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Sublimação - Yvonne A. Pereira - Leão Tolstoi e Charles

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Sublimação

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  • YVONNE A. PEREIRA

    SUBLIMAO

    Pelos Espritos

    L E O TOLSTOI e

    CHARLES

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA

  • ISBN 85-7328-350-5

    B.N. 21.448

    3' edio - 4' milheiro

    5,8-AM;000.1-O; 2/2006

    Capa de ALESSANDRO FIGUEREDO

    Copyright 1973 by FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA (Casa-Mter do Espiritismo) Av. L-2 Norte - Q. 603 - Conjunto F 70830-030 - Braslia, DF - Brasil

    Todos os direitos de reproduo, cpia, comunicao ao pblico e explorao eco-nmica desta obra esto reservados nica e exclusivamente para a Federao Esprita Brasileira (FEB). Proibida a reproduo parcial ou total da mesma, atra-vs de qualquer forma, meio ou processo eletrnico, digital, fotocpia, microfilme, Internet, CD-ROM, sem a prvia e expressa autorizao da Editora, nos termos da lei 9.610/98 que regulamenta os direitos de autor e conexos.

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    Pedidos de livros FEB - Departamento Editorial: Tel.: (21) 2187-8282, FAX: (21) 2187-8298.

    CIP-BRASIL. C A T A L O G A O - N A - F O N T E SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    T598s 3. ed.

    Tolstoi, Leon (Esprito) Sublimao / [ditado] pelos Espritos Leon Tolstoi e Charles;

    [psicografado por] Yvonne A. Pereira. - 3. ed. - Rio de Janeiro: Federao Esprita Brasileira, 2006

    272p.: 21cm. - (Srie Yvonne A. Pereira)

    ISBN 85-7328-350-5

    1. Romance esprita. 2. Obras psicografadas. I. Charles (Esprito) II. Tolstoi, Leon (Esprito). III. Pereira, Yvonne A (Yvonne do Amaral). 1906-1984. IV. Federao Esprita Brasileira. V. Ttulo. VI. Srie.

    03-2123. CDD 133.93 CDU 133.7

    08.10.03 13.10.03 004536

  • umrio Prefcio 7 Apresentao 9 Obsesso 11 Amor imortal 31 Destinos sublimes 75 Karla Alexeievna 1 1 1 Evoluo 147 Nina 1 6 9 Concluso 2 6 1

  • PREFCIO

    Este livro no , propriamente, novo. Parte dele, ou seja, os contos de autoria do Esprito Leo Tolstoi, tm precisamente dez anos. Os dois ltimos captulos, assinados pela entidade Charles, tm, aproximada-mente, trinta anos. Se me perguntarem por que razo ficaram tanto tempo assim guardados, eu no saberei responder. de crer, porm, que a benevolncia de seus autores espirituais aproveitassem minhas foras para obras mais difceis e deixassem estas, mais leves, j esboadas, para a parte final da minha jornada psico-grfica literria. De qualquer forma, a est SUBLI-MAO. Sinto-me feliz em entreg-lo ao leitor, pois as emoes grandiosas que me proporcionaram as vises que me foi dado contemplar durante a sua recepo, e a convivncia diria com as duas amadas entidades que a ditaram so o que de mais grato eu poderia sen-tir e conhecer no desempenho da tarefa medinica.

    Que o leitor o aceite, como produto amoroso de dois grandes trabalhadores da seara esprita: Leo Tolstoi e Charles.

    YVONNE A. PEREIRA

    Rio de Janeiro, 18 de maio de 1973

  • APRESENTAO

    H muitos anos, antes de abandonar Terra os meus despojos carnais, prometi a Deus e a mim prprio escrever alguma coisa que combatesse o suicdio. No me foi, no entanto, possvel o cumprimento da promes-sa, at agora, visto que me escapavam argumentos e possibilidades com que demonstrasse a lgica do mal que ele, o suicdio, representa para a Humanidade. Muitas vezes afligi-me com a notcia de que uma e outra, e outras mulheres, arrebatadas pela paixo do amor humano, haviam imitado o gesto de certa herona famosa de um dos meus romances,' dando-se trag-dia de um suicdio, nela inspiradas. Em mais de um livro que escrevi, ento, pintei o suicdio de seus heris, deixando, porm, de apresentar o conceito moral, a con-seqncia aterradora de tal gesto na vida do Alm, para aquele que o pratica na Terra. Se os infratores se inspiravam nas estrias por mim contadas, sempre muito lidas e acatadas, sentia-me culpado, causador daquela desgraa, e cheguei mesmo a lamentar a inspi-rao que me levou a encerrar dramas ntimos e so-ciais com suicdios to impressionantes como os que

    Ana Karenina.

  • YVONNE A. PEREIRA

    criei para as minhas personagens. Penitencio-me da falta ante Deus e os leitores, declarando que tudo venho tentando afim de repar-la.

    Depois de longo tempo de uma expectativa paciente, consegui meios de iniciar a tentativa para o cumprimento da promessa feita, pelo menos no que tange literatura. Se minha mente, engendrando suic-dios literrios que modelaram outros suicdios, envol-veu-me nessa faixa atormentada, hoje, superando o desequilbrio da provindo, tentarei reconfortar coraes frgeis, vacilantes nas horas difceis das provaes, assim afastando-os do pavoroso abismo.

    Que Deus abenoe as almas boas que me ajudam a retirar da conscincia o peso de um remorso que com-prometeu a minha paz.

    LEO TOLSTOI

    Rio de Janeiro, 13 de junho de 1973

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  • OBSESSO

    LEO TOLSTOI

    - "A observao demonstra que, no instante da morte, o desprendimento do perisprito no se completa subitamente; que, ao contrrio, se opera gradualmente e com uma lentido muito varivel conforme os indivduos."

    - "Essas observaes ainda provam que a afinida-de, persistente entre a alma e o corpo, em certos indiv-duos, , s vezes, muito penosa, porquanto o Esprito pode experimentar o horror da decomposio."

    (O Livro dos Espritos, de Allan Kardec, Parte 2, cap. III, "Da volta do Esprito, extinta a vida corp-rea, vida espiritual", n 155, 32a edio da FEB.)

    Ktia Andreevna tomou o papel das mos da ser-vente, que lho fornecera por bondade, s ocultas da direo da casa. Agradeceu docemente, com um "Deus lhe recompense, mezinha!", proferido num murmrio, e ps-se a escrever uma carta para sua amiga Aglaida Petrovna, esposa de um entendido em coisas relativas a Espritos e ao outro mundo, isto , ao mundo das almas.

  • YVONNE A. PEREIRA

    A histria passou-se numa herdade dos arredores de Smolensky, no longe de Moscou, creio que pelo ano de 1907, mas a carta foi escrita do quarto particular n 6 de um hospital de alienados de Moscou.

    Eis a carta:

    - "Minha querida amiga Aglaida Petrovna:

    Parece incrvel que, depois de tantos dissabores su-portados, de confuses e expectao, meus verdugos (a minha famlia, se preferes) viessem a me enclausurar num quarto, o mesmo de onde escrevo, com uma nica janela e esta mesma gradeada com varais de ferro batido, como janela de presdios. O ar aqui mido, pesado, chei-rando a barro mofado, como todo local no visitado pelo ar puro do campo ou saneado pelos raios protetores do Sol. Tirito de frio neste cubculo escuro e opressivo, meus dentes se entrechocam, no sei se de frio ou nervosismo, por me sentir to s; meus dedos, endurecidos, mal tm agilidade para movimentar a pena e escrever, e daqui nem vejo o horizonte azul, seno estreita nesga pardacenta da atmosfera, onde no transita a virao perfumada de ne-nhum prado florido nem os bandos festivos das andori-nhas bulhentas, se bem que a primavera j caminhe pela metade do seu giro. E nem mesmo me consolam a solido das horas, o rumor dos camponeses no labor das "decia-tines" cultivadas, sequer o balir das ovelhas ou o mugir do gado, e tampouco o ladrar dos ces vigias, o grasnar dos gansos bravos e o riso saudvel da crianada de nossa aldeia, durante as correrias folgazs.

    Tudo isso, Aglaida Petrovna, minha amiga, foi agora substitudo pelo grito alucinado dos meus companheiros de infortnio, pelo gargalhar dos histricos aglomerados no ptio de recreio, pelas blasfmias dos furiosos que en-louqueceram mesmo, com efeito, depois de tantos sofri-

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    mentos incompreendidos, de tanta violncia e incon-gruncia dos tratamentos aplicados a ttulo de recupera-o, e quando j no mais puderam resistir ao desgosto de se verem assim relegados do prprio lar, feridos pela saudade daqueles a quem mais amavam e que to ingra-tos foram ao atir-los a este local sinistro, onde se reco-nheceram sepultados vivos antes de enlouquecerem... porque, minha amiga, aqui dentro foi que eles realmente enlouqueceram: ao aqui aportarem eram apenas atacados por causas incomuns, que os senhores doutores psiquia-tras ainda no conseguiram compreender, para debelar...

    No sei, Aglaida Petrovna, minha amiga, se algum dia tentaste compreender o que seja, na realidade, um hospcio de alienados. Mas, estou autorizada a revelar --te que um hospcio a extenso de um inferno mitolgi-co, que nem mesmo a imaginao ardente dos nossos prestimosos "popes" chega a idear. , decerto, a filial, se-no a casa-mter, daquele inferno que os rprobos do ou-tro mundo andaram criando com a fantasmagoria dos prprios pensamentos prostitudos pelos sete pecados mortais, praticados durante a vida. O que sei que dei-xei de transitar por estes corredores imensos, pelas gale-rias e os ptios para no mais cruzar caminhos com es-ses fantasmas alados que, junto de ns, os considerados doentes mentais, transitam por todos os cantos deste hospcio: uns, em gritos alarmantes, como de rprobos, fazendo com que tambm gritemos, pelo terror que suas ameaas odiosas nos comunicam; outros, desesperados e enraivecidos, vingadores diante das vises das malda-des que sofreram no passado, induzindo-nos tambm a frias insopitveis, pelas revoltas que suas proezas nos despertam, e ainda outros, to sofredores, feios e repul-sivos, com seus olhares afogueados, suas vestes negras e rotas, seus mantos longos quais sudrios assombrado-res, que a loucura chega tambm a ns e nos pomos a

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  • YVONNE A. PEREIRA

    gargalhar de horror e de terror, sem atinarmos por que nos rimos, quando tanto sofremos, sem podermos parar de rir, quando nosso desejo seria antes chorar, tal como se nossos nervos, nossa mente, nossas foras vibratrias psquicas todas se contaminassem de um vrus desco-nhecido da Humanidade, vrus psquico que, sem afetar nosso sistema orgnico animal, arruina, no obstante, todo o nosso sistema de vibraes nervosas e irradiaes cerebrais, reduzindo-nos anormalidade a que, por vezes, nos sentimos constrangidos. s vezes, minha que-rida Aglaida Petrovna, ponho-me a indagar de mim mesma, durante as singulares conversaes que, ultima-mente, venho mantendo com individualidades aladas, desconhecidas, que me visitam, infundindo-me coragem e esperanas em dias melhores,' indago quem sero os verdadeiros loucos: ns, que aqui estamos aprisionados, ou aqueles que levantaram este edifcio tenebroso, sem solicitar a interveno celeste para nos curar, visto que eles mesmos se confessam incapazes de o fazer?

    No sou louca, estou bem certa disso. Os loucos no pensam, e eu penso e reflito profundamente. No recor-dam, ao passo que eu recordo at os brinquedos da mi-nha infncia, at mesmo as ingratides com que os fal-sos amigos me retriburam o bem que lhes fiz. Os loucos tambm no amam, enquanto eu sinto o corao es-tuante de santas emoes e saudades muito doloridas, invocao do meu Theodor Theodorovitch. Em mim, o que se processa, segundo afirmam as individualidades aladas que, ultimamente, bondosamente me visitam, um acontecimento estranho e belo, apesar de tambm dramtico, o qual julgo desconhecido da maioria dos homens, pois jamais ouvi falar dele antes. Vejo aqueles que j morreram, Aglaida Petrovna, minha amiga! Sim,

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    Guias Espirituais.

