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A Morte de Ivan Ilitch - Leon Tolstoi

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  • 1No prdio do Tribunal, durante um intervalo do julgamento do caso Melvinsky, os membrosda Corte e o promotor reuniram-se no gabinete de Ivan Yegorovich Shebek e a conversa recaiusobre o famoso caso Krasovsky. Fiodr Vassilyevich insistia em que o caso no estava sob suajurisdio, Ivan Yegorovich argumentava o contrrio, enquanto Piotr Ivanovich, como noestava na discusso desde o incio, no tomava o partido de ningum, mas passava os olhos peloGazette, que tinham acabado de entregar.

    Senhores exclamou. Morreu Ivan Ilitch. No possvel! Est aqui. Pode ler disse Piotr Ivanovich, passando o jornal que ainda cheirava a tinta a

    Fiodr Vassilyevich.Cercadas por uma borda preta, liam-se as seguintes palavras:

    com profundo pesar que Praskovya Fiodorovna participa a amigos e parentes a passagemde seu estimado esposo, Ivan Ilitch Golovin, membro da Corte Suprema, que deixou esta vida nodia 04 de fevereiro do ano da graa de 1882. O enterro acontecer na sexta-feira, uma hora datarde.

    Ivan Ilitch havia sido colega deles e era muito querido por todos. Sabia-se que sofrera emcima de uma cama, meses a fio, com uma doena diagnosticada como incurvel. Seu postoficara em aberto, mas corria que, no caso de sua morte, provavelmente Alexey ev serianomeado seu sucessor e Vinnikov ou Shtabel ocupariam o lugar de Alexeyev. De modo que, aoouvirem a notcia da morte de Ivan Ilitch, a primeira coisa que lhes passou pela cabea foi opossvel efeito na rodada de transferncias e promoes para eles ou seus companheiros.

    Tenho certeza de que agora eu pego o lugar de Shtabel, ou de Vinniko!, pensou FiodrVassilyevich. J me prometeram h horas e essa promoo significa um salrio de oitocentosrublos por ano, mais ajuda de custo.

    Vou tentar conseguir a transferncia de Kalugo para o meu cunhado!, pensou PiotrIvanovich. Minha mulher vai adorar e no vai poder dizer que eu nunca fao nada pelosparentes dela!

    Bem que eu achei, o tempo todo, que ele no ia mais sair daquela cama disse Piotr, emvoz alta. Que coisa triste.

    O que era mesmo que ele tinha? Os mdicos no conseguiram chegar a uma concluso, ou pelo menos no mesma

    concluso. A ltima vez em que o vi me pareceu que estava melhorando. E eu que nunca mais apareci, desde as frias. Pensei em ir vrias vezes. Ele tinha bens? Acho que sua esposa tem alguma coisa. Mas no muita. Bem, acho que devemos ir at l v-la. Eles moram um bocado longe! Voc quer dizer um bocado longe de voc. Qualquer lugar longe da sua casa! Ouviram essa? Ele no me perdoa por viver do outro lado do rio! disse Piotr Ivanovich,

    sorrindo, para Shebek. E voltaram para o Tribunal comentando animadamente sobre as distncias

  • de um e de outro lado da cidade.Alm das elucubraes sobre possveis transferncias e mudanas no departamento,

    resultantes da morte de Ivan Ilitch, a simples idia da morte de um companheiro to prximofazia surgir naqueles que ouviram a notcia aquele tipo de sentimento de alvio ao pensar que foiele quem morreu e no eu.

    Agora era ele quem tinha de morrer. Comigo vai ser diferente eu estou vivo, pensavacada um deles, enquanto as pessoas mais prximas, os assim chamados amigos, lembravam queagora teriam de cumprir todos aqueles cansativos rituais que exigiam as normas de bomcomportamento, assistindo ao funeral e fazendo uma visita de condolncias para a viva.

    Fiodr Vassily evich e Piotr Ivanovich tinham sido seus amigos mais prximos. PiotrIvanovich fora seu colega na Escola de Direito e lhe devia obrigaes.

    Em casa, depois de contar para a esposa sobre a morte de Ivan Ilitch, e sua esperana deque talvez conseguisse a transferncia de seu cunhado, Piotr Ivanovich abriu mo de sua sestahabitual, vestiu o casaco e saiu.

    Do lado de fora da casa de Ivan Ilitch havia uma carruagem e dois trens de aluguel.Encostado na parede do hall, ao lado do porta-chapus, via-se a tampa de um caixo coberta porum manto em cujas franjas haviam acabado de borrifar um p dourado. Havia duas mulheresde preto recolhendo os casacos, e uma delas, a irm de Ivan Ilitch, Piotr Ivanovich j conhecia,mas a outra era-lhe totalmente estranha.

    Seu colega Schwartz j estava descendo, mas ao ver Piotr Ivanovich parou no topo daescada e deu uma piscada, como quem diz: Veja s que confuso foi arrumar nosso amigo IvanIlitch to diferente de ns!.

    O rosto de Schwartz, com aquelas costeletas, sua figura esguia naquele casaco, tinham comosempre, um ar elegante e solene que contrastava com sua natureza jovial, mas que nessasituao parecia a Piotr Ivanovich adquirir um tempero todo especial.

    Piotr Ivanovich deixou que as duas mulheres passassem e as seguiu. Schwartz no fezmeno de descer e Piotr Ivanovich sabia por qu: certamente queria combinar o local dowhist[1] naquela noite. As mulheres subiram para falar com a viva, enquanto Schwartz, com oslbios cerrados, mas um olhar malicioso, indicava a Piotr Ivanovich o quarto direita ondeestava o corpo. Piotr Ivanovich entrou, em dvida, como as pessoas sempre se sentem nessasocasies, quanto melhor atitude a tomar ali dentro. A nica coisa que lhe ocorria era que fazero sinal-da-cruz nunca vinha mal nessas horas. Mas como no tinha certeza se era necessriocurvar-se ou no, optou por um meio-termo: ao entrar no quarto, comeou o sinal-da-cruz e fezum movimento que lembrava vagamente uma inclinao; ao mesmo tempo, tanto quanto opermitiram os movimentos de mo e de cabea, deu uma checada no ambiente em volta. Doisrapazes, um deles estudante, que deviam ser sobrinhos, vinham saindo do quarto fazendo o sinal-da-cruz e ele aproveitou e fez o mesmo. Uma senhora de idade estava parada, enquanto umaoutra com as sobrancelhas arqueadas cochichava-lhe alguma coisa. Um membro da igreja liaem voz alta, com sinceridade e determinao e uma expresso que no admitia discordncias.Gerassim, o criado, caminhando com seu passo suave em frente a Piotr Ivanovich, espalhavaalguma coisa pelo cho. Ao ver isso, Piotr Ivanovich sentiu imediatamente um cheiro de corpoem decomposio. Na sua ltima visita a Ivan Ilitch, Piotr Ivanovich vira Gerassim no quarto,fazendo as vezes de enfermeiro, e percebia-se que Ivan Ilitch gostava muito dele.

  • Piotr Ivanovich continuou fazendo o sinal-da-cruz e inclinando a cabea numa direointermediria entre o caixo, o orador e as imagens sobre a mesa do canto. Em seguida, quandoachava que o sinal da cruz j havia durado tempo suficiente, parava e punha-se a olhar para odefunto.

    O morto jazia, como os mortos sempre jazem, pesadamente, seus membros endurecidosafundados dentro do caixo, a cabea recostada eternamente no travesseiro, sua testa de ceraamarelada, com sulcos acima das tmporas afundadas, sobressaa-se, como acontece nosmortos, e o nariz proeminente parecia pressionar fortemente o lbio superior. Estava bastantediferente e ainda mais magro do que da ltima vez que o vira, mas, como sempre acontece comos mortos, o rosto estava mais bonito e principalmente mais expressivo do que quando vivo. Aexpresso do rosto parecia dizer que tudo o que podia ter sido feito fora feito e da melhormaneira possvel. Havia tambm reprovao nessa expresso e uma espcie de advertncia paraos vivos, advertncia esta que parecia completamente sem propsito para Piotr Ivanovich, ou,pelo menos, no ser dirigida a ele. Teve uma sensao desagradvel e, mais do que depressa, fezoutro sinal-da-cruz e, ainda que lhe parecesse depressa demais e incompatvel com a ocasio,virou as costas e saiu. Schwartz o esperava de p no corredor, com as pernas afastadas e as duasmos mexendo no chapu s suas costas. A simples viso daquela figura leve e jovial reanimouPiotr Ivanovich. Sentia que Schwartz estava acima desse tipo de acontecimento, que jamais sedeixaria dominar por qualquer ambiente depressivo. Seu olhar dizia que o mero incidente de umvelrio para Ivan Ilitch no poderia, em hiptese alguma, constituir motivo suficiente parainterromper o curso natural das coisas em outras palavras, nada poderia interferir nodesembrulhar e cortar de um novo pacote de cartas naquela mesma noite. Na verdade, no haviarazo alguma para supor que este simples contratempo os impediria de passar uma noite toagradvel quanto as outras.

    Absolutamente cochichou Schwartz para Piotr Ivanovich que passava, propondo que seencontrassem para um joguinho na casa de Fiodr Vassilyevich.

    Mas pelo jeito no era o destino de Piotr Ivanovich jogar naquela noite. Praskovy aFiodorovna, uma mulher de estatura baixa, gorda, que apesar de todos os esforos em contrriocontinuara a alargar resolutamente dos ombros para baixo, toda de preto, com um vu cobrindo-lhe a cabea, as sobrancelhas to arqueadas quanto as da mulher ao lado do caixo, saiu do seuquarto com outras senhoras e, conduzindo-as at a porta do quarto onde estava o morto, falou: Acerimnia j vai comear. Entrem, por favor.

    Schwartz, inclinando-se levemente, lembrou de onde estava, sem obviamente aceitar oudeclinar do convite. Praskovy a, reconhecendo Piotr Ivanovich, suspirou, aproximou-se dele,pegou sua mo e falou: Eu sei o quanto vocs eram amigos...! e fixou-o esperando umaresposta adequada ao que acabava de dizer. Piotr Ivanovich sabia que, assim como minutosantes, naquela mesma sala, adequado era se benzer, agora fazia-se necessrio apertar a mo daviva, suspirar e dizer: Sim, verdade!. E foi o que fez, sentindo que alcanava o resultadoesperado: ambos estavam comovidos.

    Venha disse a viva. Eles ainda no comearam. Preciso falar com voc. Me d obrao.

    Piotr Ivanovich ofereceu-lhe seu brao e saram em direo a um apartamento internopassando por Schwartz, que piscou solidrio. Tudo acertado para o nosso jogo. No reclame se

  • arrumarmos outro parceiro. Talvez voc possa se juntar a ns quando conseguir escapar!, diziaseu olhar provocador.

    Piotr Ivanovich deu um suspiro ainda mais profundo e desalentado e Praskovya Fiodorovnaapertou seu brao em sinal de gratido. Assim que chegaram ao quarto dela, todo forrado emcretone cor-de-rosa e fracamente iluminado sentaram, ela em um sof e Piotr Ivanovich em umpufe baixinho, com as molas quebradas, que volta e meia afundava sob seu peso. Praskovy aFiodorovna esteve a ponto de avis-lo que pegasse outra cadeira, mas sentiu que uma observaocomo essa destoaria de toda a atmosfera criada pela situao e mudou de idia. Logo que sentouno pufe, Piotr Ivanovich comeou a lembrar de Ivan Ilitch decorando aquele quarto econsultando-o exatamente sobre este cretone cor-de-rosa com folhas verdes. O quarto estavarepleto de mveis e objetos e, enquanto se encaminhava para o sof, a viva prendeu a ponta domanto na quina da mesa, toda trabalhada. Piotr Ivanovich levantava-se para desprend-lo quandoo pufe, livre de seu peso, inflou novamente e o fez saltar. A viva tentou ela prpria desprender olao e Piotr Ivanovich sentou outra vez, abafando as molas rebeldes sob seu corpo. MasPraskovya Fiodorovna ainda no havia conseguido se libertar e, mais uma vez, Piotr Ivanovichlevantou, e, mais uma vez, o pufe se rebelou e saltou, com estrondo. Ao final de tudo isso,Praskovya tirou um leno limpo de cambraia e comeou a chorar. Mas o episdio com o lao etoda a batalha com o pufe haviam esgotado Piotr Ivanovich e ele sentou-se, sem foras. Essaestranha situao foi interrompida por Sikolov, o mordomo de Ivan Ilitch, que entrava para dizerque a cova que Praskovy a havia escolhido custaria duzentos rublos. Ela parou de chorar e,olhando Piotr Ivanovich com ar de vtima, queixou-se em francs sobre como tudo isso eraterrvel para ela. Piotr Ivanovich fez um gesto em silncio, que queria dizer que, sem dvidaalguma, ele acreditava que certamente deveria ser.

