Substância Simples e Composta Em Leibniz

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paper on the notion of Leibniz's substance

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Substncia simples substncia composta[footnoteRef:1] [1: A anlise da relao entre substncia simples e substncia composta muito complexa e cobre praticamente toda a metafsica de Leibniz. No possvel, por isso, apresentar seno um esboo das questes principais, omitindo muitas anlises e noes que, em rigor, se deveriam expor para dar conta dos problemas em causa. O texto que se segue pretende, portanto, traar somente as linhas gerais da argumentao de Leibniz, remetendo para alguns, poucos, textos de Leibniz onde os problemas esto apresentados de modo mais pormenorizado. Tenha-se em conta que a apresentao do problema que aqui se faz no segue o percurso gentico ou histrico (o da formao dos conceitos ao longo da obra de Leibniz), mas tenta ser a exposio do resultado final das anlises leibnizianas.]

O modo como Leibniz apresenta, logo no comeo dos Princpios da Natureza e da Graa, a diviso do gnero "substncia" em substncia simples e composta presta-se, pela sua aparente facilidade, a grandes mal-entendidos. O processo de "argumentao" parece ser o seguinte: tem de haver substncias simples porque h substncias compostas. Leibniz no parece, portanto, sentir qualquer necessidade de provar a existncia de substncias compostas, como se apenas fosse duvidosa a existncia das simples. -se assim levado a pensar que deve ser relativamente fcil reconhecer a presena de substncias compostas, e essa facilidade compreende tanto o facto de serem compostas quanto o facto de serem substncias. No se apresenta, tambm, nenhum explicao pormenorizada sobre a prpria noo de composio, que parece reduzir-se, at pelas expresses utilizadas, de simples soma ou de composio real entre elementos reais, quer dizer, a um mero conjunto ou coleco de substncias simples. Apresentadas as coisas desta forma, o leitor ser conduzido a entender a diviso do gnero "substncia" em simples e composta da seguinte forma: as coisas que se nos apresentam, os objectos do mundo, so, como se reconhece imediatamente, compostos, dado que possuem partes; podem, portanto, ser divididos, com maior ou menor facilidade, pelo menos conceptualmente. Tais objectos "devem ser" as substncias compostas, pois claro, por um lado, que so efectivamente compostos, e, por outro, que so os nicos entes que estamos em condies de reconhecer imediatamente como "coisas que realmente so", como substncias. Na verdade, se, com a expresso "substncia composta", Leibniz se estivesse a referir a outro tipo de entes que no aqueles a que temos naturalmente acesso aqueles que nos rodeiam, entre os quais estamos, que vemos e tocamos no poderia pressupor logo, e sem mais, a existncia desse tipo de substncias, que o que parece fazer, pois tal existncia a premissa que permite concluir, depois, a existncia das simples. Quer dizer, a no necessidade de prova ou argumentao quanto s substncias compostas, o seu carcter mais evidente relativamente s simples, parece indicar que elas so as coisas que "conhecemos bem": as pedras, as rvores, os animais, etc., isto , os corpos, considerados de modo geral. Sendo os corpos as substncias compostas, as simples devero ser pela lgica da argumentao as suas partes constitutivas, pois as compostos so a reunio ou coleco das simples. evidentemente possvel que no estejamos, de facto, em condies de reconhecer claramente as partes enquanto tais (ou de as encontrar); quer dizer, pode acontecer que no seja para ns possvel (tendo em conta os constrangimentos do nosso modo de nos havermos com as coisas) expor isoladamente as partes elementares dos compostos (provavelmente pela sua "pequenez"), mas devem existir partes elementares, porque h, de facto, acesso real a compostos e estes exigem analiticamente a existncia de partes; de outra forma seriam compostos de compostos, numa sucesso que alcanaria o infinito, quer dizer, no seriam nada, nem compostos, nem substncias; isto , seriam irreais: no haveria nenhuma realidade nas coisas que reconhecemos e entre as quais vivemos seriam habitantes de um puro sonho, um conjunto de fantasmas e de iluses.Se Leibniz estivesse realmente a afirmar ser esta a estrutura das coisas compostas (e, consequentemente, das simples), estaria, sem dvida, a ser inteligvel, ainda que, provavelmente, muito pouco original: repetiria Demcrito e Leucipo, restabeleceria a existncia de tomos, o que, alis, Gassendi j tinha feito. certo que a continuao do texto acrescentaria algumas modificaes ao atomismo, modificaes que se poderiam at considerar significativas, mas, em ltima anlise, a "lgica da constituio das coisas" seria a do atomismo. Leibniz estaria apenas a afirmar que os tomos no possuem a natureza que Demcrito e Gassendi lhes atriburam, mas sim uma outra estrutura: no seriam inertes, mas sim vivos (sem que, todavia, a insistncia neste aspecto tivesse uma origem e uma fundamentao muito claras, pois, na verdade, partida, nada impede que haja elementos inertes nas substncias compostas). Ou seja, a diferena entre a noo de tomo e a de Mnada (para usar a terminologia definitiva de Leibniz) corresponderia somente a uma diferena quanto ao modo de conceber os tomos, mas manter-se-ia a noo de elemento real constitutivo, parte real do composto, bem como a de composio como conjunto, coleco de partes, que se relacionariam directa e realmente entre si, de modo "fsico"., de facto, possvel, ler os textos desta forma. Na verdade, quando, no Novo Sistema, Leibniz refere que, depois de se ter libertado do jugo de Aristteles, aceitando a existncia do vazio e dos tomos, se sentiu obrigado a regressar, depois, ao Aristteles abandonado na juventude, possvel considerar esse regresso como correspondendo apenas a uma variao quanto determinao dos elementos das coisas a que temos imediatamente acesso dos corpos. Assim, Leibniz mantm, por exemplo, a tese segundo a qual os compostos so coleces ou reunies de substncias simples. Ou seja, pouca novidade parece haver no Novo Sistema: ela reduzir-se-ia, como se disse, a ser uma correco que diria respeito estrutura constitutiva dos tomos, e de tal modo que se poderia at manter a terminologia: os elementos so "tomos substanciais" (o que, partida, parece at uma redundncia). Acresce que as correces introduzidas por Leibniz na estrutura geral dos tomos possuem a notvel desvantagem de serem bizarras e, assim parece, transcenderem totalmente os fenmenos, aquilo que podemos saber das coisas: os tomos seriam, no s todos vivos, mas, alm disso, possuiriam todos percepo e desejo. , de facto, difcil conter um sorriso quando se sabe que Leibniz, enquanto saboreava o seu caf (de que gostava bastante), confidenciava a um amigo que no caf que bebia existiriam provavelmente mnadas, que se poderiam transformar at, no futuro, em almas humanas[footnoteRef:2]. Ora no nada claro, nada leva a pensar (e at desagradvel), que um lquido claramente inerte esteja composto por partes vivas com estas caractersticas, dotadas de percepo e de tendncias. E mesmo no caso dos entes vivos no parece tambm nada evidente que sejam compostos por elementos com estas propriedades: possvel que possuam partes inertes. E ainda que Leibniz tenha tentado provar que assim o que tambm no claro, pelo menos com aparente sucesso , tal prova pareceria ser de natureza totalmente dialctica, isto , requerer mais "f" do que reconhecimento ou comprovao de que as coisas so, de facto, assim. [2: Cfr. HANSCH, M., Godofredi Guilielmi Leibnitii Principia Philosophiae More Geometrico Demonstrata, Frankfurt-Leipzig, 1728, p. 135.]

H, todavia, algumas passagens no texto de Leibniz que tornam difcil aceitar este modelo de interpretao. Assim, por exemplo, Leibniz expe metaforicamente a coleco de tomos substanciais que constitui uma substncia corprea, como um "tanque (charco, lago) cheio de peixes". Ora se parece evidente que os peixes esto no tanque, o mesmo no se pode dizer quanto composio da gua: esta no composta de peixes nem efeito da sua reunio. certo que se pode tratar apenas de uma m metfora, tanto mais que aparece relacionada com as de "exrcito" e de "rebanho", que exprimem, estas sim, de modo adequado, as noes de reunio ou coleco. E, todavia, Leibniz costuma ser cuidadoso na escolha das metforas. Mas este , de facto, somente um aspecto secundrio e irrelevante, pois Leibniz apresenta, de facto, um argumento que inviabiliza totalmente a prpria estrutura geral do atomismo, com ou sem correces acrescentadas. Que o seguinte: os compostos no possuem partes indivisveis ou elementos ltimos de composio, mas so compostos por partes igualmente compostas, numa subdiviso no apenas indefinida mas actualmente infinita. Ou seja, as partes dos compostos e precisamente enquanto partes no so elementos; so apenas, e novamente, outros compostos, porque a natureza das partes tem de ser homognea com a do todo que constituem. Ora a tese geral do atomismo diametralmente oposta: deve haver elementos, no sentido real, isto , momentos realmente indivisveis, para que o composto seja real.O atomismo, certo, satisfaz melhor a imaginao, mas no resiste, de facto, anlise. Na verdade, a "tese" de Leibniz deriva da prpria noo de "corpo": os corpos esto compostos necessariamente por corpos, pois a composio de entes incorpreos no pode produzir corpo algum, por "muitos" que sejam os elementos incorpreos a entrar em composio, mesmo que tal fosse pensvel. A "soma" de momentos inextensos produzir, se produzir alguma coisa, um conjunto de elementos inextensos, como parece bvio, mas no um corpo extenso. Quer dizer, no h corpos que sejam, em si mesmos, de iure, elementares, isto , realmente indivisveis, ainda que no esteja eventualmente em nosso poder dividi-los sempre em novas e mais partes. Mas essa impossibilidade indiferente prpria estrutura dos elementos do corpo, pois faz parte da noo de corpo possuir extenso e da noo de extenso estar constituda por partes extra partes. E se as partes no forem, elas mesmas, extensas, a extenso no ser, enquanto tal, analisvel, como de facto . Assim sendo, a composio dos corpos extensos necessariamente composio de compostos, por maior que seja a diviso: toda a diviso da extenso termina noutra extenso. Desta forma, os tomos, se forem extensos, no sero, no sentido rigoroso do termo, tomos, indivisveis em si, mas, quanto muito, apenas para ns, o que indiferente para constituir uma descrio geral da estrutura da natureza das coisas. Pode, portanto, haver "unidades" de facto, mas no sero unidades reais, mas somente para ns, quer dizer, meros fenmenos de unidade. Deste ponto de vista, a noo de composio dos corpos a partir de elementos inconcebvel, ainda que seja facilmente imaginvel: "il n'y a pas d'elemens dans la nature corporelle"[footnoteRef:3]. [3: Nouveaux Essais..., G V, 204.]