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    vejo-os, falo-lhes, rio-me com alguns, convivo com mui-tos, nossa conversao normal, embora no agradvel, conforme o carter do interlocutor, mas ningum acredi-ta que eu o possa, realmente, fazer e declaram-me louca. Internaram-me nesta cela justamente por esse motivo, no obstante eu saber que no sou, absolutamente, louca, como me supem. Mas prevejo que enlouquecerei de indignao, de desconforto e assombramento se aqui me retiverem sem providenciarem meios legtimos para a minha cura. Porque, Aglaida Petrovna, minha amiga, essas drogas que me do a ingerir, essas plulas, esses ps, essas tisanas e esses choques somente conseguem deprimir ainda mais o meu organismo e excitar minhas ntimas revoltas, aprofundando a preocupao que o sucedido a Theodor Theodorovitch me vem causando, acontecimento que no compreendo, que me alarma, me confunde at ao excesso da perplexidade. Eu quisera antes a prece compreensiva do Amor, o consolo santo de uma invocao ao Criador em prol do que sucede a mim e a Theodor, pois reflito que, se tantos luminares da Cincia me no podem curar do que sinto ser porque no sou doente, apenas me debato entre foras desco-nhecidas dos homens, conforme fui informada pelos meus bondosos visitantes alados, foras que somente Deus estar altura de dominar para solucionar.

    Mas, no sei se sabes como e por que vim parar aqui. Tudo aconteceu alguns dias depois do desastre ocorrido com o meu Theodor Theodorovitch.

    Abalada pelo fato de sua inesperada suposta morte, durante uma caada ao urso, como sabes, quando fora ferido no peito por um tiro de carabina, passei aqueles primeiros dias em crises de desespero que me desorga-nizaram, completamente, o sistema de vibraes nervo-sas, como dizem os meus mdicos daqui. No dormia,

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  • YVONNE A . PEREIRA

    no comia, e esquecia as oraes a Deus para as tenta-tivas da conformidade com a situao. No fim de trinta dias, mais ou menos, j exausta de sofrer, consegui adormecer pela noite adentro. Mas, passado algum tempo, talvez meia hora, talvez uma, no sei bem, des-pertei em sobressalto, ouvindo os gritos de Theodor Theodorovitch, chamando-me:

    - Ktia Andreevna, Katienka, minha querida, so-corre-me! Eles sepultaram-me vivo, supondo-me morto, quando estava apenas desmaiado! Salva-me, Katienka, a mim, teu prometido esposo, teu paizinho to querido! Estou debaixo da terra, Katienka, preso numa cova do cemitrio, sem poder sair!...

    Levantei-me do leito em pnico, mas tambm louca de alegria, compreendendo que meu noivo to amado es-tava vivo. E, sob o impulso desse alarma, precipitei-me para fora do quarto, vesti-me s pressas, para no per-der tempo, mas respondendo a Theodor, que continuava bradando por mim:

    - Theodor Theodorovitch, j irei salvar-te, meu amor querido, meu esposo, meu paizinho! Sim, vejo-te, reconheo-te, sei que ests vivo, ouo o que me dizes, no morreste, no, e irei libertar-te da tua cova...

    E chamava a "mamienka", o "batiuchka",1 para que me trouxessem uma picareta, uma enxada e uma p e me acompanhassem ao cemitrio, porque Theodor esta-va vivo, chamava-me e eu devia socorr-lo antes que a asfixia o envolvesse todo, causando-lhe a morte.

    "Mamienka": mezinha. Termo afetuoso, com o qual se tratava a esposa do

    "pope", mas tambm usado entre o povo. "Batiuchka": paizinho. Termo com

    que se tratava o "pope", mas tambm comumente usado. Quando se trata do prprio pai, o verdadeiro diminutivo "Papotchka". Era ainda usado o termo

    "matushka", que igualmente traduz mezinha.

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    Com os meus gritos, despertaram todos os de casa e estabeleceu-se indescritvel conflito. Seguraram-me, detiveram-me a fora, no me permitindo vestir-me de-centemente, calar as botas para tocar para o cemitrio, pois era madrugada e as ltimas neves do ano caam, branquejando as ruas da aldeia.

    Debati-me furiosamente, repelindo a opresso da-queles que no passavam de desalmados assassinos, que sepultaram vivo o meu Theodor e agora me impe-diam de correr a libert-lo. Mas, todos conjugaram for-as contra mim, no me acreditaram ou fingiam no acreditar, quando eu lhes pedia que silenciassem um poucochinho para tambm ouvirem os gritos de Theodor pedindo socorro. A "mamacha"1 chorava, ajoelhada diante do seu "cone",2 repetindo em curvaturas fervorosas:

    - Senhor meu Jesus-Cristo, Filho de Deus, Reden-tor nosso, salvai a minha filhinha querida da loucura, a pobrezinha sofre pela morte inesperada do noivo do seu corao, a quem tanto queria. Salvai-a, salvai-a, Senhor! E prometo dar-vos duas velas de cera, de um metro cada uma, sendo uma por ela, e outra por mim mesma!3

    Meu pai correra para a rua dizendo que eu delirava e era preciso encontrar o doutor, apesar de ser madru-gada, enquanto Illia e Yakov, torcendo meus braos para trs, mantinham-me segura pelas mos, forando-me a uma imobilidade dolorosa.

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    1 "Mamacha": mame. 2

    Imagem de santo, pintada, que se conserva, de preferncia, em um nicho.

    3 Antiga superstio do misticismo ortodoxo, que o raciocnio repele como intil

    para o culto a Deus e f.

  • YVONNE A. PEREIRA

    Mas, na tarde seguinte, burlei a vigilncia que me impunham e consegui sair.

    Levei a enxada, a picareta e a p, eu mesma atrelei o tren ao cavalo branco, que mais manso do que o cavalo baio, e guiei-o facilmente, coisas que nunca fizera antes.

    Ao chegar ao cemitrio, fui correndo cova ainda fresca de Theodor Theodorovitch, cansada do trajeto e tremendo de aflio. L estava ele, saindo a meio corpo da sua cova, sem se poder erguer e livrar-se do monto de terra e pedras que o oprimia. Seus olhos estavam desvairados, abatidos, sua boca aberta como esforan-do-se por aspirar o ar, sem consegui-lo, suas mos crispavam-se, agarrando-se aos rebordos da cova, e as faces eram to brancas e esqulidas que antes pareciam as faces de um fantasma.

    - Socorre-me, Katienka, salva-me! Sufoco, abafo de-baixo desta terra! Estou vivo, minha querida, e sou teu, no me reconheces mais? Eles me supuseram morto e me enterraram vivo!...

    No trepidei. Era preciso mostrar-lhe que o reco-nhecia e continuava amando-o. Comecei a cavar a fim de libert-lo, louca de alegria por encontr-lo vivo, e, para acalm-lo e infundir-lhe nimo, enquanto retirava a ter-ra, pus-me a falar-lhe, naquele momento decisivo para nossas vidas, com o nosso fraseado habitual:

    - Estou aqui, Theodor Theodorovitch, meu noivo que Deus me deu, meu santo esposo querido, e j te libertarei depressa, esteja descansado... Mais um momentinho s, doura da minha vida, meu paizinho, enquanto retiro esta terra com a enxada e a p que eu

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    trouxe... e voltars comigo para casa, a tratarmos das nossas bodas, pois a primavera vem chegando e estava combinado que nos casaramos justamente agora... Coragem, coragem, meu Theodor Theodorovitch...

    Mas, no consegui desenterr-lo porque chegaram meus algozes, ou seja, a "mamienka", o "batiuchka", Illia, Yakov, os vizinhos e at o nosso "pope", que muito prestimoso para o bem do prximo, mas que, dessa vez, me prejudicou.

    Eles agarraram-me, amarraram-me com umas cor-das e me levaram para casa numa horrvel carroa, en-quanto eu gritava desesperadamente, pedindo que me deixassem salvar Theodor Theodorovitch, que sufocava debaixo da terra.

    Mas no me atenderam. Eu tampouco desanimei, Aglaida Petrovna, minha amiga, porque o meu amor forte como o vento das tempestades, invencvel como o oceano, e no poderei deixar de atender aos brados do meu Theodor, que continua vivo e est sofrendo.

    H dias (no sei quantos dias, s vezes sinto-me um tanto esquecida das coisas, devido angstia e aflio que me torturam), mas, h dias, como vs, cessou a ne-ve e eu percebi que ela cessara. A primavera chegara, fi-nalmente. A voz do meu amado continuava chamando--me, aflita, desesperada. Havia muitas noites que eu no dormia e me sentia consumida. Mas, mesmo assim, sem dormir, parecia que eu sonhava... e ento ia beira da sepultura de Theodor, visit-lo, via-o desesperado e ou-via que dizia, desfeito em pranto:

    - V, Katienka, minha mezinha, sucedeu-me uma desgraa! Estou vivo e estou morto, ao mesmo tempo!

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  • YVONNE A . PEREIRA

    Soobrei num pesadelo que me agarra como os tentcu-los de um polvo a um ser humano, impedindo-me de ra-ciocinar. Vejo-me dividido em dois: um sob a terra; o ou-tro, tanto sob a terra como acima da terra... Um est vi-vo e o outro est morto... No compreendo nada... Algum inimigo desalmado andou praticando bruxarias contra mim... Quem sabe foi o Nikolai Prokofitch, que gostava de ti? Ou quem sabe foi o Yvan Semione, que andou co-biando o meu cavalo de corrida? Sim, enlouqueci de de-sespero, sem nada entender do que me aconteceu. Estou absorvido por uma demncia que nem no inferno existe. Socorre-me, Ktia Andreevna, se verdade que me amas... Chama os meus irmos, os meus amigos de cavalaria, os vizinhos, a polcia... Liberta-me deste pesa-delo inexplicvel...

    Sonhava. E tanto sonhava assim que h dias sa, resolvida a tudo.

    Fazia sol e percebi que o cu estava azul e difano, que as rvores engalanavam-se de folhagens novas; a neve, desfazendo-se, gotejava das cornijas das casas e dos galhos dos pinheiros, formando ribeirinhos lucilan-tes pelo cho, luz fluida do Sol, enquanto os passari-nhos, irrequietos, saudavam a nova estao do ano des-ferindo seus alegres gorjeios.

    Era a primavera voltando... E meu casamento com Theodor Theodorovitch deveria realizar-se agora, nessa primeira semana festiva.

    Quando cheguei ao cemitrio, as andorinhas sau-daram-me com seus tumultuosos alaridos, escondidas entre os braos dos ciprestes, e eu compreendi que elas, solidrias comigo, cantavam para me alegrar, dizendo assim:

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  • SUBLIMAO

    - "L vem Katienka, Noiva feliz, Buscar o marido Que Deus lhe vai dar, Para com ele casar... Theodor Theodorovitch, Altivo e garboso Capito de cossacos, Destro e valente, Louro e bonito, Corado e risonho, O melhor cavaleiro Do Don, de Tula e do Volga... Ktia e Theodor Vo se casar No tempo das flores, Do riso e das festas... Sejam felizes, Ktia e Theodor, Mulher e marido, Marido e mulher Que Deus abenoa. Sejam ditosos... Que o Cu abenoe Sua vida e seu lar...

    Meu santo esposo, que Deus me ia dar, chorava, in-consolvel, coitadinho, sentado sobre o monto de terra e pedras da prpria cova, com as mos tapando o rosto, como um pobrezinho sem po nem famlia, j sem foras para gritar e falar, queixando-se de sono e fadiga.

