a leitura deleuziana (1995, 1998), Foucault encontra no contexto

grego as bases para pensar as operações subversivas de um ‘governar-se a si mesmo’ que

inventa o sujeito como uma derivada, o produto de uma subjetivação que dobra, gera a flexão

e curvatura de uma composição de forças. Sendo assim, o conceito deleuziano de dobra diz

respeito aos movimentos sempre históricos de torção das relações de poder e saber que

propiciam a expressão de um mundo possível. Esta ação permite à força entrar em relação

com outras forças oriundas de um lado de fora do poder. São essas as forças da mudança, do

3 Todas as expressões nativas, próprias às cosmologias de matriz africana, serão marcadas em itálico e

explicadas brevemente em nota de rodapé o no corpo do texto. Não poderemos infelizmente nos aprofundar aqui

na densidade simbólica do universo religioso afro-brasileiro. Somente apontaremos algumas de suas noções

articuladas nos eventos observados, de modo coerente com as exigências de compreensão do presente texto, ou

seja, o seu argumento centrado na resistência via subjetivação dentro da proposta cosmopolítica.

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devir, que criam novas possibilidades de vida4. O processo de dobragem se dá em quatro

etapas, segundo Deleuze: 1) a primeira diz respeito à nossa parte material cercada, apanhada

(o corpo entre os gregos, a carne entre os cristãos), 2) a dobra que coloca forças em combate,

3) a forma como se relaciona o saber e a verdade, e 4) as expectativas do sujeito em relação

ao seu exterior, suas problematizações. (DELEUZE, 1995).

Se as práticas de si engendradas pelos gregos produziram dobras formadoras de um

território existencial com aberturas para a emissão de singularidades, no cenário da

“sociedade disciplinar” e na mais recente “sociedade de controle” as dobras de subjetivação

capitalística atuam justamente coibindo, achatando e unificando as multiplicidades que

podem nascer do próprio processo de dobragem (GUATTARI e ROLNIK, 1986; SILVA,

2004). Pois que as máquinas de produção da subjetividade variam, e os modos de produção

capitalísticos não incidem somente nas relações de produção e no registro dos valores de

troca, eles atuam profundamente no controle da subjetividade, do inconsciente e do campo

dos desejos. “Essa grande fábrica, essa grande máquina capitalista produz inclusive aquilo

que acontece quando sonhamos, quando devaneamos, fantasiamos, nos apaixonamos e assim

por diante” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 16).

A principal característica das dobras operadas pela máquina capitalística é a

centralização, totalização e identificação da subjetividade com o indivíduo, gerando um

processo de privatiza a subjetividade. O corpo do indivíduo foi docilizado, esquadrinhado e

colocado em constante vigilância pelas técnicas disciplinares ligadas umbilicalmente à

escalada do capitalismo, como bem aprofundou Foucault. Contemporaneamente, o corpo

passa pelo paradoxo de ser cultuado, modificado em prol de padrões estéticos, numa

modelagem contínua e visibilidade permanente, ao passo que é “imaterializado” quando

conectado ao ciberespaço (SILVA, 2004). No âmbito das dobras de forças que instituem

regras, o “modo-indivíduo” do capitalismo trabalha com uma homogeneização na qual todos

os valores são colocados em equivalência, apagando modos de vida e agência que não se

enquadram nas dinâmicas produtivas do capital. Nesse mesmo sentido, a dobra do saber-

verdade que a subjetivação capitalística desenvolve silencia as várias fontes de

4 Pesquisas contemporâneas analisam essa potencialidade de resistência através dos processos de subjetivação

em relação a diferentes universos empíricos, como no caso de Margareth Rago a respeito das narrativas

femininas de si (RAGO, 2013) e Peter Pál Pelbart acerca da experiência de teatro com pacientes psiquiátricos

(PELBART, 2013).

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conhecimento, as múltiplas narrativas e pontos de vista que vicejam nos mais diferentes

grupos humanos e não humanos, elegendo o saber científico como detentor da verdade sobre

a vida, o cosmos e os indivíduos.

A partir dessa relação entre saber, poder e verdade, (...) podemos tentar

compreender a relação entre o modo de subjetivação capitalístico e o sistema de

racionalidade próprio às ciências modernas. Parece-nos que há uma

complementaridade intrínseca entre ambos e que esse sistema de racionalidade vai

proporcionar, de certo modo uma “legitimidade científica” ao princípio de

equivalência generalizada que se encontra na base do novo tipo de relação consigo

caracterizado pela invenção do indivíduo moderno. (SILVA, 2004 p. 10).

A racionalidade científica moderna funciona então em parceria com a subjetivação

capitalística, de forma antropocêntrica e humanista, tendo na consciência totalizante de um

sujeito cartesiano o seu fundamento. Diante das forças homogeneizantes deste maquinário de

produção de subjetividade em escala planetária, como pensar e onde vislumbrar aberturas

criativas que recusam esses modos de manipulação para construir, de outra forma, “modos de

sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que

produzam uma subjetividades singular”? (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 17). Tais focos

de resistência subvertem, ao seu modo, as forças de poder e saber que querem instituir um

pensamento e um mundo único, uma mononatureza. É o caso, como veremos, das tradições

de culto aos orixás no Brasil (ANJOS, 2006), dentro de uma proposta cosmopolítica que

promove diferenças no nível das próprias ontologias, fazendo coabitarem diferentes modos

de existência.

3. Guerra de mundos: a proposta cosmopolítica

Para Bruno Latour, as lutas e resistências contemporâneas devem nos fazer debater

sobre o modo no qual “nós estamos dispostos a levar em conta as dissidências no plano da

identidade humana mas também sobre o cosmos no qual vivem os homens”5 (2007, p. 2,

tradução livre). Colocar o “mundo comum” em jogo na discussão sobre política é, segundo

5 “Ce qui nous fait débattre, c’est la façon dont nous sommes disposés à prendre en compte les dissidences, sur

le plan de l’identité humaine mais aussi concernant le cosmos dans lequel les hommes vivent.” (LATOUR,

2007, p. 2)

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ele, operar a partir de um construtivismo que não se limita à cultura, mas que se estende aos

mundos, desviando de uma noção unificada da natureza como referência para todos os

litígios.