    Com uma voz ao mesmo tempo magnnima e desconsolada, Praskovya comeou a discutircom o mordomo a questo do preo da cova.

    Piotr Ivanovich acendeu um cigarro e ps-se a ouvir interessadamente, perguntando preosde diferentes covas, e finalmente decidiram por qual optar. Assim que terminaram, ela deuinstrues ao mordomo para que se juntasse ao corpo e ele saiu.

    Sou eu quem tem de decidir tudo sozinha disse ela, pondo de lado os lbuns que estavamem cima da mesa e, notando que a cinza do cigarro dele em breve cairia em cima desta,imediatamente alcanou-lhe um cinzeiro dizendo: Seria hipocrisia minha fingir que osofrimento me impede de dar ateno aos assuntos prticos. Ao contrrio, se fosse possvel nodigo me consolar, mas me distrair, seria cuidando dos objetos que me fazem lembrar dele! Epegou seu leno outra vez, preparando-se para chorar, mas, de repente, como quem luta comseus sentimentos, se recomps e comeou a falar calmamente: Sabe, tem uma coisa que eugostaria de conversar com voc.

    Piotr Ivanovich inclinou-se, tentando no perder o controle das molas do pufe, que comeouimediatamente a vibrar.

    Seus ltimos dias foram terrveis, ela disse. Ele sofreu muito? Sim, horrivelmente. No final ele gritava, j no era por minutos, mas horas a fio. Gritou

    durante trs dias e trs noites sem parar. Era insuportvel. No sei como eu consegui agentar,podia se ouvir trs quartos adiante. Ah, voc no imagina o que eu passei.

  • Ele estava lcido o tempo todo? Sim ela sussurrou. At o final. Despediu-se de ns quinze minutos antes de morrer e at

    pediu que levssemos Volody a dali.A idia do sofrimento do homem que ele havia conhecido to intimamente, primeiro como

    uma criana irresponsvel, depois como o jovem estudante e, mais tarde, j adulto, comoparceiro de jogo, encheu Piotr Ivanovich de horror, apesar da desagradvel conscincia doquanto ele e aquela mulher estavam sendo hipcritas. Visualizou outra vez aquela testa e o narizpressionando o lbio e essa viso encheu-lhe de um sentimento de pavor em relao a si prprio.Trs dias e trs noites de sofrimentos terrveis e depois a morte. Ora, isso pode acontecercomigo, de uma hora para outra, pensou aterrorizado. Mas, imediatamente, sem que elesoubesse explicar, veio em seu auxlio a velha idia de que isso havia acontecido a Ivan Ilitch eno a ele, de que isso no iria e nem poderia acontecer a ele e que o fato de pensar que algoassim pudesse lhe acontecer s significava que estava se deixando levar por pensamentosdepressivos, o que era um erro, como bem demonstrava a expresso no rosto de Schwartz. PiotrIvanovich animou-se outra vez e passou a perguntar interessadamente sobre os detalhes da mortede Ivan Ilitch, como se a morte fosse uma fatalidade qual somente Ivan Ilitch estivesse sujeitoe ele no.

    Depois de descrever os terrveis sofrimentos fsicos por que passara Ivan Ilitch (cujosdetalhes Piotr Ivanovich s soube atravs do efeito que esses tinham nos nervos de Praskovya), aviva achou que j estava mais do que na hora de tratar de negcios.

    Ah, Piotr Ivanovich, que sofrimento, isso tudo... Que terrvel sofrimento... e caiu emprantos novamente.

    Piotr Ivanovich suspirou e esperou que ela assoasse o nariz. Assim que ela terminou, eleconseguiu dizer: Acredite-me..., e, mais uma vez ela comeou a falar, chegando no ponto queera, evidentemente, o que lhe interessava: perguntar como poderia conseguir algum dinheiro dogoverno por ocasio da morte de seu marido. Ela, na verdade, quis dar a impresso de estarpedindo a Piotr Ivanovich conselhos sobre a sua penso, mas ele logo percebeu que sobre isso elaj sabia tudo que precisava saber, talvez at mais do que ele. Sabia exatamente quanto tinhadireito de receber do governo em conseqncia da morte do marido, mas queria descobrir se nohaveria possibilidade de extorquir um pouquinho mais. Piotr Ivanovich at tentou pensar emalguma sugesto, mas, depois de ponderar um instante, optou por, em sinal de delicadeza, criticaro governo por sua atitude mesquinha, mas dizer que lhe parecia no haver nada a fazer. Depoisdisso, Praskovya suspirou e ps-se resolutamente a procurar um meio de se libertar de seuvisitante. Ao perceb-lo, ele apagou o cigarro, levantou, apertou a mo da viva e entrou na ante-sala.

    Na sala de jantar onde ficava o relgio que Ivan Ilitch comprara em um antiqurio, e doqual gostava tanto, Piotr Ivanovich encontrou o padre e alguns conhecidos que vieram paraassistir ao funeral. Havia tambm uma jovem muito bonita, que era a filha de Ivan Ilitch. Estavatoda de preto e sua figura esguia parecia ainda mais esguia agora. Tinha uma expresso quaseagressiva. Olhou na direo de Piotr Ivanovich como se ele fosse de algum modo culpado. Atrsda filha, com a mesma expresso de mgoa, estava um jovem rico que Piotr Ivanovich tambmconhecia e um magistrado com a noiva, de quem ele ouvira falar. Piotr Ivanovich inclinou-secom ar triste na direo deles e ia seguir adiante quando surgiu o filho adolescente de Ivan Ilitch,

  • cuja semelhana com o pai era impressionante. Ali estava Ivan Ilitch outra vez, tal como PiotrIvanovich lembrava dele dos tempos de estudantes. Tinha os olhos vermelhos de tanto chorar eaquele olhar pervertido dos garotos de treze ou quatorze anos. Ao ver Piotr Ivanovich, endereou-lhe um olhar ao mesmo tempo desanimado e de pouco caso. Piotr Ivanovich balanou a cabeae entrou no quarto do morto. O servio estava comeando: velas, suspiros, incenso, lgrimas esoluos. Piotr Ivanovich ficou ali, olhando para os prprios ps. No olhou uma nica vez para ocorpo, recusando-se, at o fim, a deixar-se dominar pela depresso, e foi um dos primeiros apartir. No havia ningum na ante-sala, mas Gerassim, o criado da casa, veio rapidamente dedentro do quarto, pegou um por um todos os casacos at encontrar o de Piotr Ivanovich e ajudou-o a vesti-lo.

    Bem, meu amigo Gerassim disse Piotr Ivanovich, s para dizer alguma coisa. Quecoisa triste, no ?

    a vontade de Deus. Ns todos vamos passar por isso um dia respondeu Gerassim,mostrando seus dentes brancos e parelhos de campons. E como se tivesse que terminar umtrabalho urgente, em seguida abriu a porta da frente, chamou o cocheiro, levou Piotr Ivanovichat a carruagem e voltou rapidamente para a varanda, como quem j est pensando na prximatarefa a ser cumprida.

    Piotr Ivanovich achou aquele ar fresco particularmente agradvel depois de todo o cheiro deincenso, de cadver e de desinfetante.

    Para onde, senhor? perguntou o cocheiro. No to tarde, ainda d tempo de dar uma passada na casa de Fiodr Vassily evich.E Piotr Ivanovich foi para l e, de fato, encontrou-os recm terminando a primeira rodada,

    de modo que chegou em tempo de entrar no jogo.

  • 2A histria da vida de Ivan Ilitch foi das mais simples, das mais comuns e portanto das maisterrveis.

    Era membro do Tribunal de Justia e morreu aos quarenta e cinco anos. Filho de um oficialcuja carreira em Petersburgo em vrios ministrios e departamentos era daquelas que conduzemas pessoas a postos dos quais, em razo de seu longo tempo de servio e da posio alcanada,no podem ser demitidas embora seja bvio que no possuem o menor talento para qualquertarefa til , pessoas para as quais cargos so especialmente criados, os quais, embora fictcios,pagam salrios que nada tm de fictcios e dos quais eles continuam vivendo o resto da vida.

    Era o caso do conselheiro particular Ily a Yefimovich Golovin, membro totalmentesuprfluo de uma das tantas instituies tambm suprfluas.

    Tinha trs filhos, dos quais Ivan Ilitch era o segundo. O mais velho estava seguindo os passosdo pai, s que em outro ministrio, e j se aproximava daquele estgio no servio pblico em quea inrcia recompensada com a estabilidade. O terceiro filho era um fracasso. Jogara fora todasas suas chances em vrios postos e agora estava empregado no departamento de estradas. Seupai, seus irmos e principalmente as esposas destes no apenas no gostavam de encontr-lo,como evitavam sequer lembrar de sua existncia, a no ser quando forados a isso. Sua irmcasara com o Baro Greff, um oficial de Petersburgo da mesma classe do sogro.

    Ivan Ilitch era le phenix de la famille, como as pessoas costumavam dizer. Nem to frio eformal quanto o irmo mais velho, nem to rebelde quanto o mais jovem, era um simpticomeio-termo entre os dois um homem inteligente, educado, bem-disposto e agradvel. Foraeducado para o Direito, assim como o mais moo, mas este no havia terminado o curso, sendoexpulso logo no incio. Ivan Ilitch, ao contrrio, formara-se muito bem. Como estudante, ele jera exatamente o que viria a ser para o resto da vida: um jovem muito capaz, alegre, socivel, deboa paz, embora rgido no que considerava serem suas obrigaes e ele considerava suasobrigaes o que quer que os seus superiores assim considerassem. Nem quando garoto nemquando adulto foi pessoa de pedir favores, embora fosse caracterstica sua sentir-se sempreatrado por pessoas que estivessem em posies mais altas que a sua. Adotava os modos e pontosde vista delas e logo estabelecia relaes de amizade com essas pessoas. O entusiasmo deinfncia e juventude passou sem deixar nele grandes marcas. Deixara-se levar pelasensualidade, pela vaidade e, at o fim de sua poca de estudante, por idias liberais, mas sempredentro de limites que sua intuio lhe dizia quais eram.

    Ainda quando estudante fizera coisas que lhe pareceram vis e na ocasio o fizeram sentir-seenojado consigo, mas, mais tarde, percebendo que a mesma conduta era adotada por pessoas domais alto nvel e elas no a consideravam errada, chegou a no exatamente t-las como certas,mas a simplesmente esquec-las ou a no se incomodar ao lembr-las.

    Assim que conseguiu seu diploma e ingressou no dcimo escalo do servio pblico, e tendorecebido de seu pai um dinheiro para o novo guarda-roupa, Ivan Ilitch fez encomendas naScharmers, pendurou na corrente do relgio uma medalha com a frase Respice Finem, deuadeus ao seu professor e ao patrono da Escola, fez um jantar de despedida com seus colegas noDonons e com seus novos pertences um ba, roupas de cama, uniforme, objetos de toalete e

  • um cobertor para a viagem , todos adquiridos nas melhores lojas, partiu para uma dasprovncias para assumir o posto de secretrio particular e emissrio do governador, conseguidocom a ajuda de seu pai.

