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SUJEITOS E CULTURAS GOVERNADAS: O NEGRO E O CARNAVAL EM SANTA
CRUZ DO SUL
MOZART LINHARES DA SILVA
Pós-doutor em Estudos Culturais e Educação pela UFRGS, Professor Adjunto do Programa
de Pós-graduação em Educação e do Departamento de História e Geografia da Universidade
de Santa Cruz do Sul.
CAMILA FRANCISCA DA ROSA
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação – PPGEdu da Universidade de Santa
Cruz do Sul.
1. INTRODUÇÃO
A região de Santa Cruz do Sul é reconhecida como constituída majoritariamente por
uma população descendente de imigrantes germânicos. Contudo, as pesquisas apontam que, de
fato, há na região um universo étnico mais complexo e plural em que se destaca a presença da
comunidade negra. Estudos da última década dão conta das manifestações culturais bem como
dos processos de invisibilidade e visibilidade da população negra junto à comunidade regional,
apontando para processos de segregação e discriminação (Ver: SILVA, 2007 e SKOLAUDE,
2008).
No presente artigo propomos problematizar as relações entre a população negra e o
poder público em Santa Cruz do Sul, tomando como nexo analítico o Carnaval, festa popular e
profundamente arraigada à produção cultural dos sujeitos negros na região. Para tanto,
lançamos mão de algumas ferramentas conceituais do filósofo Michel Foucault na perspectiva
da governamentalidade biopolítica, nomeadamente a partir das estratégias dos dispositivos de
segurança.
Considerando que o Carnaval em Santa Cruz do Sul é um dos eventos mais
significativos de manifestação pública da comunidade negra, ao elegê-lo como ponto de análise
amplificamos a possibilidade de entender como o poder púbico recorre a mecanismos de
controle que buscam neutralizar os conflitos raciais/sociais da região bem como anular a ideia
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de preconceito/racismo existente, criando uma postura multiculturalista calcada nas bases da
diversidade e tolerância. Neste sentido, ao mobilizar estratégias de segurança, o poder público
age não somente para promover relações implicadas na não-conflitualidade, mas também na
regulação dos sujeitos.
Para realizarmos as problematizações e análises que propomos, lançamos mão de
entrevistas semiestruturadas realizadas com os membros das Escolas de Samba do município,
bem como reportagens e matérias publicadas a partir dos anos 2000 no Jornal Gazeta do Sul,
periódico de maior referência no município e região. Estas entrevistas e reportagens são
consideradas como corpus discursivo a partir dos quais procuramos circunscrever os
enunciados que apontam para as estratégias de governamento dos sujeitos, no caso, sujeitos
negros, a partir de suas relações com o poder público.
2. ENTRE CARNAVAIS: SUJEITOS E CULTURAS REGULADAS
“Eu sempre dizia pra eles, não me interessa o que tu é, me interessa
que por 45, 55 minutos, tu é um artista na avenida” (Entrevistado 01).
A historiografia regional, nomeadamente uma historiografia com contornos
oficialescos, exerce papel importante na construção das narrativas identitárias que procuram
legitimar o papel dos pioneiros germânicos no processo de estruturação da sociedade de Santa
Cruz do Sul. Estas narrativas, comumente, tomam o momento da chegada dos imigrantes como
marco/tempo zero da civilização regional, produzindo a invisibilidade étnico-cultural da
população negra na região. O mito de origem calcado nas narrativas germânicas da comunidade
coloca a população negra santa-cruzense na condição de não-pertencimento identitário ou
ainda, como outsiders.