Tudo isto pode levantar e de facto levanta graves problemas quanto s noes de composio dos corpos e de partculas elementares e, mais ainda, quanto prpria realidade dos corpos. Mas necessrio, antes de mais, "localizar" o mbito do problema: possvel que, do ponto de vista emprico, no seja possvel proceder a uma diviso contnua do extenso, de tal modo que se exija interromper a anlise "fsica" e estabelecer a existncia de partculas elementares. Mas do ponto de vista puramente conceptual ou racional, tal interrupo de anlise ser arbitrria, arbitrariedade que facilmente se detectar quando se reconhecer que, em ltima anlise, se trata de um problema de "escala": as "partculas elementares" dos compostos no so infinitamente pequenas "em si mesmas", porque "pequeno" e "grande" so determinaes relativas. Os tomos no so "em si mesmos" muito pequenos, a no ser para a imaginao, isto , para uma escala determinada que somente "uma escala" a nossa, que tomamos como cannica, ou seja, como a escala certa e verdadeira. "Em si mesmos" os tomos no so nem pequenos nem grandes: so extensos ou inextensos. Se so extensos, so "em si mesmos" divisveis"; se so inextensos, no podem constituir extenso, isto , no so partes[footnoteRef:4]. Assim, se se abstrair, no caso de tal ser possvel, de representaes imaginrias e de argumentos de natureza puramente dialctica (como o caso dos que afirmam que o corpo extenso "tem de ser" composto por elementos, pois de outra forma a composio ser irreal), o problema formular-se- de modo racional (atendendo somente s determinaes em causa) da seguinte forma: de que so compostos os compostos? De elementos extensos ou inextensos? Exclui-se, portanto, a questo meramente emprica de saber se possvel, de facto, proceder a uma diviso infinita. Colocado desta maneira, o problema s admite uma resposta, por muito que tal repugne imaginao: os compostos so compostos por compostos, e no possuem elementos simples isto , sem partes considerados em si mesmos e na sua estrutura intrnseca. [4: certo que o problema mudar de forma se se chegar concluso de que as "partculas elementares" no so tomos, quer dizer, no possuem as propriedades da extenso, mas outras, a determinar pelas instncias competentes. Em qualquer dos casos, permanecer o problema da composio dos corpos extensos por "partculas" no extensas (quer dizer, permanecer o problema da realidade da extenso) e tambm o da natureza de 'corpos' no extensos, porque se presume que as partculas elementares possuem propriedades fsicas, naturais (quer dizer: no so 'espritos').]

Ora parece evidente que, se assim , a aparente demonstrao leibniziana referente existncia de substncias simples, atrs referida, cai pela base. De facto, no possvel provar a existncia do simples a partir do composto, se este composto por compostos. O que significa, por outro lado, que no sendo os corpos efeito de coleco ou reunio reais de substncias simples, a sua composio no poder ser pensada como composio real de coisas simples. Dito de outro modo, os compostos que reconhecemos como parte do mundo em que vivemos, a saber, os corpos, no so as substncias compostas. Na verdade, no se vislumbra que "substancialidade" se pode dar num "ente" que composio de compostos, sem elementos ltimos reais que lhe confiram substancialidade. Ou seja, os corpos, tal como nos so apresentados, no podem ser "substncias", porque no h neles nada de substancial. Assim sendo, no se percebe, como se disse, a "argumentao" de Leibniz, pois no se pode fazer derivar a existncia de substncias simples a partir de compostos que no so realmente compostos por elas. certo que Leibniz afirma haver uma relao entre composio e simplicidade, mas tal relao no pode ser "directa" ou "fsica", por assim dizer, quer dizer, no pode consistir numa imediata reunio de "coisas".Em resumo: no nada claro que se entende por substncia composta, nem de que modo se pode provar a existncia de substncias simples a partir delas nem que tipo de relao se designa com o termo composio. O texto seria claro se se inclusse na "lgica" do atomismo. Mas a argumentao de Leibniz parece ter por funo alterar precisamente esta lgica, ou seja, estabelecer um sentido totalmente novo e totalmente diferente para os termos dessa lgica, apesar de se manter a terminologia[footnoteRef:5]. Torna-se, pois, necessrio refazer desde o incio o sentido da argumentao de Leibniz ou, ento, ter de admitir que se est perante um sistema de contradies em que se lana mo de uma argumentao (a da composio real de elementos simples) para concluir na tese que a nega (a indefinida e infinita composio dos corpos) [footnoteRef:6]. [5: Como se disse, esta uma estratgia frequente de Leibniz: utilizar uma argumentao e uma terminologia estabelecidas que so facilmente reconhecveis pelo seu leitor a fim de introduzir um sentido diferente e novo, por vezes, radical e diametralmente diferente, o que torna a sua leitura bem mais rdua do que seria desejvel.] [6: No se pretende, como fica claro, fazer a cada passo uma discusso da literatura secundria, do comentrio leibniziano, que interminvel. Mas aqui parece ser necessrio abrir alguma excepo. Um livro recente HARTZ, G., Leibniz's Final System. Monads, Matter and Animals, London/New York, Routledge, 2007 assume que a contradio que se acabou de descrever no deve ser levantada, mas aceite como tal, na medida em que os textos de Leibniz no pretendem ser descritivos (isto , no pretendem dizer a verdade), mas sim terico-hipotticos (ao modo dos modelos cientficos) e assim a contradio corresponderia a duas interpretaes igualmente possveis do mesmo estado de coisas. No possvel analisar e criticar aqui a tese de HARTZ. A tese ultrapassa, alm disso, o sentido dos textos de Leibniz para recair sobre o sentido dos prprios textos filosficos enquanto tais (a tese de HARTZ, parece, torna os textos filosficos insignificantes). claro, pelo que segue, que aqui se tenta uma estratgia radicalmente oposta: a contradio apontada pode ser anulada, os textos podem constituir um todo coerente, na condio de serem interpretados de modo descritivo, precisamente, tanto quando dizem respeito a fenmenos dados como quando dizem respeito a teses os sentidos dados. Isto , os textos devem ser de facto classificados quanto sua pretenso descritiva (alguns so, de facto, mais hipotticos), mas o prprio Leibniz se encarrega de os classificar, na maior parte dos casos.]

Comear pelo princpio comear por tentar elucidar que se entende, de facto, pelo termo substncia enquanto tal. Na verdade, quando a anlise se inicia pela diviso da "substncia" em simples e composta, a ateno do leitor imediatamente desviada para os "tipos" de substncia, permanecendo pressuposto o sentido do prprio conceito que assim se divide[footnoteRef:7], como se ele fosse realmente indiferente compreenso de cada uma das suas possibilidades de instanciao. Ora tal no , de facto, o caso, como se tentar mostrar. sabido que Leibniz oferece vrias definies de substncia, que correspondem diversidade de vias de acesso quilo que propriamente constitui a realidade. A substncia , pois, definida de diferentes modos, consoante os problemas que estiverem a ser examinados. Para o caso presente, importa considerar o seu aspecto mais formal e mais metafsico, aquele mediante o qual se indica que pelo termo substncia se expe o ncleo mais fundamental e bsico do que propriamente . Este aspecto , como se sabe, o da unidade: "je ne conois nulle realit sans une veritable unit", o que significa, "pour trancher court (...) que ce qui n'est pas veritablement un estre, n'est pas non plus veritablement un estre. On a tousjours cr que l'un et l'estre sont des choses reciproques"[footnoteRef:8]. A unidade que constitutiva da entidade dever ser uma unidade real, ou seja, no pode limitar-se a ser uma unidade de facto, de natureza meramente emprica. No se trata, assim, de procurar algo que seja empiricamente irredutvel e indivisvel, mas sim algo que seja conceptualmente indivisvel: o ente uno deve ser concebido como absolutamente indivisvel, intrinsecamente uno, no admitir, portanto, nenhuma forma possvel de diviso. O que significa que no pode ser um corpo, pelos motivos j indicados. Posta a definio formal de substncia, a possibilidade de empreender uma anlise que lhe corresponda dupla: Leibniz poderia optar por uma anlise de natureza dialctica, quer dizer, deduzir as propriedades que a substncia dever possuir para concordar com a definio, independentemente de qualquer forma de reconhecimento fenomenolgico dessas propriedades, isto , independentemente de corresponderem a algum tipo de fenmeno; ou poderia optar, pelo contrrio, pela elucidao da natureza das propriedades da substncia a partir da exposio e descrio do fenmeno da unidade, no caso de haver tal fenmeno. Ora, apesar das aparncias, e de algum tipo de comentrios, Leibniz segue claramente a segunda via. De facto, no basta, para dar conta do que se passa, afirmar como deve ser a substncia, que tipo de caractersticas ter de possuir. A argumentao dever, pelo contrrio, basear-se em algum fenmeno, pois de outra forma todo o discurso ser simblico e no produziria realmente nenhum tipo de esclarecimento ou de inteligibilidade reais: no se saberia de que se estaria a falar. Dito de outro modo, a anlise deve depor o sujeito perante isso mesmo que est a ser analisado, perante a "prpria coisa" o que um outro modo de dizer que a anlise deve ser uma descrio, passvel de acompanhamento dos seus vrios momentos no "face a face" com a "coisa" de que se trata. Se assim no fosse, no haveria qualquer controlo para as teses enunciadas, que estariam, ento, mais facilmente merc do erro, pois o sujeito no seria conduzido por nenhum tipo de apresentao ou fenmeno que pudesse confirmar as suas pretensas dedues. Todavia, o caminho fenomenolgico parece mais difcil de executar, porque no dispomos, pelo menos aparentemente, de nenhum fenmeno de unidade que cumpra os requisitos formais da noo de substncia acima indicados. Todos os acontecimentos e "coisas" que surgem no horizonte do que nos aparece e do que nos pode aparecer parecem ser sempre divisveis, pelo menos no espao e/ou no tempo, nem estamos em condies de imaginar ou representar um ente que seja absolutamente indivisvel. H, todavia, um fenmeno que, apesar da sua complexidade e da sua pouca clareza, parece corresponder a uma unidade individual: precisamente o do indivduo, do eu. Como habitual, Leibniz lacnico na descrio do fenmeno (o que no quer dizer que tambm o seja, muito pelo contrrio, quanto ao que diz sobre esse fenmeno), pois parece pressupor, na maior parte dos casos, que o leitor no ter qualquer dificuldade em reconhecer encontrar-se perante uma unidade indivisvel. Leibniz dir, assim, que o eu simples, sem partes, e di-lo- como se praticamente no se exigisse prova para tal afirmao. certo que se unidade e a simplicidade forem propriedades do eu, no ser necessrio prov-las, no sentido rigoroso do termo, pois sero formas de ocorrncia de algo que estamos em condies de reconhecer no momento em que dizemos eu, isto , no momento em que, de alguma maneira, tomamos conscincia de ns mesmos. Mas dado que o fenmeno do eu confuso, como o prprio Leibniz concede[footnoteRef:9] quer dizer, no apresenta as suas determinaes num modo que permita o seu reconhecimento explcito nem a fixao da sua identidade atravs das suas propriedades , requer-se pelo menos um mnimo de descrio do fenmeno para que, de alguma forma, se possa dar conta do que se compreende nele. [7: Este um aspecto ao qual Leibniz particularmente sensvel: a noo de substncia no clara e deve comear-se precisamente pela tentativa da elucidao do prprio conceito: "Quando on dispute, si quelque chose est une substance ou une faon d'estre, il faut definir ce que c'est que la substance. Je trouve cette definition nulle part, et j'ay est oblig d'y travailler moy mme", Carta a Foucher, G I, 384; o sublinhado meu.] [8: Carta a Arnauld, G II, 97.] [9: "La notion du moy en particulier (...) est infiniment plus tendue et plus difficile comprendre qu'une notion specifique comme est celle de la sphere, qui n'est qu'incomplete (...). Ce n'est pas assez pour entendre ce que c'est que moy, que je me sente une substance qui pense, il faudroit concevoir distinctement ce qui me discerne de tous les autres esprits possibles; mais je n'en ay qu'une experience confuse", Carta a Arnauld, G II, 52-53.]