    Na provncia, Ivan Ilitch logo alcanou uma posio to confortvel quanto aquela de quegozara nos tempos de escola. Cumpria com suas obrigaes, avanava em sua carreira e aomesmo tempo levava uma vida social do mais alto padro. De vez em quando fazia visitasoficiais a pequenas cidades, comportando-se com igual dignidade tanto com superiores quantocom inferiores e cumprindo cada uma das tarefas de que era incumbido, com escrupulosa eincorruptvel integridade, da qual muito se orgulhava.

    No que dizia respeito a assuntos oficiais, apesar de sua juventude e da queda por diversesfrvolas, era extremamente reservado, profissional, severo at, mas em sociedade tornava-seuma pessoa divertida e espirituosa, sempre de bom humor, um cavalheiro e bon-enfant, comocostumavam dizer o governador e sua esposa, que o consideravam como uma pessoa da famlia.

    Na provncia, teve um caso com uma senhora que se jogou nos braos do jovem e eleganteadvogado. Havia tambm uma jovem chapeleira, e noitadas com os militares de passagem, evisitas aps o jantar a uma certa rua em um bairro afastado, e havia tambm alguns esforos umtanto dbios no sentido de agradar seu chefe e at mesmo a esposa deste, mas tudo era feito comtamanha classe que nada poderia ser criticado. Ficava tudo por conta do ditado francs Il faut quela jeunesse se passe[2]. Era tudo feito com mos limpas, frases em francs e, principalmente, naalta-sociedade, portanto, com a aprovao de pessoas de classe!

    Assim foi a carreira de Ivan Ilitch por cinco anos, at que houve uma mudana em sua vidaoficial. Foram criadas novas instituies e fez-se necessrio contratar novos homens. Ivan Ilitchtornou-se um deles. Ofereceram-lhe o cargo de juiz magistrado e ele o aceitou, apesar do fato deo posto ser em outra provncia e obrig-lo a abrir mo das relaes que havia feito ali e fazeroutras novas. Os amigos que foram se despedir tiraram uma fotografia e deram-lhe de presenteuma cigarreira prateada, e l se foi Ivan Ilitch para uma nova vida.

    Como magistrado examinador Ivan Ilitch era irrepreensvel: sabia portar-se e separar cominteligncia seus compromissos oficiais de sua vida particular e to capaz de inspirar respeitoquanto o tinha sido no cargo anterior. As obrigaes de seu novo posto eram muito mais atraentese interessantes do que as de sua outra funo. Antes era-lhe agradvel sair da Scharmer's paisana em direo multido de peticionrios e oficiais sem importncia que aguardavamtimidamente uma audincia com o governador e v-los olh-lo com inveja quando entrava comsegurana no escritrio particular do governador para com ele tomar um ch e fumar umcigarro. Mas havia pouca gente que dependia diretamente de sua boa vontade apenas oficiaisda polcia e os secretrios quando iam em misses especiais , e ele gostava de tratar essaspessoas que dependiam dele afavelmente, quase como companheiros, gostava de faz-los sentirque ali estava ele, um homem que tinha o poder de subjugar, de quem eles dependiam, tratando-os de igual para igual. Nessa poca essas pessoas no eram muitas, mas agora que ele era ummagistrado sentia que todos todos sem exceo, at aquele mais importante e auto-suficiente estavam em suas mos e que lhe bastava escrever certas palavras em um pedao de papeltimbrado, e esta ou aquela pessoa to importante e auto-suficiente seria trazida a sua presena nacondio de acusado ou de testemunha, e que bastava que ele decidisse no lhe deixar sentar e apessoa seria obrigada a permanecer de p em sua presena e responder ao seu interrogatrio.

  • Ivan Ilitch nunca abusou de sua autoridade, ao contrrio, tentava suavizar o peso desta. Mas aconscincia desse poder e a possibilidade de amenizar esse efeito s aumentavam o fascnio pelaposio que ocupava. Quanto ao trabalho em si isto , os julgamentos Ivan Ilitch logo adquiriua arte de eliminar todas as consideraes irrelevantes ao aspecto legal e reduzir at mesmo ocaso mais complicado a uma forma pela qual os fundamentos pudessem ser colocados no papel,excluindo completamente sua opinio pessoal e, o que era mais importante, cumprindo todas asformalidades. Era um trabalho novo e Ivan Ilitch foi um dos primeiros homens a pr em prticao Cdigo de 1864.

    Ao assumir o cargo de magistrado, na nova cidade, Ivan Ilitch fez novos conhecidos, novasrelaes, adaptou-se novamente e adotou um novo estilo. Mantinha uma digna frieza em relaos autoridades, selecionava os melhores crculos entre os homens das leis e da nobreza queviviam na cidade, com os quais sua atitude era uma mistura de uma leve crtica em relao aogoverno, junto com uma moderada forma de liberalismo e conscincia de cidado. Nessa poca,sem alterar a elegncia nos trajes, Ivan Ilitch, em sua nova postura, parou de se barbear,deixando que a barba crescesse vontade.

    Ivan Ilitch acomodava-se outra vez a uma existncia bastante agradvel na nova cidade. Asociedade na qual ele agora circulava e que tinha uma tendncia a levantar crticas contra ogovernador era constituda de uma simptica e afvel classe-alta; seu salrio era maior e elecomeou a jogar whist, o que s fazia aumentar sua satisfao. Jogador bem-humorado, capaz depensar rapidamente e calcular com finesse suas jogadas, encontrava-se quase queinvariavelmente do lado do vencedor.

    Depois de alguns anos na nova cidade, Ivan Ilitch conheceu aquela que viria a ser suaesposa, Praskovya Fiodorovna Mikhel, a garota mais fascinante, inteligente e espirituosa do seucrculo, e, entre tantas atividades que praticava para se distrair, Ivan Ilitch comeou um leve edivertido flerte.

    Quando trabalhava como secretrio particular do governador, Ivan Ilitch raramente perdiaum baile. Agora, na condio de magistrado, danar era raro como se s o fizesse para provarque, embora trabalhasse para uma instituio reformada e tivesse sido promovido para o quintoescalo, ainda assim, nessa arte, saa-se melhor do que a maioria. Assim, vez por outra, noitinha, era visto danando com Praskovya Fiodorovna, e foi durante uma dessas danas que aconquistou. Praskovya Fiodorovna apaixonou-se por ele. No incio Ivan Ilitch no tinha intenesdefinidas de casamento, mas, ao perceb-la apaixonada, perguntou-se: Afinal de contas, porque no casar?.

    Praskovya Fiodorovna vinha de boa famlia, no era nada feia e tinha algumas posses. IvanIlitch certamente aspirava a um casamento melhor, mas mesmo esse no era mau arranjo. Eletinha um bom salrio, ao qual a renda dela, esperava, viria somar-se. Ela era bem relacionada euma jovem doce, bonita, comme il faut. Dizer que Ivan Ilitch estava casando apaixonado eporque sua noiva partilhava de suas opinies seria to falso quanto dizer que ele s se casavaporque seu crculo social aprovava a escolha. Ivan Ilitch considerava sobretudo dois aspectos: ocasamento lhe traria satisfao pessoal ao mesmo tempo em que estaria fazendo o que eraconsiderado correto pelas classes mais altas.

    E foi assim que Ivan Ilitch casou-se.A cerimnia em si e o comeo da vida conjugal, com todas as atenes, com a nova

  • moblia, a nova loua e roupas de cama, juntando-se gravidez de sua mulher, era tudo o que elepodia desejar, de modo que comeou realmente a achar que o casamento, longe de atrapalharseu agradvel, solto, despreocupado, mas sempre respeitvel modo de vida aprovado pelasociedade e tido por ele mesmo como natural , acrescentar-lhe-ia at um novo encanto. Mas foinesse momento, com os primeiros meses de gravidez de sua mulher, que se apresentou um novoelemento, inesperado, desagradvel, cansativo e totalmente inapropriado. Que nunca poderia tersido previsto e do qual no havia como escapar.

    Sua esposa, sem razo alguma, ou pelo menos assim lhe parecia, por puro capricho, comoele dizia, comeou a perturbar a agradvel e decente ordem de sua vida. Sem que houvessequalquer tipo de justificativa, Praskovy a comeou a mostrar-se ciumenta, a exigir que elededicasse toda sua ateno a ela, punha defeitos em tudo e fazia as mais desagradveis econstrangedoras cenas.

    No incio Ivan Ilitch pensava escapar desse ingrato estado das coisas tomando a mesmaatitude desligada que tanto lhe servira anteriormente. Tentava ignorar os ataques de mau humorde sua esposa. Continuou a viver do seu jeito descompromissado, convidava os amigos para iremjogar cartas em sua casa, tentava ir ao clube e aceitar convites. Mas houve um dia em que suamulher o atacou to violentamente e da em diante passou a atac-lo continuamente compalavras to vulgares a cada vez que ele recusava-se a atender suas exigncias, claramentedeterminada a no parar at que ele se rendesse ou, em outras palavras, concordasse em ficarem casa e entediar-se tanto quanto ela, que Ivan Ilitch viu-se derrotado. S ento deu-se conta deque o casamento pelo menos com Praskovy a estava longe de ser s fonte de prazeres ealegrias, e, ao contrrio, freqentemente infringia as leis do conforto e adequao e que,portanto, era necessrio proteger-se. E Ivan Ilitch ps-se a procurar os meios de proteo. Suaposio era o aspecto de sua vida que verdadeiramente a impressionara e ele, ento, passou ausar sua posio e as obrigaes dela decorrentes em sua luta por independncia.

    O nascimento da criana, as tentativas fracassadas de amament-lo e as vrias doenas,reais e imaginrias, que acometeram me e filho, nas quais a ajuda de Ivan Ilitch era exigida,mas sobre as quais ele no entendia nada, tudo isso contribuiu para tornar mais urgente para ele aconstruo de um muro que o isolasse da vida familiar.

    medida que sua esposa ia ficando mais irritada e exigente, Ivan Ilitch ia transferindo ocentro de gravidade de sua existncia da famlia para o trabalho. Tornava-se cada vez maisabsorvido por suas tarefas oficiais, com uma ambio que jamais tivera.

    Logo, logo, com apenas um ano de casamento, Ivan Ilitch j conclura que o matrimnio,conquanto trouxesse certas vantagens, era, na verdade, um negcio muito difcil e intrincado, noqual se uma pessoa quisesse cumprir com suas obrigaes, ou seja: levar a vida decenteaprovada pela sociedade, precisava criar para si uma postura muito clara.

    E foi o que ele fez em relao a sua vida de casado. Esperava dela que cumprisse somentecom as convenincias uma esposa para organizar sua casa, cama feita, refeies em horacerta , o que lhe permitia que continuasse mantendo as aparncias exigidas pelo senso comum.

    Quanto ao resto, ele tentava encontrar um pouco de companheirismo e se encontrava ficavamuito satisfeito, mas se s encontrasse antagonismo e irritao prontamente se retirava para oseu mundo de obrigaes oficiais e dele tirava grandes satisfaes.

    Ivan Ilitch era considerado um excelente magistrado e depois de trs anos foi promovido a

  • promotor pblico assistente. Suas novas funes, a importncia do que fazia, a possibilidade deindiciar e condenar quem quer que fosse, a publicidade dada a seus discursos, bem como osucesso destes, tudo isso s fazia aumentar o encanto de seu trabalho.

    Outros filhos vieram. Sua mulher foi se tornando cada vez mais exigente e mal-humorada,mas a linha que Ivan Ilitch havia traado para separ-lo de sua vida familiar tornou-o quaseimpermevel s reclamaes de sua esposa.

    Depois de sete anos servindo na mesma cidade, Ivan Ilitch foi transferido para outraprovncia como promotor pblico. Mudaram-se, o dinheiro diminuiu e sua esposa no ficousatisfeita com a mudana de ambiente. Embora o salrio fosse mais alto, o custo de vida eramais caro, e alm disso dois dos seus filhos haviam morrido, de modo que a vida em famliatornou-se ainda mais desagradvel para Ivan Ilitch.

