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SUJEITOS, CORPOS, SEXUALIDADES EM (DIS)CURSO?
Dantielli Assumpção Garcia (UNIOESTE)
Fernanda Luzia Lunkes (UFSB)
Resumo: Neste trabalho, da perspectiva teórica da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1983;
ORLANDI, 2001a, 2001b), articulada às discussões de gênero (BUTLER, 2017; JESUS, 2014;
LOURO, 2014, 2000), pretendemos analisar o clipe “Música LGBT+Brasileira” publicado na
página do Facebook Kaya de Boca. Intentaremos refletir acerca do modo como dizeres sobre
os sujeitos, seus corpos, suas sexualidades e identidades de gênero são colocados em
funcionamento por meio da arte.
Palavras-chave: Análise de Discurso, Música, LGBTTQ+, Gênero(s), Sexualidade(s).
Abstract: This work aims to analyse the musical clip “Música LGBT+Brasileira”, avaliable in
the facebook page “Kaya de Boca”. Our teorical base is the Discourse Analysis (PÊCHEUX,
1983; ORLANDI, 2001a, 2001b) in articulation to gender discussions (BUTLER, 2017;
JESUS, 2014; LOURO, 2014, 2000). This theoretical suport help us to debate the way the
subjects, the bodies, the sexualities and gender identities works by means of the art.
Keywords: Discourse Analysis. Music, LGBTTQ+, Gender(s), Sexuality(ies).
O presente trabalho é uma versão preliminar e, por isso mesmo, se pretende muito mais
enquanto abertura a interlocuções do que propriamente uma apresentação de resultados.
Almejamos com este nosso ensaio teórico/analítico apontar para alguns dos efeitos de sentido
produzidos em um clipe que circulou na página do Facebook Kaya de Boca1, em maio de 2017,
e que apresenta artistas LGBT(TQ+) com destaque no ramo musical. Afastando-se da imagem
binária comumente traçada em nossa formação social, qual seja, entre masculino e feminino,
pretendemos situar os efeitos de sentidos produzidos a partir de um clipe musical que,
imaginariamente, contempla artistas LGBT(TQ+), em/com seus corpos e(m) movimentos, no
uso das cores, nos gestos de enquadramento na tela.
Inicialmente, este texto tinha como título uma afirmação dizendo tratar o videoclipe de
diferentes corpos e sexualidades em discurso. Contudo, após uma primeira análise em que
observamos quais são as/os artistas colocados em cena, a afirmação deslizou-se para uma
pergunta: “sujeitos, corpos, sexualidades em discursos?”. Isso porque as/os artistas que cantam
nesse cenário da música LGBT+Brasileira (como assim se intitula o videoclipe) são, em sua
1Disponível em: https://www.facebook.com/kayadeboca/videos/1776199536026482/. Acesso em 13 nov. 2017.
maioria, considerados representantes “gays” e “trans”. Desse modo, o clipe estaria apagando
dessa nomenclatura, mesmo que na sigla as letras pareçam contemplar, do cenário da música
LGBT(TQ+) brasileira, as artistas “lésbicas”, os/as artistas “bissexuais”, “queers”, “intersexos”
entre outras identidades de gêneros e orientações sexuais. Esse apagamento marcaria o não
pertencimento de alguns corpos, sexualidades, gêneros nesse cenário musical brasileiro? Ou
não? O fato de trazer no título do clipe o L, o B já indiciaria um pertencimento que se constitui
entremeado pelo gay e pelo/pela trans? O gay na formulação abarcaria também a mulher gay,
a homossexual, em síntese, a lésbica? A partir desses questionamos este nosso texto se
constitui, objetivando compreender como dizeres sobre os gêneros e as sexualidades são
colocados em funcionamento no clipe “Música LGBT+Brasileira”. Para tanto, situemos
algumas questões acerca das noções de gênero(s), sexualidade(s) e corpo(s).
Compreendemos, com base em Butler (2017), que é do político as designações e
normatizações em torno da sexualidade. A autora afirma que a distinção no gesto de designação
entre sexo e gênero coloca em questão, no primeiro, uma relação com o corpo sexuado,
enquanto o segundo marca uma tomada de posição segundo a qual se possibilita pensá-lo como
uma construção cultural e social.