Logo, a produção cultural dos sujeitos negros – como é o caso do Carnaval – é
notoriamente secundária diante da “cultura alemã” e de sua maior festa, a Oktoberfest. No
município, a maior festa popular do Brasil não é reconhecida como cultura local, o que tensiona
as relações entre o poder público e a comunidade negra. A partir destes tensionamentos, a
pesquisa, cujos resultados apresentamos neste artigo, problematiza as estratégias de
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governamento das manifestações da comunidade negra por parte do poder público, tomando
como demarcação temporal os anos 2000. Nestes anos, desfilaram na “avenida” santa-cruzense
dez Escolas de Samba, entre elas: Sociedade Cultural Beneficente Escola de Samba Imperatriz
do Sol (Bairro Faxinal Velho), Sociedade Cultural e Recreativa Unidos de Santa Cruz (Bairro
Senai/Pedreira), Grêmio Recreativo e Beneficente Escola de Samba SER Esperança (Bairro
Senai), Sociedade Cultura’e Recreativa Mocidade Imperial (Bairro Harmonia), Sociedade
Recreativa, Cultural e Beneficente 13 de Maio (Bairro Bom Jesus), Império da Torrano (Bairro
Menino Deus), Sociedade Cultural e Beneficente União (a única escola da região central),
Império da Zona Norte (Bairros Universitário, COHAB, Várzea e Navegantes), Academia de
Samba Bom Jesus (Bairro Bom Jesus) e Imperadores do Ritmo (Bairro Universitário). Vale
frisar que ambas estão constituídas majoritariamente nas regiões periféricas do município1 –
locais em que predominam as comunidades negras, já que a área central tende a preservar a
imagem germânica constituída a partir de suas narrativas.
Fica evidente, como veremos, que o Carnaval, para além de um evento festivo da
comunidade negra local, é uma importante estratégia de resistência – de se ‘fazer ouvir’ e
conquistar espaços mais amplos de visibilidade social e identitária. Não é sem sentido que os
sambas enredos, por vezes, destinaram-se a cantar a cultura, personalidades e a História negras.
Por exemplo: em 2002, a Escola 13 de Maio apresentou o enredo “De príncipe a escravo, de
um povo para um povo” e a Escola Império da Torrano apresentou o samba-enredo intitulado
“Dom Gílio, o 1º Bispo Negro”, uma homenagem ao Bispo que, enquanto padre negro e
residente no município, fortaleceu a comunidade negra através de grupos de promoção racial.
Ainda em 2002, a Agremiação Mocidade Imperial passa na avenida entoando o samba “Negro,
Cultura e Arte”. “Exaltação da Raça Negra” foi o samba-enredo da Escola Bom Jesus, em
2004. Já em 2009, a Agremiação Unidos de Santa Cruz, exalta a comunidade negra e o evento
1 Historicamente é importante salientar que as primeiras escolas de Samba também constituíram-se nos subúrbios
do Rio de Janeiro, pelos idos da década de 20, formadas, em suas maiorias, por afro-brasileiros. O Carnaval de
uma elite branca passava a conviver com um Carnaval mais popular e, sobretudo, com maior participação negra:
“Ao Carnaval burguês vinha juntar-se um outro Carnaval, cujos participantes eram, em sua maioria, afro-
brasileiros. As novas associações eram compostas pela fusão de pequenos vizinhos - vendedores ambulantes,
engraxates, trabalhadores ocasionais de diversos tipos; havia alguns brancos, porém os de cor escura eram
dominantes. Outras associações similares não tardaram em se formar. Os jornais da época incentivaram largamente
tais grupos, mostrando-os como participantes legítimos do Carnaval, chamando a atenção para o seu “exotismo”
que, no entanto, era também rotulado de “nacional” (QUEIROZ, 1992, p. 94).
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de maior representatividade, o próprio Carnaval, “Carnaval, a Magia do Samba”. Ou seja, o
Carnaval confere para essa comunidade modos de autorrepresentação e de consciência racial.
Assim, se concebemos o Carnaval como movimento de resistência da comunidade negra
temos de entender também as estratégias organizadas para governar esses sujeitos – ou seja,
como o poder público produz modos de regulação e controle dentro desses campos de lutas
identitárias. Uma vez que, como coloca Foucault, suscitada a possibilidade de resistência aquele
que domina tenta se manter com mais força, ou seja, criando um ciclo constante de relações de
poder e de jogos de forças – “a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à
rebelião” (FOUCAULT, 2012, p. 227).