    Praskovya culpava o marido por qualquer problema que acontecesse na nova casa. Amaioria das conversas entre marido e mulher, especialmente aquelas que diziam respeito educao das crianas, remetiam a disputas anteriores, de modo que a qualquer momento umabriga estava prestes a explodir. Restavam ainda aqueles raros momentos de sensualidade queaconteciam de vez em quando, mas que no duravam muito. Eram pequenas ilhas, nas quais elesaportavam vez por outra, apenas para embarcar novamente no mesmo oceano de hostilidadedissimulada que se tornava claro na distncia que crescia entre os dois. Essa distncia poderia t-lo feito sofrer se ele tivesse acreditado que seria diferente, mas ele chegava a um ponto deconsiderar esse afastamento no s como normal, mas at como um objetivo a ser alcanado navida domstica. Aspirava libertar-se mais e mais de todas as coisas desagradveis e ter para comelas uma atitude blaz, o que ele conseguiu passando cada vez menos tempo com a famlia e,quando forado a estar em casa, protegendo-se atravs da presena de estranhos. A maiorsatisfao de Ivan Ilitch, no entanto, estava no fato de ter seu prprio gabinete. Todo o seuinteresse concentrava-se agora no mundo de suas obrigaes profissionais e estas o absorviamtotalmente. A sensao de seu prprio poder, o sentimento de ser capaz de destruir quem quisessee mesmo o status de sua posio que ele saboreava ao fazer sua entrada no Tribunal ouencontrando-se com seus funcionrios, o fato de ser bem-sucedido aos olhos de superiores esubordinados e, acima de tudo, sua habilidade na resoluo dos casos, da qual tinha plenaconscincia tudo isso dava-lhe satisfao, como podia demonstrar nas conversas com seuscolegas, nos jantares e no jogo que preenchiam seu tempo. De modo que, no geral, a vida deIvan Ilitch continuava a correr como ele achava que tinha de ser agradvel e dentro dasconvenincias sociais.

    E assim continuaram as coisas por mais sete anos. Sua filha mais velha j estava comdezesseis anos, outro beb havia morrido e restava-lhe apenas um filho, um estudante que eraobjeto de constantes discusses. Ivan Ilitch queria que o menino entrasse para a Escola deDireito, mas Praskovya Fiodorovna mandou o garoto para o colgio. A menina fora educada emcasa e tivera bons resultados; o garoto tambm no ia nada mal nos estudos.

  • 3Assim continuou a vida de Ivan Ilitch aps dezessete anos de casamento. Ele agora era umpromotor pblico de longa carreira e havia declinado vrias propostas de transferncia naesperana de ganhar cada vez mais espao, quando um indesejvel e desagradvel incidenteveio destruir o pacfico andamento de sua existncia. Contava ser indicado para juiz em umacidade universitria, mas Hoppe, de algum modo, passou na sua frente e garantiu a nomeao.Ivan Ilitch, irritado, acusou Hoppe, desentendeu-se com ele e com seus superiores imediatos.Deram-lhe um gelo e na hora de fazerem nova indicao foi novamente posto de lado.

    Isso aconteceu em 1880, o ano mais difcil na vida de Ivan Ilitch. Nesse ano ficou evidentepor um lado que seu salrio era insuficiente e por outro que havia sido esquecido por todos, e oque a seus olhos era a mais monstruosa e cruel das injustias pareceu aos outros um fatocorriqueiro. Nem mesmo seu pai sentiu-se compelido a ajud-lo. Ivan Ilitch sentiu-seabandonado por todos, que consideravam sua situao, com um salrio de trs mil e quinhentosrublos, perfeitamente normal, at mesmo muito boa. S ele sabia que, com as injustias de quefora vtima, com as eternas reclamaes de sua esposa e as dvidas que se acumulavam pelo fatode viver acima de suas posses, sua situao estava longe de ser considerada normal.

    A fim de diminuir as despesas, tirou uma licena e foi com sua esposa passar o vero nacasa de campo do cunhado.

    No campo, livre de obrigaes oficiais, Ivan Ilitch experimentou, pela primeira vez na vida,no um simples ennui, mas uma insuportvel depresso, e decidiu que as coisas no poderiamcontinuar daquele jeito, e que deviam ser tomadas medidas enrgicas.

    Depois de uma noite em claro, caminhando de um lado para outro na varanda, decidiu ir aPetersburgo e tomar providncias para conseguir transferncia para outro ministrio e puni-los atodos, o que significava aqueles que no souberam dar-lhe o devido valor.

    No dia seguinte, apesar de todos os esforos de sua esposa e do cunhado para faz-lo mudarde idia, embarcou para Petersburgo.

    Foi com um nico objetivo em mente: conseguir um cargo com um salrio de cinco milrublos. No tinha predileo por nenhum ministrio em especial, ou por alguma tendncia, ousobre o tipo de trabalho que teria de exercer. Tudo o que queria era uma indicao para um postoque pagasse cinco mil rublos, tanto podia ser no servio administrativo, no departamentofinanceiro, nas estradas, em uma das instituies da Imperatriz Maria, como na alfndega qualquer coisa, contanto que lhe pagassem o salrio desejado e levassem-no daqueledepartamento onde no souberam dar-lhe o merecido valor.

    E vejam s: a viagem de Ivan Ilitch foi coroada de um surpreendente e inesperado sucesso.Em Kursk, um conhecido seu, F. S. Ilyn, embarcou no mesmo veculo de primeira classe e falou-lhe de um telegrama que acabara de receber do governador de Kursk, anunciando uma mudanaque estava para acontecer no Ministrio: Piotr Ivanovich seria substitudo por Ivan Semeonovich.

    A mudana proposta, alm do que significava para a Rssia, tinha um significado especialpara Ivan Ilitch, por colocar em evidncia um novo homem, Piotr Petrovich, e, sem dvida, comele, seu amigo Zahar Ivanovich, o que lhe seria altamente favorvel, uma vez que haviam sidoamigos e colegas.

  • Em Moscou, as notcias foram confirmadas e, assim que chegou a Petersburgo, Ivan Ilitchprocurou Zahar Ivanovich, que prometeu indic-lo em seu antigo departamento, o Ministrio daJustia.

    Uma semana mais tarde telegrafou sua esposa: Na primeira oportunidade Zahar indicar-me para o lugar de Miller.

    Graas a essa mudana de pessoal, Ivan Ilitch obteve inesperadamente uma promoo emseu antigo Ministrio que o colocou dois nveis acima de seus ex-colegas, alm de lheproporcionar a renda de cinco mil rublos, mais uma ajuda de trs mil e quinhentos para asdespesas decorrentes da mudana. Todas as queixas contra seus antigos inimigos e odepartamento foram esquecidas e Ivan Ilitch deu-se por totalmente satisfeito.

    Voltou para o campo mais animado e feliz do que h muito ningum o via. Praskovy aFiodorovna animou-se tambm e decidiram fazer uma trgua. Ivan Ilitch falou muito sobre orespeito com que o trataram em Petersburgo, como todos, antes seus inimigos, haviam sidohumildes e servis com ele, como estavam invejando sua nova indicao e, em particular, comoconquistara todos em Petersburgo.

    Praskovy a a tudo ouvia, fingindo acreditar, no contradizendo-o em nada, restringindo-se afazer planos para a nova vida na cidade para a qual se mudariam. E Ivan Ilitch percebeu, comprazer, que esses planos coincidiam com os seus, que ele e sua esposa estavamsurpreendentemente de acordo e que sua vida, depois de tantas dificuldades, estava a ponto derecuperar sua natural caracterstica de ordem e alegria.

    Ivan Ilitch voltara para o campo por pouco tempo, tinha que assumir suas novas funes emdez de setembro. Alm do mais, precisava de algum tempo para adaptar-se ao novo lugar, fazera mudana da provncia e encomendar uma srie de coisas, enfim, estabelecer-se do modocomo j havia decidido e que coincidia com as idias de Praskovy a.

    E agora que tudo correra to bem e ele e sua esposa estavam com os mesmos planos e almdisso to prximos, iniciou-se para eles a melhor fase desde os primeiros anos de casamento.Ivan Ilitch pensava, a princpio, em levar toda a famlia de uma vez, mas seu cunhado e a esposa,os quais se tornaram subitamente extremamente cordiais, no quiseram nem ouvir falar nisso, demodo que Ivan Ilitch partiu sozinho.

    E assim Ivan Ilitch partiu e com ele a feliz disposio de esprito criada por seu sucesso epela harmonia entre ele e a esposa, um sentimento fortalecendo o outro. Encontrou um charmosoapartamento, o tipo de coisa com que o casal sempre sonhara. Espaosas salas, com o p-direitoalto, moda antiga, um confortvel e vistoso escritrio, quartos para sua esposa e sua filha, umasala de estudos para o filho parecia ter sido especialmente projetado para sua famlia. IvanIlitch supervisionou pessoalmente as reformas, escolheu o papel de parede, comprou outrosmveis (na maioria antigidades consideradas por ele comme il faut), escolheu o material paraforrao e cortinas e tudo foi tomando forma at tornar-se aquilo a que ele havia se proposto.Mesmo quando as coisas ainda estavam na metade, quase sempre ultrapassavam suasexpectativas. Pensava no aspecto refinado e elegante, sem um toque de vulgaridade, que tudoteria quanto estivesse pronto. De noite, ao adormecer, punha-se a imaginar como ficaria a salade estar depois de pronta, e examinando a sala de visitas dava para ver a lareira, o biombo, otagre e as cadeiras espalhadas aqui e ali, os pratos nas paredes, os enfeites de bronze, edeliciava-se pensando em como ficaria quando tudo estivesse nos seus lugares. Deliciava-se

  • sobretudo em pensar na impresso que causaria em sua esposa e sua filha, elas que tinham tantobom gosto nesses assuntos. Jamais poderiam imaginar algo assim. Ele havia tido muita sorte,especialmente em descobrir e comprar por uma pechincha mveis antigos que deram um arexcepcionalmente aristocrtico a todo o ambiente. Nas cartas ele fazia questo de no se mostrarto entusiasmado, para causar-lhes surpresa ainda maior quando chegassem. Tudo issoabsorvera-o tanto que, embora gostasse muito de seu trabalho, este interessava-o menos do queesperava. Algumas vezes at mesmo distraa-se durante as sesses, ponderando se o band dacortina deveria ser reto ou arredondado. Estava to envolvido com tudo isso que freqentementefazia ele prprio as coisas, recolocando mveis nos lugares, arrumando cortinas. Certa vez,subindo em uma escada para mostrar ao empregado, que no conseguia entender, como quequeria o material pendurado, escorregou, mas como era uma pessoa gil e forte conseguiu sesegurar e apenas bateu de lado na maaneta da janela. O machucado doeu, mas passou logo.Durante esse tempo todo Ivan Ilitch sentia-se particularmente bem disposto e animado. Sinto-me quinze anos mais jovem, escreveu. Contava ter tudo pronto at setembro, mas a coisaacabou por arrastar-se at o meio de outubro. O resultado, no entanto, era encantador, e essa noera apenas a sua opinio, mas a de todos que ali entrassem.

    Na realidade, o efeito no passava do que normalmente visto nas casas de pessoas que noso exatamente ricas, mas que querem parecer ricas e o mximo que conseguem parecer-secom todas as outras pessoas de sua classe: havia damascos, bano, plantas, tapetes, enfeites debronze, tudo muito sbrio e bem polido, tudo aquilo que as pessoas de uma determinada classesocial possuem para parecerem outras pessoas.

    E no caso dele o efeito era to exato que no causava impresso alguma, mas para ele tudoparecia ser especial. Quando foi buscar a famlia na estao e trouxe-os para o apartamentorecm-decorado, todo iluminado, pronto, e um criado de uniforme abriu-lhes a porta do hall todocheio de flores e elas entraram na sala de visitas e no escritrio, com gritos de satisfao, eleencheu-se de felicidade mostrando-lhes a casa toda, bebendo-lhes os elogios com avidez,sorrindo de prazer. Naquela tarde, hora do ch, quando Praskovya perguntou por sua queda daescada ele riu e mostrou-lhes como tinha sado voando e o susto que dera no pobre do homemque instalava as cortinas.