    Chamei-o:

    - Theodor Theodorovitch, meu santo amor, vamo--nos, vim buscar-te, tempo das nossas bodas, prome-

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  • YVONNE A. PEREIRA

    teste casar comigo, agora, na primavera... No ouves a saudao das andorinhas?...

    Mas, inexplicavelmente, meu santo amor que Deus me deu replicou:

    - No, Ktia Andreevna, mezinha adorada, no posso ir contigo, no vs tambm? No me posso desgar-rar daqui... Estou atado ao 'outro', ao 'outro eu mesmo' que aqui est, sufocado e miservel, e no me despego dele... Que fazer, Ktia Andreevna, minha querida, que fazer? No posso me ir casar contigo...

    Pus-me, ento, a cavar como da outra vez, a cavar, a cavar, a cavar para tambm ver o que se passava de-baixo da terra, e que eu no compreendia o que poderia ser, e assim libertar Theodor. Mas, de sbito, veio cor-rendo o coveiro do cemitrio, com uns modos brutos e assustados, para me atrapalhar:

    - Que fazes a, Ktia Andreevna? Ests louca, meni-na inconformada com a sorte?! No podes fazer isso! D--me essa enxada! Onde a encontraste?

    - Esta enxada minha e eu no quero dar-ta! Pre-ciso socorrer o santo esposo que Deus me quer dar... Ele est vivo...

    Discutimos. Pedi-lhe que me ajudasse, em vez de me insultar com aquele palavreado, pois eu precisava libertar Theodor Theodorovitch, que estava ali, choran-do, mas que tambm estava atado, l embaixo, no 'ou-tro ele mesmo', conforme me explicava...

    Riu-se de mim, o desalmado coveiro, e respondeu que Theodor Theodorovitch estava era morto e bem mor-to, e agora s precisava era de rezas e missas para se

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    salvar do Inferno, e no de enxadas e picaretas, porque nem enxadas nem picaretas seriam capazes de faz-lo tornar vida ou libert-lo das garras dos prprios pecados...

    Revoltei-me contra o insulto:

    - Vai-te daqui, Satans, sai de perto de mim! Vai-te para o Inferno, onde o teu lugar, e deixa-me em paz pa-ra cumprir o meu dever de esposa! - respondi eu. E cha-mei-o assassino e infame, caluniador e prfido, e atirei--lhe pedras para que se afastasse. Respondeu que cha-maria a polcia, se eu continuasse com aquela brincadei-ra de desenterrar meu noivo, pois eu estava era demen-te, endemoninhada, era uma hertica, que profanava sepulturas.

    Ento, Aglaida Petrovna, minha amiga, uma nuvem rubra de sangue perpassou pelos meus sentidos, ofus-cando-me a razo. Odiei aquele guarda com todas as frias do meu corao exasperado. Avancei para ele re-pentinamente e bati-lhe na cabea com a enxada, vrias vezes. Ele caiu e o sangue jorrou da sua fronte ferida, o sangue mau dos insultos que me atirou. Pus-me a gri-tar, desesperada, estarrecida diante do que fizera, sem saber ao certo por que o fizera, e sa correndo. Mas, j entravam muitas pessoas no cemitrio, atradas pelos meus gritos. Chegavam a 'mamienka', o 'batiuchka', Illia, Yakov, os vizinhos, e outra vez o 'pope' e mais dois 'mujiks', que eu no conhecia, nem sequer sabia os seus nomes. Quiseram pegar-me, mas eu corria deles por en-tre as sepulturas e me livrava. O que todos eles queriam era a desgraa de Theodor Theodorovitch e a minha des-graa. E somente conseguiram apanhar-me porque tro-pecei num monto de pedras e me despenhei no cho,

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    estatelada. Amarraram-me, ento, novamente, com as mesmas cordas, e puseram-me numa calea fechada. Os 'mujiks', dois homens fortes e fedorentos, iam dentro comigo, vigiando-me no sei por qu, pois eu continua-va amarrada com as cordas e nada poderia tentar con-tra eles ou contra ningum. Mas, o 'batiuchka' seguia montado no cavalo baio, acompanhando a calea. Illia e Yakov iam nas mulas deles e o 'pope' na bolia, com o cocheiro. muito humilde e servial o nosso 'pope', no tem orgulho nenhum, sujeita-se a tudo para os servios de Deus, que so os servios da Caridade. De vez em quando o 'batiuchka' chegava a cabea janelinha da calea, olhava para dentro e gritava para os dois 'mujiks', chorando:

    - Como est ela agora, sossegou? No lhe faam mal, paizinhos, pelas sete chagas de Cristo, eu lhes peo!1

    E eu via que ele chorava muito. Falava chorando.

    Viajei durante muitas horas, no sei para onde, pois eu estava deitada no cho da calea, em cima de uns cobertores velhos. E, finalmente, cheguei aqui, nesta horrvel casa. Pelos modos, isto aqui um hosp-cio, pois pensam todos que estou louca. Mas, Aglaida Petrovna, minha amiga, juro-te pelo amor do meu Theodor Theodorovitch que no estou louca. Tudo quanto aqui relato a expresso da verdade. O que se passa que me aflijo com a desgraa que contemplo: Theodor est vivo, chama-me, fala-me, pede-me socorro, eu vejo-o, entendo-o, ele sofre, est alucinado, morto e vivo ao mesmo tempo, sepultado e no sepultado, mas no posso socorr-lo, no sei mesmo o que fazer, aqui

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    As chagas das mos, dos ps, dos joelhos e do lado.

  • SUBLIMAO

    internada, fechada nesta cela, ouvindo ainda e sempre as suas impressionantes splicas:

    - Salva-me, Ktia Andreevna, mezinha querida! Eles julgaram-me morto, sepultaram-me, mas eu estou vivo e no posso despegar-me do 'outro eu mesmo', que est debaixo da terra...

    Tu, porm, Aglaida, que s esposa de um sbio, que tanto entendes os loucos e conheces os mistrios da vida e da morte; tu, que s boa e compassiva, e to bem sa-bes falar com os verdadeiros loucos (eu no sou louca) e amans-los, faze algo por mim, que estou sofrendo, e por Theodor Theodorovitch, que sofre ainda mais. Par-ticipa s autoridades policiais que me constrangem a viver num hospcio sem que eu seja louca. Vai ao cemi-trio, leva a minha enxada e a minha picareta e liberta o esposo que Deus me quer dar da bruxaria que fizeram para ele. Faze-o, Aglaida Petrovna, eu to suplico pelo amor do Filho de Deus, que morreu por ns. E aceita as bnos agradecidas do corao da tua amiga

    Ktia Andreevna (Katienka)"

    Trs semanas depois, Katienka recebia a resposta dessa carta. A mesma servial amiga, do hospital, com-padecida com a histria da pobre jovem, que perdera o noivo num acidente de caada ao urso, mas supunha-o enterrado vivo, expedira a primeira carta destinatria e agora prestava-se de intermediria para a resposta. E Katienka, tomando a carta das mos da servial, leu o seguinte:

    - "Minha querida Ktia Andreevna:

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  • YVONNE A. PEREIRA

    A alma humana imortal, minha amiga, e por isso o teu Theodor Theodorovitch continuar a viver a vida sublime do Esprito, sem jamais se aniquilar na absor-o do nada. Seu corpo de argila, clcio, ferro, hidrog-nio, etc, esse sim, retornou ao seio da terra, de onde se derivou. O que se passa, Katienka Andreevna, minha amiga, e que tanto te confunde e desorienta, que nem sempre a alma das criaturas est preparada para a cho-cante renovao que a morte do corpo de argila a ela impe, e por isso se detm na perplexidade em que o santo esposo que Deus te queria dar se deteve. Ele era um homem do mundo, rude capito de cavalaria cossa-ca, materialista, esquecido das coisas de Deus, sem aspiraes divinas, sem f nem caridade, e morreu vio-lentamente, fatos que perturbam profundamente uma alma aps o seu escapamento do corpo de argila, tor-nando-a atordoada, sem reconhecer onde e como se encontra. Mas, isso uma crise passageira na histria de uma alma que regressa imortalidade, minha amiga, crise que a sucesso dos dias corrigir e que a prpria realidade do fato explicar ao recm-falecido. Possuo, com efeito, aquele 'dom espiritual' de falar com a alma dos que j morreram e me entender amistosamente com elas, dom do qual os 'Atos dos Apstolos' do notcias, e consegui falar mui serenamente com a alma do teu Theodor Theodorovitch.

    Ao receber tua carta, visitei o seu prprio tmulo, conforme sugeriste. Mas, em vez de usar uma enxada e uma picareta, a fim de socorr-lo, libertei-o da incom-preenso em que se asfixiava, com oraes a Deus em sua inteno, falando-lhe, outrossim, de corao franco e amoroso sobre o que se passava em torno dele. Disse-lhe que, sim, morrera o seu corpo de barro e limo, mas

    a alma no morrera porque imortal, e apenas se sen-

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  • SUBLIMAO

    tia mental e sugestivamente presa a esse corpo a que se habituara durante a existncia, mantendo-se confusa num perodo de transio, fato natural no decurso do importante acontecimento. Que, ao contrrio do que ele supunha, em vez de jungido ao ftido de uma sepultura, ele poderia, agora, evoluir em aquisies superiores, sin-grar os espaos e percorrer o infinito, porque j liberto das cadeias de um aprisionamento carnal, bastando, para tanto, renovaes mentais em si prprio e tambm reeducao do sentimento, afinando-o antes com o dia-paso do respeito a Deus e no continuando submerso na treva de preconceitos prejudiciais. Theodor refletiu sobre minhas exposies, compreendeu os fatos, que antes lhe sabiam a bruxaria, despertou do pesadelo da mente aparvalhada pelo trauma da morte violenta, li-bertou-se da perplexidade, aceitou o acontecimento da sua morte corporal inesperada, resignando-se ao inevi-tvel, aceitou, outrossim, o ingresso no mundo dos Espritos - nossa verdadeira ptria -, riu-se da prpria ignorncia e acabou por se confessar encantado com a certeza, que agora tem, de que possui individualidade imortal como o prprio Esprito Divino.1

    Quanto a ti, Ktia, minha amiga, ser bom que sai-bas que tambm possuis o 'dom espiritual' de ver os mortos e com eles falar, embora o ignorasses at agora, dom que, no se encontrando ainda devidamente estu-dado e cultivado na tua personalidade, desvia-se para certas anomalias incomodativas, chocando-te, nas pre-

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    1 Para se doutrinar um Esprito desencarnado certamente no ser necessrio

    visitar o seu tmulo. Compreende-se que se trata, aqui, de expresso literria

    para embelezamento da pea. No obstante, muitos desencarnados rondam os

    prprios despojos carnais por perodos variveis, enquanto se poder falar aos mesmos em quaisquer recintos. (Nota da mdium.)

  • YVONNE A. PEREIRA

    sentes condies, ao explodir das capacidades da tua natureza psquica, sob o imperativo de uma impresso forte. Mas, tambm essa crise passageira e depressa te reerguers da anormalidade que sofres no momento, pois Theodor Theodorovitch, encaminhado para a situa-o normal da existncia espiritual, no mais te pertur-bar com seus clamores e, futuramente, at poder au-xiliar-te a ser feliz no decurso da vida...

    Procura, porm, repousar para te acalmares, s passiva ao tratamento mdico, pois teu sistema de vibraes nervosas foi abalado e necessitas desse trata-mento. E, acima de tudo, volta-te para Deus atravs da orao humilde e confiante, recomendando-lhe a alma do teu noivo que, como muito bem lembrou o coveiro a quem agrediste, necessita de votos compassivos e bn-os de amor para se desvencilhar das lembranas dos maus hbitos adquiridos no estado humano, e poder elevar-se na conquista da Vida Eterna. Resigna-te ao imperativo da lei da Criao, pois no s a nica pessoa neste mundo a ver morrer um ser amado, certa, porm, de que a morte realmente no existe em parte alguma, que tudo se transforma e evolui na ressurreio sempi-terna, marchando sempre para a glria dos milnios... e dia vir em que reencontrars o teu Theodor Theodoro-vitch e envolver-te-s no seu amor, se no na presente vida ao menos em outras que o Eterno vos conceder, a ambos, por acrscimo de misericrdia, pois o ser huma-no deve ser digno e herico diante dos fatos amargos da existncia, porquanto a revolta apangio dos fracos e desequilibrados de raciocnio e de carter.