A descrio do fenmeno do eu sofre impedimento, em primeiro lugar, da inclinao natural prpria da sua actividade de representar. De facto, tendemos a ofuscar o acto de representar (o prprio acto), a desviar a nossa ateno dele e a tom-lo como "nada", devido ocupao considerativa com aquilo que se representa. Normalmente, o que se faz quando se representa permanece nos bastidores daquilo que, atravs disso, se torna presente perante o sujeito. No temos, habitualmente, noo de "estar a fazer qualquer coisa" quando, por exemplo, vemos ou tocamos, de tal modo que "ver" ou "tocar" parecem ser o reconhecimento fcil e imediato da imposio da presena de qualquer coisa diante de ns. Dizer que um sujeito "v" corresponde, assim, em condies normais, afirmao de que as coisas se oferecem sem dificuldade, se apresentam imediatamente desde que no haja impedimentos (objectivos ou subjectivos) para tal. Parece, por isso, haver uma inclinao natural para enfraquecer praticamente at ao desvanecimento o reconhecimento do acto de representar, devido clareza da imposio dos contedos expostos, que so o que ocupa a considerao do sujeito: as coisas vistas, tocadas, etc. O acto de representar parece, pois, estar totalmente ao servio do representado, de tal forma que se escapa e oculta no prprio momento em que se tenta capt-lo. Dito de modo metafrico, no acto de representar parece incluir-se uma tendncia "para diante", para as coisas representadas, tendncia de tal forma acusada que dificilmente se reconhece como tendncia, precisamente porque a sua natureza consiste em depor o sujeito diante de qualquer coisa, distraindo-o do reconhecimento dessa tendncia e dessa deposio. Razo pela qual, quando o sujeito tenta representar-se a si mesmo, apreender-se como um eu, normalmente levado a representar "qualquer coisa", isto , a constituir um representado particular, um objecto de representao que diz ser o eu uma coisa "a", com determinadas propriedades objectivas, possuindo o mesmo estilo de presena de qualquer outra. Em resumo, parece incluir-se no acto de representar uma inclinao natural que decorre da prpria estrutura intencional da representao , que faz que, no momento em que o sujeito tenta reverter sobre si, acabe apenas por produzir uma representao de um objecto "dotado de propriedades subjectivas", como se "possuir propriedades subjectivas" fosse apenas uma caracterstica particular de um objecto, de um representado. Quer dizer, a representao do eu sofre a tendncia de o considerar como um representado que, enquanto representado, possui a capacidade de representar, o que parece uma contradio, pois todo o representado possui a estrutura de estar perante o sujeito que representa. O sujeito toma-se a si prprio como aquilo que representa "de si", o que corresponde a uma sntese de identificao entre dois momentos de estrutura heterognea, como se o sujeito que v fosse, enquanto v, idntico representao que ele prprio v, descurando completamente o facto de a representao vista no ser vidente: no parece possvel, de facto, possuir um representado que , ao mesmo tempo, representado enquanto representado e enquanto representante. Assim sendo, a descrio adequada do fenmeno do eu, considerado como sujeito, no pode corresponder descrio de um determinado "objecto" que se diz "ser sujeito", como se a diferena entre sujeito e objecto no dissesse respeito forma de ser ou de presena, mas apenas posse de algumas determinaes objectivas particulares. Se assim fosse, o "ser sujeito" estaria constitudo mediante a adjudicao a posteriori de determinaes ditas "subjectivas", mas no corresponderia ao ser mesmo do sujeito. Dito de modo mais breve, a descrio do fenmeno do eu no pode prescindir, como se fosse desperdivel, da diferena radical de estrutura existente entre acto e contedo de acto.Ora ao eu parece pertencer, de facto, a propriedade de ser o momento que representa, o mbito no qual toda a representao, enquanto contedo exposto, ocorre. O que significa que, para aceder descrio do fenmeno do eu se deve proceder anlise do acontecimento da representao enquanto acto e no anlise de um qualquer objecto representado, por muito privilegiado que possa ser (como o caso do acontecimento natural do ente "homem"), ainda que, pelos motivos indicados, isso implique tentar uma inverso da inclinao natural da representao, quer dizer, exercer uma violncia anti-natural sobre o acto de representar.O aspecto que mais facilmente se reconhece na representao a existncia de uma pluralidade. A representao compreende uma variedade de formas visuais, auditivas, tcteis, etc. e, por sua vez, cada uma delas possui como contedo uma pluralidade, pois nenhum representado, seja qual for a sua forma, simples. No h, assim, no sentido estrito do termo, percepo do simples. O que, todavia, parece prprio da forma da apresentao a sua constituio intrinsecamente individual, mesmo que o contedo representado inclua uma variedade. evidentemente possvel representar um objecto constitudo por partes extra partes, como o caso de todos os objectos que se do no espao, e possvel tambm (parece at no haver outra possibilidade) representar objectos que ocupam momentos diversos do tempo, como o caso de todos os objectos representados. Mas a representao desses objectos s possvel num acto que no est constitudo por partes. As partes do representado no so partes da representao do representado. De facto, a representao de uma pluralidade produz-se somente quando tal pluralidade est reunida e compreendida sob um nico momento, momento que torna at possvel a prpria apresentao da pluralidade enquanto tal. Na verdade, a viso de uma variedade de objectos que se encontram sobre uma mesa possvel se todos eles estiverem presentes num s acto de viso que os compreende a todos no seu "interior". Se, por absurdo, a representao da pluralidade fosse, ela mesma, plural, no haveria representao da pluralidade, mas "duas" representaes, cada qual com o seu contedo prprio, sem qualquer relao entre si. Nem seriam sequer "duas", pois no haveria relao entre elas, a no ser que essas duas representaes se inclussem, por sua vez, numa outra representao que as compreenderia como seu contedo. O acto de ver no tem partes, pois nele que as partes so dadas enquanto tais, enquanto vistas. O que significa que o reconhecimento de uma pluralidade dada no pode ser feito " vez", passo a passo e por acrescentos extrnsecos, como se a apresentao dada de um conjunto de objectos fosse produto da "soma" de vrias representaes, que se acrescentariam de modo extrnseco[footnoteRef:10]. Assim, qualquer variedade dada est compreendida num nico acto e por ele que ela surge precisamente como variedade, como multiplicidade de momentos. Ou seja, justamente o facto de haver um s acto que possibilita o aparecimento de uma variedade. O que significa que o acto de incluso dessa variedade , no sentido literal do termo, uma compreenso, uma reunio compreensiva, quer dizer, uma sntese, um acto de unificao, acto e sntese que admitem vrias modalidades, tantas quantas as formas de percepo. Mas a sntese perceptiva, seja qual for a sua modalidade, no se constitui como uma unificao ou reunio a posteriori de uma multiplicidade j dada, como se a sntese pressupusesse a prpria multiplicidade. Pelo contrrio: no acto de reunio, e por ele, que a multiplicidade surge enquanto sentido "multiplicidade", pois no h sentido "multiplicidade" sem reunio e no h reunio sem acto de reunir. Assim, por exemplo, a sntese perceptiva de um objecto no espao no pode resultar da reunio a posteriori de uma variedade de partes dispersas j dada, porque a percepo dessa mesma variedade nessa mesma disperso j o efeito de a coligir representativamente como disperso. A apresentao da variedade depende da co-presena dos momentos da variedade e essa co-presena no decorre deles, mas do acto de os constituir num mesmo mbito, que os compreende a todos, tendo em conta que a compreenso que os constitui como "todos". O que outro modo de dizer que a sntese no produto simples dos elementos a sintetizar, como se se tratasse de uma simples coleco, porque eles so "elementos" (isto , vrios) pela reunio: toda a anlise pressupe uma sntese. , pois, perfeitamente possvel dividir ou analisar o contedo representado, mas no possvel dividir o acto de representar, pois ele que torna possvel a prpria diviso. A sntese perceptiva , pois, indivisvel, quer dizer, simples, sendo que, neste caso, o termo simples no significa ausncia de variedade, mas sim ausncia de partes constitutivas, como explicitamente indica Leibniz no primeiro pargrafo da Monadologia. Ou seja, a percepo um acto de unificao e, como acto, no composta por partes, pois no se trata de um objecto representado, mas de uma aco, no sentido rigoroso do termo. neste sentido que a percepo indivisvel: considerada como uma aco e no como uma "coisa posta". Leibniz insiste repetidamente no facto de a percepo no excluir a variedade, mas somente a existncia de partes, quer dizer, excluir somente a composio real. Parece ser este tambm o motivo pelo qual Leibniz igualmente insiste na afirmao da impossibilidade de explicar a percepo mediante processos estritamente mecnicos, como se a percepo derivasse de um ajustamento peculiar e preciso de partes reais. Por mais complexos e subtis que possam ser os processos mecnicos, a percepo no pode ser efeito deles o que no nega uma eventual relao que a percepo possa manter com processos orgnicos, como se ver mais adiante , porque um sistema de processos mecnicos apenas pode produzir uma unidade irreal, meramente mental (isto , presente na mente de o sujeito que os representa) e no uma unidade intrnseca: por mais bem ajustadas que estejam as partes, elas mantm-se numa exterioridade recproca, de forma que no constituem realmente uma reunio real compreensiva, como a que requerida para constituir uma percepo. No se trata apenas, portanto (ainda que este aspecto esteja igualmente includo na afirmao de Leibniz), de no se reconhecer nenhuma comunidade de sentido entre uma percepo e os eventuais processos mecnicos que com ela possam estar relacionados. Na verdade, a considerao de qualquer tipo de processos desta natureza tomada em si mesma, isto , numa anlise que apenas tenha em vista os prprios processos em nada indicia que se esteja perante um processo perceptivo, pois s por experincia se pode chegar concluso de que h uma relao entre tais processos e tal percepo. Quer dizer, a correspondncia entre os dois termos (percepo e processos orgnicos) sempre feita a posteriori e numa sntese em que nenhum dos termos se reconhece como sendo realmente o outro, isto , uma sntese que no constitui identidade. Sabemos por experincia que a uma alterao determinada nalguns processos orgnicos corresponde uma outra alterao determinada na percepo, mas na considerao da viso no reconhecemos sinapses, nem na considerao das sinapses reconhecemos cores: no h qualquer identidade fenomenolgica entre os dois termos (se se desse tal identidade fenomenolgica, bastaria analisar um dos termos para poder reconhecer nele, e imediatamente, o outro, o que no acontece de facto). Mas, como se disse, no este o aspecto essencial. O aspecto essencial pertence prpria estrutura ou forma de acontecimento da percepo e dos sistemas mecnicos: enquanto na percepo a sntese a prpria possibilidade do sentido "multiplicidade", de tal modo que a variedade efeito da unidade sintetizadora, e a unidade que real, nos processos mecnicos a realidade pertence s partes, o que significa que o todo efeito de mera conjuno de partes e, assim, meramente mental, pois a sua unidade , quanto muito, da mera contiguidade, no anulando, portanto, a existncia de partes extra partes. A estrutura fenomenolgica dos dois acontecimentos , pois, diametralmente oposta, quer dizer, as descries so irredutveis, o que torna impossvel identific-los. A percepo no , assim, uma mquina, mas um acontecimento simples; uma aco e no um conjunto de objectos bem ajustados ou um estado de coisas. [10: Como evidente, perfeitamente possvel constituir a apresentao discursiva de uma pluralidade como o caso da pluralidade exposta na reteno temporal , mas tambm neste caso, se h apresentao dada de uma pluralidade, ela requer a reteno, num acto, da pluralidade que discursivamente se reconhece: se o acto "anterior" no se mantm como o mesmo, a nova pluralidade no ser "nova": ser a primeira e aparecer no seu isolamento. Para o caso presente, interessa apenas vincar que qualquer apresentao da pluralidade se d numa forma nica, num acto s.]