A Análise de Discurso compreende o político como disputa de sentidos, administração
para a hegemonização de uma dada direção de significados, a luta histórico-ideológica a partir
da qual se confrontam diferentes formações ideológicas cujo palco é o discurso (ORLANDI,
2001a). Sendo assim, retomando os estudos de Butler (ibidem), um conflito que se coloca
proeminente é a disputa em designar sexo e gênero. Se aquela designação coloca o sujeito numa
relação fortemente marcada pelo fisiológico, a segunda produz tensões sobre um não
fechamento, busca trazer à tona também o que não se diz quando se fala em sexo, romper
questões limítrofes acerca do corpo e fazer recair – também – sobre o social a constituição dos
sujeitos.
De acordo com Louro (2014), o conceito de gênero, em seu gesto de formulação,
implica em uma luta na qual ele comparece “como uma ferramenta analítica que é, ao mesmo
tempo, uma ferramenta política” (LOURO, 2014, p. 25). Vale lembrar que, de acordo com a
Análise de Discurso, a produção de sentidos também é feita levando-se em conta o equívoco,
daí o fato de haver tensões e disputas mesmo no interior de grupos militantes, apontando para
aquilo que desregula, que fissura o ritual de produção de consensualidade acerca dos gêneros.
O discurso novamente coloca-se como o palco no qual os sujeitos dizem e mostram suas
sexualidades e identificações.
De acordo com Jesus (2014, p. 245), a partir da retomada de Louro (2000), Oliveira
(1998) e Scott (1998), o conceito de gênero é relacional e político, “independe das bases
biológicas, como o sexo, e determina, entre os seres humanos, papéis que eles exercem na
sociedade – o que de forma alguma se restringe à sexualidade”. Como veremos no videoclipe,
as diversas músicas cantadas pelas/pelos artistas LGBT(TQ+) colocam em funcionamento
dizeres sobre os desejos e os corpos desses sujeitos LGBT(TQ+), dizeres estes que intentam
romper/resistir com/a sentidos que circulam na sociedade sobre esses sujeitos que não se
identificam com a cisgeneridade e a heterossexualidade.
Nosso objeto de análise apresenta, em cerca de 2 minutos e meio de duração, diferentes
cantoras e cantores, cujo funcionamento pode ser depreendido como um recorte do que pode e
deve ser destacado de cada uma/um. Durante todo o clipe, as bordas da tela têm em seu
enquadramento a retomada das cores da bandeira LGBT:
Figura 1: Clipe Música LGBT+Brasileira
Vale frisar que a noção de enquadramento neste trabalho coloca em cena nosso gesto
de leitura do que é possível e necessário de ser dito no clipe sobre gênero e sujeitos e(m)
sexualidades. Podemos dizer que um primeiro efeito inscreve as cores na retomada da luta pelas
questões de gêneros e sexualidades e cujos sentidos, retomando a cromatografia política
(ORLANDI, 2001a), apontam para uma diversidade e para uma não homogeneização de
sentidos sobre gênero e sexualidade. No entanto, a escolha pelas cores de uma bandeira, que
coloca em causa uma luta, opera silenciando as bandeiras e lutas de outros grupos, como as
lésbicas, os/as transexuais etc. Retomando Orlandi (2002) ao colocar o dito em relação àquilo
que é excluído em todo processo discursivo, atentamos, neste caso, para as diferentes bandeiras
que são silenciadas no clipe musical, o que produz um efeito de homogeneização dos grupos e
das lutas de gênero em uma única bandeira.
O clipe nos apresenta fragmentos de músicas, respectivamente, de Pabllo Vittar, MC
Queer, Lia Clark, Aretuza Lovi, Linn da Quebrada, Banda Uó, Jaloo, Mulher Pepita, Johnny
Hooker, Gloria Groove, Liniker e os Caramelows, Kaique Theodoro. Algumas perguntas que
nos movem: O que se coloca a ver destes sujeitos e(m) suas sexualidades e identidades de
gêneros? Como os corpos desses sujeitos se sustentam nessas identidades? Que inscrições de
memória (PÊCHEUX, 1983) perduram e são rompidas nesse cantar, dançar, mostrar do clipe
musical? Estariam no clipe artistas lésbicas, gays, trans, bi, queers ou haveria um recorte de
quais artistas são consideradas/considerados representantes do “universo” LGBT(TQ+)
referente ao cenário da música brasileira?
De maneira preliminar, estabelecemos um recorte de três passagens do clipe: a música
de MC Queer, Linn da Quebrada e Jaloo. No primeiro fragmento, a seguinte letra: “Me chama
de viado, invertido e baitola/Bichinha, boiolinha, bambi e chupa rola/Quero muita atenção pro
que eu vou falar pra tu/ Tem que ser macho pra caralho pra poder dar o próprio [...]” Antes da
finalização do verso, uma edição sonora impede que ouçamos o que será dito/cantado, embora
não seja difícil supor o que está em jogo nessa complementação. De Jaloo nos é apresentado o
seguinte recorte: “Você vem para o meu mundo e eu te conto como acontece a chuva
[2x]/Molha, molha/Cai chuva, chove, chove, sai/Chuva, molha, molha, vem/Chuva, chuva”.