    Ao deixares esse hospital - porque hs de deix-lo -, bendito refgio onde te refazes dos abalos nervosos derivados das infiltraes nocivas da mente perturbada

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  • SUBLIMAO

    de Theodor sobre a tua mente passiva, procura amar no-vamente, a um outro noivo que Deus te h de dar... por-que, minha querida Katienka Andreevna, o corao hu-mano, criado para evoluir at integrar-se no Corao Divino, foi destinado a desdobrar-se infinitamente, nas funes sublimes do Amor, e por isso jamais poder re-nunciar glria suprema de amar e ser amado...

    Tua do corao

    Aglaida Petrovna"

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  • AMOR IMORTAL

    LEO TOLSTOI

    - "Podem dois seres, que se conheceram e estima-ram, encontrar-se noutra existncia corporal e reco-nhecer-se?

    - Reconhecer-se, no. Podem, porm, sentir-se atra-dos um para o outro. E, freqentemente, diversa no a causa de ntimas ligaes fundadas em sincera afeio. Um do outro dois seres se aproximam devido a circunstncias aparentemente fortuitas, mas que na realidade resultam da atrao de dois Espritos, que se buscam reciprocamente por entre a multido."

    (O Livro dos Espritos, de Allan Kardec, Parte 2 a, cap. VIII. "Da volta do Esprito vida corporal", n2 386, 32 edio da FEB.)

    I

    O final desta histria, justamente poca em que me tornei obscuro figurante dela, foi pelo ano de 1920.1

    1 0 leitor compreender que a presente informao nada mais do que o estilo

  • YVONNE A. PEREIRA

    Havia terminado a chamada Grande Guerra em 1918 e a Europa, seno propriamente o mundo, ainda se encontrava atordoada pela violncia da tragdia que a ensangentara durante quatro anos. Eu vivia na Inglaterra por essa poca, tendo-me ali exilado, como muitos outros compatriotas meus, que a tempo com-preenderam as surpresas que adviriam para a Rssia com um estado de guerra.

    A doutora Natacha Anna Pavlovna, notvel mdica psicanalista, era outra exilada, voluntariamente, na Inglaterra, a qual, com o marido, tambm ilustre psic-logo analista, dava-se ao singular mister de pesquisar os planos supranormais da vida, ou seja, aprofundava-se nas pesquisas dos fatos autnticos de Alm-tmulo. Ela estudara em Londres, conquistara nada menos de trs diplomas de Universidade, e era considerada altamente capacitada pelos seus numerosos admiradores.

    Anna Pavlovna nada ignorava sobre os assuntos do outro mundo. Conhecia as investigaes do ilustre Pro-fessor Myers e do no menos ilustre Professor William Crookes; de Roberto Hare, do Coronel de Rochas, do Con-selheiro Aksakof, do astrnomo Zllner e do astrnomo Flammarion, e demais investigadores espiritistas que se esforavam por mostrar ao mundo que a alma humana sobrevive destruio do corpo, confirmando as alvssa-ras que a Frana legara ao mundo com as exposies filo-sficas do Professor Rivail sobre o mesmo assunto.1

    literrio em que o autor espiritual deste conto desejou escrev-lo. Leo Tolstoi nunca esteve exilado na Inglaterra e, pelo ano de 1920, j era desencarnado, pois faleceu em 1910. Trata-se, pois, de tcnica literria muito usada ao tempo

    do grande escritor. (Nota da mdium) 1 Hippolyte-Lon Denizard Rivail - Allan Kardec.

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  • SUBLIMAO

    Fui visit-la em certo dia do incio da primavera da-quele ano, ali pelas quatro horas da tarde, porque, pela manh, eu recebera um mimoso carto escrito por seu prprio punho, convidando-me a tomar o ch da tarde em sua companhia.

    Conduzido at o seu escritrio pela criada que me recebera, cumprimentei-a, ainda com o chapu na mo (a criada no mo tomara), indeciso se continuaria a segur-lo ou se o descansaria sobre a mesinha de prata que ficava ao lado da sua poltrona, fronteira secret-ria sempre carregada de livros e papis. Decidi-me, porm, e coloquei o chapu em uma, cadeira vizinha da minha. Em presena dessa bela mulher eu me perturba-va muito, humilhado diante da sua singular beleza de madona, e ainda mais contrafeito diante do seu talento de feio varonil, que parecia zombar da minha esperan-a de um dia ultrapass-lo.

    Pensando nisso, lembrei-me de que meu chapu fa-zia uma figura muito triste, descansado na cadeira on-de eu o colocara. Retirei-o, pois, e, sem atinar com o que fazer com ele, coloquei-o sobre outra cadeira.

    Ela sorriu, vendo-me corar atrapalhado com a inde-ciso do chapu, tomou-o de cima da cadeira e colocou-o sobre a dita mesinha de prata, o que me fez corar ainda mais, e, com voz macia, muito educada, disse:

    - Perdoe, Excelncia. que a nossa criada grave adoeceu e a substituta, uma escocesazinha tmida, ainda no aprendeu que deve tomar o chapu e a ben-gala dos nossos convidados para guard-los at que eles se retirem. Sente-se mais para perto, por favor...

    Sentei-me, acanhadamente, unindo os joelhos, por me parecer que seria mais respeitoso se o fizesse, tal co-

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  • YVONNE A. PEREIRA

    mo o faria uma menina no seu primeiro contacto com a sociedade, sem coragem para iniciar qualquer conversa-o, atordoado ao me reconhecer a ss, pela primeira vez, com essa bela Annutchka Pavlovna, de quem me sentia enamorado e a quem os mancebos da minha ida-de amavam pela sua espiritual beleza, sua graciosidade natural e o seu talento, no obstante os quarenta anos de idade que ela corajosamente confessava contar e a vigilncia de um marido que, apesar de tambm ilustre, amava-a com ternura, cioso dos seus encantos.

    - Recebi o seu recado, minha Senhora - falei, final-mente, perturbando-me com o som emocionado da mi-nha prpria voz e por isso tomando o chapu da mesi-nha de prata para rod-lo entre as mos -, e tenho a honra de atend-lo, considerando-me feliz por isso... - e entreguei-lhe um braado de rosas que trouxera e que esquecera de entregar, deixando-o sobre outra poltrona, ao entrar.

    - Mandei cham-lo, Sr. Conde - respondeu, aspi-rando as rosas -, porque obtive algo que talvez interes-se ao seu bom-gosto de colecionador de assuntos trans-cendentes, para anlise comparada com a vida real e conseqente literatura. Est em uso, presentemente, os homens ilustres se preocuparem com aparies supra-normais, mdiuns e demais fatos relacionados com a existncia alm da morte. E como Vossa Excelncia est iniciando sua carreira literria e esses assuntos so sen-sacionais, resolvi falar-lhe a respeito, oferecendo-lhe, assim, um tema de alta categoria.

    - Mas, eu no sou um homem ilustre, minha Se-nhora, e sim modesto observador, escritor a procura de originalidades, tentando vencer... - atalhei, mostrando desinteresse. Mas, ela no respondeu e continuou:

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  • SUBLIMAO

    - Sim, as almas do outro mundo e seus assuntos esto em moda... Sabe quem morreu, Conde Filipe Fili-povitch? - prosseguiu em tom abrupto, sem esperar a minha resposta, que, alis, no poderia ser manifestada, porque eu no sabia de quem ela desejava tratar. - Sabe quem morreu? Foi Vrvara Dimitrievna, aquela nossa compatriota exilada no Brasil, a excelente pesquisado-ra do psiquismo, que Vossa Excelncia tanto admirava atravs do noticirio das nossas revistas psquicas, e cuja dedicao ao prprio ideal foi algo de respeitvel e encantador...

    Nada respondi, limitando-me a fit-la com surpresa e emitir um "Ah!" piedoso, enquanto a bela interlocuto-ra prosseguia sempre:

    - Morreu no Brasil mesmo, onde se aclimatara ha-via muitos anos. Um ms, mais ou menos, antes da sua morte, recebi esta correspondncia dela, e ontem chegou-me s mos uma carta de um seu amigo brasi-leiro, comunicando-me o seu passamento. Como sabe, Vrvara Dimitrievna e eu nos correspondamos desde muito, dado que eu tambm me dedico ao psiquismo e colaboro, sobre o assunto, nos mesmos jornais onde ela colaborava. Isto aqui - e mostrou-me um envelope gran-de, volumoso -, isto aqui recende a mistrio e espiritua-lismo, angelitude e sublimao. Afiano, Conde Filipe Filipovitch, que raramente nos deparamos com motivo mais pattico e apaixonante. Sei que Vossa Excelncia escritor e pretende escrever sobre anlise transcenden-te, que venha revigorar a confiana dos leitores na imor-talidade da alma, e por isso confio-lhe a ltima carta que Vrvara Dimitrievna me escreveu, acompanhada do relatrio de um fato singular por ela mesma vivido. Leia--os por entre os perfumes dos lilaseiros do seu jardim, e

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  • YVONNE A. PEREIRA

    o encanto que se evolar destas pginas ainda ser mais grato ao seu corao. O que aqui se encontra bem mere-ce a reverncia dos nossos coraes, visto ser o brado de uma alma de crente que soube bem amar a grandeza do prprio ideal...

    Tomei do envelope, que me trouxe ao olfato o fugi-dio perfume de rosas secas, e guardei-o no bolso interior do meu casaco. Anna Pavlovna ofereceu-me uma chve-na de ch quente com mel e torradinhas amanteigadas, que tomei, ruborizando-me a cada instante, ao ouvir o prosaico rumor que os meus prprios dentes faziam ao triturar as torradinhas, enquanto pensava, confuso e atordoado:

    - O que no compreendo como uma mulher, to galante e espiritual como esta Pavlovna, oferece torradi-nhas engorduradas aos mancebos que lhe fazem a corte com o corao cheio de sonhos e anseios romnticos...

    Em chegando a minha casa, fiel s insinuaes da minha beldade de quarenta primaveras (eu contava vin-te e cinco), instalei-me junto s ramadas dos lilaseiros, que espalhavam pelo ar os seus primeiros perfumes. A primavera entrara, e ali, protegido pelo ar fresco da tar-de, abri o envelope e li o que se segue, enquanto o cora-o se me dilatava em emoes a cada pgina percorri-da, aturdido ante o ineditismo que se apresentava ao meu exame de pretendente a escritor do psiquismo:

    - "Minha dedicada amiga

    Doutora Natacha Anna Pavlovna:

    Em vossa ltima carta vs me pedistes, minha ami-ga, para descrever algo original ocorrido em minha vida, que sirva para as observaes a que vos dedicais como

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  • SUBLIMAO

    psiquista e analista que sois, ao mesmo tempo prev-nindo-me de que, seja o que for que eu descreva, apro-veitareis na redao de uma pgina ltero-espiritista para estudo e meditao dos tcnicos em assuntos su-pranormais. Esse assunto tem sido muito discutido e apreciado ultimamente, no h negar, e no duvido de que a pgina que desejais ver escrita com o tema por mim ventilado venha a obter sucesso. Narrar-vos-ei, por-tanto, um dos acontecimentos mais singulares da minha prpria existncia frtil em acontecimentos singulares de feio medinica-esprita, fato real, onde o romance no interfere seno em parcela diminuta, e apenas para que o que escreverdes, ou mandardes escrever, no ve-nha a sombrear-se pela insipidez do relatrio restrito. De outro modo, ser bom que eu no guarde s para mim uma revelao que no deixa de conter ensinamen-to e beleza e que, por isso mesmo, poder edificar ou-tros coraes ansiosos por desvendarem os rastilhos da vida alm da morte. A segue, pois, o que pedistes na vossa to atenciosa missiva do ms passado."