    Ainda bem que eu tenho o preparo de um atleta! Outro no meu lugar teria morrido,enquanto que eu dei s uma batida aqui. Di quando eu toco, mas logo vai passar ummachucadinho de nada.

    E assim comeou a vida na nova morada e, como sempre acontece, quando estavamtotalmente instalados descobriram que estavam separados apenas por um quarto e, com seusrendimentos aumentados, tudo ia bem (se bem que eles achassem, como sempre, que maisquinhentos rublos fariam uma boa diferena). As coisas iam especialmente bem no incio, antesde estar tudo completamente arrumado, quando havia sempre alguma coisa por fazer, comprarisso, encomendar aquilo, mudar esse mvel de lugar, arrumar aquele outro. E, embora houvessebriguinhas ocasionais entre marido e mulher, ambos estavam to satisfeitos e havia tanta coisa afazer que tudo isso passava sem discusses mais srias. No entanto, quando no havia mais nadapara decidir, as coisas comearam a ficar enfadonhas, parecia estar faltando alguma coisa, masda eles comearam a conhecer pessoas, entrar dentro da mesma rotina e preencheram suasvidas.

  • Ivan Ilitch, depois de passar a manh no Tribunal, vinha em casa almoar e no incio ele atque tinha bom humor, conquanto esse bom humor estivesse sempre prestes a ser estragado eexatamente por causa da casa nova (qualquer mancha na toalha da mesa ou na forrao, agravata da cortina um pouco gasta, tudo o irritava: tivera tanto trabalho para arrumar tudo que lhemagoava ver qualquer coisa estragada). Mas, de modo geral, a vida de Ivan Ilitch seguia seucurso como ele achava que deveria ser: calmamente, agradavelmente e dentro das normasestabelecidas, levantava s nove horas, tomava seu caf, lia os jornais, vestia seu uniforme e iapara o Tribunal. L chegando, caa imediatamente na sua rotina de trabalho e preparava-se paralidar com peties, processos e as sesses pblicas e administrativas. Em tudo isso, fazia-senecessrio excluir dali tudo o que contivesse vida dentro de si o que sempre perturba oandamento normal das coisas oficiais. No permitia qualquer tipo de relaes com as pessoasque no as oficiais e, mesmo assim, no ambiente oficial. Por exemplo: um homem chega ansiosopor uma determinada informao. Ivan Ilitch, por no ser o funcionrio em cuja esfera repousaa matria, no teria nada a ver com o caso, mas se o assunto do tal homem fosse de suacompetncia, qualquer coisa que pudesse ser resolvida com o papel timbrado, nesse caso entoIvan Ilitch faria tudo que estivesse ao seu alcance e, ao agir assim, pareceria estar tendo relaeshumanas e cordiais, obedecendo aos ditames do bom relacionamento social. Mas ondecessassem as relaes oficiais, cessava tambm qualquer forma de contato. Essa arte de separarto bem a vida oficial da vida real Ivan Ilitch possua no mais alto grau e a prtica associada aotalento natural tinha-o feito desenvolver esse talento a tal ponto de perfeio que muitas vezes,como os virtuoses, ele at se permitia, por um breve momento, mesclar suas relaes humanascom as oficiais. E se permitia-se faz-lo era justamente porque podia, no momento que quisesse,reassumir o tom puramente oficial e abandonar a atitude humana. E Ivan Ilitch fazia tudo issono apenas com leveza, prazer e perfeio, mas como quem realiza um trabalho artstico. Nosintervalos entre as sesses, fumava, bebia ch, conversava um pouco sobre poltica, um poucosobre assuntos gerais, um pouco sobre jogo de cartas, mas acima de tudo sobre o trabalho. E,cansado mas sentindo-se como um artista um dos primeiros violinos da orquestra depois deuma excelente performance, voltava para casa. L ficava sabendo que me e filha tinham feitoe recebido visitas, o filho fora escola, preparara suas lies com o tutor e estava dando duropara aprender o que ensinam nas escolas. Estava tudo sob controle. Depois do jantar, se nohouvesse visitas, Ivan Ilitch s vezes lia algum livro que estivesse sendo comentado no momentoe depois sentava para trabalhar um pouco, isto , lia documentos oficiais, consultava o CdigoPenal e examinava os depoimentos das testemunhas, tomando nota dos pargrafos do CdigoPenal que se aplicassem ao caso. Para ele isso no era nem cansativo nem divertido. Eracansativo quando ele poderia, naquele momento, estar jogando whist, mas se no havia jogonaquela noite era, de qualquer maneira, melhor do que ficar sem fazer nada ou sentado com suaesposa. O maior prazer de Ivan Ilitch era dar pequenos jantares, para os quais convidava pessoasde boa posio social e, assim como sua sala de visitas parecia-se com todas as outras, tambmsuas agradveis festinhas nada tinham de originais.

    Uma vez deram at um baile. Ivan Ilitch divertiu-se muito e tudo saiu muito bem, a no serpelo fato de que a tal festa terminou gerando uma briga violenta entre ele e a esposa por causa dacomida. Praskovya Fiodorovna pensava em fazer de um jeito, mas Ivan Ilitch insistiu em mandarfazer tudo em um lugar carssimo e encomendou bolos demais e a briga comeou porque

  • sobraram bolos e a conta da confeitaria foi de quarenta e cinco rublos. Foi uma briga violenta,Praskovya chamou-o de tolo e imbecil e ele, colocando as mos na cabea, murmurou quequeria o divrcio. Mas a festa em si estivera bem agradvel. A nata da sociedade compareceu eIvan Ilitch danou com a Princesa Trufonov, uma das irms daquela que se tornou conhecida porsua ligao com a instituio de caridade Ameniza meu sofrimento. A ambio era sua maiorfonte de prazer no campo profissional, a satisfao de suas vaidades no campo social, mas seuverdadeiro deleite era o whist. Chegou a confessar que o que quer que acontecesse dedesagradvel em sua vida, a alegria que brilhava, como uma chama mais forte do que tudo,vinha de sentar para jogar com bons parceiros, compenetrados e silenciosos e naturalmente squatro (com cinco era irritante ter de ficar esperando, embora todos fingissem no seincomodar). Jogar uma partida sria, inteligente (quando as cartas o permitiam), seguida de umaboa janta e um bom vinho. E quando ia para a cama, depois do jogo, especialmente depois deganhar um pouco (ganhar uma soma muito alta era desconfortvel), Ivan Ilitch deitava-se paradormir especialmente feliz.

    E assim iam vivendo, circulavam nas melhores rodas e eram visitados tanto por pessoasimportantes quanto por jovens.

    No que se referia ao crculo de amigos de seu marido, Praskovya, assim como sua filha,nada tinham a reclamar e, num acordo tcito, tratavam de livrar-se de amigos e parentes que osvinham bajular em sua sala de visitas de pratos japoneses nas paredes. Em seguida, essas pessoasmal-arrumadas paravam de rodar em volta deles e em pouco tempo s aqueles que realmenteinteressavam eram vistos na residncia dos Golovin. Os rapazes comeavam a cortejar Liza, eum jovem magistrado, Petrishchev, filho e nico herdeiro de Dimitri Ivanovich Petrishchev,comeou a cobri-la de tantas atenes que Ivan Ilitch resolveu consultar sua esposa se no seriauma boa idia proporcionar-lhes um passeio de carruagem ou uma ida sozinhos ao teatro.

    E a vida continuava. E tudo continuava do mesmo jeito, sem problemas, e era tudo muitoagradvel.

  • 4A famlia toda gozava de boa sade. Ivan Ilitch s vezes queixava-se de um gosto estranhona boca e uma sensao desconfortvel no lado esquerdo do estmago, mas ningum chamariaisso de doena.

    Mas essa sensao desconfortvel foi piorando e, embora no sendo exatamente dolorosa,evoluiu para um tipo de presso no lado, acompanhado de desnimo e irritabilidade. A irritaofoi crescendo cada vez mais, at comear a estragar a vida agradvel, calma e decente que osGolovin haviam conseguido. O casal brigava cada vez com mais freqncia e h muito que todaa calma e o prazer da vida haviam cado por terra e era com dificuldade que conseguiam manteras aparncias como antes. Havia repetidas discusses, at que, no mar da discrdia restarammuito poucas ilhas nas quais marido e mulher conseguiam se encontrar sem que houvesse umaexploso. E Praskovy a dizia, agora no sem motivo, que seu marido tinha um temperamentodifcil. Com seu caracterstico exagero, sustentava que ele sempre havia sido assim e fora precisomuita pacincia de sua parte para suportar a situao durante esses vinte anos. bem verdadeque agora era ele quem comeava as discusses. Seus ataques temperamentais sempreexplodiam quando estavam sentando para o jantar, freqentemente um pouco antes da sopa.Bastava ele notar que um prato estava lascado, ou o gosto da comida no estava como deveria,ou era o filho que colocava o cotovelo em cima da mesa, ou o cabelo da filha que no estavabem penteado. E o que quer que fosse, a culpa era de Praskovya. No incio ela respondia nomesmo tom e dizia-lhe coisas desagradveis, mas depois que uma ou duas vezes, bem no inciodo jantar, ele entrou em tal delrio de repente, ela achou que se devia a alguma reao fsica queacontecia ao comer e resolveu conter-se e no reagir. Apressou-se em terminar a refeio.Praskovya orgulhou-se muito por esse exerccio de autocontrole. Tendo chegado concluso deque o marido possua um temperamento assustador e tornara sua vida miservel, comeou a terpena de si mesma e, quanto mais pena tinha de si mesma, mais detestava o marido. Comeou adesejar que morresse, ainda que no o quisesse morto porque com ele iria-se tambm o salriodele. E isso provocava-lhe ainda maior irritao contra ele. Julgava-se terrivelmente infelizjustamente porque nem mesmo sua morte poderia trazer-lhe alvio e, embora disfarasse suairritao, a amargura sufocada s fazia aumentar sua raiva.

    Depois de uma cena em que Ivan Ilitch fora especialmente injusto e depois dissera, guisade explicao, que sem dvida estava irritado mas que isso se devia ao fato de no estar sesentindo bem, ela respondeu que se ele estava doente devia ser tratado e insistiu em queconsultasse um mdico famoso.

    E ele foi. Seguiu-se tudo dentro do esperado, como sempre acontece. Houve o habitualperodo na sala de espera, a atitude importante assumida pelo mdico ele conhecia bem aquelear de dignidade profissional; ele prprio o adotava no Tribunal , os exames e as perguntas queexigiam respostas que levavam a concluses bvias e obviamente desnecessrias e o olhar grave,que queria dizer: Deixe tudo conosco e ns resolveremos as coisas, ns sabemos tudo do assuntoe podemos resolv-lo para voc, como faramos com qualquer outra pessoa. O procedimentotodo era igual ao dos Tribunais. Os ares que ele adotava no Tribunal em benefcio do prisioneiro,o mdico adotava agora em relao a ele.