Em Linn da Quebrada: “Ela tem cara de mulher, corpo de mulher, jeito, tem bunda, tem peito,
tem pau de mulher”.
Pêcheux (1983, p. 52) explica que a memória é “aquilo que, face a um texto que surge
como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os
pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura
necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”. Essa passagem, colocada em
relação ao fragmento de MC Queer, permite depreender uma retomada do que imaginariamente
se diz e se espera do sujeito homossexual, especialmente em uma discursividade homofóbica:
um sujeito que inscreve uma feminilidade estranhamente familiar (“invertido”), cuja
preferência sexual assenta-se em uma única parte do corpo. Silenciam-se afetos, conflitos,
desejos outros. A homossexualidade nessa discursividade é restrita, e são silenciadas questões
outras desse sujeito. Vale destacar que Louro (2014), com base em Butler, explica que a
homofobia relaciona-se a um pavor dos homossexuais; mais amplamente, esse sujeito, ao
assumir sua orientação, pode produzir sobre o outro essa espécie de terror na diluição das
divisões imaginárias de sexo/gênero. Por isso, MC Queer não necessariamente desloca sentidos
sobre sexo e homossexualidade, mas os retoma em uma FD homofóbica que diz não ser
“macho” o homem que deseja e expressa sua sexualidade por meio do sexo anal. Ainda assim,
há um movimento outro quando afirma que “Tem que ser macho pra caralho pra poder dar o
próprio [...]”. Ocorre que justamente aquilo que poderia ser um gesto de resistência encontra o
silenciamento da edição: o gesto de empoderamento de um sujeito que assume sua sexualidade
continua na ordem do indizível, cuja retomada pelo leitor se faz justamente nos implícitos, tais
como exposto em Pêcheux (ibidem). A música, por meio desse silenciamento do dizer acerca
do sexo anal, filia-se a uma memória que indicia para a virilidade do homem homossexual,
marcando ser esse homem “macho” e não “viado, invertido, baitola”. Há uma não identificação
do sujeito que canta a essas designações dadas aos sujeitos homossexuais, as quais, muitas
vezes, apagam sua virilidade, caracterizando-os como afeminados, boiolas. A música inscreve
esse homem que deseja outro homem, que “chupa rola” e “dá o próprio ...” à macheza tão
defendida pelos homens héteros, desse modo, não rompe com uma FD homofóbica, mas acaba
por filiar-se a ela com performances que “parecem” confrontá-la.
O corpo homossexual, materializado linguisticamente na música de MC Queer, já vem
significado por uma memória, uma história que funciona na sociedade. Desse modo, o sujeito
homossexual relaciona-se com seu corpo atravessado por essa memória, pelo discurso social
que o significa (ORLANDI, 2012) como “viado”, “boiolinha”, “baitola”. Todavia, no clipe,
um outro dizer emerge, buscando filiar esse corpo homossexual a outros dizeres e sentidos, tais
como “ser macho”. Esse corpo colocado na música passa textualizar-se de um outro modo,
filiando-se a outras regiões de sentidos.
Por sua vez, Jaloo faz uso da metáfora da chuva, da mudança meteorológica para
estabelecer relações de sentidos com o envolvimento físico e emocional. No conjunto de
cantoras e cantores apresentados no clipe, Jaloo desliza, inscreve o não esperado, ou seja,
produz movimentos outros em relação ao vídeo de MC Queer, por exemplo, o qual não escolhe
uma gíria LGBT(TQ+) para dizer sobre sua prática sexual. Mesmo essa sendo silenciada pela
edição do clipe, por um funcionamento da memória, é possível retomar o implícito e afirmar
estar o sujeito do clipe dizendo sobre gostar de sexo anal. Diferentemente da letra de Jaloo, na
qual, para que se retome os possíveis sentidos de chuva , é preciso buscar nos dizeres
LGBT(TQ+) sentidos para chuva – a qual faz uma retomada de uma prática sexual de urinar
no parceiro para se ter prazer2. Em Jaloo, ao silenciar questões mais polêmicas acerca das
questões de gênero pelo uso de metáforas, ao não inscrever a discursividade hegemônica,
funciona mobilizando um suposto ordinário das relações afetivas e sexuais ao mesmo tempo
em que inscreve práticas reconhecidas em/por um determinado grupo social.