Para alm da pluralidade compreendida em cada percepo, a vida representativa inclui ainda uma pluralidade de actos perceptivos, quer quanto ao nmero quer quanto espcie. Tal variedade possui uma forma de organizao semelhante que se verifica em cada uma das percepes consideradas isoladamente: o sujeito reconhece essa multiplicidade de acontecimentos; reconhece a sua diferena e a sua irredutibilidade (reconhece, por exemplo, que ver no ouvir); no confunde nem se confunde com essa variedade, quer dizer, no se perturba com a irredutibilidade de modos de perceber, como se estivesse perante posies irreconciliveis que de algum modo teria de constituir em acordo; e reconhece tudo isso em si mesmo, quer dizer, sem que a variedade do contedo das percepes e das modalidades de percepo o dividam ou dispersem em partes ou fraces de si. O fenmeno , como se sabe, no s complexo como at "imprevisvel", por assim dizer. De facto, tendo em conta a enorme quantidade de acontecimentos que se compreendem em qualquer apresentao dada e a sua variedade formal, seria "normal" que o sujeito se confundisse, atravancado como est por coisas diferentes e irreconciliveis quanto ao seu estilo, dispersando-se em orientaes intencionais variadas ora cores, ora sabores, ora imaginaes, ora desejos, ora recordaes, ora ... , como se tivesse de acorrer a cada uma para a atender e dar conta dela, largando-a de imediato para poder atender a outra. E, no entanto, nada disto acontece. H certamente pluralidade e de muitas formas, mas o sujeito no se divide para poder reconhecer todas, tal como a viso no se divide para poder reter a multiplicidade que compreende, mas rene-a num acto simples. Todas as percepes se concentram no sujeito, unificando-se nele num nico "ponto de vista" constituindo uma apresentao de coisas em vrias formas de apresentao. Nesta unificao da pluralidade no si mesmo do sujeito, os prprios momentos assim unificados como que se "impregnam" uns dos outros (segundo regras a determinar fenomenologicamente), "se dizem" uns dos outros, sem que isso implique que eles se confundam ou que o sujeito os confunda entre si: ele distingue bem "cor" de "som", "recordao" de "imagem" e, todavia, perfeitamente "possvel" que as cores estejam impregnadas de recordaes e os sons de imagens (e os sons das cores, e o peso da humidade, e ..., como , de facto, o que acontece), ou que as coisas vistas estejam a ser acompanhadas por outras sensaes, sem que esse acompanhamento se constitua a modo de sobreposio ou de mera justaposio extrnseca. A apresentao das coisas no vivida por ns como um caos, uma anarquia de coisas sem nexo, um conjunto de posies isoladas (passe a contradio), mas como uma unidade que, num acto s, percorre essa multiplicidade, constituindo uma viso. Nem a anlise nem a descrio esto em condies de recuperar adequadamente a unidade da apresentao que temos das coisas: sero obrigadas a comear "num ponto" para, depois, passar a outro, abandonando o anterior, e assim sucessivamente, terminando finalmente por acrescentar, como "ltimo aspecto", que todos esses momentos sucessivos se nos do como um s, como se o facto de todos constiturem uma unidade fosse um facto mais a acrescentar. No , na verdade, possvel dizer ao mesmo tempo tudo o que acontece ao mesmo tempo. Requer-se tempo e desmembramento artificial de posies. H, na verdade, uma rapidez extraordinria no modo como unificamos a totalidade do que nos aparece, o que no significa, como bvio, que a unificao se faa "muito depressa", mas sim que se exige uma infinidade de tempo para repor discursivamente o que "agora" nos oferecido imediatamente, "logo". Esta lentido da anlise depende da necessidade de desmembramento ou de desarticulao do que, na percepo, dado na unidade, ainda que aquilo que esteja a ser dado seja uma pluralidade. Mas a descrio no recupera o momento da unidade, a no ser "mecanicamente", por assim dizer, por ajustamento de partes, que se descrevem como se se acrescentassem ("de fora") umas s outras. Dito de outro modo, a anlise tenta repor mediante processos construtivos tomando isoladamente cada uma das posies imanentes percepo algo que na prpria percepo se d originalmente de modo sinttico, numa unidade simples e sem partes. A limitao da descrio relativamente a isso que nela se pretende descrever , assim, dupla, pelo menos: por um lado destri artificialmente a unidade da apresentao para tentar reconstru-la a posteriori, passo a passo, o que deixa escapar o que essencial: a sua unidade simples; por outro, o prprio desmembramento muitssimo deficiente (e provavelmente no sabemos at que ponto deficiente) quanto extraordinria complexidade e variedade do que se compreende numa nica percepo, reduzindo-se habitualmente a determinaes vagas e incompletas, desperdiando uma mole de ocorrncias que sobrecarregariam a descrio e que fariam at perder de vista, pela confuso que se produziria, isso mesmo que se pretende analisar. Para descrever apenas o que estamos em condies de reconhecer explicitamente "agora" precisaramos de uma infinidade de tempo.Assim, o sujeito possui a cada momento uma multiplicidade de acontecimentos que, por sua vez, incluem em si outra multiplicidade de momentos. E possui todos num "nico olhar" e de uma vez s, quer dizer, possui-os em si mesmo na unidade do seu eu. O eu , portanto, simples, pois de outra forma no haveria uma s pluralidade diferenciada, mas tantas quantas unidades compreensivas, quer dizer, haveria vrios sujeitos diferentes: a uma pluralidade dada independentemente da sua composio, mais ou menos variada e diferenciada corresponde um s acto subjectivo de compreenso, uma s sntese (ainda que essa sntese possa compreender momentos sintticos subordinados, como se indicar a seguir). No h, pois, partes no eu, considerado como momento activo de unificao (e no como uma coisa posta ao lado de outras), ainda que, nele, possa haver muitas formas de composio.Acresce, ainda, que o eu uma unidade discursiva, determinada temporalmente: a multiplicidade que ocorre nele varia e de muitos modos. Mas essa variao no pode afectar a unidade real do eu. Poder-se-ia eventualmente pensar que a discursividade temporal do eu corresponderia a um acrscimo de partes, partes que, neste caso, seriam as suas experincias, as suas novas percepes. O eu estaria, ento, composto por "blocos perceptivos", que se juntariam, formando a sua histria, como se o dia de amanh se juntasse ao de hoje que, por sua vez, se somou ao de ontem, tais como as partes se justapem. No parece ser esse, todavia, o caso. O sujeito no "incorpora" experincias, pois qualquer experincia deve ser originalmente "dele", determinada a priori por ele como sua. O dia de amanh corresponde, "em mim", a uma variao do que acontece "em mim", e no oferta de uma coisa, de tal modo que a identidade nica do eu permanece sempre pressuposta como idntica. A unificao das experincias no pressupe a realidade isolada das percepes que se ligam, de alguma misteriosa maneira, para compor a continuidade da histria chamada "eu", mas antes variao interna da experincia dada que se transforma continuamente noutra. Quer dizer, o sujeito cresce a partir de dentro e no por justaposio de partes, e esse crescimento corresponde no a uma acumulao de coisas estranhas e supervenientes, mas transformao contnua de si em si, mantendo-se o transformado noutra forma (de recordao, por exemplo), permanecendo estvel a identidade do eu. Razo pela qual Leibniz, para descrever o processo discursivo da constituio do eu fala em "gravidez". De facto, a experincia seguinte no se d por interrupo do estado anterior, mas sim por metamorfose e crescimento interno. Ou seja, a unidade do eu no pode ser o resultado da soma das "suas" experincias (pois, nesse caso, no seriam nunca "suas"), mas sim o momento que permite uma multiplicidade dada tanto na simultaneidade como na sucesso. O sujeito no , portanto, um produto construdo por experincias annimas, mas a unidade onde todas elas podem ter lugar, seja qual for a sua forma de ocorrncia. H, portanto, experincia de algo simples, verdadeiramente uno e indivisvel e, assim sendo, h alguma notificao ou fenmeno da substncia. O termo "substncia" corresponde, pois, originalmente ao fenmeno do eu e possui, desta forma, um sentido e fundamento fenomenolgicos. O que no implica que s o eu, tal como "cada um" o entende, seja substncia. Implica sim que qualquer substncia dever possuir uma forma de ser semelhante que reconhecemos em ns, se ao termo "substncia" corresponder qualquer coisa[footnoteRef:11]. No estamos, de facto, em condies de pensar uma unidade real que no seja a de um acto, de uma aco de unificar; e no temos, de facto, qualquer noo de uma aco real e simples de unificao que no seja a de percepo[footnoteRef:12]. Todas as outras "unidades" ou sero mentais (como as dos compostos de partes) ou smbolos lgicos vazios (como A=A), que, apesar de simples, no so seno smbolos, no correspondem a nenhuma apresentao dada, ou "os pontos da geometria", que so simples, mas abstractos e irreais. Esta parece ser a razo pela qual Leibniz insiste em que toda a substncia um ente vivo. O termo vida no pode aqui reduzir-se sua compreenso biolgica. Parece antes referir-se, de um modo mais geral, capacidade de aco unificadora de uma multiplicidade, que recebe dessa aco o seu sentido. E, deste ponto de vista, viver e representar so a mesma coisa, pois a aco de unificar perceber[footnoteRef:13]. Toda a substncia activa, porque uma unidade e porque o nico fenmeno que temos de unidade o da sntese perceptiva. Importa, pois, vincar que, ao definir a percepo como "multiplicidade na unidade", Leibniz no est a conferir unidade o estatuto de "recinto" ou "campo" inerte povoado e percorrido por quaisquer multiplicidades, como se o "mbito" das percepes fosse um terreno neutro e morto onde acontecem coisas que se relacionam com ele (com o prprio mbito) de modo extrnseco. A unidade dessa multiplicidade o acto de constituir a multiplicidade, de tal forma que o que se d, o que surge e se apresenta, somente a multiplicidade ( isso que vemos). O acto de unificao no uma "coisa" que, como se fosse uma caixa, contm muitas coisas, mas uma aco que produz a apresentao de uma variedade, e no a apresentao da variedade mais a da unidade. A unidade da multiplicidade no se v, tal como a viso no se v, pois nela que a multiplicidade vista. Assim, uma unidade esttica, que no fosse unificao, aco, seria uma abstraco que, uma vez mais, a nada corresponderia, nada apresentaria. Desta forma, afirmar que toda a substncia est viva, que activa, que simples, que una e que percebe apenas afirmar uma s coisa, nos seus vrios momentos: o fenmeno do eu como nico fenmeno que corresponde definio formal de substncia, identidade entre unidade e ser. Ou seja, por substncia simples entende-se o sujeito (o prprio sujeito tal como se reconhece a si mesmo em si mesmo), enquanto sujeito que representa e na variao da representao. Este , pois, o sentido primrio e original do termo substncia. [11: "Substantiam ipsam (...) veluti t Ego vel simile, pro indivisibili seu perfecta monade habeo", Carta a De Volder, G II, 251.] [12: "Aussi n'y at-il que cela qu'on puisse trouver dans la substance simple, c'est dire les perceptions et leur changemens", Monadologia, G VI, 609; cfr. ainda Carta a De Volder, G II, 271.] [13: Por este motivo, por "percepo" deve entender-se apenas o que se compreende na sua definio unificar uma multiplicidade , que pode assumir muitas formas, algumas, ou muitas delas, eventualmente desconhecidas para ns. Na verdade, nada impede que, tal como possumos (para seguir a tradio e fora de qualquer rigor fenomenolgico) cinco sentidos, possa haver sujeitos com outros sentidos totalmente diferentes, to diferentes dos nossos como a viso diferente, por exemplo, da audio.]