2.1 Quando nem sempre dá samba
Em função das narrativas identitáriás de cunho germânico que se perpetuam na
sociedade santa-cruzense não contemplarem a presença étnica dos negros, criou-se, nesta
mesma direção, estratégias para regular a realização de eventos em torno deste grupo, como é
o caso do Carnaval. Por exemplo, a partir do ano 2000 o evento passará a ocorrer em um espaço
fechado e limitado – o chamado Parque da Oktoberfest (local que abriga o grande evento
municipal de tradição alemã – a Oktoberfest). Assim, a festa que historicamente ocupa as ruas
estará reservada a um local controlado e limitado.
Essa transposição de lugares pode ser pensada a partir da metáfora A Casa e a Rua, do
antropólogo Roberto Da Matta. Em que a rua é o espaço do público, da liberdade, já a casa – o
espaço do limitado – “ao passo que casa remete a um universo controlado” (1980, p. 70). Tão
logo, o Carnaval santa-cruzense se manteve durante a década de 2000 (com exceção do ano de
2005) no espaço do privado, daquilo que pode ser controlado, desta forma, cabe entender que,
se caso o Carnaval estivesse no espaço da rua, isso significaria um grupo – negros – ocupando
um local que não lhe é comum – o centro de uma cidade identitariamente constituída sob o
germanismo. Para tanto, esse é um evento que rompe com a normalidade estabelecida e, assim,
precisa ser vigiado, controlado e, como uma das estratégias possíveis, transposto a um local
limitado.
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Há, portanto, implicada nesta relação entre comunidade negra e poder público uma
racionalidade calcada no dispositivo de segurança, isto é, em estratégias de prevenção,
gerenciamento de riscos, crises e vulnerabilidades sociais (FOUCAULT, 2008), neste caso, em
torno das tensões raciais.
A partir do ano de 2008, os desfiles de Carnaval no município passam a ocorrer fora da
data oficial do calendário brasileiro. O atraso é justificado pelo poder público como modo de
atrair a participação da região no evento, visto que as festividades em outros municípios já
teriam sido finalizadas. No entanto, diversas reportagens no jornal local tratam do atraso do
repasse financeiro da poder público municipal às entidades carnavalescas justamente no período
em que estas entidades precisariam estar se organizando para os desfiles.
“O repasse da verba solicitada à administração municipal ocorreu mais tarde do que
o esperado, deixando pouco tempo para a preparação das escolas de samba”
(GAZETA DO SUL, 01.02.2008, ano 64, nº 06, Caderno Especial, p. 01).
“Há muita coisa para ser feita. Tivemos a liberação do dinheiro no mês passado e
agora precisamos encontrar a melhor maneira de investir”, salientou na reportagem
um dos dirigentes da Associação das Entidades Carnavalescas (GAZETA DO SUL,
10.02.2009, ano 65, nº 14, p. 05).
A questão financeira, quando comparada aos investimentos no evento carro-chefe do
município, a Oktoberfest, também é apontada por aqueles que produzem o Carnaval local: “eles
gastam 110 mil em dez carros alegóricos pra Oktoberfest e eles querem dar 110 mil reais pro
Carnaval, pra gente poder vestir mil pessoas, pagar mão de obra, fazer em torno de uns 12 carros
alegóricos, então, olha a disparidade da coisa” (ENTREVISTADO nº 06). Ou ainda:
Eu fui chamado atenção de uma coordenação, porque no ano passado nós gastamos
três mil reais pra vestir a corte do carnaval, aí eu digo assim, vocês tão reclamando de
um gasto de 3 mil reais pra fazer quatro fantasias, enquanto que, outras cortes, uma
gasta três mil reais, é veludo batido, viajam o Brasil inteiro, é hotel cinco estrelas,
agora, três mil reais pra fazer quatro fantasias e estamos gastando muito, então vocês
querem ver nossa corte de trapo. (ENTREVISTADO Nº 03).
Essa tendência à desvalorização de tal produção cultural pode ser compreendida, pelo
que aponta Woodward (2000, p.14), ao fato de que “a identidade está vinculada também a
condições sociais e materiais. Se um grupo é simbolicamente marcado como o inimigo ou como
tabu, isso terá efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens
materiais”.