    Emoo inslita fez-me interromper a leitura. Eu, com efeito, apesar de no conhecer Vrvara Dimitrievna pessoalmente, admirava-a profundamente pela sua im-portante obra medianmica, de que tinha notcias, e pelo esprito de dedicao ao prprio ideal, de que ela sempre dera provas. Amava-a mesmo, com um certo sentimen-to, misto de venerao, respeito e encantamento, como geralmente se mostra o sentimento inspirado pelos in-trpretes do mundo espiritual. As mos, pois, se me es-friaram, premidas pela emoo, o corao se me precipi-tou dentro do peito e uma sensao de desconfiana e angstia ameaou obnubilar as boas disposies mo-rais em que me reconhecia. Acendi um cigarro e fumei-o, pensativo, enquanto ao meu redor os lilaseiros do jar-

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  • YVONNE A. PEREIRA

    dim continuavam a dulcificar o ar com seus perfumes, e a figura estranha, quase enigmtica, de Vrvara Dimi-trievna surgia em meu pensamento com seus olhos cer-tamente profundos, velados de incompreensvel tristeza, aps o que, virando a pgina do caderno, que descansa-va sobre meus joelhos, li a estranha narrativa que se segue.

    II

    RELATRIO DE VRVARA DIMITRIEVNA

    DOUTORA NATACHA ANNA PAVLOVNA

    - "No obstante me haverem educado em princpios catlicos da Igreja Ortodoxa, sempre fui dedicada s ob-servaes de natureza supranormal, pois desde muito cedo, pelos meus cinco anos de idade, fui testemunha da existncia das almas dos mortos ao nosso redor, como se continuassem a viver sobre a Terra.

    Deixei o colgio aos dezesseis anos de idade. Creio mesmo que fui expulsa do Convento onde fazia a minha educao porque sofria vises constantes, conversava com individualidades do outro mundo, previa aconteci-mentos com dois e mais dias de antecedncia, pois os meus amigos invisveis mos revelavam para que eu con-fiasse na sua lealdade ao se verificar o acontecimento por eles predito, e at cheguei mesmo a adivinhar peque-nos segredos das minhas colegas e - coisa inacreditvel! - tambm das boas freiras, nossas educadoras. Toda a comunidade considerava-me demente, anormal, ende-moninhada, comparsa de bruxedos, embora eu desse freqentes provas de sensatez e inteligncia, e fosse atenta aos deveres escolares, obtendo sempre excelentes

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  • SUBLIMAO

    notas nas lies mais difceis. Mas, por assim me consi-derarem, davam-me castigos e penitncias humilhantes, a ttulo de me ajudarem a resistir s investidas dos supostos demnios que me perturbavam. Eu me subme-tia, ento, humilde e passiva, quela tirania religiosa, sacrificando-me na capela das penitentes at altas horas da noite, alumiada por apenas duas velas colocadas no altar, ajoelhada e com a fronte encostada nas lajes frias, mas bem certa de que os fantasmas que eu via e com os quais conversava no podiam ser demnios porque eram as almas queridas de minha me, que eu sabia ter sido bondosa e amvel como uma santa; do meu pai, que fora to amigo da famlia e morrera abenoando at os pr-prios inimigos; de minhas tias Agfia e Lisa, que auxilia-ram a minha criao como se fossem outras tantas mes; do velho Mathew Nikolaievitch, amigo de infncia do meu pai... e de um outro fantasma que se apresenta-va com a caracterstica de um jovem de cerca de trinta anos de idade. A esse, porm, eu no conhecia, ou pelo menos supunha no conhecer, considerando-o estra-nho, embora me confessasse, a mim mesma, vivamente sensibilizada pelas atenes que afetuosamente me demonstrava. Dizia-me ele, por exemplo, murmurando docemente aos meus ouvidos, que me amara em outras vidas pregressas (ns, os filhos de Deus, nascemos e renascemos muitas vezes, na Terra como em outras pla-gas siderais, embora tal notcia irrite aqueles que no tm em paz a conscincia), que me amara em outras vidas, que fora mesmo ligado a mim pelos laos do matrimnio, mas que eu perjurara nosso compromisso de amor e fidelidade e tal delito, de minha parte, e o desespero dele prprio, da resultante, que o arrastara ao desnimo e ao suicdio, ocasionaram um drama dolo-roso em nossos destinos, drama cujas conseqncias se achavam ainda em plena efervescncia de dores, no

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  • YVONNE A . PEREIRA

    obstante mais de um sculo j houvesse passado sobre o dia trgico do nosso desastre; que eu me refugiara em nova encarnao, na esperana de me reabilitar atravs da dor de um resgate, mas que ele preferia permanecer no estado de fantasma alado a fim de se fortalecer me-lhor para as futuras reparaes, prprias do suicdio, em reencarnaes porvindouras, e assim, desencarna-do, seguir meus passos como que para velar pelo meu soerguimento moral, pois me amava ainda e sempre, profundamente, perdoara de bom grado a ofensa por mim infligida sua dignidade pessoal, em vista do meu arrependimento, ao qual considerava sincero, e espera-va poder unir-se para sempre a mim, pelos sculos futuros. Dizia chamar-se Yvan Yvanovitch1 e ter sido mdico nos confins da Rssia, pelos fins do sculo XVIII.

    Apesar de se tratar de um fantasma-homem e no propriamente de um homem, tais revelaes afligiam-me muito. Sentia-me realmente culpada, a conscincia acusava-me, com efeito, do citado delito, e nos refolhos sagrados da minha alma eu prometia a mim mesma uma vida de labores dedicados ao amor de Deus e do prximo, como testemunho do meu desejo de reabilita-o consciencial e arrependimento pelo mal praticado um sculo antes.

    Ao confessionrio eu narrava, em prantos, since-ramente comovida, todos esses fatos singulares ao "startsi"2 que, em pessoa, nos confessava todas as sema-nas, dele esperando bons conselhos e consolo ao meu desgosto por haver errado em encarnao remota. Mas,

    1 Ainda hoje desatencioso, na Rssia, tratar a pessoa s pelo prenome. 2 Ttulo respeitoso conferido a velhos monges do antigo clero ortodoxo russo,

    dedicados especialmente aos servios do confessionrio.

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  • SUBLIMAO

    em vez de me aconselhar e consolar, o "startsi" tambm no me absolvia do pecado, impedindo-me, portanto, a comunho, e respondia que eu no passava de uma enferma, doente mental, histrica, que necessitava cor-rees drsticas, a par dos jejuns e das penitncias; que o diabo era que se manifestava assim, a mim, tomando aparncias de um galanteador romntico, a fim de me seduzir melhor para o reino das trevas... Ento, era quando me obrigavam a passar dias e noites nas lajes frias da capela, curvada e de mos postas, a repetir mesuras para o altar, o que me valia dores intensas nos rins, nos joelhos e na cabea. Ningum, ao demais, se aproximava de mim ou me dirigia a palavra. Durante as aulas, eu havia de me sentar parte, num canto do salo, oculta das demais alunas por um pequeno biom-bo. Se me encontravam pelos corredores, minhas cole-gas, dantes to gentis, viravam-se nos calcanhares, com um gritinho de susto, e fugiam espavoridas, enquanto as freiras, se no fugiam ao me encontrarem, persignavam--se, proferindo oraes a meia voz. Eu dormia s, em cela afastada de um corredor isolado, fechada a chave pelo lado de fora, quando no ficava toda a noite na capela, igualmente sozinha, cumprindo penitncias impostas pelo confessor. Muitas vezes, exausta pelo cansao e os jejuns freqentes, eu desfalecia, caindo nas lajes da capela, e ali dormia profundamente, apesar do frio que me torturava, para na manh seguinte ser considerada penitente relapsa no cumprimento do dever e renovar os mesmos suplcios e castigos.

    Chamaram, no entanto, o mdico.

    O bom homem, depois de auscultar o peito, as cos-tas, apertar vrias regies do meu corpo e observar os olhos, a lngua, a garganta (ele fez-me escancarar a boca com o cabo de uma colher), as palmas das mos e os

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  • YVONNE A. PEREIRA

    dedos e os joelhos, dando pancadinhas neles e fazndo--me perguntas to indiscretas que eu no compreendo como um homem usa tais indelicadezas para com uma donzela, o mdico voltou-se para a freira vigilante, que presenciava o exame lendo no seu brevirio, e concluiu:

    - Esta menina no est doente, perfeitamente normal.

    Finalmente, a direo do internato, no suportando mais to ingrato estado de coisas, fez um correio ao meu tutor, explicando os acontecimentos: afirmava que eu inventava intrujices para no estudar; que sobressalta-va a comunidade com narrativas diablicas; que era pre-guiosa e no me queria instruir, desculpando a pregui-a com supostas vises, para me furtar s aulas e ir pa-ra a capela fingir penitncias, e rematava com a splica para que ele me levasse dali, porque eu me tornara odio-sa comunidade, todos me execravam e temiam devido s anormalidades que me caracterizavam, e, no sendo possvel a minha educao em condies tais, rogava o favor de me retirar da instituio, quanto antes.

    E assim foi que cheguei a So Petersburgo. no dia 10 de maio de 1880, instalando-me na aprazvel residn-cia do meu tutor, localizada num extremo da ilha de Kriestrovsky1. Ele era vivo, dado s experimentaes dos fenmenos espritas, ento muito em voga por toda parte, contava setenta anos de idade, e to meu amigo como mais no poderia ser o meu prprio pai, respei-tando-me e admirando-me exatamente em razo das manifestaes supranormais que se verificavam comigo.

    O bom homem chamava-se Stanislaw Pietrovitch.

    1 Uma das ilhas do delta do Nieva, em So Petersburgo.

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  • SUBLIMAO

    III

    Senti-me renovar ento, e minha vida comeou a transformar-se gradativamente, arrastando-me para uma plenitude de aes contornadas por acontecimen-tos psquicos, ou supranormais, que duram ainda hoje, quando j a velhice bate s portas da minha existncia, coroando de nvoas a minha cabeleira outrora loura e acetinada como os raios do sol de junho. Conclu facil-mente os meus estudos e tornei-me professora, sem, contudo, jamais perder ensejos para continuar instruindo-me.

    O Sr. Stanislaw Pietrovitch possua uma biblioteca de obras que tratavam do assunto da minha preferncia, obras que levantavam a magna questo desde os tempos remotos, ou seja, a questo do intercmbio entre ho-mens e Espritos e dos renascimentos da alma humana em novos corpos, ou reencarnao. Pus-me a estud-las com ateno, sem ser molestada. Meu intercmbio men-tal com as almas dos finados to amados continuou, porventura com maior intensidade, agora que o cultivo da mente e do corao, provocado pelo estudo, predis-punha minhas foras psquicas de tal forma que passei a achar muito natural aquele convvio sobre-humano, habituando-me a ele.

    O querido fantasma Yvan Yvanovitch, por sua vez, mostrava-se satisfeito com a resoluo, por mim toma-da, de me dedicar ao culto do psiquismo e das obras de beneficncia a que ele impele, e no perdia ocasio de repetir, tornando-se compreensvel aos recessos do meu corao:

    - Sim, estuda, estuda a grande cincia da imortali-dade, alma querida! Habilita-te no culto a Deus em es-

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  • YVONNE A . PEREIRA

    prito e verdade, na prtica do amor ao prximo, no res-peito ao dever, moral e justia, na meditao sobre a filosofia e a cincia da vida, porque enriquecer os te-souros da tua alma com o conhecimento indispensvel ao levantamento das virtudes, que precisas desenvolver na tua personalidade. Foi assim que eu te quis ver ou-trora, em nossa passada vida terrena, mas resististe aos meus apelos...