Esta determinao do sentido original do termo substncia como sujeito que representa presta-se, todavia, a mal-entendidos, na medida em que nela se pressupe ainda a compreenso natural de sujeito. De facto, por "sujeito" entendemos habitualmente um ente entre outros entes, dotado de caractersticas particulares, entre as quais se contam as possibilidades ou faculdades de representar. Por "sujeito" entendemos, portanto, o "homem", um acontecimento natural posto no seio das coisas que so, no mundo, possuidor de capacidade (que, alis, no lhe so absolutamente exclusivas, mas que compartilha, pelo menos em certo grau, com outros entes naturais) de se dar conta de, de se aperceber do que se passa sua volta, e de agir e de ser afectado por isso. Deste ponto de vista, a representao ser considerada como uma forma peculiar de acesso ao mundo. Por sua vez, por "mundo" (e sem querer entrar em consideraes mais precisas) compreendemos normalmente a totalidade, o conjunto das coisas que h, de significado e existncia autnomos e anteriores ao "homem". O mundo a instncia na qual o homem surge como mais um momento dele, determinado por ele (pelo mundo), e com o qual se pode relacionar de diversos modos, um dos quais precisamente o da representao. A relao perceptiva com o mundo acrescenta-se, assim, ao prprio mundo (apesar de tal acrescento se dar no seu interior), que , pois, a posio original e primeira. O "homem" no , desta forma, um ente fechado e encerrado em si mesmo, totalmente preenchido pelas suas determinaes imanentes, mas est dotado de formas de abertura, vias de acesso ao que o rodeia, possibilidades de receber notificao e anncio das coisas. Quer dizer, o termo sujeito recebido j na pr-compreenso que habitualmente arrastamos do termo "homem", cujo contedo o de um ente natural com "portas e janelas", atravs das quais o mundo lhe comunicado, recebido e exposto (e tambm atravs das quais o sujeito age sobre o mundo). O facto de o sujeito possuir "portas e janelas" no significa somente que ele se encontra em condies de receber o anncio das coisas, de se dar conta delas. Significa tambm que tal anncio est limitado e circunscrito pela prpria forma das "janelas", de tal modo que a sua peculiar disposio delimita o campo do que lhe pode aparecer. O "homem" no possui, de facto, acesso totalidade das coisas, nem mesmo acesso total s poucas coisas que se lhe apresentam, mas somente a uma "parte" do mundo, quela que as disposies e as configuraes das suas faculdades de perceber lhe possibilitam, permanecendo "tudo o resto" para alm do seu campo perceptivo: h mais coisas no mundo muitas mais e muito diferentes, provavelmente do que aquelas que, em cada caso, o "homem" pode perceber, tal como ocorre, de facto, com a viso delimitada pela configurao das janelas. O "resto" do mundo escapa-se, porque est "para l", para alm do campo visual. Assim, a forma particular das vias de acesso ao mundo decide que coisas, e em que modo, podem ser apresentadas, mas no permite evidentemente o acesso totalidade[footnoteRef:14]. Em resumo: possuir "portas e janelas" determina no apenas a possibilidade de comunicar com o "exterior" com aquilo que o homem no e que existe "fora" e independentemente dele , mas tambm, e pela mesma razo, o mbito e a profundidade dessa mesma abertura: a ns cabe-nos, em cada caso, uma "fatia" da totalidade, um "bocado das coisas". Deve ainda ter-se em conta (ainda que tambm este aspecto mereceria um desenvolvimento mais adequado) que o significado essencial das "portas e janelas" , de algum modo, prevalentemente negativo, pelo menos no modo como habitualmente nos entendemos como sujeitos que representam. As vias de acesso limitam o anncio do mundo, constrangem o sujeito a permanecer no interior de um horizonte determinado e "curto". certo que essa limitao limitao de um poder de perceber e, assim sendo, parece ser apenas o aspecto negativo de uma determinao positiva. Todavia, habitualmente tendemos a considerar o poder de perceber mais como uma possibilidade capaz de ser impedida do que propriamente uma actividade. Dito de modo breve: -se levado a pensar que "perceber no custa", isto , que as formas de acesso ao mundo so como que momentos inertes de abertura pelos quais o mundo entra se no houver impedimentos. O que um modo de dizer que a percepo considerada mais como afeco, ou passividade, do que como actividade produtiva. Dizer que os olhos so as "janelas da alma" implica, parece, que o mundo pode entrar por eles e que, de facto, entra, a no ser que haja interposio de obstculos, quer subjectivos quer objectivos. As janelas no so activas, no realizam o visto, nem as portas introduzem o que por elas passa. Assim, a capacidade de receber o anncio do mundo perde o seu carcter activo de poder de perceber pelo nfase muito mais forte posto no momento da recepo: o mundo oferece-se-nos sem dificuldade[footnoteRef:15]. [14: Facilmente se compreende que estas brevssimas consideraes se aplicam, apenas, ao campo perceptivo em sentido estrito. Na verdade, o "homem" possui outras possibilidades de acesso ao mundo que alargam e ampliam, ainda que custa da variao de forma de apresentao, o acesso realidade, como so a imaginao e a memria. Em qualquer dos casos, mesmo "somando" todas as possibilidades de acompanhamento da realidade (percepo, memria, imaginao e eventuais outras), no custa admitir que o campo a que o "homem" chega muito reduzido comparado com a totalidade do que h.] [15: certo que a anlise fisiolgica dos processos perceptivos pode alterar teoricamente a compreenso da percepo como momento de afeco passiva, na medida em que apresenta processos orgnicos activos como constituintes do momento da percepo. Independentemente do que a seguir se dir sobre a relao entre percepo e processos orgnicos, basta aqui considerar que a percepo no vivida, de facto, pelo sujeito como momento activo de constituio do que nela se apresenta, para alm do facto de que, pelo menos em parte, os prprios processos orgnicos dependem de uma passividade primria (de uma afeco) e correspondem a formas do processo de transmisso do anncio das coisas.]