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Como mencionado acima, no ano de 2005 os desfiles carnavalescos foram realizados
nas ruas centrais da cidade. Posteriormente, o Jornal Gazeta do Sul estampa a imagem
(FIGURA 1) do então prefeito, na manhã pós-desfile, juntamente com alguns membros de sua
administração, varrendo a rua “suja” após a passagem das Escolas de Samba.
Figura 1:
Fonte: Jornal Gazeta do Sul, 07.02.2005, ano 61, nº 11, p. 02.
Esta imagem, produzida pelo poder público, pode ser problematizada de acordo com o
ideal de limpeza e pureza que a cidade busca exaltar. Nesse caso, entendendo esta “limpeza”,
segundo Bauman (1998, p.15), a partir de uma visão de ordem2, em que a prioridade é manter
intocável o que é tido como natural e onde, o contrário disso, a sujeira, acarretaria na
“fragilidade da ordem”. Isto é, “o oposto da ‘pureza’ – o sujo, o imundo, os ‘agentes poluidores’
– são as coisas ‘fora do lugar’” (BAUMAN, 1998, p. 14). Entenda-se o Carnaval, ocupando as
ruas centrais da cidade, como um fato fora do padrão de pureza estabelecido e capaz de
comprometer a ordem fixada na sociedade santa-cruzense.
2 A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes do que elas ocupariam, se não fossem levadas
a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem (BAUMAN, 1998, p. 14).
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O tópico da manutenção da “limpeza” é abordado durante a Entrevista de nº 02, onde a
pessoa ressalta isto como um motivo para colocar os desfiles dentro do parque: “Santa Cruz do
Sul é higienista, ela pensa que, as pessoas livres são perigosas, então, tudo que é livre é perigoso,
o Carnaval é perigoso, nós temos que controlar ele”. Nesse sentido, é válido ressaltar que, os
dispositivos de segurança não são postos a partir dos binarismos do permitido e do proibido,
mas sim, para “estabelecer os limites do aceitável, além dos quais a coisa não deve ir”
(FOUCAULT, 2008, p. 9). À vista disso, não interessa ao poder público municipal proibir a
realização dos eventos carnavalescos no município e criar condições de tensão racial. No
entanto, cabe a regulação destes sujeitos, via Carnaval – seja pelo espaço limitado e fechado ou
mesmo pelas condições de hierarquia cultural estabelecidas, em que o Carnaval se caracteriza
pela sua ordem de não pertencimento identitário.
2.2 Uma festa a tolerar, um grupo a regular
Uma das características do Carnaval, enquanto expressão da cultura popular, é a diluição
das relações sociais. Roberto Da Matta (1980) frisa que este período festivo representa uma
inversão na estrutura social e a ligação dos negros com a música e com a dança lhes conferem
uma superioridade quando se trata de produzir tal festividade. Esse elo entre negritude e
Carnaval está presente na fala de sujeitos envolvidos nas agremiações santa-cruzenses:
E o Carnaval é essa união dos povos, carnaval é isso, Carnaval pra mim é o encontro
de gente, de pessoas, é a hora que tu deixa de ser o engenheiro, o médico e tu ta aqui
tocando tamborim, formado lá em medicina e aqui do lado ta o gari, mas daí tu é igual,
tu não é o médico e nem o gari, tu é um ser humano só, carnaval tem essa força,
entende. (ENTREVISTADO nº 03).
Como frisamos acima, as agremiações carnavalescas estão localizadas nas áreas de
periferia do município, espaço que em suma reúne a população negra. Com tal característica já
entendemos que o Carnaval produzido nestes locais não compartilha das narrativas fundadoras
da identidade germânica. O Carnaval deve ser, desta forma, problematizado a partir da
armadilha dos enunciados da diversidade e da tolerância. Armadilhas, visto que estão envoltos
no discurso do politicamente correto, mas, no entanto, constituem a ideia de identidades fixas
e essencializadas.