Em seus estudos sobre a ciência, Latour (1997, 2000) desestabiliza a noção unificada

de natureza – o mononaturalismo possibilitado por uma confiança absoluta nas capacidades

da razão científica que determinaria o único cosmos existente – através da investigação dos

procedimentos sempre experimentais, induzidos, arbitrários e especulativos nos laboratórios.

Assim como ele, a filósofa da ciência Isabelle Stengers, ao invés de conceber a existência de

uma só ontologia (o mundo objetivo, dado) e várias epistemologias (modos de conhecer),

entende que “ontologias e mundos também são feitos, e a ciência assumiria, assim, seu

caráter experimental e especulativo, o que não significa abrir mão de sua objetividade, mas

sim de afirmar que esta é também um fato político, um ato de articulação” (STENGERS e

LATOUR apud SZTUTMAN, 2013, p. 7).

Nesse sentido, para Stengers e Latour a crítica da política deve seguir a crítica da

ciência, de modo a desestabilizar as razões legitimadas em torno do “político” através da

entrada do cosmos, constituído por múltiplos mundos divergentes e as suas possíveis

articulações, em oposição à tentação de paz destinada a ser a última e ecumênica. A proposta

cosmopolítica se constitui, para esses autores, no problema do que viria a ser esse “mundo

comum” de onde se constituem relações e decisões, compreendendo a importância de se

alargar a democracia para dela participarem mundos outros, agentes não humanos,

racionalidades diferentes. Stengers sublinha a ideia de que não são “cidadãos nus” que

participam de uma cena política, mas que a cena é sempre projetada, desenhada, “é uma

questão de distribuição de papéis, de artisticamente tomar parte na encenação da questão”6

(STENGERS, 2005, p. 13, tradução livre). Para ela, o desenho de uma cena política na

perspectiva cosmopolítica pressupõe: 1) uma crítica à ficção de que “humanos de boa

vontade vão tomar decisões em nome do interesse geral”; 2) que assuntos como os rios e os

animais possam se tornar uma causa para se pensar, criando pautas não humanas e 3) que o

pensamento coletivo possa proceder na presença daqueles que seriam desqualificados como

idioticamente não tendo nada a propor, agentes que dificultariam as decisões. (2005, p. 13).

6 ”It is a matter of roles distribution, of artfully taking a part in the staging of the issue” (STENGERS, 2005, p.

13).

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Acontecimentos contemporâneos, como o aquecimento global e as ações de grupos

fundamentalistas, sinalizam para uma crise profunda na constituição forçada de um mundo

comum unificado, desvelando a percepção de que “não estamos mais sozinhos no mundo”, de

que “temos agora de reconhecer os “seres da natureza” como agentes, e temos também de

prestar atenção aos outros povos que, “evocando seus deuses, recusam jogar a mesma partida,

recusam cumprir as mesmas regras” (SZTUTMAN, 2013, p. 8). Ou seja, modos de vida que

não deixam enclausurar pelas dobras capitalísticas majoritárias (GUATTTARI e ROLNIK,

1986). Quando há um mundo único, existem somente operações de polícia, a percepção de

que estamos diante de pessoas irracionais que devem ser corrigidas, e assim o ocidente

moderno reprime o resto do planeta: “todos nós vivemos segundo as mesmas leis biológicas e

psíquicas (...). Isso vocês não compreenderam porque vocês são prisioneiros de seus

paradigmas culturais que nós ultrapassamos graças à ciência”7 (LATOUR, 2007, p. 70,

tradução livre).

Por isso, Latour considera o conceito de globalização problemático, afirmando que

“estamos hoje em uma situação de guerra de mundos com relação à composição, aos seres do

mundo, às cosmologias. Fala-se sempre em globalização. (...) O que existe é uma guerra de

mundos.” (LATOUR, 2014, p. 507-508 – em entrevista concedida). O processo de

globalização não seria assim “global”, não diz de um “Globo metafísico” no qual cada povo

pode encontrar seu lugar e sua função, onde homens de boa vontade se despiriam de seus

deuses (as suas inclinações secretas). Na prática, a política agencia “homens incuráveis

penetrados de intenções supra e sub-humanas”8 (LATOUR, 2007, p. 65, tradução livre). Não

são os homens que entram em guerra, mas os seus deuses, os seus mundos.

Não só os ataques terroristas de grande reverberação midiática internacional dizem, na

contemporaneidade, de vorazes lutas cosmológicas que atravessam os séculos e se atualizam

em diferentes circunstâncias. Também se difundem em solo brasileiro casos de agressão com

motivações religiosas, dentre os quais se destaca a violência contra as religiões de matriz

africana, aos seus terreiros e praticantes, em continuação direta com processos históricos de

marginalização dos modos de vida, dos saberes e dos deuses afro-brasileiros. Em termos

7 “L’occident moderne admoneste le reste du monde: nous tous vivons selon les mêmes lois biologiques et

physiques et avons la même constitution biologique, sociale et psychologique. Cela vous ne l’avez pas compris

parce que vous êtes prisonniers de vos paradigmes culturels que nous avons dépassés grâce à la science.”

(LATOUR, 2007, p. 7)

8 “(...) des hommes incurables pénétrés d’intentions supra et sub-humaines” (LATOUR, 2007, p. 5).

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cosmopolíticos, os coletivos de umbanda e candomblé – em todas as suas variações em

diferentes vertentes e nações – resistem historicamente às mais perversas práticas de

etnocídio9 institucionalizadas e cotidianas através da sua força e vitalidade ritual, que instaura

regimes corporais propiciadores da presença de divindades e agentes espirituais vinculados a

outros mundos. Observaremos, nos casos a seguir, como essa abertura ontológica permite a

criação, no espaço das praças, de um território próprio de existência que mobiliza corpos

intempestivos, toques e cantos, gestos rituais que, por sua vez, elaboram narrativas

multidimensionais, reorganizando o sensível do espaço público e redefinindo as próprias

coordenadas de enunciação desses coletivos.