    Ansiosa por agrad-lo agora, recompensando-o dos desgostos que lhe causara no passado, eu prosseguia estudando, cada vez com maior dedicao e esprito de observao e anlise, a cincia nova, que me empolgava. Fiz do Cristianismo primitivo, exemplificado por Jesus Nazareno, a minha devoo religiosa por excelncia, o padro luminoso de virtudes onde me deveria abastecer de energias para o labor da minha renovao moral, e tanto me apliquei a essa tarefa que me esquecia de que era jovem e bonita, que precisava pensar na preparao de um futuro social para mim prpria, que as leis natu-rais da existncia humana me requisitavam para desem-penhos prprios da Humanidade: o amor, o matrimnio, o lar constitudo, filhos... ou alegrias, prazeres, conquis-tas sociais. Esquecia-me, sentindo que algo superior a tudo isso chamava-me para um destino incomum, onde eu deveria permanecer atenta s vozes da Espirituali-dade, a fim de transmiti-las aos homens e assim suavi-zar seus dissabores, orientar suas vidas para alvos re-missores apontados pelas inspiraes do Bem.

    Igualmente muito dedicado ao cultivo da cincia espiritual, o velho Stanislaw Pietrovitch, meu tutor, deixava-me vontade com os desempenhos medini-cos, e de quando em vez estimulava-me, com sua bonomia paternal:

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  • SUBLIMAO

    - Estuda, mezinha, estuda e trabalha, aper-feioando os dons da tua alma, tal como vem aconse-lhando o teu amigo espiritual Yvan Yvanovitch. Esse nobre labor conduzir-te- s mais dignificantes finalida-des que ousarias esperar. Superior s conquistas do corao e da sociedade, se te dedicares prtica do que nele aprendes ters encontrado o verdadeiro mvel da vida e, portanto, os alicerces da paz da conscincia. s mdium de foras poderosas, o que significa que sers intrprete da vontade das almas defuntas que habitam o Alm; recebers suas ordenaes e, se constatares que so razoveis, coincidindo com o critrio dos estudos que fazes, agirs confiantemente sob sua direo e, ento, horizontes novos descortinar-se-o para o exerc-cio de operosidades humanitrias: aqui, uma pobre me chorosa ser reanimada para os compromissos da exis-tncia, que havia menosprezado, porque o filho prantea-do provou a prpria sobrevivncia, enviando-lhe uma carta que escreveu valendo-se das foras supranormais que tu lhe emprestaste para o fim piedoso; alm, a espo-sa desolada consolars, escrevendo cartas de amor do defunto companheiro, cuja individualidade espiritual igualmente se servir da tua mo para a ela se dirigir; acol, fornecers energias fsicas para que o amigo se extasie ante o fantasma humanizado do amigo suposta-mente morto desde muitos anos, enquanto, realizando tudo isso, participars humanidade que a alma imor-tal, que um mundo novo se descerra para nossas almas, quando nos supem vencidos pelo tempo sob o peso de um tmulo, e que, portanto, teus compromissos para com as leis de Deus e para com a Humanidade so gran-des e sagrados. No s do mundo, minha cara Vrvara Dimitrievna, no sers do mundo nem para os dias futuros. Prepara-te, pois, para as tarefas que te dizem respeito, ou seja, para as tarefas do Esprito.

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  • YVONNE A. PEREIRA

    Eu no assimilava muito bem o que o meu tutor queria dizer com tais sermes. O fato de me comunicar com as almas do outro mundo parecia-me to natural que, para mim, tocava a banalidade. No me empolga-vam os dons espirituais que me eram prprios, no me envaidecia o fato de possu-los, no me surpreendiam as vitrias que eu prpria contemplava sobre a morte. Tudo isso era-me perfeitamente natural, comum, destitudo de sublimao, e por isso, s vezes, enfadava-me ouvir os ditos sermes, por mim considerados frutos do fana-tismo do meu tutor, quando, em verdade, tratava-se de advertncias assaz prudentes, para me chamarem ao senso da responsabilidade. Mas, ia-me habituando quela vida dedicada ao estudo e s observaes trans-cendentais, sem me aperceber de que o tempo passava e rigorosa iniciao filosfica, cientfica e moral-religiosa processava-se em mim. O inverno encontrava-me sem-pre nesse suave desprendimento, eu j ultrapassara os vinte anos de idade e nem me seduziam os bailes, os saraus, os teatros, os jantares, as ceias e os chs, to comuns em So Petersburgo durante essa estao do ano. E, quando a primavera voltava e os lilaseiros do jar-dim novamente se vestiam de galhos floridos e perfuma-dos, aprazia-me escrever e meditar sobre assuntos espi-rituais num ou noutro banco que lhes ficassem prximo, enquanto os passarinhos algazarravam por entre as frondes renovadas dos arvoredos.

    IV

    Protegidas pela minha dedicao ao estudo e a abstrao das coisas deste mundo, que voluntariamente eu me impusera, minhas faculdades supranormais ma-nifestadas, de algum modo, na infncia, agora progre-diam facilmente, adquirindo elasticidade e valores con-

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  • SUBLIMAO

    siderveis, permitindo-me, ento, a realizao de expe-rincias importantes, as quais jamais deixaram de con-firmar a veracidade do fenmeno de intercmbio com o Alm e os bons frutos de um trabalho todo dedicado ao bem. Por sua vez, as almas queridas de minha me, de meu pai, dos muitos amigos que desde tempos anterio-res comearam a testemunhar-me amor e proteo e, acima de todas, a alma bem-amada de Yvan Yvanovitch, repetiam minha audio espiritual, em cantilenas pro-tetoras, propiciando situao condigna para a minha qualidade de intermediria entre dois mundos, ou escre-viam instrues por minha prpria mo, em inesquec-veis momentos de confabulaes epistolares:

    - "Para bem servir Cincia Divina como intrpre-te das esferas espirituais, muita coragem, muita dedica-o ao bem sero necessrias, muita pacincia e muito amor. No julgues que o dom de falar com os mortos seja propriedade humana, que a teu bel-prazer dirigirs. No! O dom que possuis fora celeste especial, que Deus concedeu aos antigos perjuros do dever, para ajud-los a se reerguerem do oprbrio de graves delin-qncias pretritas. Servirs, pois, a Deus e ao prximo com ele, enquanto no seu exerccio te reabilitars do passado pecaminoso para uma vida nova, inspirada no amor e na justia, razo pela qual devers respeitar e amar esse dom."

    E acrescentava, amoroso e servial, o doce compa-nheiro dos meus destinos passados:

    - "Fui mdico na Terra, minha Varienka, antes de atingir o presente estado espiritual, e por isso continuo mdico no Alm. S passiva aos meus desejos e prome-to auxiliar tua reabilitao consciencial, praticando a

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  • YVONNE A. PEREIRA

    medicina atravs dos teus dons medinicos e, assim, servindo aos deserdados dos bens terrenos, tambm tes-temunhando ao mundo a grandiosidade das leis eternas no empolgante fenmeno de uma menina, frgil e inex-periente como a minha Varienka, absolutamente desco-nhecedora da cincia mdica, a curar doentes cujos dis-trbios desafiaram as possibilidades humanas! Assim, submetida a mim, tu me auxiliars como eu a ti, pois necessito desdobrar-me em trabalho intenso dos cam-pos da beneficncia, seja no mundo invisvel ou na sociedade terrena, para, por minha vez, me reequilibrar do erro de me ter desarmonizado com a lei da Criao: matei-me, a mim prprio, desgracei-me por teu amor, quando o desespero de perder-te, na dor de um perjrio, tirou-me o senso da razo para me precipitar num abis-mo consciencial do qual penosamente me liberto. Ajudemo-nos, pois, mutuamente, j que juntos tambm erramos no passado..."

    E assim foi que curei enfermos, no com a aposio das mos, como outrora os antigos seguidores do Divino Mestre, mas obtendo receitas mdicas sob o impulso vi-bratrio da inteligncia de Yvan Yvanovitch, que fora mdico e agora acorria ao meu chamamento para socor-rer enfermos por meu intermdio; ensinei filosofia es-prita e cincias transcendentes, ao meu alcance, aos sedentos de conhecimentos e progresso espiritual; con-solei os tristes e sofredores com o po e o agasalho do corpo, que arrecadava entre os coraes piedosos para distribuir com os que nada possuam, e, com as brandu-ras do amor fraterno, que incidiam do Alm sobre a minha alma, visitei antros de dor, tentando suavizar situaes vexatrias: tugrios, hospitais, isbas miser-veis, onde coraes desesperanados pela rudeza do infortnio sofriam a vergonha da indiferena da socieda-

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  • SUBLIMAO

    de, que os esquecia, e reanimei a todos com a ajuda ao corpo e as alvssaras recebidas do Alm, que a mim pr-pria emprestavam foras novas, tentando reconcili-los com Deus e consigo prprios.1

    A noite, o doce amigo espiritual aparecia-me em so-nhos, para repetir:

    - "Prossegue, minha Varienka, prossegue... Tens a ventura de realizar tua reabilitao sob o patrocnio das consoladoras inspiraes celestes. S fiel aos princpios generosos da Doutrina de Amor que te redime do pecado cometido ontem... E, mais tarde... Sim, mais tarde, aps as duras lides do dever bem cumprido, novas auroras ho de renovar nossa caminhada para Deus, unindo-nos novamente com os indissolveis laos do Amor..."

    No fim de alguns poucos anos meu amor pelo fan-tasma protetor crescera na intensidade e no respeito, transformando-se em imortal venerao. Habituei-me sua companhia, era ele o companheiro das minhas lides medinicas, companheiro dos meus sonhos, dos estu-dos e das meditaes a que me obrigava, e, mais do que nunca, senti-me ligada a ele pelos laos do passado reencarnatrio. Amei-o profundamente, desdobrei-me amorosamente a benefcio do meu prximo, pensando reabilitar-me do mau passado que vivera, e minha preo-cupao maior era conduzir-me de forma que, ao findar a existncia, eu pudesse ouvir, no recesso da minha conscincia, o eco daquelas tocantes palavras do Nazareno mulher submissa e chorosa a seus ps:

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    1 A presente enumerao da beneficncia realizada por espritas o caractersti-

    co da Codificao do Espiritismo. Na Rssia, havia traduo das obras de Allan

    Kardec, desde o incio do Espiritismo, feita pelo sbio Alexandre Aksakof.

    (Nota da mdium.)

  • YVONNE A. PEREIRA

    - "Perdoados so os teus pecados, porque muito amaste."

    V

    Certa noite, eu pedira ao fantasma Yvan Yvanovitch que indicasse tratamento medicinal para uma criana enferma, a quem os mdicos acabavam de desenganar. No decorrer de seis anos de dedicao medinica, assis-tida por ele, eu observara que o querido amigo amava as crianas e que seu tratamento mdico era porventura mais eficiente para elas que para os prprios adultos. Havia vrios pedidos de consultas e durante cerca de duas horas o celeste mistrio verificou-se ainda uma vez, no recinto sereno onde eu me confiava ao exerccio medinico: o ser espiritual de um mdico que vivera na Terra transmitindo pela minha mo e o meu lpis, que eram leigos, como servindo-se de um aparelho telegrfi-co, o tratamento conveniente a um caso grave de enteri-te numa criana de poucos meses de idade; a outro ca-so, agora de congesto renal, em um adulto, e ainda ou-tro, de anemia e desequilbrio em mais outro adulto...