  • O mdico disse-lhe que este e aquele sintoma indicavam que isto ou aquilo iam mal com opaciente por dentro, mas se esse diagnstico no fosse confirmado pelos exames clnicos disto oudaquilo, ento chegaremos a esta ou aquela concluso. Se chegarmos a esta ou aquela concluso,ento... e assim por diante. Para Ivan Ilitch s importava saber uma coisa: o seu caso era srio ouno era? Mas o mdico ignorou essa pergunta to fora de propsito. Do ponto de vista do mdicotratava-se de um detalhe que no merecia ser levado em considerao: o problema realmenteera avaliar todas as probabilidades e decidir entre um rim flutuante ou apendicite. No era umaquesto de Ivan Ilitch viver ou morrer, mas de decidir se era rim ou apndice. E nesse caso omdico inclinava-se mais em favor do apndice, com a ressalva de que a anlise da urinapoderia indicar uma pista totalmente nova e ento toda a questo teria de ser reavaliada. Tudoisso era, em menor proporo, exatamente o que Ivan Ilitch fizera de modo to brilhante milvezes ao lidar com as pessoas no Tribunal. O mdico concluiu tudo brilhantemente, olhandotriunfante por sobre os culos para o acusado. A partir da fala do mdico, Ivan Ilitch concluiu queas coisas no estavam bem, mas que para o mdico e provavelmente para todas as outraspessoas isso no faria a menor diferena, enquanto que para ele era simplesmente terrvel. Eessa concluso foi dolorosa, despertando-lhe um grande sentimento de autopiedade, e deamargura em relao ao mdico que no se importava nem um pouco com uma questo toimportante.

    Mas no disse nada, levantou, colocou o dinheiro da consulta em cima da mesa e falou comum suspiro:

    Ns, os doentes, sem dvida fazemos muitas vezes perguntas inadequadas. Mas, diga-me,de modo geral, assim por cima, esses sintomas lhe parecem graves ou no?

    O mdico olhou-o severamente por cima do monculo, como se dissesse: Pedimos ao ruque se atenha a responder o que lhe foi perguntado ou serei obrigado a fazer com que o retiremda sala.

    Eu j lhe disse tudo que julgava necessrio dizer respondeu o mdico , os examesdevem dar mais detalhes. E indicou-lhe a porta.

    Ivan Ilitch saiu devagar, sentou-se desanimado no tren e foi para casa. Durante todo opercurso repassava em sua mente as palavras do mdico, tentando traduzir todas aquelas frasescomplicadas, obscuras, cientficas, em linguagem normal, tentando encontrar nelas a respostapara a pergunta: Estarei mal, realmente muito mal ou, ao final das contas, isso no nada?. Etinha a impresso de que a concluso de tudo o que o mdico dissera era de que sim, ele estavarealmente muito mal. Tudo na rua parecia-lhe deprimente, os trens pareciam sem vida, assimcomo as casas, as pessoas que passavam na rua, as lojas. E essa dor, essas fisgadas de dor queele no conseguia identificar e que no cessavam um segundo sequer pareciam, se associadas senigmticas palavras do mdico, ter adquirido um significado novo e muito mais srio com essanova conscincia de sua desgraa. Ivan Ilitch agora no conseguia mais desviar dela sua ateno.

    Quando chegou em casa, comeou a falar sobre isso com sua esposa. Ela o escutava mas,no meio do seu relato, sua filha entrou de chapu, pronta para sarem. Um tanto relutante, elameio que sentou para ouvir a enfadonha narrativa, mas no conseguiu controlar sua impacinciapor muito tempo, e Praskovya Fiodorovna tambm no o escutou at o fim.

    Bem, fico muito contente! disse ela. Voc deve se cuidar daqui por diante e tomar osremdios regularmente. Me d a receita, vou mandar Gerassim at o farmacutico.

  • Ele mal havia conseguido tomar flego enquanto ela estava na sala e deu um profundosuspiro quando ela se foi.

    Bem, falou consigo mesmo, talvez no seja nada, afinal.Comeou a tomar o remdio e seguir as instrues do mdico, as quais foram alteradas

    depois do exame de urina. Mas foi justamente nesse fato que se originou uma concluso ligada anlise e o que deveria ter sido feito a partir da. O mdico naturalmente no podia serresponsabilizado, mas o fato era que as coisas no se passaram como o mdico lhe disse que sepassariam. Ou havia esquecido algo ou feito alguma bobagem ou estava-lhe escondendo algumacoisa.

    Apesar de tudo, Ivan Ilitch ainda continuava a seguir as ordens mdicas e no incioencontrava algum conforto nisso.

    Desde a primeira consulta ao mdico a principal ocupao de Ivan Ilitch passara a serseguir atentamente suas ordens no que se referia higiene e aos medicamentos e observaratentamente os sintomas de sua doena, bem como o funcionamento geral de seu corpo. Seuprincipal interesse passou a ser justamente a doena e a sade das outras pessoas. Quandoalgum mencionava doenas, mortes ou curas em sua presena, especialmente se os sintomas separecessem com os seus, ouvia a tudo atentamente, tentando disfarar sua agitao, fazerperguntas e aplicar o que ouvira ao seu prprio caso.

    A dor no diminua, mas Ivan Ilitch fazia grandes esforos para acreditar que estavamelhor. E at conseguia convencer-se disso, desde que nada acontecesse que o deixasseperturbado. Mas bastava que houvesse o menor aborrecimento com a esposa, ou sofressequalquer contrariedade no Tribunal ou lhe cassem cartas ruins no jogo e ele tornava-se de umahora para outra extremamente sensvel sua doena. Em outra poca ele teria suportado essescontratempos, esperando corrigir em seguida o que estava errado, super-los e sair-se bem detudo. Mas agora qualquer revs aborrecia-o e fazia-o afundar no desespero. Dizia-se coisascomo: Foi s eu me sentir um pouco melhor, o remdio comear a fazer efeito, que meacontece isso... muito azar mesmo.... E explodia contra sua m sorte ou contra as pessoas queestavam causando-lhe tal decepo e matando-o aos poucos. E ele tinha conscincia de comoesses ataques passionais o estavam matando, mas no conseguia conter-se. Qualquer umpensaria ser bvio para ele que exasperar-se assim com as circunstncias e com as pessoas sagravaria sua doena e que portanto ele no deveria dar ateno a esses incidentesdesagradveis. Mas ele conclura exatamente o contrrio: convencera-se de que precisava de paze estava atento s mnimas coisas que pudessem perturbar essa paz, tomando-se de raiva aomenor movimento nessa direo. Seu estado agravava-se pelo fato de ler livros de medicina econsultar vrios mdicos. O progresso de sua doena era to mnimo que, ao comparar um diacom o outro, seria capaz de enganar-se, to sutil era a diferena. Mas quando consultava osmdicos tinha a impresso de estar piorando rapidamente, assustadoramente, a cada dia. Aindaassim, ele continuava consultando mdicos.

    Naquele ms foi consultar outra celebridade. Essa celebridade disse exatamente o mesmoque a primeira, sendo que ele elaborou as perguntas de modo diferente e a entrevista com essacelebridade apenas fez redobrar nele as dvidas e os temores. Depois, um amigo de um amigoseu, um mdico muito bom, deu outro diagnstico para sua doena e, embora previsse que eleacabaria por se curar, suas perguntas e hipteses confundiram-no ainda mais e aumentaram seu

  • ceticismo. Um homeopata fez ainda um diagnstico diferente e deu-lhe um remdio que eletomou escondido por uma semana, mas, no final, no tendo sentido alvio algum e tendo perdidoa confiana tanto nos remdios anteriores quanto nesse novo tratamento, acabou ficando aindamais desanimado do que antes. Um dia, uma conhecida sua mencionou uma cura atravs deimagens milagrosas. Ivan Ilitch flagrou-se ouvindo atentamente e comeando a acreditar nahistria como algo concreto. Este incidente assustou-o. A minha cabea ter degenerado a esseponto?, perguntava-se. Todas essas bobagens, esse lixo...! No devo me deixar impressionar,mas sim escolher um mdico e seguir seriamente o tratamento que ele me der. isso que eu voufazer. Est decidido. No vou mais pensar nisso, s seguir o tratamento at o vero e entoveremos. De agora em diante, nada de vacilaes! Isso tudo era fcil de dizer, mas impossvelde colocar em prtica. A dor no lado preocupava-o e parecia ficar mais forte e mais freqente,enquanto que o gosto em sua boca era cada vez mais estranho. Tinha a sensao de estar semprecom mau hlito e seu apetite e sua fora diminuam gradativamente. No podia mais se iludir,alguma coisa terrvel, nova e importante, mais importante do que tudo o que j acontecera emsua vida, estava se passando dentro dele, alguma coisa da qual s ele estava a par. As pessoas emvolta dele no entendiam, recusavam-se a entender e acreditavam que tudo no mundocontinuava igual. Essa idia atormentava-o mais do que qualquer outra coisa. Via que todos osque o rodeavam, especialmente sua esposa e filha, to absorvidas por compromissos sociais, nos no tinham um pingo de compreenso, como ainda se irritavam com ele por andar todeprimido e exigente, como se a culpa fosse sua. Por mais que tentassem disfarar ele via queestava atrapalhando-lhes o caminho. Sua esposa havia adotado uma atitude em relao a suadoena, fixara-se nela e no se importava com o que ele dissesse ou fizesse.

    Voc sabe ela costumava dizer para os amigos , Ivan Ilitch no consegue fazer como asoutras pessoas e seguir o tratamento prescrito pelo mdico. Um dia ele toma os remdios,mantm a dieta e vai para a cama na hora certa, mas no outro, se no sou eu a me preocupar,ele esquece dos remdios, come caviar que o mdico proibiu e senta-se a jogar cartas at auma da manh.

    Ah, o que isto? Quando foi que eu fiz isso? ele perguntava irritado. S uma vez nacasa de Piotr Ivanovich.

    Ah, ? E ontem na casa de Shebek? Qual a diferena? Eu no teria dormido mesmo por causa da dor... Que seja, mas desse jeito voc no fica bom e nos faz infelizes.A atitude de Proskovya Fiodorovna em relao doena de Ivan Ilitch, que ela expressava

    abertamente, insinuava que toda a doena era culpa dele prprio e s mais um dos tantosaborrecimentos que ele costumava causar esposa. Ivan Ilitch percebia que ela deixava escaparisso tudo sem se dar conta, mas nem por isso doa-lhe menos.

    No Tribunal tambm Ivan Ilitch percebeu, ou imaginou perceber, o mesmo tipo de atitude.Certa ocasio pareceu-lhe que as pessoas o estavam observando com ar curioso, como quemobserva algum que vai, muito brevemente, deixar o seu posto. Depois, de uma hora para outra,seus amigos tentavam brincar por causa de seu estado de nervos, como se aquele pesadelo quevivia dentro dele, atormentando-o e sugando-o incessantemente, fosse o assunto mais excitantedo mundo para se fazer graa. Schwartz irritava-o em especial, com seu alto-astral, suavitalidade e perfeio, fazendo-o lembrar do que ele prprio fora dez anos antes.

  • Os amigos apareciam para jogar, sentavam-se mesa de jogo, distribuam as cartas,dobrando as novas para amaci-las. Separava os ouros e via que tinha sete. Seu parceiro dizia:Nenhum trunfo?, e ele passava-lhe dois ouros. Podia haver coisa melhor? Poderia ser divertidoe animado fariam um grand slam. E de uma hora para outra Ivan Ilitch lembra-se daquela dorinsistente, sente aquele gosto na boca e parece-lhe grotesco que, em tais circunstncias, ele possater qualquer prazer em um grand slam. Olhava para seu parceiro Mihail Mihailovich dandobatidinhas na mesa com suas mos seguras e, ao invs de jogar as cartas na mesa, como fazia,empurrava-as delicadamente na direo de Ivan Ilitch de modo que ele pudesse peg-las semmuito esforo. Ser que ele pensa que eu estou to fraco que no posso nem esticar meubrao?, pensa Ivan Ilitch e esquece as cartas mais altas e usa as cartas do parceiro e perde agrande jogada por trs pontos. E o mais terrvel notar o quanto Mihail Mihailovich ficouaborrecido, enquanto que ele prprio no liga a mnima. E horrvel pensar na razo pela qualele no se importa.

    Todos notam que ele est com dor e dizem que, se ele est cansado, podem dar uma parada.Ele poderia deitar um pouco. Deitar? No. Ele no est nem um pouco cansado. E terminam apartida, em silncio, melanclicos. Ivan Ilitch sente que ele quem faz com que se sintam assime no consegue desligar-se disso.