Esse apontamento fundamenta-se, por exemplo, no trecho que segue:
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Falta Mistura I – Os desfiles de Carnaval em Santa Cruz, além de evidenciar o esforço
daqueles que gostam e acreditam nesse tipo de espetáculo, também é revelador sobre
quem são os santa-cruzenses. Milhares de pessoas que participam ou assistem aos
desfiles são negras ou mulatas. Reconhecida como uma cidade germânica, a Santinha
também tem parte expressiva de sua população formada por descendentes de
portugueses, espanhóis e africanos, aquele grupo que se costuma denominar
“brasileiro”. Falta Mistura II – Os esforços da Assemp para profissionalizar e
qualificar o Carnaval local já pôde ser sentido na primeira apresentação. A próxima
deverá ser no sábado e o resultado deve sair na quarta-feira. A Assemp tem muito pela
frente. Mas, sem dúvida, um dos maiores desafios é juntar estes dois lados da
comunidade formando, pelo menos durante esses quatro dias, um grupo só. Em outros
municípios da região, pretos, brancos, mulatos e outras cores quaisquer desfilam lado
a lado. Em Santa Cruz, excetuando-se casos pinçados lá e acolá, a maioria ainda
permanece em casa, vendo Carnaval pela TV. Quer dizer, gostam de Carnaval, mas
não aqui! Falta Mistura III – Ninguém pode ser obrigado, é claro, a admirar um
espetáculo ainda pequeno como o de Santa Cruz. É preciso levar em conta também
que o espírito germânico é menos afeito a explosões de alegria, manifestações
públicas de entusiasmo. Mas quem curte o embalo de um pandeiro, o som da cuíca e
por aí vai, teria participação garantida nas escolas locais. E seria um bom começo
(JORNAL GAZETA DO SUL, 09/03/2000, Ano 56, n. 37, p.02).
Desta publicação no Jornal Gazeta do Sul é possível extrair diversos pontos de análise
no que diz respeito às relações étnico-raciais estabelecidas. “Mostrar quem são os santa-
cruzenses”, essas palavras reafirmam a ideia de que Santa Cruz do Sul projeta uma imagem
muito amparada pelo seu centro urbano, onde prevalecem os descendentes de imigrantes
alemães e deixa invisibilizado/oculto nas periferias aqueles que não representam as
características étnicas propagadas pelo germanismo3. Deste modo, o Carnaval é o momento em
que essa Santa Cruz invisível ganha cor e forma nas ruas centrais da cidade.
Quando indagados sobre essa ocupação de locais públicos há por parte dos entrevistados
a constatação da diferença dos espaços habituais.
Além de, ser uma festa popular brasileira, que a maioria é negros que fazem, desde o
mestre-sala a porta-bandeira, todo mundo lá, a maioria do público é negro, quem
participa né, e é o pessoal dos bairros que vem pro centro, então, eu acho que é essa
coisa ainda que ta em Santa Cruz que ta meio resistente. Essa coisa ainda, da imagem4
(ENTREVISTADO nº 06).
A isso, Silva (2007, p. 95) chama a atenção, que “o ideal de pureza, de ordem, de
pertencimento étnico, de desconfiança em relação a tudo que vem de fora, (os forasteiros)
3 Ainda sobre a ocupação de lugares, vejamos: “a ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais
como a divisão entre ‘locais’ (insiders) e forasteiros (outsiders). A produção de categorias pelas quais os indivíduos
que transgridem são relegados ao status de ‘forasteiros’, de acordo com o sistema social vigente, garante um certo
controle social” (WOODWARD, 2000, p. 46). 4 Essa imagem a que se refere o Entrevistado, diz respeito, a construção da narrativa identitária germânica que se
perpetuou na sociedade santa-cruzense.
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tornaram-se elementos importantes de controle, normalização e estigmatização”. O evento
associado a identidade étnica negra precisa, então, a partir de uma ordem multicultural,
acontecer e ser tolerado, mas, no entanto, regulado através da dimensão com que recebe apoio
e pelos locais que ocupa, ou seja, por estratégias que não permitam desmobilizar as linhas
identitárias de normalidade estabelecidas com base no germanismo.