    Nessa noite, eu me encontrava ainda em nossa aprazvel residncia da ilha de Kriestrovsky, pois s mais tarde, depois da morte de Stanislaw Pietrovitch, foi que me transferi para a minha isba de Pargalovo1. Corria ento o ms de maro de 1886. A neve descia ainda com vigor dos espaos congelados, no obstante a promessa da primavera, e o fogo da lareira crepitava aquecendo--me na solido do gabinete em que me habituara a tra-balhar. E pequena lmpada a querosene permitia leve penumbra no recinto, apenas clareando o papel em que eu escrevia sob o impulso da fora espiritual. Findo o

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    1 Aldeia dos arredores de So Petersburgo, na estrada da Finlndia.

  • SUBLIMAO

    trabalho, agradeci ao fantasma Yvan Yvanovitch o favor prestado, em nome dos doentes beneficiados, apresentei meus votos de paz e prosperidades espirituais e encerrei a sesso, a que ele e eu somente co-participramos. Mas, o amado amigo no se retirava, permanecia a meu lado, pensativo, visvel minha vidncia, como se algo mais tivesse a dizer. Compreendi-o triste, talvez presa de angstia, a qual em mim prpria refletia com o travo de viva inquietao.

    - Que mais, bem-amado irmo e amigo? - perguntei.

    Mas, o silncio permanecia e, estranhando a atitu-de inslita, repeti:

    - Que mais, alma querida, meu irmozinho? Que su-cede? Desgostei-te, porventura? Incorri em nova falta? Perdoa e ajuda-me a repar-la, bem conheces a fragili-dade do meu carter...

    Eu o distinguia plenamente visvel minha faculda-de, de p, minha frente, a cabea baixa, como que de-sencorajado de se afastar. Por minha vez, eu temia fit-lo e, diante daquele fenmeno raro, que os insignes pes-

    quisadores do psiquismo, em toda a Europa, provoca-vam para conseguirem com parcimnia os frisos da rea-lidade, mas que a sublime fora do amor a mim conce-dia positiva e voluntariamente, eu jamais me comporta-va com displicencias. Quedava-me antes respeitosa e passiva, desencorajada de trat-lo como a um ser huma-no, no obstante os profundos laos de amor que nos uniam. Mas, subitamente, "falou" ele, expressou-se em linguagem espiritual, que vibrao, falou num murm-rio, s compreensvel a mim mesma, o qual retumbou em meu ser como irremedivel derrocada:

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  • YVONNE A. PEREIRA

    - Venho despedir-me de ti...

    De incio, julguei no compreender devidamente a irradiao mental que dessa forma se dirigia a mim e, atordoada, interroguei em voz alta, como se falasse a um ser humano:

    - Despedir-se de mim?...

    - Sim, venho despedir-me de ti... - confirmou.

    - Mas... Por qu? Teramos novamente infringido a respeitabilidade das leis de Deus? Essa despedida impli-ca um castigo, uma punio?

    - No, minha querida, descansa! Desta vez no de-sobedecemos a lei de Deus, no se trata de castigo... a reencarnao que me atrai com os seus poderosos im-pulsos, movidos pela lei do progresso... e devo ausentar--me a fim de prepar-la...'

    - No poderias dilatar um pouco mais essa realiza-o, at que eu retorne vida espiritual? Como ficarei sem ti, sem a tua proteo, nica verdadeira felicidade que possuo neste mundo?

    - No, no poderei. Lembra-te de que, perante os cdigos divinos, no passo de um revel, um delinqente que infligiu ultrajes ao dever, pois fui, ou sou, um suici-da que resgata a falta. No poderei avanar nas linhas do progresso sem que retorne Terra para cobrir o tem-po que me faltava viver com aquele corpo que volunta-riamente destru, o que quer dizer que, uma vez reencar-nado, terei vida breve e abandonarei, talvez, o corpo em plena mocidade, ou prosseguirei, aproveitando o ensejo

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    1 O Esprito candidato ao retorno Terra prepara a prpria reencarnao,

  • SUBLIMAO

    para novas realizaes. O prolongamento que sugeres j o fiz sob minha prpria responsabilidade, e o fiz por amor a ti, pois desde muito devera ter ingressado em novas formas humanas... Mas, agora, trata-se de um de-ver sagrado que deverei cumprir. Para ti, o meu afasta-mento da tua presente rota constituir provao tanto mais penosa quanto j te habituaste ao meu convvio, testemunhando-me agora, por uma dedicao sublima-da, a plenitude do amor que eu sempre desejei encontrar em teu corao, nos dias pretritos. Sofrers, assim, a angstia da minha ausncia, compreendendo, s agora, um sculo depois do nosso drama, a dor que eu mesmo sofri quando me abandonaste pelos ardores das paixes da mocidade. Para mim, essa separao ser a dor da saudade, da solido inconsolvel, que s no amor de Deus encontrar refrigrio. Mas, no te esquecerei, minha estrela, minha mezinha! Fui teu no passado, sou teu no presente e continuarei teu pelos laos do amor imortal, atravs das idades futuras... No nos encontraremos, porm, na presente jornada, estaremos em situao oposta, irremedivel, porque os testemu-nhos a que somos chamados no implicam nossa apro-ximao na vida carnal. Mas, atravs do sono de cada noite, minha alma, uma vez reencarnada, buscar a tua e continuaremos unidos pelo Esprito e pela atrao do pensamento apaixonado e saudoso... e mais tarde, quando possvel, provar-te-ei que nem a separao motivada por uma nova existncia me far deixar-te. Rogo-te que peas a Deus por mim e me concedas o con-solo da tua fidelidade ao meu amor. "Adeus!"

    A silhueta amada extinguiu-se lentamente, na pe-numbra sugestiva do aposento, e eu continuei ali, sen-

    auxiliado por seus Guias Espirituais, ou, na sua impossibilidade, seus Guias por

    ele. As vezes, esse preparo demorado.

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  • YVONNE A. PEREIRA

    tada, surpreendida, aniquilada como se acabasse de ver morrer em meus braos o ser que mais amei em minha vida, mas sem uma lgrima, aturdida pela decepo, os olhos dilatados e secos fitos nas chamas da lareira, sen-tindo repercutir ainda, nos refolhos do meu ser, a des-pedida humilde daquele que tanto me soubera amar atravs do tempo: "Adeus!"

    VI

    Dir-se-ia que o desaparecimento de Yvan Yvanovitch para a reencarnao assinalou fase nova em minha vida. Prolongada srie de desgostos, provaes e testemunhos abateu-se sobre mim, desafiando todos os meus esfor-os para remedi-la ou impedi-la. Stanislaw Pietrovitch morreu logo aps a despedida de Yvan Yvanovitch e, como eu j no tinha parentes que me pudessem socor-rer, vi-me na contingncia de viver somente acompanha-da por uma governanta, que me dirigia a casa. Entreguei aos herdeiros de Stanislaw Pietrovitch a bela residncia da ilha de Kriestrovsky e, como ainda possua uma isba de dois pavimentos, em Pargalovo, recolhi-me quela solido e prossegui com os meus deveres de criatura de Deus, cheia de responsabilidades. Felizmente para mim e os meus estudos e experincias espritas, pus-me a lecionar a alunos particulares e poderia contar ainda com algum recurso financeiro, restos da fortuna de meu pai, e por essa razo nunca me faltaram o lume para o inverno nem o po cotidiano. Se, porm, esses bens ma-teriais confortaram minha existncia fsica, as dores mo-rais, advindas do isolamento e do desamparo em que vivia, castigaram-me profundamente o corao. Voltei--me, ento, mais do que nunca, para os deveres impos-tos pela minha f esprita e me aprofundei nos labores da beneficncia social, tanto quanto permitiam as cir-

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  • SUBLIMAO

    cunstncias da minha vida. Mas, no me alongarei nes-sas particularidades, porque constrange-me enumerar as vezes que me foi possvel servir o prximo, como indi-cam as Escrituras Santas. Entretanto, acrescentarei que os anos se passavam, eu j atingira os trinta anos de idade e nunca mais tivera notcias do amado fantasma que fora o encantamento da minha infncia e da minha juventude. Havia dez anos que ele se fora da minha pre-sena e, nesse intervalo, no intuito de me distrair durante os rigorosos invernos de nossa ptria, enchen-do com algo til as minhas horas de lazer, to vazias, de-diquei-me ao estudo do Esperanto, idioma novo que sur-gira na Polnia, desde o ano de 1887, e cuja finalidade era estreitar as relaes de amizade entre povos e naes atravs do seu estudo e cultivo, pois bem certo que um dos grandes fatores das divergncias existentes entre os povos a impossibilidade de o homem aprender todas as lnguas para entender-se com os naturais das outras naes, tentando intercmbio amistoso1. Mas, uma vez aprendam os homens o citado idioma, o qual lhes permita intercmbio lingstico, estaria removida a dificuldade: a compreenso facultaria a fraternidade e povos longnquos passariam a querer-se como bons amigos. Esse idioma, que se diria inspirado pelas potn-cias espirituais ao seu criador, havia surgido, como disse, na Polnia, pelo gnio do doutor em medicina, Lzaro Lus Zamenhof - que tu bem conheceste -, e eu, informada das vantagens que sua aquisio proporcio-na, procurei aprend-lo, e o consegui com facilidade, cultivei-o com dedicao e respeito e o inscrevi no cora-o como um segundo motivo religioso, no obstante

    1 Leo Tolstoi era esperantista. Aprendeu a gramtica do Esperanto em duas

    horas, mas s se manifestou seis anos depois, o que deu grande impulso

    divulgao do mesmo. (Nota da mdium.)

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  • YVONNE A. PEREIRA

    tratar-se de um idioma leigo, absolutamente sem carter religioso.

    Mas, a existncia tornara-se difcil para mim em Pargalovo. Meus recursos financeiros diminuam a olhos vistos e bem depressa fui surpreendida pela necessida-de de me desfazer dos ltimos bens que possua e at da isba onde residia, a fim de solver dvidas e me livrar com dignidade da difcil situao em que me encontrava. Foi--me necessrio trabalhar melhor para viver e, como eu era professora, falando e escrevendo bem o francs, o ingls e o alemo, como todo russo de cultura normal, alm do Esperanto, com facilidade encontrei colocao em casa de uma famlia inglesa residente em So Petersburgo, cujo chefe era adido embaixada do seu pas na Rssia. To apreciados foram os meus mtodos de direo e ensino s crianas, e tanta habilidade encontraram no meu sistema de governo da casa que, ao regressar a famlia Inglaterra, fui convidada a seguir com ela e ficar definitivamente como preceptora dos pequenos e governanta vitalcia da nobre casa, pois, efe-tivamente, tratava-se de representantes da ilustre e tra-dicional nobreza inglesa.

    Parti, ento, para Londres, mas algum tempo depois vi-me na emergncia de novamente acompanhar meus amos, uma vez que seguiam para nova misso diplom-tica em terra estrangeira - dessa vez o Brasil, na remo-ta Amrica do Sul.

    E assim foi que passei a viver na longnqua ptria sul-americana, afastando-me tanto da Rssia e dela me desambientando de tal forma que, s vezes, contemplan-do as vigorosas paisagens brasileiras, cujo aspecto tan-to difere das paisagens russas, eu murmurava comigo mesma:

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  • SUBLIMAO

    - Dir-se-ia, Deus Pai, que existo agora em encarna-o nova: nasci, vivi e morri na Rssia, estagiei na Ingla-terra e depois renasci em novo corpo, no Brasil!

    Muitas vezes a dor de pungentes saudades torturou meu corao. Os cenrios da minha infncia: o solar pa-terno, o vulto amado dos meus pais, o jardim e o pomar da nossa herdade, a cidade pacata e aconchegante e at o convento, onde tanto me fizeram sofrer, apresentavam-se s miragens das minhas recordaes e as lgrimas

    afligiam-me, ao mesmo tempo que pressentimentos for-tes avisavam-me de que jamais me seria possvel regres-sar Rssia. Mas, minha doce crena esprita, infundin-do varonil coragem ao meu corao, predispunha-me conformidade: os amados amigos do Alm, acorrendo para relembrar ao meu raciocnio que o Esprito cida-do do Universo e que, portanto, vivendo em quaisquer latitudes do planeta estar sempre em sua ptria, eu serenava e dizia a mim mesma:

    - "Sei que vivo dias de provao, resgatando os ul-trajes lanados lei da vida por atos vis que pratiquei em existncias remotas..."