    Eles ceiam e a festa termina. Ivan Ilitch fica sozinho, consciente de que sua vida estenvenenada e de que est envenenando a dos outros e de que esse veneno no est perdendo suafora mas, ao contrrio, entranhando-se cada vez mais dentro de seu ser.

    E com essa certeza, mais a dor fsica e mais o terror que ele vai para cama, para namaioria das vezes ficar ali acordado, sentindo dor a maior parte da noite. E de manh ele precisalevantar, vestir-se, ir para o Tribunal, falar, escrever ou, se no sair, ficar em casa as vinte equatro horas do dia, o que significa vinte e quatro horas de tortura. E assim ele tinha de viver, beira do precipcio, sozinho, sem uma alma que o entendesse e dele tivesse compaixo.

  • 5Assim se passaram os meses, um depois do outro. Um pouco antes do Ano-Novo seucunhado chegou na cidade para ficar uns dias com eles. Ivan Ilitch estava no Tribunal. Praskovyafora s compras. Ao chegar em casa, entrando em seu escritrio, encontrou l o cunhado, umhomem saudvel, corado, desfazendo ele mesmo sua mala. O homem levantou a cabea aoouvir os passos de Ivan Ilitch e por um segundo olhou-o sem dizer uma palavra. Aquele olhardizia tudo. Seu cunhado chegou a abrir a boca, mas conteve-se e esse gesto foi o suficiente.

    Mudei muito, no ? Sim... h uma mudana...E depois disso, por mais que ele tentasse trazer seu cunhado de volta ao que estava fazendo,

    este continuava teimosamente em silncio. Praskovya chegou e foram juntos para o quarto, ela eo irmo. Ivan Ilitch trancou a porta e ps-se a examinar-se no espelho, primeiro de frente edepois de perfil. Pegou uma fotografia sua com sua esposa e comparou-a com o que via noespelho. A diferena era enorme. Depois arregaou as mangas at os cotovelos, olhou para osbraos, baixou-as novamente, sentou-se no ba e sentiu sua alma negra como a noite.

    No, no pode ser assim, disse para si mesmo. Levantou-se, foi para a mesa, abriu umdocumento oficial e comeou a ler, mas no conseguiu continuar. Abriu a porta e foi para a salade visita. A porta estava fechada. Ele aproximou-se p ante p e ps-se a escutar.

    No, voc est exagerando dizia Praskovya Fiodorovna. Exagerando? Ora, voc mesma pode ver ele est morto! Veja os olhos dele no tm

    mais nenhuma luz. Mas afinal o que que ele tem? Ningum sabe. Nikolayev (um dos mdicos) disse qualquer coisa, mas eu no sei o qu.

    Leshchetitsky (um famoso especialista) disse o contrrio.Ivan Ilitch foi para o seu quarto, deitou-se e ps-se a pensar: O rim, um rim flutuante. Ele

    lembrava tudo o que os mdicos haviam dito, de como o rim havia se desprendido e estavaboiando. E, num esforo de imaginao, tentou pegar aquele rim, prend-lo e firm-lo. Pareciaser to fcil. No. Vou visitar Piotr Ivanovich outra vez (este era um amigo que tinha um amigoque era mdico). Tocou a sineta, pediu que preparassem o tren e aprontou-se para sair.

    Aonde que voc vai, Jean? perguntou a esposa com um tom melanclico pouco usual euma expresso estranhamente gentil.

    Essa desconhecida gentileza encheu-o de fria. Olhou-a seriamente. Vou ver Piotr Ivanovich!E foi at a casa do amigo que por sua vez tinha tambm um amigo que era mdico e juntos

    foram ao consultrio deste. Encontrando-o l, Ivan Ilitch teve uma longa conversa com ele.Recapitulando os detalhes fsicos e psicolgicos do que na opinio do mdico estava se

    passando dentro dele, pde entender tudo.Havia s um probleminha sem nenhuma importncia no apndice. Tudo ficaria bem.

    Era estimular um rgo que no estava trabalhando direito, examinar o outro e tudo daria certo.Chegou um pouco atrasado para o jantar. Comeu e falou animadamente, mas demorou um

    bom tempo at que se decidisse a voltar para o trabalho em seu escritrio. Finalmente foi e emseguida sentou-se a examinar papis, leu documentos legais e trabalhou neles, mas o tempo todo

  • havia aquela sensao de que colocara de lado alguma coisa um assunto pessoal, importante para a qual voltaria assim que terminasse o que estava fazendo. Quando terminou, lembrou queesse assunto pessoal era seu apndice. Mas resolveu no se entregar, foi para a sala tomar ch.Havia visitas, entre eles o magistrado examinador, considerado um bom partido para sua filha, eeles estavam conversando, tocando piano e cantando. Ivan Ilitch, como bem notou Praskovy a,passou a noite em melhor humor do que em outras ocasies, mas em nenhum momentoesqueceu que havia esse assunto importante relativo a seu apndice para ser analisado. s onzehoras despediu-se e foi para a cama. Desde que adoecera passara a dormir sozinho em umpequeno quarto junto do escritrio. Trocou de roupa e pegou o livro de Zola que estava lendo,mas, em vez de ler, pegou-se a pensar. E na sua imaginao dava-se aquela to desejadamelhora nos intestinos. Secreo e evacuao eram estimuladas, as atividades normais eramrestabelecidas. Sim, isto!, pensou. As pessoas s tm que ajudar a natureza, isso tudo!Lembrou-se do remdio, sentou-se, engoliu e deitou novamente de costas, aguardando que oremdio fizesse efeito e parasse a dor. Tudo o que tenho a fazer tomar o remdioregularmente e evitar excessos. Ora, eu j estou melhor, muito melhor! Examinou o lado e nosentiu dor ao toc-lo. No est sensvel. J est muito melhor. Apagou a luz e virou-se... Oapndice est se ajeitando, j est havendo secreo... Mas, subitamente, sentiu a velha,familiar e insistente dor, a mesma fisgada, constante, teimosa, terrvel. Na sua boca, o mesmogosto desagradvel, to familiar. Seu corao se apertou, sua cabea girou. Oh, meu Deus! Oh,meu Deus!, murmurou. L vem ela outra vez! Nunca vai parar! E ento, de repente, comonum claro, o problema se apresenta pela primeira vez de uma forma bem diferente.Apndice! Rim!, ele pensava. Ora, no uma questo de apndice ou rim, mas de vida... oude morte. Sim. Havia vida, e agora ela est indo embora, esvaindo-se, e eu no tenho condiesde det-la. Claro! Por que me enganar? Est claro para mim que eu estou morrendo e que suma questo de semanas, de dias... pode acontecer nesse exato momento. Havia luz e agora hescurido. Eu estava aqui e agora estou indo embora. Mas para onde? Um calafrio percorreuseu corpo, a respirao ficou ofegante e ele s conseguia ouvir o corao disparando.

    No existirei mais e ento o que vir? No haver nada. Onde estarei quando no existirmais? Ser isso morrer? No. Eu no vou aceitar isso! Levantou-se e tentou acender a vela comas mos trmulas. Deixou cair vela e castial no cho e atirou-se outra vez cama. De queadianta? Que diferena faz?, perguntava-se fixando, com olhos arregalados, a escurido.Morte. Sim, morte. E nenhum deles entende, ou quer entender. E no sentem pena nenhuma demim. Esto todos se divertindo. (Podia ouvir, mesmo com a porta fechada, distante, a cadnciade uma msica e seu acompanhamento.) Eles no se importam. No entanto eles tambm vomorrer. Idiotas! A nica diferena que acontecer um pouquinho mais cedo para mim e umpouquinho mais tarde para eles. S isso. Mas a vez deles vai chegar. Agora, porm, esto sedivertindo. Insensveis! A raiva cortava-lhe a respirao. Sentia-se insuportavelmente infeliz.No pode ser que todos os homens sejam sempre condenados a passar por esse horror!Levantou-se.

    No vou continuar assim. Tenho que me acalmar, pensar em tudo o que aconteceu desde ocomeo! E comeou a refletir. Sim, o comeo da minha doena. Dei uma batida de lado, masainda estava bem naquele dia e no seguinte. Machucou um pouco, depois piorou. Depois fuiconsultar os mdicos, depois veio a depresso, infelicidade e mais mdicos e o tempo todo eu ia

  • me aproximando, sem saber, cada vez mais desse abismo. Comecei a enfraquecer. Cada vezmais perto! E agora estou definhando e no h mais luz nos meus olhos. A morte est ao meulado e eu pensando em apndice! Pensando em como fazer funcionarem os intestinos, enquantoa morte bate minha porta. Mas ser isso realmente a morte? Sentiu o terror tomar conta outravez e respirou com dificuldade. Sentou-se para procurar os fsforos, bateu com o cotovelo namesa de cabeceira, descontrolou-se e virou a mesa com raiva. Desesperado e sem flego,deixou-se cair esperando a morte naquele momento.

    Enquanto isso as visitas se despediam. Praskovy a Fiodorovna levava-os at a porta, quandoouviu um barulho e entrou.

    O que aconteceu? Nada. Fui eu que derrubei isto sem querer.Ela saiu e voltou com uma vela. Ele ficou deitado, com a respirao pesada, como quem

    acabou de correr uma milha, olhando-a fixamente. O que foi, Jean? Naada. Eu que virei...! (Por que falar sobre isso? Ela no vai entender.)E realmente ela no entendia. Pegou a vela, acendeu-a para ele e saiu apressada para se

    despedir de outro convidado. Quando voltou ele continuava deitado, na mesma posio, fixando oteto.

    O que houve? Est se sentindo pior? Sim!Ela sacudiu a cabea e sentou. Sabe, Jean, acho que deveramos chamar Leshchetitsky at aqui.Isto significava mandar buscar o famoso especialista, sem se preocupar com a despesa.

    No, respondeu, sorrindo maldosamente. Ela ficou mais um tempo sentada, depois aproximou-se dele e beijou sua testa.

    Enquanto ela o beijava, ele odiou-a do fundo de sua alma e foi com dificuldade queconseguiu conter-se para no empurr-la.

    Boa-noite. Se Deus quiser, voc dormir bem! Sim.

  • 6Ivan Ilitch via que estava morrendo e desesperava-se.No fundo do corao sabia que estava indo embora e, longe de acostumar-se com a idia,

    simplesmente no conseguia entend-la.O exemplo de um silogismo que aprendera na Lgica de Kiezewetter, Caio um homem,

    os homens so mortais, logo Caio mortal, parecera-lhe a vida toda muito lgico e natural seaplicado a Caio, mas certamente no quando aplicado a ele prprio. Que Caio, ser abstrato, fossemortal estava absolutamente correto, mas ele no era Caio, nem um ser abstrato. No: havia sidoa vida toda um ser nico, especial. Fora o pequeno Vany a, com mame e papai e Mita eVolodya, com brinquedos e um tutor e uma bab; e mais tarde com Ktia e todas as alegrias eprazeres da infncia, da adolescncia e da juventude. O que sabia Caio do cheiro da bola decouro de que Vanya tanto gostava? Por acaso era Caio quem beijava a mo de sua me eescutava o suave barulho da seda de suas saias? Foi por acaso Caio quem se envolveu emprotestos quando estudante de Direito? Foi Caio quem se apaixonou? Quem presidiu sesses comoele?

    E Caio certamente era mortal e era mais do que justo que morresse, mas ele, o pequenoVanya, Ivan Ilitch, com todos os seus pensamentos e emoes, completamente diferente. Nopode ser verdade, isto seria terrvel demais.

    Era assim que se sentia por dentro.Se eu tinha que morrer, assim como Caio, deveriam ter-me avisado antes. Uma voz dentro

    de mim desde o incio deveria ter-me dito que seria assim. Mas no havia nada em mim queindicasse isso; eu e todos os meus amigos sabamos que no nosso caso seria diferente. E eis queagora... No... no pode ser e no entanto assim! Como entender isso?