4. Compondo territórios existenciais afro-brasileiros: as praças em transe

Em diferentes instâncias de interação social, midiatizadas ou em co-presença, mobiliza-

se atualmente uma franca investida de condenação pública, desqualificação e ataque frontal

de cunho simbólico e físico às religiosidades afro-brasileiras. Crescem os ataques forjados em

larga medida por estratégias evangélicas proselitistas, cuja produção de discursos sobre

outrem corresponde a processos maniqueístas de demonização (ALMEIDA, 2009;

MARIANO, 2003; ORO, 2007). Diante das agressões cada vez mais incisivas, comunidades

de umbanda e candomblé saem às ruas, num gesto político de resistência às forças de

segregação, aniquilamento e invisibilidade contra os seus modos de vida. Veremos a seguir,

em dois breves relatos, como esses coletivos tem se apropriado do espaço público de Belo

Horizonte, quais são as suas táticas de subjetivação política que engendram, de uma só vez,

dobras constituidoras de corpos, mundos e novas coordenadas de enunciação que escapam às

lógicas costumeiras de viver e habitar a cidade.

4.1 . “Tarde de Liberdade”

9 “Nos termos de Pierre Clastres, guerra pedagógica poderia ser o outro nome do etnocídio: imposição de um

cosmos unificado a uma multiplicidade. Imposição de uma lógica de Estado por meio da escola, do direito e da

religião.” (CLASTRES apud SZTUMAN, 2013, p. 10).

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Fiquei10 sabendo da organização de um evento de matriz africana na Praça da Liberdade

através das redes sociais, logo após a emergência e circulação na internet de um vídeo da

Igreja Universal dos “Gladiadores do Altar”11, no qual jovens fiéis da IURD marcham

fardados até o altar de um tempo iurdiano, aos modos de um Exército, e gritam palavras de

ordem, se dizendo prontos para a batalha contra o mal. A articulação das comunidades de

religiões afro-brasileiras em resposta ao vídeo partiu da iniciativa da Casa de Oxumarê de

Salvador – BA, cujo Babalorixá12 Pecê redigiu a "Carta Aberta às Autoridades Brasileiras

Contra os Gladiadores do Altar", que foi entregue a vários Ministérios Públicos nas capitais

brasileiras, solicitando a investigação do grupo paramilitar da Igreja Universal como medida

de prevenção à intolerância religiosa, visto o histórico de violências perpetradas pelos fiéis e

sacerdotes dessa igreja contra as devoções de matriz africana no Brasil.

Participei das reuniões de organização da ação em Belo Horizonte, que congregaram

lideranças de diferentes nações do candomblé e da umbanda, além de militantes de

movimentos sociais. Nas palavras de Makota Célia Gonçalves Souza, coordenadora nacional

do Cenarab (Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira) que esteve à

frente da organização do evento, “contra a feiura da intolerância, vamos mostrar o quanto

nossa religião é linda, exuberante, amorosa. Temos que contrapor o ódio com a beleza.”

Makota Celinha, como é chamada pelos mais próximos, ressaltou nas reuniões que “ou

reagimos, ou seremos mortos”, lembrando casos de agressão e mesmo assassinatos de

conhecidos da comunidade de Santo.

No dia do evento, acompanhei a audiência de entrega da Carta ao Ministério Público

Federal, que fica próximo à Praça da Liberdade, momento que reuniu várias lideranças de

religiões de matriz africana. Após a audiência, a praça foi ritualmente ocupada com

elementos e símbolos vinculados às divindades dos cultos afro-brasileiros de origem ketu,

10 Como escolha textual, reservo o uso da primeira pessoa do singular aos relatos das experiências de campo,

com o intuito de demarcar a minha posição relacional nos rituais, nas entrevistas e demais interlocuções com os

nativos. Quanto às reflexões teóricas, optei pelo uso da primeira pessoa do plural, na medida em que tais

elucubrações se constituíram de forma partilhada com os autores de referência, com os professores e colegas,

bem como no momento da apreciação do texto, em conjunto com os leitores deste trabalho.

11 O vídeo pode ser visto em <https://www.youtube.com/watch?v=6MvADsjEnO4>. Último acesso em 22 de

junho de 2015.

12 Pai-de-santo, sacerdote de candomblé.

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jeje, angola e umbanda13. O coreto da Praça da Liberdade foi adornado com flores brancas,

amarelas e vermelhas, com folhas e vasos de porcelana, laços e faixas. No seu centro, os

ogãs14 tocavam os atabaques entoando os cânticos para as diferentes divindades e agentes

espirituais, revezando entre os pontos para os orixás (tradição ketu), os nkises (tradição

angola) e as entidades de umbanda, formando uma dinâmica compósita e improvisada de

saudação às forças sustentadoras das comunidades de Santo. Os participantes portavam as

suas vestes religiosas, na maioria brancas, seus turbantes e fios de conta coloridos.

Uma grande roda se formou no centro da praça, onde todos os participantes dançavam,

fazendo o círculo girar. Em destaque, filhos e filhas de santo se vestiram de orixás, atuando

como “manequins vivos”15 que circulavam pela praça. Como foi dito nas reuniões que

anteciparam a ação, a roda funciona como uma espécie de adaptação ritual em um duplo

sentido: adaptação ao espaço público, apropriação sagrada de um espaço tipicamente profano,

e adaptação entre os diferentes tipos de candomblé e umbanda presentes, cada qual com suas

próprias divindades e procedimentos rituais, que se esforçaram por compartilhar em um

mesmo momento as suas várias prerrogativas religiosas, gerando conexões criativas e

solidariedades momentâneas a partir de suas cosmologias e mundos existenciais.