O que assim dado a ver depende, portanto, das "prprias coisas", do desenrolar objectivo e real dos entes do mundo, que vo passando diante do sujeito e entrando nele. O "homem" poder evidentemente colaborar activamente no processo do surgimento das coisas, o que far de vrias maneiras, por exemplo, direccionando ou modificando artificialmente a configurao das suas vias de acesso ao mundo, quer dizer, produzindo alteraes, tambm elas objectivas e reais, nas disposies dos rgos.Em resumo: a compreenso do sujeito que representa como "homem" que inclui a determinao da representao atravs da metfora das "portas e janelas" corresponde assuno da existncia real de "dois" momentos a existncia e o desenrolar objectivo das coisas e, nele, a existncia de um ente natural "homem" , sendo a percepo considerada, ento, como o encontro desses dois momentos, encontro que , portanto, posterior a cada um deles e, assim, totalmente derivado e no original quanto ao seu sentido. bem sabido que Leibniz afirma que a Mnada quer dizer, a substncia simples, quer dizer, o sujeito que representa no tem portas nem janelas. relativamente fcil (e tambm usual) interpretar tal afirmao como uma tese (e no, portanto, como uma proposio que corresponde descrio de um estado de coisas) que postula a inexistncia de acesso ao que est "fora de ns", ao "mundo exterior", o que deve querer significar que o sujeito estaria limitado aos seus estados interiores. Parece, no entanto, claro que este tipo de interpretao mantm intacta a compreenso natural e imediata da diviso "interior do homem/mundo exterior". De facto, s parece possvel tomar a negao da existncia de "portas e janelas" como a reduo das possibilidades de acesso do sujeito apenas a um conjunto de acontecimentos (os "interiores"), negando-as aos "exteriores", se se aceitar previamente a existncia de um campo de coisas "interiores" e de um campo de coisas "exteriores" e se se aceitar ainda que o acesso s coisas "exteriores" se faz precisamente mediante "portas e janelas". Parece evidente: se a Mnada no tem acesso ao exterior porque no tem portas e janelas, ento d-se por assente e provado que s se acede ao exterior por aquilo que a Mnada no tem. Ora esta precisamente a tese natural sobre o "homem", como se disse. Leibniz poderia, ento, estar a dizer que o exterior nos est vedado, que no temos realmente notcia dele, ainda que ficaria certamente por determinar como se pode chegar a tal concluso (quer dizer, de onde decorre a noo de exterior, visto que no teramos acesso a ele) e que significado poderia ter tal proposio, pois no deve significar, por exemplo, que no vemos objectos no espao (ali ou aqui, l ao fundo, etc.), porque de facto vemos, nem que o "exterior" , afinal, "interior", o que no significa nada, pois os termos so correlativos: o exterior no pode ser realmente interior, pelo menos no sentido em que compreendemos esses termos, pois isso implicaria que o interior no se oporia ao exterior, isto , que no seria realmente interior. Dito de outra forma, a compreenso da afirmao "a Mnada no tem portas nem janelas" no modo acima indicado (inexistncia de acesso ao exterior, ao mundo "fora de ns", no sentido usual do termo) mantm partida a tese natural "homem".Ora perfeitamente possvel que Leibniz esteja, no a proferir uma afirmao que se inscreve ainda dentro dessa tese natural, mas sim a tentar denunciar essa mesma tese, em toda a sua generalidade, isto , a pr em causa a prpria noo de acesso ao mundo em que habitualmente vivemos. Noutros termos: Leibniz pode estar a dizer que a compreenso natural de "homem" e de "mundo" imediatamente disponvel est assente sobre teses ou pressuposies ilegtimas, porque dizem mais do que possvel saber sobre o modo como reconhecemos as coisas; que so, portanto, formas de crena.Como se disse j, a tese natural das "portas e janelas" assume que a representao possui um estatuto derivado, na medida em que a considera como o encontro de duas instncias mais originais. Mas, de facto, no possumos nenhuma indicao de natureza fenomenolgica do carcter "derivado" da representao; possumos sim uma tese que assim a qualifica, mas que de modo nenhum se revela no prprio momento da representao, pelo facto de tanto o mundo como o "homem" nos serem dados como representaes. Na verdade, tambm do "homem" apenas temos representaes, precisamente porque tambm ele do mundo, coisa "exposta", vista, etc., se, por "homem", se entende, como parece ser o caso, um ente corpreo que, atravs do corpo, acede realidade, num modo de acesso que , tambm ele, de certo modo passvel de representao e de estudo objectivo. Das coisas sabemos que aparecem isso o que de mais original sabemos delas e tudo o mais que delas se possa saber depende completamente do facto de estarem constitudas como apario. De facto, por "mundo" entendemos um mbito de coisas que se "do a ver", passveis de serem percebidas de alguma maneira; que, portanto, se oferecem em forma de notificao, quer dizer, que, no sentido prprio do termo, se nos apresentam, como se o seu ser se esgotasse no dar-se a conhecer. As flores so brancas e as pedras pesadas e tanto "branco" como "pesado" so determinaes de revelao das coisas, momentos essencialmente expostos mediante os quais as coisas assim determinadas se oferecem e entregam ao olhar. No temos, de facto, nenhuma noo de que o ser exposto e apresentado, aparente, das coisas se "acrescente" ao seu ser "em si" como se as coisas no fossem o que delas aparece , pois no pensamos, por exemplo, que elas perdem a cor quando anoitece ou que passem somente a possuir uma cega possibilidade "extrnseca" (meramente "para ns") de serem coloridas. As coisas so coloridas (as que forem, evidentemente). Quer dizer, o "em si" das coisas, o que elas mesmas so, tem forma de fenmeno, o que de forma alguma tenta indicar um tipo de acontecimento mais "frgil" quanto sua estrutura ontolgica, evanescente como quando se diz de algo que "meramente aparente" , mas sim o facto de possurem estrutura constitutiva de apario. Na verdade, quando afirmamos que as coisas so visveis ou tangveis no pensamos dizer que mudam de forma quando so, de facto, vistas ou tocadas por ns, mas precisamente o contrrio: nada acontece s coisas quando so efectivamente vistas, o que significa que "passar a ser visto" considerado como possuindo um estatuto somente "subjectivo" corresponder a um facto do "sujeito-homem", facto de natureza "ocasional" que, em ltima anlise, insignificante quando ao sentido da representao enquanto tal, pois as coisas no se "revestem" de determinaes expostas quando nos so apresentadas, como se "adquirissem" as suas determinaes de apario no momento em que aparecem ao "homem". Neste carcter insignificante do acontecimento "subjectivo" da representao compreende-se, portanto, quer a admisso de que as coisas possuem j forma de representao, quer a admisso de que, em ltima instncia, "ver" no "nada" para as coisas, mas somente o "dar-se conta" subjectivo do que "assim" independentemente do "dar-se conta"; compreende-se, pois, a assuno da natureza essencialmente passiva e neutra do acto subjectivo de representar. De facto, se o momento subjectivo da percepo no fosse neutro, a percepo seria falseada pela introduo de elementos estranhos ao percebido que decorreriam da indisposio das "aberturas" do sujeito ao mundo , o que seria perceber "mal". Em ltima anlise, a noo da natureza "realmente" insignificante da percepo (como momento subjectivo) corresponde somente tese das portas e janelas, que no fazem ver, mas permitem ver; e que permitem ver porque so espaos vazios e neutros, momentos de "nada", limitados no seu mbito, mbito que, quanto ao espao de circunscreve, de facto livre: "deixa passar as coisas", deixa ver. S deste ponto de vista possvel pensar a representao como acontecimento segundo e derivado: mantendo a natureza j exposta das coisas e, depois, acrescentando-lhe o encontro das coisas, assim constitudas, com um sujeito, sujeito que no ter "nada a fazer" quanto ao carcter exposto das coisas. Possuir "portas e janelas" , assim, estar disponvel. certo que a disponibilidade no total, mas a sua natureza no total reduz-se apenas capacidade de alcance, sem que implique qualquer tipo de actividade do sujeito no acto de representar: ver no difcil basta no fechar os olhos.Todavia, esta extraordinria facilidade de ver corresponde, de facto, a uma cegueira para o momento da viso, pois considera como pura disponibilidade passiva o que realmente uma sntese activa, como se indicou atrs. "Perceber" "qualquer coisa", um acto do sujeito no qual algo se constitui como percebido, de tal forma que inconcebvel tomar qualquer coisa como possuindo estrutura de representao independentemente do acto em que representada. Ser representado efeito de uma sntese que rene numa unidade uma multiplicidade de momentos. Sem sntese no h representao nem, por isso mesmo, representado. Considerar a constituio representada exposta, vista das coisas independentemente do acto mediante o qual (ou melhor no qual) elas assim se constituem estar, de facto e como se disse, totalmente cego para o momento da prpria representao. Razo pela qual Leibniz insiste em que no basta a mera co-presena do sujeito e do objecto (isto , um encontro neutro) para produzir representao, mas que se requer que o sujeito possua um princpio representativo[footnoteRef:16], isto , um poder de sintetizar. , assim, pela desconsiderao do princpio activo de representar que a actividade subjectiva do "homem" quando percebe tomada como "nada", pois se assim no fosse seria necessrio "duplicar" a representao, quer dizer, representar seria perceber um j percebido, constituir as coisas numa forma em que j estavam antes de serem assim constitudas, o que no faz sentido. [16: Cfr., por exemplo, Cartas a Clarke, G VII, 356-357, 365, 375. A noo de princpio representativo (e a de natureza representativa) possui, no entanto, um sentido bastante mais alargado, que se tentar resumir nas notas.]

A compreenso natural do sujeito como "homem" depende, pois, e totalmente, da desvalorizao do acto de representar, da desconsiderao da sua estrutura intrnseca e prpria, e assenta na crena, na tese, sem fundamento fenomenolgico claro, segundo a qual o "homem" encontra o mundo, constitudos j tanto o homem como o mundo independentemente do que ocorre no encontro, motivo pelo qual este ser tido como fortuito e insignificante.Ora, se se tomar como princpio apenas aquilo que aparece, -se constrangido a afirmar que "les phenomenes ne sont que des penses"[footnoteRef:17], quer dizer, representaes, o que altera significativamente a noo de sujeito. O sujeito no algum que encontra as coisas j constitudas em exposio, mas, pelo contrrio, o momento no qual as coisas se "fazem" dessa forma, o que implica que a actividade do sujeito representar, isso que ele faz, de tal forma que por "sujeito que representa" no se deve entender um ente que se limita a dar conta do que ocorre, mas, pelo contrrio, algum que faz o que ocorre nele, como Leibniz expressamente indica: "Je m'etonne, Monsieur, que vous persists tourner mes sentimens tout autrement que je ne m'explique. Vous vouls que selon moy 'nous ne faison rien d'avantage, que de nous appercevoir de ce qui se passe chez nous'. Je ne say d'o vous l'avs pris. Pour moy je tiens que nous faisons tout ce qui se passe en nous"[footnoteRef:18]. Parece ser esta a razo pela qual Leibniz no define a percepo como a "relao" entre sujeito e objecto, como se a relao fosse um tertium quid que se acrescentaria aos termos e como se estes estivessem "face a face", um diante do outro, mas, pelo contrrio, como "multiplicidade na unidade"[footnoteRef:19], o que totalmente diferente. O sujeito no algo "a quem" o mundo se oferece e que o pode reconhecer, mas o momento no qual as coisas surgem, a unidade do surgimento da multiplicidade. O sujeito , em si mesmo, a unidade do acto de representar, e no mais do que isso, e assim, no sentido rigoroso do termo, sujeito que representa, ou seja, a unidade real, o acontecimento subsistente do acto de representar. [17: Carta a Arnauld, G II, 70.] [18: Carta a Jaquelot, G VI, 567.] [19: As referncias so inmeras. Veja-se, a modo de exemplo, Monadologia, G VI, 508, Specimen inventorum..., G VII, 317.]