Buscando traçar uma espécie de síntese, podemos afirmar que em MC Queer temos
uma memória discursiva retomada para a reafirmação do desejo e das tomadas de posição
assumidas, mesmo filiando-se a um discurso homofóbico que inscreve o homossexual em
dizeres sobre sua virilidade enquanto homem macho, tentando romper com dizeres sobre “ser
viado, boiola, invertido, baitola”; em Jaloo, na metáfora da chuva, o sujeito aponta para a
possibilidade de práticas de um determinado grupo, bem como para uma intercambialidade:
sob a metáfora, para além das orientações e normatizações, todos estão expostos. Tais
retomadas e desconstruções, a nosso ver, não são sem consequências. De acordo com Louro,
Uma das conseqüências mais significativas da desconstrução dessa oposição binária
reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes
formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A concepção
dos gêneros como se produzindo dentro de uma lógica dicotômica implica um pólo
que se contrapõe a outro (portanto uma idéia singular de masculinidade e de
feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que não se
“enquadram” em uma dessas formas. (LOURO, 2014, p. 38)
2 Disponível em: https://www.obaoba.com.br/comportamento/noticia/dicionario-gay-conheca-11-girias-do-
universo-homossexual. Acesso em 13 nov. 2017.
No trecho recortado de uma música de Linn da Quebrada um dizer sobre um corpo é
colocado em cena. Explicitamente diz-se na letra da canção da artista sobre uma mulher que
“tem pau”, ou seja, uma mulher que traz um órgão sexual masculino, mas que se identifica com
mulher, pois tem “cara de mulher, corpo de mulher, jeito, bunda, peito de mulher”,
diferentemente da música de Jaloo que faz uso da metáfora e da música de MC Queer que diz
sobre o “cu”, mas que sofre processos de silenciamento/censura. A música de Linn da
Quebrada aponta para um não-binarismo, como afirma Louro (2014), em que homem possui
pênis e mulher, vagina. Fala-se de uma mulher trans (seja essa transgênero, travesti,
transexual). Há de certo modo nesse recorte da canção uma discussão sobre a subordinação
morfológica do gênero ao sexo, criticando-a como uma prática social que serve para a opressão
(JESUS, 2014). Contudo, a música também abre para sentidos que, sustentados em memória
binária sobre os gêneros, dizem que essa mulher que tem pau não é mulher. Há um
funcionamento implícito da conjunção adversativa “mas”, que preenche com formulações as
quais apontam que, apesar de parecer com e identificar-se como mulher, essa mulher trans,
“que tem pau”, não é mulher, pois ainda reconhece como mulher aquela que tem o órgão genital
vagina, não se considera o “tornar-se mulher”, como já falava Beauvoir (1949). O gênero
colocado em funcionamento nessa música, embora haja também implicitamente uma memória
que sustenta a cisgeneridade, vai além dos sentidos colocados pela sociedade aos corpos
atrelados à genitalização e ao sexo como biológico.
As músicas apresentadas no videoclipe fazem funcionar dizeres que mostram a
opacidade dos corpos dos sujeitos. Embora haja uma memória que sustente sentidos a eles, os
corpos performáticos das/dos artistas textualizam práticas de resistência. Como afirma Orlandi
(2012, p. 87):
Os sujeitos textualizam seu corpo pela maneira mesma como estão nele
significados, e se deslocam na sociedade e na história: corpos segregados,
corpos legítimos, corpos tatuados. Corpos integrados. Corpos fora de lugar.
O comum, o normatizado, o hegemônico. O corpo do rico e o do pobre.
Nas músicas, corpos considerados ilegítimos, segregados, corpos fora de lugar resistem
ao comum, ao normatizado, ao hegemônico e intentam furar uma memória que inscreve os
corpos dos sujeitos em dizeres sobre a cisgeneridade e a heterossexualidade. Esses corpos dos
sujeitos LGBTTQ+ comparecem como “dispositivo de visualização” (LEANDRO-
FERREIRA, 2013), como modo de ver os sujeitos, suas condições de produção, sua
historicidade: “Trata-se do corpo que olha e se expõe ao olhar do outro. O corpo intangível, e
o corpo que se deixa manipular. O corpo como lugar do visível e do invisível” (LEANDRO-
FERREIRA, 2013, p. 105). Um visível que a sociedade tenta silenciar, tornar, muitas vezes,
pela violência cada vez mais invisível. Porém, como já afirmava Pêcheux (1999), a ideologia
é um ritual com falhas, dobras, rachaduras e outros dizeres podem surgir, os quais buscam
ressignificar esses corpos.