No centro da roda, assim que os atabaques começaram a soar, foram colocados uma

quartinha16 de barro com água, um alguidar17 com farofa e uma vela branca, formando o

padê18 ofertado a Exu, orixá que permite a comunicação entre o Ayê (mundo material) e o

Orun (mundo espiritual). Uma vez que a roda girou para Exu, com os seus toques e cânticos

específicos para a divindade, três mães-de-santo entraram no centro do círculo e carregaram o

13 Tradições religiosas afro-brasileiras, classificadas de acordo com sua vinculação com diferentes regiões etno-

linguísticas da África.

14 Posto na hierarquia religiosa em casas de umbanda e candomblé referente ao manejo ritual com os atabaques,

a responsabilidade pelo seu toque, feitura e cuidados.

15 O termo “manequim vivo” foi utilizado várias vezes por Makota Celinha e outros participantes da

organização, apontando que as pessoas vestidas não estavam, como nos terreiros, “viradas no orixá”,

experiência de possessão que demanda uma série de cuidados e preparações rituais de cunho secreto e restrito

aos iniciados. A proposta dos “manequins”, disse Makota, é a de afirmar que “os nossos orixás não são o capeta

que o povo está falando! Eles se vestem lindamente!”.

17 Espécie de prato feito de barro, utilizado nas oferendas para orixás e entidades espirituais.

18 Recipiente que aloja variados elementos rituais das religiões afro-brasileiras, podendo ser feito de vários

materiais e utilizados de diferentes modos, de acordo com os preceitos seguidos.

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padê para fora da roda, arriando-o19 em uma esquina próxima. Na perspectiva das religiões

de matriz africana, o padê consiste em uma cerimônia na qual se oferece a Exu, antes do

início das cerimônias públicas ou privadas, alimentos e bebidas votivas, na intenção de pedir

permissão e proteção para a realização de trabalhos, assim como espera-se que Exu,

mensageiro por excelência, agencie a boa vontade dos orixás que serão invocados no culto.

No caso da roda citada, agradar a Exu tem um significado ainda mais importante e

necessário, na medida em que é ele que, nas cosmologias afro-brasileiras, cuida das ruas,

praças e demais espaços de circulação, sendo a encruzilhada um dos seus principais

domínios. A Praça da Liberdade, me explicou um dos participantes, é uma grande

encruzilhada, lugar onde se cruzam múltiplas e diferentes forças, sendo necessário sempre

saudar Exu no caso de rituais serem ali desenvolvidos. Fica claro que esses procedimentos

rituais visam garantir, no espaço da praça, a instauração de uma relação com outro mundo, o

qual, somente através da mediação de Exu, pode ser acessado.

Outro momento importante, após o padê, foi a distribuição dos acassás de leite para

todos os presentes, bolinhos de milho branco envolvidos na folha de bananeira. O acassá é

comida vinculada à Oxalá que pode ser ofertada a todos os outros orixás. Makota Celinha

explicou que a sua distriuição na praça diz da fartura nas religiões afro, a centralidade do

comer junto, que cria laços e permite a convivência pacífica com as diferenças, característica

de Oxalá, o orixá que criou o universo e simboliza a paz e a purificação. A proposta de

congregar os presentes em um momento de beleza em resposta à violência, assim, passa

incontornavelmente pela partilha do alimento, como também veremos no outro caso – e não a

sua comercialização.

Contudo, vários foram os empecilhos colocados pela Prefeitura de Belo Horizonte para

que o evento pudesse acontecer na praça. No primeiro momento em que as comunidades

solicitaram o uso da praça para o evento, a resposta foi negativa. A prefeitura afirmou que, no

mesmo dia, o Exército estaria no local. Uma resposta bastante irônica, ao ver de Makota

Celinha, levando em conta a solicitação de investigação dos“Gladiadores do Altar”, a ser

protocolada na entrega da Carta ao Ministério Público. Após algumas negociações, a praça

foi liberada, mas o ponto de energia elétrica, que permite o som mecânico, foi interdidado

sob o argumento de que, caso houvesse carro de som, o evento configuraria em um protesto,

19 “Arriar” uma oferenda é prática ritual em que se colocam os elementos ofertados no chão, os entregando aos

agentes espirituais destinados.

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o que não era permitido. Por fim, depois de todos os acordos, documentos e demais

procedimentos burocráticos, quando as comunidades já estavam certas de que poderiam

ocupar a Praça da Liberdade da sua forma, mesmo sem o uso da energia elétrica, um fiscal da

prefeitura interrompeu os momentos iniciais do evento, exigindo um alvará que permisse o

toque dos atabaques na praça. Surpreendidos pela intromissão, que aconteceu no momento

quando as lideranças estavam em plena audiência com o Ministério Público, um dos

sacerdotes de candomblés presentes, advogado, destinou-se a conversar com o fiscal para

resolver o mal entendido, argumentando que diferentes grupos tocam os seus intrumentos no

local sem ter de apresentar qualquer documento. Por fim, os atabaques puderam soar, apesar

dos insistentes entraves forjados pelo poder público. De fato, casos de racismo institucional

são recorrentes ao longo da história, principalmente contra manifestações de origem afro,

como comentou um dos participantes do evento. “É claro, tocar tambores no coração da alta

cultura de Belo Horizonte incomoda mesmo!” O posicionamento da ação na Praça da

Liberdade, centro simbólico do poder político e econômico da cidade, também nesse sentido,

foi estratégico.

4.2 . “2ª Noite de Libertação”

No evento que ocorreu na Praça da Liberdade, fui convidada, assim como todos os

presentes, para participar de uma festa que ocorreria um mês depois, na Praça Treze de Maio,

para celebrar o aniversário da abolição da escravatura do Brasil e homenagear as entidades de

umbanda conhecidas como pretos velhos, almas de antigos escravos que descem nos terreiros

e incorporam nos médiuns para fazer benzeções, dar conselhos, receitar banhos e

procedimentos de cura com elementos da natureza.