Esta compreenso do sujeito arrasta, como evidente, a correspondente alterao da compreenso do mundo, disso que nele surge. Considerado como sistema de determinaes objectivas, expostas, o mundo o correlato intencional da actividade representativa do sujeito, "isso" que ele constitui activamente em si. Considerado como sistema total de representaes na sua unidade, quer dizer, como a totalidade do que apresentado na sua singularidade, o mundo o prprio sujeito, pois este , na verdade, a unidade da representao como "uma coisa s" e a sua definio coincide com a de mundo, dado que "mundo" e "mundo representado" so a mesma coisa. De facto, o sujeito no pode ser considerado como um "x" sob a representao, como se fosse mero suposto ou substracto fsico de uma actividade, mas sim o momento no qual a representao se realiza. Ser sujeito de representao no , pois, existir "aqum" dos fenmenos, mas ser o lugar onde os fenmenos ganham consistncia dado que eles no so farrapos soltos que se agregam entre si anonimamente a posteriori , momento de radicao de todas as apresentaes numa unidade, que o que justamente entendemos por "mundo". O que Leibniz entende por Mnada , ento, a compreenso do sujeito como mundo e precisamente por esse motivo que o sujeito no tem portas nem janelas, pois ele a totalidade do que se expe: a unidade de todo o visvel no possui obviamente janelas; para alm do mundo no h mais nada para ver. Desta forma, a substncia-sujeito no uma espcie atpica de tomo, a que se agregam ou podem agregar outros, mas sim a totalidade das coisas representadas considerada como singularidade, "le premier presque-Neant en montant du rien aux choses (...) comme il est aussi le dernier presque-tout, en descendant de la multitude des choses vers le rien; et le seul pourtant qui merite d'estre appel , une substance apres Dieu"[footnoteRef:20]. [20: Double infinit chez Pascal et Monade, Gr, 559.]

evidente que a compreenso do sujeito como Mnada-Mundo choca, e choca radicalmente, com aquela que imediatamente temos de ns prprios. Nenhum indivduo se considera como o "primeiro depois do nada e o ltimo antes do todo", quer dizer, como a totalidade das coisas, a que apenas Deus "escapa". Seria eventualmente possvel (ainda que com esforo, pois tambm isso implicaria uma alterao significativa da compreenso natural) tomar aquilo que actualmente cai sob o olhar aquilo que agora se v como mero correlato intencional do acto de viso. Mas o mundo bem mais vasto do que o quarto onde se escreve e o prprio quarto tambm mais vasto do que aquilo que dele se pode observar em cada caso. Deste ponto de vista, a noo de Mnada parece ser simplesmente absurda e no corresponder, na verdade, aos fenmenos, ao que aparece. Dito de outro modo, a restrio do campo perceptivo um facto e no imediatamente evidente em que condies tal restrio congruente com a identificao do sujeito com o mundo-totalidade. , portanto, certo que h mais coisas no cu e na terra do que as representadas explicitamente no campo visual individual. Mas, por outro lado, parece tambm certo que o reconhecimento de haver um excesso relativamente ao explicitamente exposto e representado de cada vez no pode significar que as representaes "que faltam" advenham do exterior da representao, de fora dela, como se se tratasse de um acrescento extrnseco e estranho representao actual. Na verdade, a apresentao do mundo no aumenta por "soma" de representaes, como se a cada uma se juntassem outras e assim sucessivamente, mas sim por variao. No "fechamos" nem "abrimos" representaes, como se passssemos de quadro para quadro, todos eles expostos nas paredes de um museu, abandonando uns para encontrar outros totalmente novos, mas, pelo contrrio, passamos de representao para representao como se cada quadro perante o qual nos encontramos se transformasse permanentemente noutro, sem cortes definidos, sem mudanas abruptas (na maior parte dos casos), mediante transies sem soluo de continuidade. A "nova" apresentao do mundo surge da anterior, a partir dela, no como algo que se lhe justape, mas como uma transformao, sem hiatos absolutos, quer dizer, sem que haja incomunicabilidade absoluta entre as apresentaes. O que , afinal, um outro modo de dizer que todas as representaes so originalmente "minhas", ou seja, que o seu ser "em mim" no produto de uma "apropriao" a posteriori de um apresentado annimo e solto. De facto, no "adquirimos" percepes, pois elas fazem-se e surgem em ns, umas a partir das outras, num processo contnuo. O que significa, em ltima anlise, que a possibilidade de variao reside na representao actual dada, isto , que cada apresentao do mundo nos dada como contendo em si mesma a possibilidade de se mudar noutra, e nunca como um absoluto que se esgotasse completamente no que explicitamente expe. Isso implica tambm que, de alguma maneira, tanto o significado como o contedo perceptivo da "nova" percepo a surgir esto, tambm eles, dados em cada percepo actual. Este aspecto exigiria uma anlise mais pormenorizada que, no entanto, no pode ser levada a cabo neste espao. No pode, no entanto, deixar de se indicar que o sentido "possibilidade de variao" no corresponde, no pode corresponder, mera possibilidade passiva e neutra de apario de outras percepes. Quer dizer, no se trata somente de que qualquer apresentao admite de facto outras, pela sua prpria limitao, por no esgotar em si mesma a totalidade do visvel, isto , por no ser a apresentao de um absoluto que esgota as possibilidades do ser. Tal possibilidade meramente passiva implicaria a completa indiferena da percepo actualmente dada relativamente anterior e posterior, tal como ocorre numa exposio de um museu: nenhum quadro anuncia o significado perceptivo, o contedo representado, de outro, de tal forma que, de algum modo, os dois quadros so estranhos entre si. evidente que cada quadro contm a possibilidade de haver outros pois no existe o quadro , mas esta possibilidade no significa nada quanto ao seguinte, nada diz dele, est vazia, por exemplo, de quaisquer expectativas quanto ao seguinte e de retenes da memria quanto ao anterior (a no ser, como bvio, no que diz respeito s possibilidades de comparao, mas no este o problema que est em causa). O que significa que no vemos o novo quadro como variao do anterior, que precisamente o que se tenta indicar quando se afirma que o novo contedo perceptivo autnomo e no decorre ou deriva do anterior[footnoteRef:21]. Ora neste caso, a estranheza entre contedos apresentados produz, de facto, alguma descontinuidade quanto quilo que percebido, isto , o sujeito no conduzido nova percepo pela anterior, mas aquela surge como que "do nada", como se fosse um voluntrio espontneo. Ou seja, no exemplo em causa a transio para a nova apresentao no tida como variao, mas como acrescento insuspeitado, e o significado da transio nulo. Ora se o mesmo se passasse com as percepes, a sequncia das representaes seria vivida como um caos, pois no haveria quaisquer indicaes quanto ao que h-de vir. Mas, de facto, a percepo que temos do mundo, quanto ao seu desenrolar e novidade que sempre apresenta, no possui esta forma. H, pelo contrrio, uma continuidade sem saltos absolutos ou espaos vazios entre percepes. O que significa que, apesar de toda a novidade e da vasta possibilidade de surpresa que a exposio do mundo pode provocar na sua variao, cada nova apresentao sempre tomada como variao e modificao da anterior, nascida dela, disso mesmo que nela se oferece perceptivamente. O que, por outro lado, significa que a possibilidade da nova percepo reside na anterior quanto ao seu prprio contedo, quanto a isso mesmo que se apresenta, o que no quer dizer, evidentemente, que estejamos em condies de deduzir as novas percepes das anteriores, pois no estamos, mas sim que estamos em condies de reconhecer a no indiferena entre elas. Na verdade, a sucesso do mundo no um conjunto anrquico de "flashes", mas uma histria de que cada representao faz parte, o que significa que aquilo que de novo se reconhece e se acompanha tido a partir da reteno do momento anterior e contm a expectativa do seguinte, reteno e expectativa que no so nem fixamente determinadas, pois permitem surpresa e novidade, nem completamente indeterminadas, pois se o fossem no permitiriam qualquer tipo de surpresa ou de perplexidade: haveria apenas desorientao e caos desconexo e insignificante. H, assim, no dado de cada percepo, uma forma de tenso para a seguinte vaga, mas no totalmente vazia , de tal modo que a nova representao corresponder ao preenchimento dessa tenso, preenchimento que ser mais ou menos adequado, com um nvel de adequao que decidir o modo como a nova percepo ser recebida: com normalidade, decepo, surpresa, perplexidade, etc., nos seus vrios graus. , assim, precisamente porque a nova percepo considerada como preenchimento de expectativa que o seu contedo est, de alguma maneira, anunciado j na anterior. E tambm a presena da possibilidade da nova percepo na anterior que permite a continuidade da vida perceptiva, da exposio do mundo. Se cada apresentao contivesse em si mesma apenas o seu contedo explicitamente reconhecido, e de modo absoluto, isto sem tender intrinsecamente para outra a partir do seu prprio ser representativo, a apresentao seguinte estaria separada da anterior mediante um hiato, um nada de representao. Ora tal hiato no constituiria duas apresentaes do mundo, pois a desconexo seria total, no haveria sntese que as unificasse numa nica histria, seriam momentos isolados: dois mundos e no um mundo que apareceria de modo diferente, que o que de facto acontece[footnoteRef:22]. O que , afinal, o mesmo que dizer que todas as variaes da representao so "internas", isto , que variam em si mesmas e a partir de si mesmas, o que, na considerao da totalidade da variao das apresentaes, produz um mundo em variao contnua. H um mundo e no um conjunto de peas, cada uma com o seu prprio sentido autrquico e fechado, sem qualquer relao entre si. A compreenso natural do mundo tende a considerar cada "coisa" como uma pea de um puzzle cuja reunio constitui a totalidade. Todavia, neste caso o sentido imanente de cada pea esgota-se nela, de tal forma que nenhuma diz nada sobre qualquer outra e nenhuma anuncia a totalidade: o sentido da totalidade transcende realmente o de cada pea: reside no observador, que est "fora": s no olhar do observador, que exterior s peas, cada uma delas se relaciona com as outras e s nele o todo possui sentido. Ora a partir do momento em que se modificou a noo de observador quer dizer, a partir do momento em que o mundo no tomado como um conjunto de "coisas", mas como o desenrolar das representaes numa unidade a metfora do puzzle deixa de ser vlida. O mundo possui realmente uma unidade a que chamamos sujeito e a sua unidade , portanto, uma vida perceptiva. Cada apresentao dada , original e intrinsecamente, um momento desta vida perceptiva e pode por isso dizer-se que aquilo que existe o mundo e no um conjunto de coisas. A unidade da vida perceptiva no , no entanto e como se disse j, puramente formal, mas redunda tambm no prprio contedo representado, o que significa que possvel alcanar qualquer representao a partir da variao interna de qualquer outra apresentao. Em linguagem vulgar, isto significa que possvel ir de qualquer "stio" para qualquer outro, tanto no espao como no tempo, quer dizer, que o mundo no tem "espaos de nada", como se houvesse incomunicabilidade entre as suas muitas zonas. Assim, de alguma maneira todo o mundo est pressuposto em qualquer momento seu, sendo alis por isso mesmo que cada momento tido como "do mundo". "Habitar" o mundo no estar absolutamente confinado a uma zona, pois a zona que se habita sempre vivida como "parte" ou "canto" do mundo, ponto a partir do qual se acede totalidade, ainda que esse acesso sofra variaes no seu processo de alargamento: estar num quarto , pelo prprio sentido "quarto", estar numa zona da casa, e uma "zona" da casa algo que se compreende a partir de um mbito mais vasto (a casa) e assim sucessivamente. Este processo tem as suas regras, como sabido: quanto mais vasto for o que se pressupe em cada "ponto", mais vaga ser a determinao representada imaginariamente (casa, rua, cidade, regio, pas, continente, etc.), at recair em meros nomes e terminar por se esfumar num "etc." informe e esbatido. O que importa, neste momento, indicar que o processo de alargamento no se constitui a posteriori, mas sim a priori, isto , o sujeito no vai de facto alargando progressivamente o campo que ocupa, mas, pelo contrrio, o momento que agora ocupa que est originalmente determinado pelo "resto" que se diz estar ausente. De facto, o sujeito no chega ao conhecimento de que est numa "zona da casa" porque, por acaso, se deu conta da existncia de outras, saindo, por exemplo, para o "exterior". Pelo contrrio: o sujeito sai para outras zonas porque estava nessa possibilidade, ou seja, o local que ele ocupa est dado logo como momento de um mbito mais vasto: s por isso se pode sair do quarto, pois um quarto um espao de onde se pode sair, isto , que compreende em si mesmo o sentido de tudo o que no compreende. Deste ponto de vista, pode de facto dizer-se que todo o mundo est j dado em cada momento seu, ainda que, pelos vistos, no possa ser dado seno nalgum momento e nunca "todo totalmente". E a pressuposio da totalidade no se refere apenas ao acontecimento do espao, mas sim a todo e qualquer acontecimento. No possvel reproduzir aqui as anlises fundamentais que Leibniz leva a cabo sobre este assunto (sobre o que , afinal, a natureza sistemtica do mundo). Seria, de facto, necessrio mostrar, e ponto por ponto, de que modo a determinao de cada momento da exposio das coisas requer, para a sua completa elucidao, a passagem por todas as determinaes do mundo. Na verdade, se se aprofundar no contedo que est pressuposto em cada acontecimento das coisas, -se obrigado a reconhecer que no possvel compreender uma coisa s sem incluir na sua determinao intrnseca a totalidade do que se diz ser "o resto", o que significa que cada coisa , quanto sua determinao prpria, uma concreo particular da totalidade, totalidade que , portanto, anterior particularidade. Dito de outro modo: a totalidade necessria para determinar qualquer momento particular que faz parte dela: a isto corresponde precisamente a natureza sistemtica do mundo, ao facto da totalidade ser anterior e ser a determinao de qualquer momento particular. Pode ser til, apenas para ilustrar o que se tenta aqui indicar sobre o carcter sistemtico do mundo, sobre a pressuposio da totalidade para dar conta de cada ente particular, reler o que se diz nesta passagem da Riqueza das Naes: "Observe the accomodation of the most common artificer or day-labourer (...), and you will perceive that the number of people of whose industry a part, though but a small part, has been employed in procuring him this accomodation, exceeds all computation. The woollen coat, for example, which covers the day-labourer, as coarse and rough as it may appear, is the produce of the joint labour of a great multitude of workmen. The shepherd, the sorter of the wool, the wool-comber or carder, the dyer, the scribbler, the spinner, the weaver, the fuller, the dresser, with many others, must all join their different arts in order to complete even this homely production. How many merchants and carriers, besides, must have been employed in transporting the materials from some of those workmen to others who often live in a very distant part of the country! How many ship-builders, sailors, sail-makers, rope-makers, must have been employed in order to bring together the different drugs made use of by the dyer, which often come from the remotest corners of the world! What a variety of labour, too, is necessary in order to produce the tools of the meanest of those workmen! To say nothing of such complicated machines as the ship of the sailor, the mill of the fuller, or even the loom of the weaver, let us consider only what a variety of labour is requisiter in order to form that very simple machine, the shears with which the shepherd clips the wool. The miner, the builder of the furnace for smelting the ore, the seller of the timber, the burner of the charcoal to be made use of in the smelting-house, the brick-maker, the brick-layer, the workmen to attend the furnace, the mill-wright, the forger, the smith, must all of them join their different arts in order to produce them (...). If we examine (...) all these things, and consider what a variety of labour is employed about each of them, we shall be sensible that, without the assistance and co-operation of many thousands, the very meanest person in a civilized country could not be provided, even according to what we very falsely imagine the easy and simple manner in which he is commonly accommodated"[footnoteRef:23]. E deve ter-se em conta que se trata de um exemplo muito restrito, pois evidente que de cada objecto ou sujeito ou actividade se pode dizer a mesma coisa que A. Smith aqui diz sobre o casaco de l. Pense-se, por exemplo, que quando abstractamente se fala do "ferreiro", seria necessrio, para determinar com preciso de que que se fala, incluir a sua histria (e a anlise recomearia em cada momento da histria), o local onde habita e habitou (e a anlise recomearia em cada ente particular que ocupa esse local), as coisas que o rodeiam, etc., etc. O processo claramente infinito e impossvel de levar a cabo. O que importa aqui reter que cada coisa produto de um concurso de determinaes que compreendem a totalidade, ainda que a alcancem sempre por caminhos diferentes. Assim, todo o mundo est dado logo em cada coisa, ainda que num modo que nos escapa, mas est realmente dado porque a sua condio de possibilidade. [21: Ter-se-o em conta naturalmente os limites da metfora: no passamos da viso de um quadro para outro de modo absolutamente descontnuo, visto que h sempre mediaes. , alis, precisamente isso que se tenta dizer: que h sempre mediaes na passagem de percepo para percepo, motivo pelo qual nem h propriamente "passagem", mas variao na continuidade.] [22: Leibniz analisa a impossibilidade de hiatos absolutos entre as percepes, isto , a impossibilidade de uma descontinuidade na vida perceptiva, em vrios momentos e normalmente em oposio a Locke: cfr., por exemplo, Carta a Burnett, G III, 307; texto sem ttulo, G VII, 330; Nouveaux Essais..., G V, 48, Monadologia, G VI, 610, etc.] [23: SMITH, A., The Wealth of Nations (1776), Parte I, cap. I, London, Penguin, 1970, p. 115-117 (o sublinhado meu). ]