O texto do Jornal ainda vê como um desafio unir os dois grupos – brancos e negros – ou
seja, há posto na sociedade santa-cruzense os conceitos binários do “nós” e os “outros”. Nos
quais, segundo Woodward (2000), as diferenças são construídas negativamente, através da
exclusão ou marginalização do outro. Esta distinção é, de acordo com Bauman:
O ‘nós’ feito de inclusão, aceitação e confirmação é o domínio da segurança gratificante,
desligada (embora poucas vezes do modo tão seguro como se desejaria) do apavorante
deserto de um lá fora habitado por ‘eles’ – os estranhos, os adversários, os outros hostis,
construídos simultaneamente ao ‘nós’, no processo de auto-afirmação (BAUMAN, 2012,
p. 47).
A lógica da exclusão, provocada nessa relação, projeta o ideário de identidades fixas –
pois, se você é o “nós”, não pode ser o “outro”, e vice-versa. O que também suscita relações de
conflito, seja de gênero, raciais ou mesmo de classe: “essa demarcação de fronteiras, essa
separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder”
(SILVA, 2000, p. 82), definem identidades hegemônicas e marcam quem poderá ficar dentro e
quem deverá estar fora, marcando os estabelecidos e os outsiders, tomando a expressão de Elias
e Scotson. “Assim, a exclusão e a estigmatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram
armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade,
mantendo os outros firmemente em seu lugar” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 22).
Assim, o fato de o Carnaval causar tamanho diferencialismo na sociedade santa-
cruzense pode ser encontrado no espaço do periódico reservado para os leitores exporem suas
opiniões, onde é publicada a carta de um cidadão, o qual questiona o uso do dinheiro público
destinado ao Carnaval e não a um time local de basquete:
Gostaria de utilizar esse espaço para fazer uma colocação. Como a Prefeitura
conseguiu destinar mais R$ 100 mil para o Carnaval de Santa Cruz do Sul, um evento
que ocorre apenas uma vez no ano, e não tem a capacidade de honrar um compromisso
assumido diante da população em campanha política, de trazer de volta à cidade a
alegria de torcer para um time que tem nome, história e já foi motivo de muito orgulho
para a população de Santa Cruz? (JORNAL GAZETA DO SUL, 21 e 22/01/2006,
Ano 61, nº 309, p. 4).
10
Nesta opinião, é notório que o autor de tal texto, não vê na festa, um evento de nome e
história dentro da comunidade santa-cruzense, muito menos algo que promova o orgulho dos
munícipes e mereça receber os recursos públicos para sua realização. Essa, pode-se dizer,
‘estranheza’ causada pelo Carnaval está imbricada em processos de subjetivação relacionados
à questão do pertencer. Como aponta D’Adesky (2001, p.41):
Sob esse ângulo, R. Ledrut observa que a identificação social do indivíduo está ligada
ao sentimento de pertencimento, que é um fator de identidade coletiva. Segundo ele,
a identificação social é um conjunto de processos pelos quais um indivíduo se define
socialmente, isto é, se reconhece como membro de um grupo e se reconhece nesse
grupo.
Desta forma, os santa-cruzenses não se veem como seres atuantes na festividade, ou
seja, não há o sentimento de pertença identitária e de autorepresentação quando se trata do
Carnaval. Por outro lado, as reivindicações dos carnavalescos são para que se consiga dar ao
Carnaval o mesmo respaldo, principalmente por parte do poder público, que já recebem outras
festividades, como salienta o Entrevistado nº 05:
Porque a gente vê assim, o Carnaval sempre é visto como algo secundário, sem
grandes importâncias, tu pode perceber que dois meses antes o carnavalesco, as
escolas, nem sabem os recursos que vão ter pra poder investir, então, como que vai
fazer algo de qualidade se não tem o orçamento, a Secretaria de Cultura que deveria
prestar toda essa política cultural, não faz né, porque o carnaval, a cultura aqui se
resume na Otober e, agora, o Enart.
Esse ‘estrangeirismo’ que caracteriza o Carnaval produzido na região de Santa Cruz do
Sul é salientado em constantes reportagens destinadas a divulgar o evento. Há uma recorrente
necessidade de relacionar a festividade símbolo da brasilidade com a festividade carro-chefe do
município ou com a cultura germânica, em contraponto ao que ocorre em todo o país em que
se destina os primeiros meses do ano às celebrações carnavalescas. Por exemplo,
A população de Santa Cruz do Sul, que nos últimos tempos estava acostumada com
as bandinhas e os grupos de danças típicas alemãs no centro da cidade, foi
surpreendida, sábado pela manhã, com muito samba, passistas e porta-bandeiras na
Praça Getúlio Vargas (JORNAL GAZETA DO SUL, 24/01/2000, Ano 55, nº 301).