    E isso me consolava. De outro modo, o Brasil convi-nha singularmente s minhas necessidades de Esprito em trabalhos de reabilitao, em virtude da suavidade das leis que permitem liberdade plena para o cultivo das variadas convices religiosas, filosficas ou cientficas, o que seria difcil encontrar em minha terra natal. Com efeito, senti-me protegida pelas leis brasileiras e em seu clima fraterno continuei exercendo minhas foras su-pranormais em prol da verdade esprita e do meu prxi-mo carente de amparo e afeio.

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  • YVONNE A. PEREIRA

    Avida, pois, transcorria assim, para mim, entre tra-balhos, provaes e o amor dos meus semelhantes. No era m, porque me sentia consolada pelos encantos da verdade esprita, que me fortalecia e empolgava, mas tambm no se poderia consider-la feliz, porque a solido, advinda da falta de um lar que me reanimasse o corao, era pesada e irremedivel, e, alm de tudo isso, eu j me habituara a qualquer circunstncia adver-sa e a natureza da filosofia que me sustentava as con-vices trazia-me a certeza do dever cumprido, o que criava a satisfao da conscincia para consigo mesma. E, finalmente, afeioei-me tanto a esta grande ptria sul-americana que resolvi jamais abandon-la, aqui mesmo continuando quando a famlia inglesa, com quem me afinara, entendeu regressar terra natal.

    J por esse tempo eu conseguira economizar certa quantia em dinheiro. Associei-me a uma casa de modas para senhoras e vivia modestamente, do fruto do meu labor, sem contudo esquecer meus deveres de esprita.

    Mas, chegara o ano de 1910 e eu me surpreendera ao observar que completara j os meus quarenta e sete anos de idade. Recebi cumprimentos de Boas Festas de amigos e co-idealistas esperantistas de vrias partes do mundo, destacando-se, no entanto, dentre tantos car-tes e cartas recebidos, um postal provindo de Varsvia, na longnqua Polnia, escrito no idioma Esperanto, que eu tanto amava. O correspondente assinava-se Frederyk Kowalski, o qual confessava contar vinte e trs anos de idade, possuir um diploma de mdico e cursar ainda a Universidade, a fim de tornar-se professor de uma espe-cialidade da medicina.

    No sei por que, um alvoroo incontrolvel sacudiu as fibras da minha alma diante daquele singelo postal de

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  • SUBLIMAO

    Varsvia. Tinha a impresso de reconhecer as expres-ses mais que atenciosas, porque afetuosas, que me eram dirigidas, e que quem me escrevia era o prprio Yvan Yvanovitch, que ressurgia em novo corpo, das soli-des do tmulo, e assim cumprindo a promessa feita ao despedir-se de mim para a reencarnao.

    Afetuosa correspondncia no idioma universal - o Esperanto - estabeleceu-se ento entre mim e o meu no-vo amigo. Encantada, eu reconhecia nas expresses do amvel correspondente da martirizada Polnia as ex-presses do antigo amigo espiritual Yvan Yvanovitch, e me perdia em suposies alarmantes, ao mesmo tempo que recordava sua despedida para a reencarnao:

    - "No nos encontraremos pessoalmente, na prxi-ma jornada terrestre. Estaremos em situao oposta, porque os testemunhos que somos chamados a provar no implicaro nossa aproximao na vida carnal. Mas, no te esquecerei, minha querida, to certo estou da su-blimao do sentimento que te consagro. Minha alma, uma vez reencarnada, buscar a tua atravs do sono de cada noite, estaremos unidos pelo esprito e pela atrao do pensamento apaixonado e saudoso... e mais tarde, quando possvel, provar-te-ei que nem a separao mo-tivada por nova existncia minha me far deixar-te. Fui teu no passado, sou teu no presente, continuarei teu pe-los laos do amor imortal nas idades futuras... E, volun-tariamente, e com o assentimento das leis diretoras do nosso destino, tracei os planos da tarefa a cumprir na Terra, de molde a servir a Deus e ao prximo intensa-mente, abolindo at mesmo o matrimnio das minhas cogitaes..."

    Ora, fatos estranhos agora se passavam entre mim e o meu correspondente Frederyk Kowalski. Sonhva-mos juntos os mesmos sonhos, na mesma noite, e nos-

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  • YVONNE A. PEREIRA

    sas cartas, mutuamente relatando o acontecimento, cruzavam-se no oceano, trazendo-nos a confirmao dos encontros de nossas almas amantes. Em suas amorosas epstolas, dizia o sentimental amigo distante:

    - "Tudo me fala de ti e tua presena to real junto de mim que, s vezes, sinto o teu rosto junto do meu e o perfume dos teus cabelos faz-me estremecer o corao. Eu tenho a impresso, minha querida, de que escrevo a uma grande amiga de outros tempos, a quem muito te-nho amado em idades remotas e a quem perdi de vista, no sei como nem por que... embora no saiba explicar o fenmeno do sentimento que me agita. No sei se vivi, ou onde vivi, antes de me sentir a personalidade de Frederyk Kowalski. Dizem-me os pressentimentos que todos ns vivemos e revivemos neste mundo, no sei co-mo... e que meu sentimento conhece-te desde sculos, que muito errei e sofri por ti e que agora continuo so-frendo a dor de no poder ver-te junto de mim. H dias visitei minha cidade natal, Sosnowiec, para uma estao de repouso. Junto de minha me desejei refrigerar meu corao, que se sente oprimido pelas mil inquietaes dirias e tambm pela saudade de ti, que o atormenta. Sou pobre de bens de fortuna, luto rudemente pela subsistncia, no tenho, por enquanto, possibilidade de singrar os mares e repousar junto de ti. Ento repouso junto de minha me, porque ela a nica mulher que te poder representar em meu corao. Mas, vejo-te por toda parte, a saudade jamais esmorece. Se faz luar, ponho-me a contemplar a lua, porque talvez tambm a minha Varienka esteja olhando para ela. Se aspiro um perfume, quisera que tambm tu o aspirasses. Se ouo msica ou leio bela pgina literria, entristeo-me por-que no ests presente para compartilhar da mesma sa-tisfao que me absorve. Tenho associado a tua pessoa a todos os momentos da minha vida..."

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  • SUBLIMAO

    De outras vezes, as cartas revelavam anseios muito humanos, como estes:

    - "A primavera voltou, os pinheiros renovaram-se de tonalidades mais vivas, a neve desloca-se e estende-se, liquefeita, em lenis prateados ao longo do prado, onde as narcejas esvoaam. Os lilaseiros do jardim acendem perfumes mais intensos e as rosas no tardam a colorir as latadas das manses senhoriais. Tudo vida, beleza, alegria e poesia... mas nada disso me faz ditoso, porque tu ests to longe, minha Varienka! Cada flor, cada gor-jeio de pssaro e at as pedras do caminho falam de ti e comigo lamentam a dor da tua ausncia. Mas, apesar de tudo isso, sou feliz, porque sei que sou amado pelo teu corao, tua presena est viva em mim, aquece-me o corpo a doce impresso do teu contacto, ouo tua voz falar-me carinhosamente: "Frederyk, meu doce amado!" To doce voz que impossvel ser que mais algum no mundo possua igual. Mas, tudo sonho. A realidade terrvel e irremedivel. Tu continuas distante. E eu hei de passar a vida assim, sem ti?..."

    Eu consolava-o quanto podia, receosa de que, um dia, me pudesse visitar, pois, em verdade, eu era vinte e quatro anos mais velha do que ele e temia que sua moci-dade no resistisse ao choque da realidade, vendo-me pessoalmente, fora dos vapores dos seus sonhos, res-sentindo-se, muito justamente, da disparidade das nos-sas idades. E, de certa feita, escrevi-lhe, tentando des-viar suas cogitaes do amor humano, que parecia in-quiet-lo, para encaminh-lo sublimao do amor imaculado, sereno e espiritual, nico com o qual eu poderia retribuir aos ardorosos protestos das suas vinte e trs primaveras pujantes de vida:

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  • YVONNE A. PEREIRA

    - "Tu disseste, meu amigo, que me oferecers a tua fotografia, mas pergunta, receoso: 'No ficars descon-tente se o Frederyk dos teus sonhos for muito diferente do que eu realmente sou?' No, meu doce amigo, no fi-carei descontente por isso, porque o Frederyk dos meus sonhos no o homem que em verdade s, mas o ser ideal que sempre viveu nas aspiraes da minha alma, o corao amoroso que to generosamente amou o meu e o compreendeu, o carter equilibrado e justo que eu percebo nas expresses dessas cartas to lindas, que encantam de suavidade a minha alma. Belo ou no, que sejas, generoso ou no generoso, para mim sers sem-pre o ser ideal, porque o teu ser espiritual que eu de preferncia distingo em ti e ao qual desejo amar para sempre, mesmo alm da morte..."

    Mas, acrescentava, incapaz de sopitar a saudade que me torturava o corao, a mgoa por me reconhecer irremediavelmente separada dele:

    - "Pela janela aberta vejo o luar, cujo esplendor cla-reia tambm as ruas de Varsvia, por onde diariamente tu transitas, o hospital onde trabalhas, a faculdade onde aperfeioas o teu curso de medicina, a casa onde re-sides. E medito, reconfortada por esse lenitivo supremo: "Como Deus bom, permitindo que o mesmo raio de luar que incide sobre a mesa onde escrevo ilumine tam-bm as janelas do aposento onde repousa aquele que eu mais amo neste mundo!"1

    Durante quatro anos essas epstolas fortaleceram o nosso corao, estreitando nossas almas nos sagrados laos de um sentimento que se conservou ardente e vivo. dominando as horas que vivamos e at nos protegendo

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    1 Do Brasil Polnia existem cerca de 4 horas de diferena no tempo.

  • SUBLIMAO

    contra as angustias e os arrastamentos menos bons, sempre possveis na vida cotidiana. Era como se vivs-semos estreitamente unidos, sem jamais nos separar-mos, sequer por uma hora. No sendo possvel s mo-destas posses financeiras do meu caro correspondente vir pessoalmente ao meu encontro, no havia outro re-curso seno nos contentarmos com nossas queridas cartas e os doces encontros em Esprito, durante o sono de cada noite. Cumpria-se, assim, a profecia de Yvan Yvanovitch, ao despedir-se para a reencarnao:

    - "No nos encontraremos jamais, na prxima jor-nada terrena."

    VII

    No ano de 1914, deu-se em Serajevo, cidade da an-tiga Srvia, o assassnio do Arquiduque Francisco Fer-dinando, prncipe herdeiro do trono da ustria-Hungria, e de sua esposa, Condessa de Chotek, Duquesa de Hohenberg, pelo jovem estudante Jarilo Prinzip. O triste acontecimento, que abalou o mundo inteiro, foi um dos graves motivos, seno o principal, que motivou a Grande Guerra de 1914-1918. Ao ter notcias das declaraes de guerra que se seguiram ao ultimato da poderosa ustria pequenina Srvia, temi pelo meu doce amigo de Var-svia, que se achava em idade militar, era mdico e, cer-tamente, no poderia evitar a possibilidade de tambm marchar para a frente do conflito. A Rssia fizera-se aliada da Frana, da Inglaterra, da Itlia, da Blgica, do Japo e, portanto, da Srvia, ptria involuntariamente responsvel pelo terrvel conflito mundial. A Alemanha aliara-se ustria-Hungria, s quais se ajuntaram, tambm, a Bulgria e a Turquia, como sabeis. Eu bem imaginava que a Polnia, nao pacfica por excelncia, mas imprensada por naes beligerantes, no poderia

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  • YVONNE A . PEREIRA

    deixar de sofr