Seguindo a orientação política do evento anterior, a “2ª Noite de Libertação”, como foi

chamada a festa, assumiu a importância de fazer visível e pulsante no espaço público as

práticas rituais que ocorrem nos terreiros, também de forma adaptada ao ambiente da praça e

em diálogo com o poder público, que cedeu o local, banheiros químicos e a presença da

Polícia Militar. Pai Ricardo de Moura, sacerdote umbandista organizador do evento e chefe

da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, foi o meu principal interlocutor nesta festa, como

foi Makota Celinha no caso da “Tarde de Liberdade”. Para ele, a festa na praça Treze de

Maio se tornou um compromisso ao mesmo tempo político e espiritual de honrar a memória

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dos ancestrais que sofreram com a escravidão e que hoje se fazem presentes através dos

corpos dos médiuns.

Para isso, ambas as instâncias materiais, o corpo e a praça, devem ser cuidadosamente

preparados para a chegada dos pretos velhos, através de variados processos rituais que visam

a sua limpeza, e, como disse Pai Ricardo, a energização propícia à presença das nobres

entidades ancestrais. “É preciso muito cuidado. Tomar os banhos, acender as velas, fazer as

orações. Somente com disciplina podemos receber, no meio de uma praça, os nossos pais e

mães velhos”. Sendo assim, além da preparação individual dos médiuns que participariam da

festa, um grupo de umbandistas e capoeiristas foi à praça no dia anterior ao evento e fez um

ossé no espaço, cerimônia comum em casas de matriz afro-brasileira que consiste na

purificação material e espiritual do espaço sagrado, bem como dos candomblecistas e

umbandistas. Juntamente com a “faxina” na praça, que recolheu todos os entulhos do

ambiente, Pai Ricardo fez questão de formar uma roda de capoeira e tocar pontos20 de

umbanda. “Vamos tocar pra Exu, para os pretos velhos, só uns 40 pontos”, ele me disse ao

telefone, brincando.

No dia do ossé, toda uma restauração material também foi realizada na estátua do preto

velho que fica na praça. O cachimbo, que estava quebrado, foi trocado por um novo, assim

como uma grande pixação com a palavra “Jesus” foi removida e outras marcas de ataque à

estátua foram atenuadas. Lócus de tensão com grupos evangélicos, a praça vem sendo

constantemente depredada por fiéis cristãos fundamentalistas e a festa dos pretos velhos

hostilizada no espaço público e nas páginas da internet. Dias antes do evento, um vídeo foi

postado no YouTube em que um pastor evangélico, dentro de um templo na cidade de

Governador Valadares, se posiciona abertamente contrário à festa dos pretos velhos. “Outro

dia me falaram em Belo Horizonte que vai ter a festa do preto velho. Eu falei: ‘ninguém me

pediu!’ Eu não aceito. Não vai ter festa nem de preto velho, nem de preto roxo, nem de preto

branco. Eu falei que não vai ter.”21 Destarte, ameaças de intolerância rondaram a festa e

preocuparam a organização, mobilizando uma série de ações voltadas para a segurança dos

participantes e alimentando, em contrapartida, a vontade e o empenho na realização do

20 Cânticos e toques que convocam e homenageam as entidades espirituais.

21 O vídeo, retirado do YouTube e denunciado ao Ministério Público Federal, pode ser visto em <

https://www.facebook.com/aspucbrasil/videos/1643186795910642/?pnref=story>. Último acesso em 23 de

junho de 2015.

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evento como resposta política potente ao crescente discurso de ódio às religião afro-

brasileiras.

Na noite da festa, a estátua foi adornada com flores, velas e oferendas aos pretos

velhos. A praça se encheu de gente, de aromas, de sons, de fumaça e, o mais fundamental, de

espíritos. As pessoas presentes, reunidas no centro do espaço, entoaram o Hino da Umbanda,

para abrir as atividades rituais. Em seguida, foi realizada a defumação22 - para afastar as

energias negativas23 e abrir caminho para as bençãos - em toda a praça e em cada

participante, ao som dos atabaques e dos pontos. “Estou louvando/Estou incensando/A casa

dos meus orixás/ Para o mal sair/E a felicidade entrar”. À defumação seguiu-se a consagração

das pembas24 e o sopro coletivo do pó de Oxalá25, que se associa à defumação no intuito de

limpar o ambiente e atrair a proteção de entidades benfazejas. Os sacerdotes e sacerdotizas de

várias casas de umbanda e candomblé foram chamados para realizar os procedimentos rituais,

que se desenvolveram ao redor da estátua do preto velho, eixo que orientou todas as ações

coletivas. Uma oração aos pretos velhos foi proferida por todos os presentes, que repetiam as

frases pronunciadas pelo mestre de cerimônias.

Em seguida, as comunidades de umbanda presentes se distribuíram pelas ruas ao redor

da praça, formando as suas próprias giras26 de atendimento. Cada terreiro presente reuniu os

seus médiuns em círculos - vestidos com roupas brancas, turbantes e guias de contas - ao lado

de altares. Eles incorporaram os guias27 homenageados, pretos e pretas velhas, para

aconselhar e benzer os presentes, manipulando ervas, velas e e baforando a fumaça dos

cachimbos, elementos rituais característicos das práticas de cura nas giras de umbanda. Ao

mesmo tempo, comidas e bebidas típicas da linha das almas28 eram servidas. Arroz e feijão

22 Prática ritual recorrente na abertura de cerimônias afro-brasileiras, na qual diferentes ervas são queimadas e a

fumaça produzida é colocada em contato com o ambiente e com os corpos das pessoas presentes.

23 Interferências espirituais malévolas que podem gerar desconforto, doenças, discórdia e atrapalhar o

desenvolvimento dos rituais.

24 Giz de argila em forma esférica, usado ritualisticamente em cultos afro-brasileiros, para desenhar os pontos

riscados (sinais mágicos) dos guias/entidades no chão ou em objetos sagrados.

25 O pó de pemba branca.

26 A gira é uma espécie de reunião, agrupamento de vários espíritos de uma determinada categoria, que se

manifestam através da incorporação nos médiuns. Ela pode ser festiva, de trabalho/atendimento ou de

treinamento mediúnico.