    E no conseguia compreender e tentava desviar seus mrbidos e desesperanadospensamentos e substitu-los por outros mais razoveis, mais saudveis, mas a idia e no apenasa idia, mas a realidade tal qual se apresentava voltava a todo momento para enfrent-lo.

    E ele buscava outros pensamentos para pr no lugar desses, um depois do outro, naesperana de encontrar alento. Tentou voltar a antigos pensamentos que no passado o haviamprotegido contra a idia da morte. Mas, estranhamente, tudo aquilo que antes costumavaencobrir, obscurecer e destruir o sentimento de morte j no fazia mais o mesmo efeito. IvanIlitch passava agora a maior parte do seu tempo nessas tentativas de reencontrar a antigaproteo mental que mantinha a morte fora de sua vista. Dizia-se a toda hora: Vou retomarminhas atividades afinal de contas eu vivia para o meu trabalho!. E afastando todas as dvidas,ia para o Tribunal, comeava a conversar com seus colegas e sentava em sua cadeira com ardistrado, como era de hbito. Observava as pessoas com olhar pensativo e, descansando suasmos magras no brao da cadeira, como sempre fazia, inclinava-se para um colega e, puxandoos papis para perto de si, sussurravam trocando impresses e ento, subitamente levantando osolhos e endireitando-se na cadeira, pronunciava as tradicionais palavras que davam incio sesso. Mas, abruptamente, no meio disso tudo, a dor no lado, no importando a etapa do trabalhoem que se encontrasse, surgia e impunha-se. Ivan Ilitch, assim que tomava conscincia dela,tentava desviar o pensamento, mas ela resistia, teimosa. A dor chegava e postava-se frente a ele,

  • olhando-o, afrontando-o, e ele enrijecia de pavor, a viso escurecia e perguntava-se se ela, a dor,existia realmente. E seus colegas e subordinados notavam com surpresa e pesar que ele, o juizbrilhante e arguto, estava se confundindo e cometendo erros. Tentava se recompor e recuperar ocontrole e conseguia, de alguma forma, encerrar a sesso, e voltava para casa com a tristecerteza de que o trabalho j no podia, como antigamente, esconder dele o que queria queficasse escondido e que suas atividades no podiam, definitivamente, livr-lo dela! E pior do quetudo, ela chamava constantemente sua ateno, no para faz-lo tomar alguma providncia, massimplesmente para faz-lo olhar direto no seu rosto e, sem poder fazer nada, sofrer, sofrerindescritivelmente.

    E para tentar salvar-se desse estado de esprito, Ivan Ilitch procurava alvio novos abrigos e encontrava protees que por um momento pareciam salv-lo, mas em seguida mostravam-seineficazes, como se ela penetrasse em todos eles e nada pudesse tir-la dali.

    Algumas vezes, j tarde, ele ia at a sala de visitas que ele prprio havia mobiliado edecorado aquela sala de visitas onde houve a queda por culpa da qual (e como isso lhe pareciairnico) estragara toda sua vida, pois sabia que sua doena se originara daquele machucado.Entrava na sala e, notando que havia algum arranho na mesa, procurava logo a causa e via queera a capa de bronze de um lbum fora do lugar. Pegava o valioso lbum que havia arrumadocom tanto carinho e irritava-se com sua filha e as amigas por sua falta de cuidado aqui e alihavia uma pgina rasgada ou uma fotografia de cabea para baixo. Colocava tudo em ordem epunha o lbum de volta no lugar.

    De repente ocorria-lhe mudar todos os lbuns de lugar e coloc-los no canto da sala ondeestavam as plantas. Chamava o empregado, mas quem vinha em seu socorro era sua mulher ousua filha, que nunca concordavam com ele, contrariavam-no e ele discutia e acabava seirritando. Mas estava tudo bem, desde que ele no pensasse nela. Ela no estava ali.

    Mas bastava sua esposa dizer, assim que o via carregar ele mesmo alguma coisa: Deixeque os empregados fazem isso, voc vai se machucar outra vez e imediatamente ela punha osolhos para dentro do abrigo que o protegia. Ele podia v-la. Ela s dera uma espiada e ele tinhaesperanas de que desaparecesse, involuntariamente. Via-se esperando por ela e l estava, amesma de antes, doendo, doendo o tempo todo e agora j no podia esquec-la e ela o olhaatentamente por detrs das flores. De que adianta isso tudo?

    E a verdade que perdi minha vida aqui, perto daquela cortina, assim como poderia t-laperdido invadindo um forte. D para acreditar? Que coisa terrvel! ridculo! No pode ser! Nopode ser, mas !

    Ele ento ia para seus aposentos, deitava-se e outra vez ficava a ss com ela. Cara a caracom ela. E no havia nada que ele pudesse fazer com ela, a no ser olhar e estremecer.

  • 7 impossvel dizer como tudo aconteceu, porque deu-se aos poucos, passo a passo,imperceptivelmente, mas no terceiro ms da doena de Ivan Ilitch, sua esposa, sua filha, seufilho, os empregados, os conhecidos, os mdicos e acima de tudo ele prprio tinham conscinciade que toda a considerao que ele podia ter pelas outras pessoas concentrava-se em um nicoponto: saber quando ele afinal partiria e libertaria finalmente os vivos do constrangimento de suapresena e a si prprio de seu sofrimento.

    Passou a dormir cada vez menos; deram-lhe pio e passaram a aplicar-lhe injees demorfina, mas nada dava-lhe alvio. A angstia surda que experimentava naquele estado semi-entorpecido, no incio, trouxe-lhe certo alento pela mudana, mas logo tornou-se to angustiantequanto a prpria dor, ou at mais.

    Preparavam-lhe comidas especiais, seguindo as ordens mdicas, mas esses pratospareciam-lhe cada vez mais sem gosto, cada vez mais enjoativos.

    Medidas especiais tambm tiveram de ser tomadas para ajudar na sua evacuao, o que eraum constante sofrimento para ele; sofrimento pela sujeira, pela inconvenincia e pelo cheiro epor saber que outra pessoa tinha de ajudar.

    No entanto, esse mesmo inconveniente foi o que trouxe a Ivan Ilitch algum conforto.Gerassim, o criado que servia a mesa, era quem vinha sempre limp-lo.

    Gerassim era um campons jovem e limpo, que crescera forte, graas comida local, eestava sempre bem-disposto. No incio a imagem do rapaz nas suas roupas limpas de campons,envolvido naquela tarefa repugnante, deixava-o embaraado.

    Houve uma vez em que, levantando-se da privada, de to fraco que estava no conseguiuerguer suas calas. Sentou-se em uma cadeira baixa e olhou com horror suas fracas coxas nuas,com os magros msculos nelas desenhados.

    Gerassim entrou com seus passos leves mas firmes, espalhando um agradvel aroma deterra que vinha de suas botas e do ar fresco do inverno. Vestia um avental limpinho de tecidorstico e uma limpa camisa de algodo com as mangas arregaadas sobre seus fortes e jovensbraos nus, e sem olhar para Ivan Ilitch por considerao pelos sofrimentos do doente ,disfarando a alegria de viver que brilhava em seu rosto, foi at a privada.

    Gerassim chamou Ivan Ilitch com voz fraca.O jovem ergueu-se, temendo ter feito alguma coisa errada e, com um suave movimento,

    virou na direo do invlido seu rosto fresco, calmo, simples e jovem, no qual uma barba apenascomeava a brotar.

    Senhor? Isto tudo deve ser muito desagradvel para voc. Desculpe-me. No posso fazer nada! O que isto, senhor! E seus olhos brilhavam num sorriso de dentes brancos e jovens.

    No me custa nada. um caso de doena. O que se vai fazer?E com mos habilidosas executou sua tarefa rotineira e saiu do quarto pisando suavemente,

    retornando cinco minutos depois, to suavemente quanto sara.Ivan Ilitch continuou sentado na mesma posio naquela cadeira. Gerassim chamou de novo quando este j havia feito a limpeza , por favor, venha me

  • ajudar! Gerassim foi at ele. Levante-me. difcil sozinho e eu dispensei o Dimitri!Gerassim foi at ele e, com a mesma delicadeza com que andava, ps seus braos fortes ao

    seu redor, ergueu-o delicadamente e amparou-o com uma mo, enquanto com a outra erguiasuas calas e j ia coloc-lo na cadeira novamente quando Ivan Ilitch pediu para ser levado at osof. Sem esforo e sem dar a impresso de que segurava com firmeza, levou-o quasecarregado para o sof e o acomodou.

    Obrigado, voc faz tudo to bem e com tanto cuidado...!Gerassim sorriu outra vez e virou-se para sair. Mas Ivan Ilitch sentia tanto conforto em sua

    presena que no queria deix-lo ir. S mais uma coisa. Coloque aquela cadeira perto de mim, por favor. No, a outra, sob os

    meus ps. Sinto-me mais confortvel com os ps para cima!Gerassim trouxe a cadeira, colocou-a no lugar e ps as pernas de Ivan Ilitch em cima dela.

    Ivan Ilitch tinha a impresso de sentir-se mais calmo enquanto Gerassim levantava suas pernas. Com as pernas para cima melhor. Coloque aquela almofada aqui embaixo.Gerassim foi l e outra vez ergueu suas pernas para colocar embaixo a almofada e

    novamente Ivan Ilitch notou o quanto se sentia melhor quando Gerassim segurava suas pernas.Quando ele as largava Ivan Ilitch tinha a sensao de piorar.

    Gerassim, voc est muito ocupado agora? Absolutamente, senhor! respondeu Gerassim, que aprendera com os empregados da

    cidade a como falar com os bem-nascidos. O que que voc ainda tem para fazer? O que eu tenho para fazer? Eu j fiz tudo. S falta cortar a lenha para amanh! Ento levante as minhas pernas um pouco mais, pode ser? Claro que sim e Gerassim ergueu as pernas de seu patro mais para cima e Ivan Ilitch

    teve a impresso de que nessa posio no sentia absolutamente nenhuma dor. Mas e a lenha?! No se preocupe com isso, senhor. H tempo.Ivan Ilitch pediu a Gerassim que sentasse e segurasse suas pernas e comeou a conversar

    com ele. E curiosamente parecia-lhe sentir-se mais confortado pelo fato de Gerassim estarsegurando suas pernas.

    Depois disso, muitas vezes Ivan Ilitch chamava Gerassim e pedia que colocasse suas pernassobre seus ombros e sentia prazer em conversar com ele. Gerassim fazia tudo calmamente deboa vontade, com simplicidade e uma bondade que comoviam Ivan Ilitch. Nas outras pessoas,sade, fora e vitalidade ofendiam-no, mas a fora e a vitalidade de Gerassim, ao contrrio deaborrec-lo, transmitiam-lhe calma.

    O que mais atormentava Ivan Ilitch era o fingimento, a mentira, que por alguma razo elestodos mantinham, de que ele estava apenas doente e no morrendo e que bastava que ficassequieto e seguisse as ordens mdicas que ocorreria uma grande mudana para melhor. Mas elesabia que nada do que eles fizessem teria outro resultado que no mais agonia, mais sofrimento ea morte. E a farsa desgostava-o profundamente: atormentava-o o fato de que se recusassem aadmitir o que eles e ele prprio bem sabiam, mas insistiam em ignorar e foravam-no aparticipar da mentira. Esse fingimento que se estabeleceu em torno dele at a vspera de suamorte, essa mentira que s fazia colocar no mesmo nvel o solene ato de sua morte, suas visitas,

  • suas cortinas, seu caviar para o jantar... eram-lhe terrivelmente dolorosos.E muitas vezes, quando estavam encenando sua farsa para o bem dele, achavam, ele por

    pouco no se punha a gritar: Parem de mentir! Vocs sabem, eu sei e vocs sabem que eu seique estou morrendo. Portanto, pelo menos parem de mentir sobre o fato!. Mas nunca chegou ater coragem para isso. O horrvel, terrvel ato de sua morte, ele via, estava sendo reduzido poraqueles que o rodeavam ao nvel de um acidente fortuito, desagradvel e um pouco indecente(mais ou menos como se comportam com a