Voltemos à análise do clipe: Essa primeira versão das músicas LGBT+Brasileira
recebeu algumas críticas de sujeitos internautas lésbicos e bissexuais por não trazer nenhuma
lésbica, bissexual como representante da música LGBT(TQ+).
Figura 2: Clipe Música LGBT+Brasileira
Figura 3: Clipe Música LGBT+Brasileira
Figura 4: Clipe Música LGBT+Brasileira
Após essas críticas em torno da não visibilidade da mulher, artista, cantora lésbica (seja
as atuais ou anteriores ao século XXI), há uma atualização do vídeo e a cantora e artista Ga31,
considerada como feminista sapatona, aparece (a visibilidade aqui é dada somente a uma
cantora lésbica, como se essa fosse a representante das diversas outras artistas). A música que
está no clipe é “Lésbica Futurista”:
Figura 5: Clipe Música LGBT+Brasileira
Nela, por meio da música eletrônica, canta-se: “Lésbica futurista, sapatona convicta. Eu
não vou deixar a inveja me abalar para sempre...”. Retomando aqui uma questão da
sexualidade, temos uma mulher que se assume como lésbica e também faz uso da palavra
“sapatona” como uma forma de identificação (item lexical que, por um funcionamento da
memória, sustenta-se como um xingamento às mulheres que assumem um relacionamento
homoafetivo). Mais uma vez temos no videoclipe confrontada a heterossexualidade que
inscreve a mulher como parceira somente do homem. Aqui, a mulher “convicta” de sua
sexualidade, fazendo resistência a discursos que dizem sobre suas incertezas, dúvidas sobre seu
desejo por outra mulher.
Embora o clipe se intitulasse “Música LGBT+Brasileira”, antes das críticas recebidas,
não havia mulheres lésbicas como representantes desse cenário musical. Desse modo,
poderíamos afirmar que houve, de certo modo, uma exclusão de sexualidades em um espaço
que se enunciava como inclusivo. Aparentemente, haveria algumas sexualidades e identidades
de gênero reconhecidas dentre outras. Na primeira versão do clipe, temos somente
cantores/cantoras gay e trans, os quais parecem ocupar mais espaço midiático na atualidade do
que as cantoras lésbicas. Na segunda versão, uma cantora é trazida à cena e canta ser “sapatona
convicta”, “lésbica”. Na primeira versão, um silenciamentos da mulher cisgênera e sua
homossexualidade. Na segunda, a materialização desses dizeres por meio do discurso artístico.
Buscamos relacionar uma produção artística a sentidos sobre gêneros, sexualidades e
corpos. Compreendemos, com base em Leandro-Ferreira (2015), que a arte “[...] é um modo
de nos fazer ver. Ver o que há nas telas, nos palcos, nos textos, nas galerias e fora delas.” (p.
264). Nesse movimento de sentidos, acrescentamos: ver o que podem e querem os sujeitos
dizer e mostrar sobre seus corpos e suas sexualidades em uma materialidade audiovisual
produzida em uma conjuntura social fortemente marcada por uma regulação sexual, com ações
atualmente censórias acerca desses corpos não categorizáveis, que resistem ao binarismo que
sustenta a vida comezinha. É importante salientar que, ao se colocar em pauta tais dizeres e
práticas supostamente à margem de uma normalidade, outros movimentos de sentidos se
instauram em regular uma lógica, uma conduta afetiva e sexual. Assim, corroboramos com a
afirmação de Louro segundo a qual “admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais
são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros” (LOURO, 2014, p.
28-29).
Como efeito de fechamento, retomamos o fragmento que encerra o clipe e que faz um
apanhado amplo das/dos artistas apresentados; sob o fundo, a letra da música que funciona
imperativamente: “Desce a viadagem!”. E é sob o efeito impositivo de tal grito que nossas
pesquisas buscam filiar-se ao postulado por Louro quando afirma que “não custa reafirmar que
os grupos dominados são, muitas vezes, capazes de fazer dos espaços e das instâncias de
opressão, lugares de resistência e de exercício de poder”. (LOURO, 2014, p. 37). E é pela arte,
insistimos, que tais práticas discursivas também podem ser formuladas, postas a circular e a
resistir a uma sociedade que violenta cotidianamente os sujeitos que se identificam como
LGBTTQ+.
Referências
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