27 Espíritos benfazejos.

28Na umbanda, os guias espirituais se organizam em linhas de trabalho, agrupamento de entidades que

caracteriza as suas principais tarefas, rituais e a ligação com os orixás. A linha das almas reúne os pretos e pretas

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tropeiro, bolo de fubá e café consagrados pelos pretos velhos foram compartilhados em

abundância, como nas festas que ocorrem nos terreiros. Como Pai Ricardo frisou, nada ali foi

comercializado, seguindo o aquele chama de “premissa da humildade, caridade e

acolhimento” característica da religião de umbanda.

5. Outras vidas, outros seres, outras histórias: algumas reflexões analíticas

Notamos, nos breves relatos dos dois eventos, uma série de ações rituais que apontam

para a efetividade cosmopolítica dos gestos de resistência construídos pelas comunidades.

Percebemos, apesar de algumas diferenças entre os dois momentos, um conjunto de

confluências: os procedimentos cuidadosos de preparação do ambiente das praças e dos

corpos participantes, as oferendas aos seres espirituais, os toques e cantos, a distribuição de

comidas e a tensão com outros grupos e mundos. Observamos também como, para os nossos

interlocutores que organizaram os eventos – Makota Celinha e Pai Ricardo – as ações rituais

são profundamente espirituais e políticas, dimensões inseparáveis das atividades realizadas.

Nesta senda, caminhamos para algumas reflexões em torno dos casos relatados, através de

três eixos analíticos permitidos pela abertura ontológica, ou melhor, três planos de potência,

articulados entre si, dos gestos políticos perscrutados: os corpos intempestivos e a

biopotência, a presença de agente não humanos, a instauração de uma temporalidade mítica e

a produção de novas coordenadas de enunciação. A seguir, enredaremos algumas noções

teóricas aos casos, de modo a levantar rapidamente aspectos alinhados aos três eixos que

possam ser elucidadores do tipo de resistência que queremos salientar.

5.1. Os corpos intempestivos e a biopotência: a dobra material

Entendemos os dois eventos das comunidades religiosas afro-brasileiras nos termos

do que Agambem chama de gesto, isso é, da política tomada enquanto esfera dos puros

meios, inscrita na “absoluta e integral gestualidade dos homens” (AGAMBEM, 2008, p. 14).

O político não é tomado como forma ou conteúdo, mas enquanto um gesto no nível da

velhas, que trabalham sob a irradiação do orixá Obaluaê, ancião ligado ao mundo dos mortos, com grande poder

curativo.

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própria comunicabilidade, capaz de colocar em questão os modos pelos quais uma

experiência pode ser comunicada, agenciando sujeitos e materializando um meio sem fim

(AGAMBEM, 2015). Os corpos dos sujeitos presentes nos dois eventos, nesse sentido,

operaram justamente no limiar entre o vivido e o performado, entre a experiência e a sua

comunicabilidade. Fora e em resposta a um regime de docilização dos corpos negros que

atuou e atua historicamente desde os ditames da escravidão (o biopoder, na perspectiva

foucaultiana), o que podemos entrever nos toques, cantos e no transe que constituíram

ritualmente os eventos, foi o dinamismo de uma força-invenção ligada diretamente a um

modo de vida: biopotência (PELBART, 2003).

Operador da vida ordinária e, ao mesmo tempo, lócus de emergência do sagrado, o

corpo nas cosmologias afro-brasileiras deve ser construído cuidadosamente a partir de

práticas rituais, que administram as venturas e perigos do contato entre mundos. A instância

corporal pode ser lida, assim, como a primeira dimensão da subjetivação política que as

comunidades de terreiro dobram, flexionam, criando uma relação singular consigo e com o

mundo. Não mais privatizado, o corpo é construído no fluxo dos pontos de vista, dos espíritos

ancestrais que percorrem de forma nômade os rituais. Como vimos nos eventos, toda uma

forma de se vestir, tocar, cantar e comer constituem os momentos de encontro com as

divindades. A premissa do cuidado com o corpo é contígua à relação com os espaços físicos

em que ocorrem as cerimônias, locais que devem ser sempre purificados – antes e após os

rituais – e energizados através de procedimentos específicos. Através dessas práticas de si,

cuidados com o corpo e com o espaço ritual, percebemos a composição de agenciamentos

coletivos que engendram subjetividades políticas de resistência.

Além disso, quando corpos fortemente invisibilizados, estigmatizados e historicamente

açoitados se fazem presentes no espaço público com as suas próprias gestualidades,

instaurando territórios próprios de existência, podemos entrever um tipo de resistência que

surge com a força daquelas vidas. A vida, ela mesma, se torna vetor de autovalorização dos

coletivos afro-religiosos (PELBART, 2003). Com seus poderes de afetar e serem afetados, os

corpo presentes nas praças produziram uma “revitalização” - no sentido mais forte da

palavra, diferente do sentido perverso de gentrificação - daqueles espaços: a sua apropriação

por modos de vida que redimensionam as sensibilidades das formas típicas de habitar a

cidade. Ao fazer isso, acionam outro aspecto político no que diz respeito às experiências

coletivas nas ruas, associado à importância da ocupação ativa do espaço urbano por múltiplas

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subjetividades que, levando em consideração a proposta cosmopolítica, podem ser humanas e

não humanas.

5.2. Agentes não humanos e tempo mítico insurgente: a dobra da força

Seja no padê ofertado a Exu ou nas comidas colocadas aos pés da estátua do preto

velho, sejam nos cânticos para os orixás entoados na Praça da Liberdade ou nos pontos

umbandistas saudando a defumação na noite de festa, o que está em jogo são procedimentos

que sustentam a relação humana com seres que não fazem parte do mesmo mundo material

onde vicejam as práticas e experiências cotidianas concernentes à cidade. As praças, nos

eventos mencionados, passam a ser povoadas por uma multiplicidade de seres, trazendo à

tona o universo das divindades da umbanda e do candomblé, o que reconfigura tanto a

espacialidade quanto a temporalidade em questão.