A totalidade do que no dado explicitamente estar presente a modo de pressuposio e no como se estivesse escondida em "ponto pequeno" no apresentado explicitamente. Mas estar realmente presente quanto ao seu contedo, pois de outra forma o surgimento da nova percepo teria origem no nada e no na prpria percepo anterior, que contm intrinsecamente a possibilidade de variao para novas percepes. Esta possibilidade , portanto, actual e significativa, possui um contedo, por mais pressuposto que possa ser, ainda que esse contedo seja inexplcito e acompanhado por ns de modo muito deficiente[footnoteRef:24]. [24: sabido que a anlise do problema de saber de que modo o que est inexplicitamente pressuposto est actualmente presente em cada apresentao explcita do mundo ocupou longamente Leibniz e corresponde s suas teses sobre as "pequenas percepes", No , uma vez mais, possvel expor todos os passos da anlise leibniziana desta questo, apesar do seu carcter central e fundamental, pois dela que depende a continuidade da vida perceptiva, a unidade do mundo. Encontra-se um denso resumo desta anlise no Prefcio dos Nouveaux Essais.]

Assim, apesar da alterao de sentido que a noo de sujeito-Mnada provoca na compreenso natural que possumos de ns mesmos e do mundo, parece, no entanto, mais ou menos claro que tambm dessa forma que percebemos o mundo. No pensamos, de facto, que a percepo que temos das coisas se esgota no que expressamente se nos oferece, ainda que, como evidente, nos limitamos a dar por pressuposto, sem acompanhar pormenorizadamente, a quantidade de sentidos e possibilidades inexplcitas que em cada caso esto realmente presentes como condio de possibilidade do que actualmente reconhecemos. Mas tais sentidos e possibilidades so, como se disse, momentos constitutivos da percepo explcita, momentos sem os quais ela no seria o que de facto . Uma coisa no somente aquilo que explicitamente apresenta de si ou aquilo que imediata e facilmente se reconhece nela, mas tambm tudo o "resto" que torna possvel essa reduzida "parte" de que nos apercebemos. Desta forma, o dado aquilo que se est a ver contm actualmente um mundo pressuposto e no visto seno confusamente e de modo informe. O mundo no , pois, um plano sem fundo, mas em cada caso um palco cujo sentido depende totalmente dos bastidores, um teatro de marionetes onde tudo o que significativo para dar conta do que se observa se passa "atrs", ainda que seja por esse "atrs", que no se acompanha expressamente, que se pode ter isso que se diz acompanhar. Motivo pelo qual o alargamento do campo expositivo do mundo no se produz por "soma", mas por variao, cujo sentido o da passagem para momentos explicitamente expostos daquilo que estava presente j de modo inexplcito e esse precisamente o sentido "variao". A variao da percepo compreende-se agora a partir da noo de profundidade do campo perceptivo e corresponde no passagem para "outra coisa diferente", mas s modificaes da relao entre prximo-explcito e distante-inexplcito, que variam no interior do mesmo apresentado: o pressuposto acede presena, passando o anteriormente presente a pressuposto (em forma de passado, por exemplo), e assim sucessivamente, num processo em que, por assim, dizer, as perdas correspondem exactamente aos ganhos, visto que a cada nova apresentao explcita corresponder devido natureza finita do sujeito a constituio da anterior em forma inexplcita, num processo contnuo sem alteraes radicais. A variao da percepo compreende-se agora como alterao de forma de presena e no, portanto, como substituio de "coisas". Deve ter-se em conta ainda que a variao no campo perceptivo no um facto que se acrescenta s prprias percepes, como se a passagem de umas para outras fosse efeito de um fora extrnseca, que retira umas apresentaes do mundo e coloca outras: no temos qualquer indcio de uma fora desta natureza. Pelo contrrio, so as prprias percepes que, a partir de si mesmas, se mudam noutras, quer dizer, a apresentao que contm em si o poder de variar, pois no pensamos o desenrolar do mundo como uma espcie de tapete rolante responsvel pela substituio das coisas. O que significa que a tenso, anteriormente referida, para novas apresentaes constitutiva das prprias percepes, pois so elas que se transformam por si mesmas noutras. a este poder de se transformar noutro (que o "mesmo", porque a alterao se d no interior de campo perceptivo), que Leibniz chama apetio ou "tendncia para novas percepes". A apetio, o desejo de percepo, no portanto, uma fora cega que reside sob as percepes, mas um momento que corresponde, por um lado, ao facto de haver, em cada percepo, mais do que nela se reconhece explicitamente e, por outro, ao reconhecimento do facto de que a constituio em forma explcita do j presente de modo inexplcito deriva da prpria percepo dada e no de um qualquer poder estranho e acrescentado de fora[footnoteRef:25]. [25: A noo de apetio fica aqui apresentada de modo muito formal. Leibniz tentar dar conta do fenmeno no como um simples poder de tender para outras percepes, mas, por motivos que no possvel expor agora, como um tipo de desejo de constituio em forma explcita e distinta. Quer dizer, h em cada apresentao das coisas uma tenso para atingir a forma adequada de exposio, que a distino da percepo, o ser reconhecida explicitame