Ou ainda: “o Parque da Oktoberfest esteve lotado na noite de sábado. Mas a festa da
alegria desta vez foi outra” (JORNAL GAZETA DO SUL, 23/02/2004, Ano 60, nº 25, p. 05)
e, também, “no lugar das tradicionais bandinhas, o Parque da Oktoberfest vai dar lugar ao
samba entre os dias 25 e 26, quando ocorrem os desfiles do Santafolia” (JORNAL GAZETA
DO SUL, 08/02/2006, Ano 62, nº 12, p. 03). Essas marcações identitárias estão diretamente
11
relacionadas a hierarquização e o estabelecimento da identidade normal, padrão, aquela que é
“natural, desejável” (SILVA, 2000). Não sem sentido, que o espaço midiático regional
(re)produza esses modos de normalização e as condições de possibilidade para desestabilizar
as identidades eleitas como ‘ameaças’ à ordem no que se refere as questões étnico-raciais.
Este contexto é constituído sobre a égide da diversidade multicultural, em que cada
sujeito deve estar posicionado em identidades essencializadas, mas necessariamente assumindo
uma posição de respeito e tolerância ao outro. Tanto que, na próxima entrevista é notório que
quando se trata da relação Carnaval e poder público as dificuldades são calcadas sobre um linha
de inclusão-exclusão, quase imperceptível: “mas só que esse casamento ta difícil de acontecer,
é uma coisa bem complicada, há uma resistência, isso aí como tu já percebeu, há uma resistência
e é uma resistência muito, assim, ela é bem sutil” (Entrevistado nº 06). Essa sutileza, a que se
refere o entrevistado, potencializada historicamente pela democracia racial que constitui as
relações brasileiras, é também efeito do enunciado da tolerância com o outro.
O discurso que prima pela tolerância dilui modos de enfrentamentos identitários, não
permite questionamentos e age em prol do bem estar social – quer dizer, é um discurso cômodo
para o Estado e, no caso, poder público municipal. É, ao mesmo tempo, um discurso que dá as
condições de possibilidade à classificação e à hierarquização entre “nós” e os “outros”, de forma
que estes estejam imbricados numa ordem de normalidade. Aliás, a celebração da diversidade
brasileira, atinente ao contexto desta pesquisa, coloca-se enquanto estratégia de governamento,
pois desde a construção discursiva da chamada democracia racial, constituída principalamente
no governo getulista – quer dizer, uma lógica do não-racismo – produziu-se uma seguridade
das relações. Baseada no equilíbrio de antagonismos (para tomar a expressão de Gilberto
Freyre, 2006), “fazendo os elementos da realidade atuarem uns em relação aos outros”
(FOUCAULT, 2008, p. 62), a democracia racial fez, ainda, com que as diferenças raciais
fossem anuladas em prol da celebração da diversidade e da regulação de uma suposta “paz”
social. Ao anular o racismo anulava-se a possibilidade da existência racial na perspectiva da
diferença (ou seja, na perspectiva que problematiza as relações de poder que nos afetam, VER:
THOMA, 2004, p. 1).
A tolerância é, portanto, estratégica ao manter seguras as relações sobre o manto da
diversidade. Tolera-se a partir de uma lógica in/exclusiva, ou seja, um discurso de que todo
12
devem ser incluídos, mas em gradientes diferentes, como no caso que este artigo trouxe, em
que o Carnaval ocorre, é presente no calendário festivo municipal, mas, no entanto, com menor
divulgação, com atraso, sem o aporte financeiro por parte do poder público, com estrutura
debilitada e em espaços que não lhe são tradicionais é, tão logo, também excluído.