Mais denso, polifônico e multidimensional, o espaço se tranforma em território de

existência daqueles modos de vida, engendrando relações cosmopolíticas, em boa parte

tensas, com outros mundos: com o mundo da Prefeitura de BH e com mundo dos

evangélicos, por exemplo. A temporalidade se produz não só na duração da experiência dos

sujeitos e corpos presentes, como também coloca em ação inventiva um “tempo mítico

insurgente” (OLIVEIRA, 2014), da ordem anterior à separação entre humanos e não

humanos, antes mesmo dos flagelos da escravidão. A relação entre esses dois tempos, o da

experiência e o mítico, proporciona a possibilidade dos sujeitos se “reconectarem com seus

mundos presentes e ancestrais, com os antepassados, com os encantados, com os deste e com

os de outros mundos” (ibidem, p. 91). O nível da do próprio poder é dobrado, na medida em

que diferentes fontes de força são colocadas em contato, desafiando a hierarquia

antropocêntrica e humanista do capitalismo e das ciências.

Enquanto gesto de (re)conexão com mundos outros, os dois eventos sondados dizem

ainda de uma potência dissidente própria ao ritual no/contra o mundo ocidental supostamente

desencantado. Stengers (2005), abordando a sua proposta cosmopolítica, quando fala da

erradicação e desqualificação da bruxaria no Ocidente pelo triunfo da ideia de uma

racionalidade pública, de um Homem idealmente dono de suas razões, aponta para o contra-

poder da magia e do ritual. O atos mágicos “criam uma experiência inquietante para todos

aqueles que vivem em um mundo no qual a página [da magia] teria sido definitivamente

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virada”29 (STENGERS, 2005, p. 12, tradução livre). A magia e o ritual configuram, para ela,

o domínio político de uma arte experimental cuja pedra-de-toque é uma emergência, através

da convocação, da apelação a uma presença. A sua eficácia consiste em catalisar um regime

de pensamento e sensibilidade que se transforma em uma causa a ser levada em conta. Isso

torna o ritual, na contemporaneidade, uma ação eminentemente de resistência: “A realização

do ritual pode ser chamada ‘empoderamento’, a produção de ‘partes’ que não estão

submetidas ao todo, mas que devem a sua participação o poder de pensar e agir e resistir”30.

(ibidem, p. 13, tradução nossa).

Os casos mencionados remodelam o espaço e o tempo onde as relações políticas

acontecem, quando convocam, na praça para lutar contra a intolerância, as divindades

africanas com poderes de mover os ventos, os mares, as cachoeiras, as matas e as outras

forças vivas da natureza; quando chamam à presença os ancestrais negros que foram

escravizados no Brasil colonial e hoje retornam, pelos corpos dos médiuns, para benzer e

curar os seus descendentes. Outras narrativas podem ser geradas nesse regime temporal e

espacial próprio, marcado por um “desejo de relação” que visa recontar, reescrever e refazer

a história (OLIVEIRA, 2014).

5.3. Novas coordenadas de enunciação: a dobra do saber

Vimos como a biopotência e a presença de seres não humanos animam a dimensão

cosmopolítica de resistência dos dois eventos; como corpos, mundos, tempos e espaços

diferentes entram em relação no momento dos rituais nas praças. O movimento ocasionado

por essas relações pode produzir outros referenciais de enunciação, dobrando os esquemas de

estratificação do saber. É o caso das narrativas sobre a escravidão, escritas não só pela fala

oficial das lideranças religiosas, mas também pelos toques, danças, cantos e orações.

Na festa dos pretos velhos, variados elementos se articularam para escrever uma

história perspectivada pelos antigos escravos que, segundo a liturgia umbandista, hoje

29 “(...) acts that create an unsettling experience for all those who live in a world in which the page is supposed

to have been definitively turned.” (STENGERS, 2005, p. 12)

30 “The ritual’s achievement may be called “empowerment”, the production of “parts” that are not submitted to

the whole but owe to their participation a power to think and act and resist (...)” ((STENGERS, 2005, p. 13)

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habitam em Aruanda31 e descem nos terreiros, onde contam causos da época da escravidão,

abordando nos relatos as suas táticas históricas de resistência muitas vezes amparadas nos

rituais de devoção e magia. Como conta o ponto, “Chora meu cativeiro, meu cativero, meu

cativerá/ Quando batia seis horas preta velha batia tambor/ Ela ia para a sua urucaia32

saravar33 pai Oxóssi e saravar pai Xangô”, e outro que diz “Vó Cambinda vem de longe/ De

tão longe, mas até que aqui chegou/ O seu corpo está marcado, coitadinha/ Do chicote do

sinhô”. Como nos diz Deleuze, é principalmente nos excluídos sociais que se constituem os

focos de subjetivação, os devires minoritários, como no caso do “escravo libertado que se

queixa de ter perdido todo o estatuto social da ordem estabelecida” (DELEUZE, XXXX, p.

189). A importância poética da queixa, como essa de Vó Cambinda, é de ordem poética,

histórica e social, exprimindo um momento de subjetivação, uma “subjetividade elegíaca”

(ibidem).

Estamos certamente lidando com outro regime de verdade, que articula novas

coordenadas de enunciação no espaço das praças. A presença enunciativa das comunidades

de terreiros na cidade provoca deslocamentos nos lugares legítimos de se expressar, ser

visível e falar sobre si e sobre os “seus”. Neste sentido, notamos a força do enunciado

político que consiste a parresía foucaultinana, o “falar de si” em público imbuído pela

coragem de se autoposicionar mesmo diante do risco da violência (LAZZARATO, XXXX).