É com a sutileza, referida acima, que essa linha entre inclusão e exclusão é tênue e que
a população negra, por meio de uma manifestação cultural, é governada e regulada e o corpo-
espécie da população imbricado em relações multiculturais de tolerância com o outro – este
outro que “coloca permanentemente em xeque” (SILVA, 2000, p.97) as identidades. A
condução do Carnaval pelo poder público, através das estratégias que vimos aqui, está
relacionada a um modo de governamento biopolítico, que através do dispositivo de segurança,
sustenta a ideia de não conflituidade étnico-racial, de inexistência do racismo por cor. O
Carnaval, que potencializa a presença da comunidade negra em contraste as narrativas de cunho
germânico prevalecentes em Santa Cruz do Sul, é desmobilizado pelo poder público a fim de
manter intactas as estruturas identitárias hierarquicamente construídas. Desta forma, os
dispostivos de segurança pela perspectiva da diversidade sucumbem às problematizações que
emergeriam caso as questões raciais fossem sustentadas pela perspectiva da diferença.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas palavras do sociólogo Zygmunt Bauman:
Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz de
sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os
estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético
do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua
simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente [...] se, em outras palavras,
eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente
vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-
estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz estranhos (BAUMAN, 1998,
p. 27).
Ou seja, toda sociedade estabelece narrativas identitárias autorepresentativas. Em
compensação, institui mecanismos de diferenciação perante a outro, criando, como escreveu
Bauman, os estranhos. Em Santa Cruz do Sul, o mito germânico estabelecido no município fez
13
das demais etnias, o que pode ser considerado, o “estranho no ninho”, inclusive e,
principalmente, a população negra.
Assim, regular as diferenças que formam uma mesma sociedade implica, por meio de
adoção das políticas multiculturais, em um governamento que age na globalidade, no corpo-
espécie da população – isto quer dizer, uma racionalidade biopolítica de governo, que distingue,
seleciona e hierarquiza. O Carnaval, expoente máximo da cultura negra santa-cruzense, é visto
como uma ferramenta para estabelecer, acima de tudo, um diferencialismo étnico.
O Carnaval em Santa Cruz do Sul está limitado a uma cultura de não-pertencimento,
sendo assimilado de “fora” para “dentro”. Nota-se, pela transposição do Carnaval para o parque
da Oktoberfest, sob a justificativa da qualidade de infraestrutura (mesmo não apresentando
relevantes mudanças), o que nos revela um aprisionamento/isolamento daquilo que não se faz
questão de propagar. Os atrasos na, já pequena, verba para as Agremiações, levando a
desestabilidade e, por vezes, ao atraso dos desfiles. Enfim, a qualidade inferior de recursos,
infraestrutura, organização e apoio do poder público e privado, recorreram nas comparações
que apontaram uma elevada disparidade entre o maior evento municipal, a Oktoberfest, e a
maior festa brasileira, o Carnaval, que coexistem numa mesma cidade.
Os negros residentes em Santa Cruz do Sul apropriam-se do Carnaval como modo de
expressão cultural. Através dele, estratégias para ganhar visibilidade. Assim, desestabilizar ou
investir no Carnaval implica numa relação direta com a cultura negra e sua comunidade.
Estigmatizar o Carnaval como um evento secundário, significa, também, uma forma de controle
do grupo que o produz.
4. REFERÊNCIAS
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______. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
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Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações
de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
14
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
_____. Ditos & Escritos IV: estratégia poder-saber. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 51. ed., São Paulo: Global, 2006.
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brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
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Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000.
4.1 Fontes Primárias
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GAZETA DO SUL, 09/03/2000, Ano 56, n. 37, p.02
GAZETA DO SUL, 23/02/2004, Ano 60, nº 25, p. 05
GAZETA DO SUL, 07.02.2005, ano 61, nº 11, p. 02.
GAZETA DO SUL, 08/02/2006, Ano 62, nº 12, p. 03
GAZETA DO SUL, 21 e 22/01/2006, Ano 61, nº 309, p. 4.
GAZETA DO SUL, 01.02.2008, ano 64, nº 06, Caderno Especial, p. 01.
GAZETA DO SUL, 10.02.2009, ano 65, nº 14, p. 05.
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4.2 Entrevistas
Entrevistado 01
Entrevistado 02
Entrevistado 03
Entrevistado 05
Entrevistado 06