A enunciação parresiática implica que os sujeitos políticos se constituam como sujeitos

éticos, capazes de lançar desafios, governar a si mesmos e aos outros dentro de situações de

conflito. As ameaças dos grupos cristãos fundamentalistas, os impeditivos da Prefeitura e

toda uma série de constrangimentos históricos pelos quais passam as religiosidades afro-

brasileiras compõe, assim, um campo arriscado que não impede, contudo, a expressão

singular dos rituais que descrevemos. Tal gesto confronta diretamente o duplo estigma de

teor racista imputado às religiões afro-brasileiras - como “macumba”, pelos grupos

fundamentalistas, e como “superstição” (no sentido de mentira, primitivismo), pela visada

racionalista. O efeito demonizador/deslegitimador destas sobrecodificações é, antes de tudo,

uma “aversão à relação”, oposto ao “desejo de relação” (OLIVEIRA, 2014) que

31 Aruanda, segundo a cosmologia umbandista, é o nome dado a um lugar específico no plano espiritual,

reservado aos espíritos benevolentes que trabalham como intermediários entre o plano físico e espiritual,

prestando auxílios aos mais necessitados.

32 Casa de reza, local sagrado.

33 Saudar, cumprimentar com respeito e cordialidade.

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vislumbramos na proposta cosmopolítica. Nesse sentido, as comunidades de Santo nos dois

eventos produzem suas próprias auto-definições, profundamente relacionais, se descolando

das noções pejorativas às quais são historicamente atreladas. Entendemos que esse gesto pode

resistir a uma partilha do sensível que estabelece uma ordem hierárquica, uma

relação desigual entre os modos do fazer, os modos do ser e os do dizer; entre a

distribuição dos corpos de acordo com suas atribuições e finalidades e a circulação

do sentido; entre a ordem do visível e a do dizível” (RANCIÉRE apud MARQUES,

2011, p. 47)

Observamos ainda, como reescrita insurgente, o uso das expressões “Liberdade” e

“Libertação” que compõem os nomes dos eventos. A “Tarde de Liberdade”, ao se localizar

na praça homônima vinculada às elites políticas, econômicas e culturais da cidade, subverte

ao seu favor a ideia de liberdade, para alarga-la àqueles que historicamente não “couberam”

dentro deste direito, colocando, nas entrelinhas, as perguntas: “liberdade para fazer o quê?” e

“liberdade para quem?” As respostas impeditivas da Prefeitura dizem, inclusive, dos

constrangimentos cerceadores da liberdade de outros mundos existirem e se fazerem

presentes nos espaços nodais de poder da topografia hierárquica urbana.

Já a “2ª Noite de Libertação” estabelece uma interessante intertextualidade para com os

rituais neopentecostais também chamados de “libertação”, sessões de descarrego e exorcismo

que visam expulsar e aniquilar os demônios de origem afro-brasileira34. Se nos cultos

neopentecostais “de libertação” o panteão da umbanda e dos candomblés é demonizado, o

sentido dado ao termo na festa dos pretos velhos consiste numa inversão da relação de

exorcismo: aqui, os espíritos não são hostilizados e “queimados”, mas convocados para

festejar, trazidos pelo corpo dos médiuns para serem presentados e homenageados. Essa

inversão passa pela retomada histórica da noção de “libertação” a partir da experiência da

abolição, o que também se opõe à estratégia de alguns grupos evangélicos que apagam,

sistematicamente, a dimensão de ancestralidade que constitui as tradicionais “linhagens de

fé” da população brasileira (PIERUCCI, 2006), como no caso das ameaças do pastor que

disse não aceitar “festa do capeta” no espaço público.

34 Já analisamos as sessões de descarrego em outro momento. Ver: ALTIVO, B. R. “Poder em performance

ritual: o combate às religiões afro-brasileiras na Sessão do Descarrego da Igreja Universal do Reino de Deus”.

In: V Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste, Fortaleza – CE,

2013, v. 1. p. 1-20.

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6. Apontamentos finais (ou a quarta dobra em movimento)

Observamos como os dois eventos rituais realizados por comunidades de Santo em

praças de Belo Horizonte, dentro de uma proposta cosmopolítica de resistência, produzem

dobras de subjetivação nas dimensões 1) do corpo intempestivo em transe e nos cuidados

rituais de si e da relação com os mundos, 2) das agências humanas e não humanas e da

instauração de uma temporalidade mítica, mobilizando uma curvatura no campo das forças

atuantes na vida e 3) de uma recomposição dos enunciados sobre si, sobre a história da

experiência da escravidão, que desafia as estratificações de saber sobre o tema.

Notamos, destarte, que tal estratégia de luta política através de agenciamentos

coletivos via rituais afro-brasileiros coloca também em movimento a quarta e última dobra

mencionada por Deleuze, referente às expectativas e problematizações da relação consigo e

com o mundo, o contato do interior com as forças do Fora. Afinal,

Se é preciso chegar a essa derradeira dobra é porque ela nos fornece a razão das

demais: pois resistir e problematizar, mal ou bem, todos nós fazemos nos impasses

cotidianos, mas perseverar em uma ruptura implica ir além do presente

estabelecido, mantendo com o futuro uma relação durável que pressupõe uma

memória de longa duração. (MACIEL JR., 2014, p. 7).

Como verdadeiras máquinas de mundos (BARBOSA NETO, 2012) e de narrativas

míticas em transformação, os rituais reativam o passado (corporificado na ancestralidade) e

permitem a sua reescrita, gerando potentes projeções para o futuro, produzindo memória e

resistindo aos estereótipos, aos processos históricos de segregação, aos discursos de ódio.

Tais processos de singularização subvertem também os mecanismos de captura da vida, de

“vampirização” da existência pelas forças do capital, que continuamente “produz novas

formas de exploração e de exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova

angústia - a do desligamento” (PELBART, 2003, p. 35). Resistência a um modo de viver que

se quer único e desencantado, que por definição quer subjugar e, por vezes, eliminar os ditos

não humanos e os seus mundos. Nos deparamos, assim, com uma forma de resistir que

escapa às categorias reflexivas desenvolvidas nos gabinetes acadêmicos, e que nos convoca a

outros modos de fazer pesquisa. Para estudar essas resistências, talvez seja preciso um

exercício de deslocamento para fora do gabinete e das teorias prévias, uma abertura do

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pesquisador à possibilidade de ser tocado afetiva e intelectualmente pelos próprios gestos

analisados.

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